Horror e Distopia nos Video Games: Experiência Narrativa e Cultura Contemporânea em The Last of Us

May 24, 2017 | Autor: Thiago Falcao | Categoria: Game studies, Video Games
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Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação XXV Encontro Anual da Compós, Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 7 a 10 de junho de 2016

HORROR E DISTOPIA NOS VIDEO GAMES Experiência Narrativa e Cultura Contemporânea em The Last of Us 1 HORROR AND DYSTOPIA IN VIDEO GAMES Narrative Experience and Contemporary Culture in The Last of Us Laura Cánepa2 Thiago Falcão3 Resumo: Nosso intuito neste artigo é buscar identificar no jogo The Last of Us o diálogo entre duas discussões distintas: a primeira (1) acerca dos gêneros da ficção científica (ou FC) e do horror como mobilizadores de traços culturais recorrentes nos jogos eletrônicos da atualidade, apontando para o fato de que tais valores se comportam como vetores para narrativas subjetivas de desejo e de interpretação (representação) contextual. A segunda discussão diz respeito aos aspectos da experiência narrativa nos video games, considerando questões de agência e performance em seus enredos; e de como esta se beneficia do diálogo próximo com os gêneros citados acima à medida que demonstra uma evolução na linguagem dos jogos eletrônicos e a forma através da qual imaginário contemporâneo é representado por estes artefatos genuinamente surgidos na cultura digital. Palavras-Chave: Video games. Horror. Ficção Científica. Abstract: In this paper we aim at identifying in the video game The Last of Us the dialogue between two separate points: the first is concerned with the narrative genres horror and science fiction as possessing cultural traces that are commonly identified in the video game scene nowadays. Thus these traces, we argue, may be interpreted as vectors for subjective narratives of desire and cultural interpretation. The second point is concerned with aspects of the contemporary narrative experience in video games. Considering the notions of agency and performance, we argue that the narrative enjoyment in a video game profits from the close dialogue with narrative genres, in the sense that it helps demonstrate an evolution both in language and representation of the current social imaginary. Keywords: Video games. Horror. Science Fiction.

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Trabalho apresentado ao Grupo de Trabalho Comunicação e Cibercultura do XXV Encontro Anual da Compós, na Universidade Federal de Goiás, Goiânia, de 7 a 10 de junho de 2016. 2 Universidade Anhembi Morumbi, Doutora, [email protected]. 3 Universidade Anhembi Morumbi, Doutor, [email protected].

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1. Introdução A possibilidade de interagir com uma história – de exercer agência sobre ela – se tornou uma das mais buscadas características da experiência narrativa contemporânea. A massiva presença dos video games em nosso espectro midiático oferece uma importância em especiala este fenômeno. Estúdios multimilionários como o Telltale Games, responsável por títulos como The Walking Dead (2012) e The Wolf Among Us (2013), ou a Naughty Dog, que assina o jogo The Last of Us (2013), são reponsáveis pela produção de jogos cuja característica mais cara tem sido a de proporcionar experiências narrativas arrebatadoras, nas quais o jogador não apenas dialoga para com os requisitos técnicos da experiência do cibertexto (AARSETH, 1997), mas sobretudo se envolve de forma relevante com a história sendo contada. Este fenômeno, ainda assim, não está reservado apenas aos games. Parques temáticos e ações contemporâneas de marketing encenam repetidamente cenários diegéticos, buscam não a simples promoção de franquias midiáticas, mas a capacidade de fazer com que os consumidores se sintam dentro destas. Exemplos são muitos: as ações promocionais do filme Tron: Legacy (Disney, 2010), na San Francisco Wondercon4, em 2010 (PUHL; AQUINO; FALCÃO, 2013), do filme Carrie5 (MGM, 2013), em um café da cidade de New York; ou, finalmente, o consumo extenso de parques temáticos como o Harry Potter World, localizado em Londres e assinado pela Warner ou o frisson6 acerca do lançamento de uma nova ala dedicada à franquia Star Wars no Walt Disney World apontam para uma tendência por parte do público - certamente relacionada às dinâmicas socioculturais discutidas por Jenkins (1992; 2006) - de se perder em meio a estas narrativas, de atravessar a fronteira da suspensão de descrença (FRAGOSO, 2013). Assim sendo, buscamos, neste artigo, observar um contexto que tem se afirmado consideravelmente na última década: ao mesmo tempo em que os jogos eletrônicos demonstram seu potencial narrativo, amadurecendo não apenas seu discurso mas também sua relação com a linguagem ensejada pelo meio - abandonando o status de mera diversão infanto-juvenil - suas temáticas assumem um teor distópico o qual não se pode ignorar. Jogos como The Last of Us (Naughty Dog, 2013) ou Bioshock Infinite (Irrational, 2013) nos 4

https://www.youtube.com/watch?v=BHZF1k_A84g https://www.youtube.com/watch?v=VlOxlSOr3_M 6 http://bit.ly/1oxs1iK 5

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apresentam mundos pós-apocalípticos repletos de cuja tônica é a da sobrevivência através da violência, às vezes empregada contra monstros, às vezes contra outros seres humanos. Em seu seio, figuras masculinas assoladas por traumas psicológicos estabelecem relações histéricas de proteção com figuras femininas. Dito isto, nosso intuito neste artigo é buscar identificar no jogo The Last of Us o diálogo entre duas discussões distintas: a primeira (1) acerca dos gêneros da ficção científica (ou FC) e do horror como mobilizadores de traços culturais recorrentes nos jogos eletrônicos da atualidade, apontando para o fato de que tais valores se comportam como vetores para narrativas subjetivas de desejo e de interpretação (representação) contextual. Isso se reflete tanto na relação entre os personagens protagonistas do jogo quanto na relação de ambos para com o mundo que os cerca. A segunda discussão diz respeito aos aspectos da experiência narrativa nos video games, considerando questões de agência e performance em seus enredos; e de como esta se beneficia do diálogo próximo com os gêneros citados acima à medida que demonstra uma evolução na linguagem dos jogos eletrônicos e a forma através da qual imaginário contemporâneo é representado por estes artefatos genuinamente surgidos na cultura digital.

