HUMANIZAÇÃO DA FIGURA FEMININA EM O MITO, DE CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE

October 4, 2017 | Autor: Antonio Guizzo | Categoria: Latin Literature, Contemporary Poetry, Woman, Carlos Drummond de Andrade
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11/12/2014

Humanização da figura feminina em o mito de Carlos Drummond de Andrade | Rediver | LL Journal

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HUMANIZAÇÃO  DA  FIGURA  FEMININA EM  O  MITO,  DE  CARLOS  DRUMMOND  DE ANDRADE Antonio Rediver Guizzo / Maíra Soalheiro Grade / Antonio Donizeti da Cruz Unioeste / Unioeste / Unioeste

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Toda tentativa de apreensão logicizante do significado de um poema incorre em uma  inadequação  dos  aparatos  teóricos  frente  à  densidade  e  plurissignificação  do objeto estético. Mas, se a consciência da impossibilidade do esgotamento dos sentidos de um poema restringe, em certa medida, a atividade crítica enquanto elaboradora de conceitos e determinações, em contrapartida, o intérprete, ao procurar acercar­se de seu  objeto  estético,  desprovido,  na  medida  do  possível,  de  crenças  e  juízos  pré­ estabelecidos, poderá transpor, por um breve e não totalizante instante, o abismo que separa  a  ciência  da  arte  e  intuir,  embora  nunca  de  forma  concludente,  os  sentidos encerrados em uma obra. Ou seja, nas palavras de Bosi, quando  este  [o  crítico]  se  abeira  respeitoso  da  densidade  do  objeto  estético, reconhecendo  que  a  sua  teoria,  por  mais  científica  e  rigorosa  que  pareça,  não vai ‘explicá­lo’ uma vez por todas, mas apenas tentará compreender alguns dos significados  e  dos  seus  processos  de  expressão,  o  risco  de  determinismo  será esconjurado desde o primeiro olhar do analista (37).

Desta forma, mesmo quando o intérprete acerca­se o mais próximo possível do poema,  toda  pretensão  delimitadora  de  sentidos  apenas  tolherá  a  vertiginosa pluralidade da poesia, pois “Só no poema a poesia se recolhe e se revela plenamente” (Paz 17). Com este olhar, debruçemo­nos sobre o poema O mito,  de  Carlos  Drummond de Andrade, no qual a percepção de uma mulher – que pode ser