2. Experiência Narrativa e Video Games: Agência, Performance, Respostas Participativas

Filmes assinados por grandes estúdios de Hollywood, séries milionárias para canais pay-per-view, jogos eletrônicos e até mesmo telenovelas de grandes emissoras compartilham uma particularidade: sua experiência narrativa não mais se confina a apenas um medium. Os suportes são os mais diversos possíveis, e mais importante, sua estrutura multimidiática agencia as ações dos leitores. Daí a relevância em se conhecer os detalhes da franquia, aspectos de personagens e da linguagem, além de informações triviais que evocam não apenas a noção de pathos e a relação entre leitor e obra, mas também são utilizadas de forma funcional como gerenciamento de impressão (GOFFMAN, 1959); signos encenados nos adereços das histórias e reencenados no mundo fora das plataformas oficiais. Subsiste, portanto, uma busca por completude, um colecionismo midiático, seja por fidelidade temática ou fetichismo e uma dependência entre certos aspectos narrativos diferentes de um mesmo mundo: ou consumimos tudo, ou a incompletude nos consome,

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sublinham obras como o tríptico Arrow, The Flash e DC’s Legends of Tomorrow, do canal de TV americano CW, ou franquias como os Vingadores da Marvel Comics, entre tantos outros exemplos. A questão que se interpela diz respeito ao que é consumido – e nossa análise neste artigo não se debruça necessariamente sobre um aspecto da experiência narrativa representacional, encontrada em suportes mais tradicionais como a televisão e o cinema. Nos interessa aqui o suporte do video game, mídia de cunho simulacional que não apenas oferece a possibilidade da identificação empática leitor-personagem, mas confere ao jogador a possibilidade de controlar as ações de um dado personagem, capacitando-o, em alguns títulos, a uma interação mais relevante para com a história7. Discutir a noção de agência não é um feito original. Não apenas o conceito foi extensamente investigado no campo dos game studies (KRZYWINSKA, 2009; MURRAY, 1997; entre outros), como articulações e proposições acerca dele têm permeado também a literatura acerca do tema produzida no Brasil (MACHADO, 2007; FALCÃO, 2012). Sua premissa central é a de que em um video game, um jogador pode interagir com a narrativa, pode exercer sua vontade nela através do controle de um ou mais personagens desta. A questão central que permeia nossa exploração, portanto, não está necessariamente relacionada à definição da noção de agência, mas sim à viabilidade da aplicação de um conceito como tal para investigar a noção de experiência narrativa na contemporaneidade. Nos debruçamos, portanto, sobre os jogos eletrônicos. Consideramos que sua principal divergência com relação à experimentação de outros meios de comunicação seja o fato de que é necessário neles agir. Não apenas para com eles, mas neles. Este é o componente que pensadores como Aarseth (1997) e Galloway (2006) consideram como sendo a alma mater dos vídeo games: o simples fato de que a pura cognição não dá conta da experiência, que é preciso engajar-se nela materialmente. Esta ação é responsável, então, pelo desenrolar do jogo que pode, por sua vez, contar uma história. Esta história não é, como pontuamos anteriormente, uma prerrogativa da experiência nos jogos eletrônicos. Às vezes, ela sequer figura, como em Super Hexagon (Terry Cavanagh, 2012). Às vezes ela é deliberadamente ignorada pelo jogador, que aperta A ressalva necessária aqui diz respeito ao fato de que nem todo jogo eletrônico – game – possui necessariamente um esqueleto narrativo em si. Esta condição não inviabiliza a discussão a partir da noção de agência, mas se aproxima dela através de outra lente interpretativa. A questão acerca das condições agenciais foi discutida previamente em Falcão (2012). 7

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freneticamente os botões do joystick buscando um exorcismo para o demônio da leitura ou para as aturáveis cut scenes apropriadas do cinema. Arlindo Machado (2007, p. 135) demonstra surpresa com o fato de que ainda não existe uma “teoria da enunciação em ambientes digitais” em contraposição à teoria da enunciação cinematográfica sobre a qual o próprio discorre. Honestamente, a surpresa que pode ser manifestada após tantas horas de observação e de imersão em jogos eletrônicos é o fato de que as produtoras e distribuidoras continuam insistindo em histórias a despeito de o consumo nem sempre se dar por causa delas. Ainda assim, afastemo-nos de tamanho pessimismo e retornemos à dimensão do consumo das narrativas interativas – que certamente é uma de nosso interesse. É importante que engendremos esta incursão ao campo dos game studies adentrando seu aspecto mais narratológico. O mais elementar problema de agência que pudemos conceber, quando observando Warcraft há anos atrás, compunha-se em um misto de desilusão e resignação: posso fazer tanto – e nada do que posso fazer importa (FALCÃO, 2012). Ainda assim, este tanto que se pode fazer é o suficiente para causar a sensação que Machado (2007, p. 136) identifica como “assujeitamento” – agência. Ela está restrita a um domínio específico da experiência dos meios de comunicação – responde às possibilidades de interação para com um texto. O teórico se apossa das ideias de Edmond Couchot para discursar acerca de uma subjetividade que é orientada ao automatismo maquínico, que funciona de fora do sujeito: “com a evolução das tecnologias de produção simbólica, há um momento em que os procedimentos de construção ganham autonomia: eles podem funcionar sem a intervenção de um operador” (MACHADO, 2007, p. 137). Este raciocínio de Machado (2007) tem como base uma reflexão acerca do surgimento de algo que Couchot (1998, apud MACHADO, 2007) chama de “sujeito aparelhado”8, um modo de subjetividade que abdica do eu para funcionar “sob um modo indefinido, impessoal e anônimo” (p. 137). Este sujeito, segundo Machado (2007), se manifesta em sua ligação para com os dispositivos tecnológicos; ele aparece no momento em que nos direcionamos a um jogo eletrônico e somos agraciados com as poucas possibilidades às quais só podemos, segundo Machado (2007, p. 144), agir de acordo com um “funcionamento inteiramente automático”.

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Tradução de Machado (2007): “le sujet appareillé”

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Dito isto, o sentido de agência evocado pelo campo dos game studies possui um número de particularidades descendentes do fato de que o componente diferenciador dos jogos eletrônicos com relação à mídia tradicionalmente representacional é a necessidade de interação, como pontua Janet Murray: Quando as coisas que fazemos trazem resultados tangíveis, experimentamos o segundo prazer característico dos ambientes eletrônicos – o sentido de agência. Agência é a capacidade gratificante de realizar ações significativas e ver os resultados de nossas decisões e escolhas. (...) Normalmente, não esperamos vivenciar a agência dentro de um ambiente narrativo (MURRAY, 1997, p. 127).

De posse da noção de agência como vetor inicial de exploração, nos aproximamos do título já mencionado, The Last of Us, lançado pelo estúdio Naughty Dog em 2013. Os motivos que nos levam a priorizar este jogo ante tantos de cunho narrativo lançados nos últimos anos são variados, mas convergem na relevância do fato de que o jogo não possui cunho infanto-juvenil. The Last of Us conta a história de Joel e Ellie. Numa tentativa vã de contenção de um fungo (Cordyceps) que transforma indivíduos contaminados em zumbis, Joel tem sua filha adolescente friamente executada por um soldado do exército americano. Ela morre em seus braços. Nos vinte anos que se seguem, a maioria da civilização é destruída pela infecção. Os sobreviventes vivem distribuídos em (i) zonas de quarentena fortemente policiadas, (ii) comunidades independentes e (iii) grupos nômades. Estas poucas linhas de descrição já são o suficiente para posicionar The Last of Us junto a outras distopias comprometidas com um cenário pós-apocalíptico. Talvez a mais relevante comparação no que diz respeito à composição do cenário seja com a série de TV / HQ The Walking Dead (AMC, 2010-), que conta a história de um grupo de sobreviventes no interior dos EUA, após um vírus dizimar a maioria da população mundial, transformando-os em zumbis. Transitando com versatilidade entre os gêneros do horror, sobretudo em seu aspecto de sobrevivência, e da ficção científica, em sua construção distópica e pós-histórica, The Last of Us nos apresenta, depois de cerca de uma hora de jogo, Ellie: uma adolescente protegida por um grupo de rebeldes anti-totalitaristas chamados de fireflies. Em uma situação onde Joel, controlado pelo jogador neste ponto, Ellie e outros personagens de menor magnitude entram em conflito com uma força de repressão de um distrito fortificado em Boston, Joel descobre que a adolescente foi mordida por um dos zumbis há algumas semanas e, como não

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iniciou a transformação, logo, é imune ao fungo. Esta notícia é recebida com frisson, e após uma discussão, Joel consente em escoltar Ellie através de um país tomado por monstros – humanos e modificados. A partir daí, o desenvolvimento da história passa a girar em torno da relação entre Joel e Ellie, e da relação dos dois para com o mundo. Joel, inicialmente afastado e cuidadoso, acaba se aproximando de Ellie e formando um laço paternal forte que é a raison d'être do drama. The Last of Us não é um jogo feliz – a história contada não é de redenção, embora em momentos exista, sim, um sentimento de esperança. Não é uma narrativa de aventura ou de fantasia, contudo. O jogo se afirma desde seus primeiros minutos como profundamente dramático e denso, numa composição que vai desde o núcleo fabular até os itens mais técnicos possíveis: a trilha sonora é atmosférica e melancólica, e foi composta por Gustavo Santaolalla que assinou as trilhas de Babel (2006), Brokeback Mountain (2005) e Relatos Salvajes (2014). O realismo gráfico e a coloração sem saturação, combinados à jogabilidade que demanda uma precisão homérica, conferem tensão à experiência. A violência exacerbada, por fim, dá o tom final, oferecendo ponderação acerca do estado dos personagens, pelo qual o jogador é responsável, e não o comum mote trigger-happy presente em tantos vídeo games assinados por grandes estúdios. Mas a noção de agência não é a única ferramenta disponível para endereçar o problema da experiência narrativa em The Last of Us; e mesmo que ela seja absolutamente pertinente, considerando-se que, afinal, é de um video game que se trata, a forma como o enredo é trabalhado é bem diferente da forma através da qual outras narrativas interativas – sobretudo em jogos eletrônicos – são estruturadas. Assim sendo, é necessário que introduzamos um outro arcabouço teórico, a fim de poder entender precisamente a composição da experiência deste texto, em específico, para seus jogadores. A grande questão se mostra de forma comparativa. No espectro cultural e acadêmico brasileiro, sobretudo no Campo da Comunicação, video games são tratados como uma grande categoria de artefatos inodoros e de cor semelhante. O fato é que jogos eletrônicos são tão diferentes entre si quanto livros: eles dependem, entre outras prerrogativas, de gêneros narrativos e de jogabilidade, da plataforma sobre a qual eles vão rodar, de intenção, arquitetura e design. Nosso ponto é que não adianta estabelecer uma comparação entre dois jogos considerados de narrativa sem olhar para suas especificidades. O movimento que nos leva a esta argumentação é o que percebe que a forma como a narrativa se desenvolve em The

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Last of Us se assemelha muito mais às suas contrapartes dramáticas em filmes e séries de TV do que em video games. Daí o fato de compararmos o jogo quase que imediatamente com a série de TV The Walking Dead. É muito mais direta a associação entre a essência da ficção científica distópica e da característica dramática do pós-apocalíptico do que com outros jogos que buscam ser reconhecidos pela qualidade ou pela forma com a qual contam uma história. A comparação de The Last of Us com Beyond: Two Souls ( Quantic Dream, 2013) ou com The Wolf Among Us (Telltale Games, 2013), que são do mesmo período e da mesma geração de consoles, além de serem considerados como parte de uma mesma leva de produtos industrializados, revela temáticas, tons e uma jogabilidade muito distinta entre os três títulos. Quando observamos os componentes agenciais, o problema se agrava: em The Wolf Among Us, por exemplo, a relação do jogador com a narrativa parece ser de muito mais autonomia. O jogo questiona efetivamente que nós da arquitetura textual (RYAN, XXXX) o jogador deseja trilhar, e este o faz de acordo com suas escolhas. A temática e as reações dos NPCs e da estrutura narrativa passam a ser, portanto, resultados direto da experiência do jogador, que faz escolhas esperando para ver o que acontece, numa dinâmica de tentativa-eerro. Esta mecânica é tão central à experiência do título da Telltale que ao fim de cada arco, os pontos pivotais narrativos são listados com porcentagens para que os jogadores possam comparar o caminho que sua história tomou com outros caminhos. Em The Last of Us se estabelece uma ilusão agencial (FALCÃO, 2012), mas não uma de cunho negativo ou de baixa qualidade. A transição entre cut scenes e cenas jogáveis é tão suave que faz com que o jogador se sinta efetivamente participante ativo de uma narrativa sobre a qual ele possui tanta agência quanto Joel e Ellie. A evanescência da agência no jogo da Naughty Dog se transforma não em um obstáculo para que subsista um processo de suspensão de descrença (FRAGOSO, 2013), mas sim um poderoso componente do processo imersivo. Se voltarmos ao trabalho de Lisbeth Klastrup (2003), a própria sugere, mais de uma década atrás, que o componente interacional material do video game não é necessariamente um obstáculo para a imersão, ele pode se transformar no vetor desta – que é o que sugere nosso argumento aqui. Esta digressão possui como fim principal sublinhar o fato de que é necessário um modelo teórico de experiência narrativa para video games que não os interprete necessariamente através da noção de agência. Propomos, neste intuito, que a experiência

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narrativa seja analisada de acordo com a noção de experiência como performance de Richard J. Gerrig (1993), e possuímos, para tanto, a justificativa de que ao combinar sua discussão acerca de respostas participativas com a noção de agência é criado um modelo de interpretação que atende a priori aos dois segmentos de investigação, questionando o que o jogador pode fazer através da noção de agência, mas considerando a estruturação da narrativa vivida através de um esquema de respostas participativas que endereça adequadamente. Antes de detalhar a noção de respostas participativas, é necessário que façamos uma pequena digressão pelo pensamento e pela pesquisa de Richard J. Gerrig (1993). Um dos entusiastas da corrente do impacto narrativo, Gerrig (1993), em seu livro Experiencing Narrative Worlds, argumenta que a forma através da qual interpretamos narrativas é a mesma, seja para narrativas de ficção ou narrativas fundamentadas na nossa realidade social. O pesquisador não busca com isso afirmar que ficção e realidade são a mesma coisa, mas sim que nosso cérebro processa a informação de acordo com a mesma dinâmica, e que um modelo de interpretação da experiência narrativa particularmente eficaz é o que considera que o leitor precisa encenar a narrativa, para poder compreendê-la. “Assim como atores encenando papéis, eles [os leitores] precisam oferecer substância à vida psicológica dos personagens” (1993, p.17). Sua teoria da leitura como performance se baseia em dois conceitos distintos: o primeiro é o de inferências, que diz respeito à forma como conseguimos completar gaps de vários tamanhos, quando em contato com textos. “Sempre que vamos ao cinema, assistimos a um filme ou lemos um jornal, estamos ativamente suplementando o texto” (1993, p. 29). Gerrig (1993) estabelece uma digressão na qual ele compara os graus de inferência encenados em direção a vários meios distintos, desde meios representacionais tradicionais até meios mais abstratos, como pinturas, por exemplo. Citando Walton (1990), Gerrig (1993, p. 29-30) questiona: “pode-se terminar de ler uma novela, mas não existe completude na tarefa de examinar uma pintura”. O segundo conceito – e aquele que é efetivamente importante na articulação com a noção de agência – é chamado de respostas participativas, ou p-responses. P-responses são respostas não-inferenciais que incluem a noção de participação ativa por parte do leitor. Quando um espectador é confrontado com uma situação que ele não deseja que aconteça com o personagem sendo encenado na mídia, este tipo de resposta é produzida, o que resulta em um tipo de interação baseada na empatia entre espectador e personagem. Considere-se um

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filme de horror hipotético no qual um personagem adentra um quarto escuro no qual o espectador teme que este venha a ser atacado – este temor, e a subsequente vontade de dizer “não entra aí!” são os componentes básicos de uma resposta participativa. Esta noção é particularmente interessante para analisar The Last of Us junto à noção de agência porque elas são aparentemente complementares. No jogo da Naughty Dog não existe uma arquitetura narrativa diversificada: os personagens singram precisamente por uma história sobre a qual a agência consiste em sobreviver, resolver puzzles, escapar de zumbis e humanos inimigos e, finalmente, registrar a sua própria inabilidade em lidar com o fim do mundo. Esta leitura é interessante sobretudo à medida em que serve como crítica da jogabilidade: existe, claro, um dispositivo de agência técnica, o jogador precisa ter desenvoltura e saber operar os controles do jogo; mas em último caso, isso importa pouco. Sua maior contribuição enquanto jogador de The Last of Us é testemunhar a história de Joel e Ellie e dividir sua dor, uma vez que não há nada que possa ser feito do ponto de vista de versatilidade narrativa. Nesse ponto, a noção de p-response é particularmente contemplada uma vez que ela se transforma em um último recurso para o jogador: conduzir os protagonistas ao seu destino sombrio sem poder lidar com isso de outra forma que não a necessariamente hipertextual. É como se o jogo zombasse do próprio medium para o qual ele foi implementado, tolhendo-o de sua mais cara característica, a de que a história pode se transformar de acordo com a vontade do jogador. Para entender a extensão da dimensão crítica de The Last of Us e de seu diálogo entre forma e conteúdo, é necessário que empreendamos uma reflexão acerca do modo como o jogo se insere numa ampla tradição de narrativas de horror pós-apocalípticas, em particular aquelas voltadas à ideia do ataque massivo de mortos-vivos.

3. Horror e Distopia, V

O fato da narrativa de The Last of Us estar calcada no gênero de ação, no qual personagens precisam enfrentar obstáculos mortais usando sua força física e suas habilidades corporais, não anula a presença do horror como força-motriz dessa história de monstros. Como é típico nas narrativas de horror, uma ameaça incontrolável está a encurralar os personagens, e suas motivações, assim como suas origens, são incompreensíveis a partir de critérios racionais. Além disso, como também é frequente nas histórias de horror, os

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personagens ameaçados são levados a um estado de regressão psicológica que provoca a ruptura e mesmo o colapso dos laços sociais. A ruptura da condição civilizada é um dos aspectos mais fartamente observados pelos estudiosos do "horror artístico" (CARROLL, 1999), e é também responsável por polêmicas relativas ao caráter potencialmente transgressor ou conservador do gênero, conforme se observa nos trabalhos de Robin Wood (1979) e Reinhold Humphries (2000) a respeito do horror cinematográfico estadunidense. Independentemente de qualquer tomada de posição quanto a essa polêmica em particular, o fato é que inúmeros autores (como WELLS, 2000; ZIZEK, 2000; LOWESTEIN, 2005) afirmam que a história do horror artístico é, essencialmente, a das ansiedades sociais que o acompanharam ao longo do tempo. Nesse caso, a epígrafe de Žižek ("Hoje, é mais fácil pensar o fim do mundo do que o fim do Capitalismo") nos ajuda a compreender a recorrência das distopias horríficas contemporâneas, nas quais hordas de monstros e de seres humanos em estado selvagem são os principais motores das histórias de horror, substituindo criaturas individualizadas como os vampiros, fantasmas, demônios e assassinos seriais que dominaram a maior parte das narrativas do gênero até a década de 1990. Assim, desde os anos 2000, cada vez mais cadáveres andantes, mortos-vivos, tropas de assassinos seriais e bandos de pessoas em desespero perambulam sem rumo entre ruínas, famintos por restos humanos. Essas figuras foram incorporadas com avidez pela indústria cultural, o que se verifica por sua insistente presença no espectro midiático: cinema, jogos eletrônicos, publicidade, vídeos amadores e até mesmo em artigos infantis como livros, desenhos animados, bonecos e materiais escolares. O horror foi, durante todo o século XX, um dos gêneros mais recorrentes nos produtos da indústria cultural, legando ao imaginário do século XXI uma grande quantidade de tipos adaptáveis a diversas situações narrativas. Monstros de diferentes origens, cientistas loucos, entidades extraterrestres, objetos animados e toda sorte de personagens insanos formaram um repertório poderoso, disseminado e, hoje, onipresente na paisagem midiática. O resultado dessa onipresença se verifica em diversas narrativas nas quais o imaginário do horror se apresenta incorporado à experiência cotidiana, e não mais como um evento extraordinário. Percebe-se, por exemplo, que de acordo com o mundo da ficção apresentado por séries de TV como Buffy – A Caça Vampiros (1997-2003, criada por Joss Whedon), Dexter (20062013, James Manos Jr.), Fear The Walking Dead (2014-, Robert Kirkman e Dave Erickson)

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entre outras, podemos encontrar com facilidade um vampiro, um lobisomem, um zumbi e um serial-killer a cada esquina. Esse processo de incorporação do horror ao cotidiano permite que ele facilmente se apresente em cruzamentos com outros gêneros, não raro transformandose em outra coisa. Entre as combinações mais frequentes do gênero, percebem-se relações já tradicionais com a ficção-científica, a comédia e o melodrama, mas, mais recentemente, também com o entretenimento de ação (em franquias como Abraham Lincoln Caçador de Vampiros), com o romance (como na saga Crepúsculo) e com o western (como nas séries de TV e HQ The Walking Dead). Ainda assim, mesmo em um universo tão vasto, observa-se que nenhum tipo de história de horror é tão popular atualmente quanto a de zumbis, ou, de maneira mais abrangente, de criaturas mortas-vivas que já foram seres humanos em algum momento de sua existência. Este é o caso do jogo The Last of Us, inspirado na tradição audiovisual das histórias de zumbis surgidas nos anos 1960. Essas histórias (como A Última Esperança da Terra, de 1964) foram influenciadas pela novela literária Eu Sou a Lenda (1954), de Richard Matheson. O trabalho de Matheson trazia um cientista que acreditava ser o único sobrevivente de uma pandemia provocada por um tipo de mosquito mutante surgido após a Guerra Nuclear. Buscando encontrar uma cura para a doença, ele convivia com milhares de monstros de hábitos vampíricos - e que, um dia, haviam sido seres humanos normais. Em 1968, o cineasta George Romero, assumidamente inspirado em Matheson, criou o que ficou conhecido como o moderno filme de zumbi, a partir de A Noite dos Mortos Vivos (Night of the Living Dead, 1968). E, na ocasião, vaticinou que suas criaturas canibais podiam ser compreendidas como o proletariado dos monstros. Afinal, diferentemente de figuras aristocráticas do horror clássico (como o Conde Drácula), os mortos-vivos de Romero não tinham nome próprio, posses ou poder de fala; andavam quase sempre em bandos e maltrapilhos, tendo como único objetivo saciar a necessidade básica da própria alimentação. Relegados a uma posição análoga ao que muitos entenderiam por alienação, os zumbis de Romero eram, como observa Larsen (2010), pura necessidade. Não se percebia em sua existência qualquer desejo genuíno ou reflexão sobre moralidade e livre-arbítrio. No entanto, essas questões assombrariam suas vítimas, obrigadas a lidar com perigo da desumanização representada pelo contágio e pela implosão social provocada pela chegada dos monstros. Até que se alcançasse essa “fórmula”, os cadáveres andantes trilharam um caminho tortuoso. De um lado, suas origens remontam à figura do Ghoul, um parente menos nobre do

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vampiro, chamado nos países lusófonos de Carniçal. Primo pobre do aristocrático chupador de sangue, o ghoul está interessado mesmo é na carne. Costuma-se relacioná-lo às vítimas de epidemias como a da Peste Bubônica, dadas como mortas e enterradas (por vezes ainda vivas) em valas comuns, e que se levantavam machucadas, assustadas e fedorentas das pilhas humanas hediondas. Lúcio Reis Filho destaca também o vínculo desse imaginário dos mortos-vivos com o temor da Hanseníase (REIS FILHO, 2012, p. 11) Mas nosso monstro em questão herdou seu nome mais popular da cultura centroamericana. Os zumbis foram introduzidos no imaginário estadunidense e europeu quando descritos pelo aventureiro William Seabrock no romance A Ilha mágica (The Magic Island, 1929) como corpos vivos sem alma, explorados por mestres feiticeiros no Haiti. Sua condição era como uma reencenação da escravidão negra que perdurou nesse país caribenho até 1794, quando foi derrubada em uma guerra travada pelos trabalhadores cativos contra os colonizadores franceses. Russell (2010, p. 34) identifica no zumbi descrito por Seabrock tanto trauma local da escravidão quanto o preconceito religioso do observador branco. Da literatura, rapidamente os zumbis haitianos foram absorvidos pelo teatro e pelo cinema de horror – que, em 1930, dava seus primeiros passos em Hollywood. A incorporação deles nos filmes nesse período não trouxe, porém, reflexão sobre os processos de exploração e violência colonial. Ao contrário, como observa Russel (2010, p. 34), catalisou como sintoma o ódio e a perplexidade das tropas norte-americanas que ocuparam o Haiti de 1915 a 1934. Isso pode ser conferido no sucesso da produção independente Zumbi Branco (White Zombie, Victor Halperin, EUA, 1932), que buscava fazer frente à tendência da época, encabeçada pelos estúdios da Universal, de contar histórias de horror com monstros vindos de países distantes, como Drácula (do Leste Europeu) e A Múmia (do Egito), vistos respectivamente nos filmes de Tod Browning (Dracula, 1931) e Karl Freund (The Mummy, 1932). Não por coincidência, o filme de Halperin foi estrelado por Bela Lugosi, ator que interpretara o Conde Drácula, agora apresentado como um cientista louco que transforma homens em zumbis para trabalharem como escravos em sua plantação de cana-de-açúcar. Nos anos seguintes, os zumbis, que não precisavam pagar direitos autorais (ao contrário de personagens como Drácula), marcaram presença em produções modestas A Morta Viva (I Walked With a Zombie, Jacques Tourneur, 1943), do estúdio RKO, e mosdestíssimas, como a independente Ouanga (George Terwilliger, 1936). Com o passar dos anos, o termo também passou a ser usado, de forma genérica, para identificar vítimas de experimentos científicos,

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drogas, invasões extraterrestres ou maldições nas quais perdiam o livre-arbítrio, como Zombies of Mora-Tau (Edward L. Cahn, 1957) ou The Astro-Zombies (Ted V. Mikels, 1968). Paralelamente, ao longo dos anos 1960, a produtora britânica Hammer retomaria a ideia do ghoul em Epidemia de Zumbis (Plague of the Zombies, John Gilling 1966), até que o jovem diretor de filmes publicitários George Romero fez a síntese que conhecemos hoje, inspirado no livro Eu Sou a Lenda (1954), de Richard Matheson (que havia sido adaptado para o cinema americano em 1964, com Mortos que Matam/I Am Legend, de Ubaldo Ragona e Sidney Salcon), explorando as ideias de contágio, apocalipse e epidemia hoje tão marcantes nos filmes sobre mortos-vivos. Em seu A Noite dos Mortos Vivos – cujos monstros, curiosamente, nunca são chamados de zumbis – Romero deu vida, segundo Steven Shaviro, aos “primeiros zumbis pós-modernos” (2015, p. 99). Para o autor, esses cadáveres ambulantes surgiam de uma nova relação com a morte, como a quintessência das imagens midiáticas, uma vez que são réplicas de alguma coisa que um dia andou viva pela Terra (SHAVIRO, 2015, p. 100). Nesse filme e nos outros seis que se seguiram (Dawn of the Dead/ Despertar dos Mortos, 1978; Day of the Dead/Dia dos Mortos, 1986; Land of The Dead/Terra dos Mortos, 2002; Diary of the Dead/Diário dos Mortos, 2007; Survival of the Dead/Ilha dos Mortos, 2009), Romero foi reelaborando os significados de seus monstros, em geral produzindo alegorias satíricas que os traziam como resultado da podridão do sistema capitalista. A partir da experiência inicial de Romero, que se popularizaria ao longo da década de 1970 e geraria dezenas de imitadores em vários países do mundo, houve, como observam Reis Filho e Suppia (2011, p. 278), uma “secularização” da figura do zumbi, “agora destacada da esfera religiosa para se coadunar ao contexto cultural, social e político dos anos 1960” (REIS FILHO; SUPPIA, 2011, p. 278). Assim, os mortos-vivos deixaram de ser um fenômeno sobrenatural ou extraterrestre a ser temido, ou mesmo um acidente científico a ser evitado, mas passaram a representar o futuro de todos nós na sociedade capitalista: cidadãos famintos e consumidores miseráveis. Nos filmes de Romero, como destaca Shaviro (2015, p. 105-106), a esperança em um futuro pós-apocalípitco está depositada naquelas personagens que estão fora das categorias principais de poder: os negros, as mulheres, os militares desertores, os bêbados etc. Em contraste, os representantes do poder estabelecido (governantes, militares, cientistas) saem-se mal, mostrando-se covardes, autoritários, irresponsáveis e, sobretudo, mais interessados em

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eliminar outros seres humanos do que em combater os mortos-vivos, já que esses últimos podem ser usados com fins políticos, científicos e militares. Não há dúvida de que, em suas bases, The Last of Us está inspirado nas histórias de horror com zumbis. Na narrativa do jogo, duas pessoas solitárias e decepcionadas com a reação da humanidade à ameaça monstruosa encontram a chance de salvar o mundo, desde que se disponham a sacrificar suas próprias vidas, seus afetos e suas convicções. Seu destino é marcado, assim, por uma dúvida existencial que trata de dar sentido à sua existência num mundo que pouco se importa com eles. No centro das discussões recentes sobre a ficção de horror e suas expressões na cultura popular, o filósofo Eugene Thaker, em In The Dust of This Planet (2011), busca compreender a força do gênero do horror sobrenatural a partir do pensamento de H.P. Lovecraft (18901937), escritor de ficção estadunidense que hoje tem sido relido por analistas culturais a partir de sua contribuição filosófica sobre o tema, não apenas em seu famoso ensaio O Horror Sobrenatural em Literatura, publicado pela primeira vez em 1927, mas principalmente porque seu bestiário ascendeu, de acordo com pensadores como Harman (2012) e Ludueña (2014), ao status de mitologia, assimilado e ressignificado pelas mais diversas esferas da cultura; a obra de Lovecraft, sugere Harman (2012), corresponde ao espírito corrente da filosofia. Ainda que sua literatura seja irredutível ao pensamento filosófico, sublinha Ludueña (2014, p. 12, grifo do autor), ela descreve o “horizonte contra o qual toda filosofia deve ser testada, se esta aspira se manter existente no pensamento” Para Lovecraft, a raiz do horror sobrenatural estaria no medo do desconhecido. Em suas palavras: “A emoção mais antiga e mais forte da humanidade é o medo, e o mais antigo e mais forte de todos os medos é o medo do desconhecido” (LOVECRAFT, 2008, p. 13). Retomando as ideias de Lovecraft, Thacker (2011) sai em busca de investigar filosoficamente o desconhecido, a que ele chamará de “mundo impensável” (unthinkable world, 2011, p. 01). Ele definirá o mundo impensável como aquele no qual a filosofia revela seus próprios limites, já que ela “não pode se expressar de outro modo que não seja o de uma linguagem nãofilosófica” (THACKER, 2011, p. 02). Nesse sentido, o autor aponta o horror sobrenatural como gênero privilegiado no qual o impensável assume lugar de destaque. Thacker (2011) aponta três modos básicos de conhecer o mundo que nos ajudam a compreender a função do horror sobrenatural como um tipo de “não-filosofia” ou “filosofia negativa” buscada por ele (2011, P. 01). O primeiro modo seria o “mundo para nós” (world

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for us, 2011, p. 04), que é antropocêntrico, conforme compreendido pela filosofia ocidental. O segundo modo seria o “mundo ele mesmo” (the world itself, 2011, p. 05), composto pela humanidade e também pela Natureza que a cerca, sem que o homem esteja considerado como o centro da indagação filosófica. Por fim, o terceiro modo seria o “mundo sem nós” (world without us, 2011, p. 05), categoria especulativa que adotaria a perspectiva do Universo – para o qual, até onde sabemos, nós e a natureza de nosso planeta não fazemos diferença alguma. A partir desses modos de compreender o mundo, Thacker sugere que o horror sobrenatural pode ser compreendido como um espaço de confronto entre mundo para nós e o mundo-ele-mesmo ou o mundo-sem-nós (2011, p. 08). A ficção de horror e seus monstros, para o autor, apontariam para o espaço imaginário sugerido por Lovecraft (THACKER, 2011, p. 08) em que nos deparamos com um universo no qual não somos nada, não sabemos nada, e quanto mais o compreendermos, mais próximos ficaremos do desespero e da loucura. Não se trata, então, simplesmente do medo de encarar a morte, mas de deparar-se com o enigma final. O horror como uma tentativa de pensar o impensável. Nessa nova equação, o zumbi é um monstro muito potente, pois, diferente de outros (vampiros, bruxas, lobisomens), ele elimina o fantasma, isto é, o lugar destinado à individualidade e à consciência – justamente aquele que nos oferece controle ou compreensão da imensidão misteriosa à nossa volta. Nas histórias de zumbis, não há qualquer pista do destino da mente ou da alma daqueles que são infectados ou comidos. Ao aniquilar qualquer traço de consciência, o zumbi deixa sobrar só a nossa carne – que, mesmo apodrecendo, é o que ainda resiste, junto com a matéria do mundo. O monstro-zumbi empurra um horizonte de tempo vazio à sua frente (LARSEN, 2014). Ele é, de cerro modo, o grau máximo em que somos capazes de imaginar o futuro inevitável: o mundo-sem-nós. Aí talvez resida a grande questão apresentada por The Last of Us: pois a angústia de sua dupla de protagonistas consiste em escolher a cada momento se vale a pena continuar vivendo, e por que. Os laços civilizados que os ligam aos outros humanos são frágeis, e apenas o afeto que nutrem um pelo outro pode dar algum sentido a uma existência fadada a acabar muito rápido. Ao mesmo tempo, como ocorre em diversas narrativas contemporâneas de zumbis, há um esvaziamento do poder de mistério dos monstros à medida em que angústia representada por sua chegada poderá ser superada por humanos capazes de manter algum tipo de laço afetivo. De certo modo, é como se o afeto individual fosse a única saída de sobrevivência, não havendo qualquer horizonte de solução coletiva.

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Considerações Finais

A recorrência com que jogos como The Last of Us atraem jogadores para universos narrativos distópicos e repletos de ameaças produzidas pela própria civilização, articulando elementos de ação física contínua e melodrama inseridos num universo de horror provocado pelo descontrole do avanço tecnológico, pode ser compreendida de diferentes formas. Uma delas – talvez a mais evidente – diz respeito ao entendimento moderno de que o fim do mundo não terá uma origem divina ou sobrenatural, mas poderá ocorrer como resultado da capacidade destrutiva da própria humanidade, em sua recusa de ver-se como parte da Natureza - ou de aceitar o "mundo-como-ele-é" descrito por Thacker (2011). Sob esse ponto de vista, há algo de potencialmente revolucionário nessas narrativas, no sentido de que elas são capazes de fornecer uma visão crítica dos rumos tomados pela sociedade contemporânea. Em chave diferente, porém, há que refletir sobre a insistência dessas narrativas de privilegiar certos ideais tradicionais identificados com o mundo masculino, tratado como o lugar da violência e da competição territorial, no qual se destacam homens que se arvoram ao papel de "protetores" de suas comunidades - e sobretudo de jovens mulheres, que acabam sendo vistas como propriedades desses homens. Nesse sentido, pode-se sugerir que o apocalipse descrito em The Last of Us pode constituir também como fantasia de uma volta artificial a um mundo pretensamente mais simples, no qual a sociedade tradicional - centrada no uso de violência pelos indivíduos do sexo masculino - pode ser reconstruída. Equilibrando-se entre essas possibilidades The Last of Us se insere em um grupo amplo de narrativas que habitam a paisagem audiovisual contemporânea, contemplando um imaginário contraditório que ainda parece estar longe do esgotamento em seu potencial reflexivo sobre nossa sociedade.

Referências

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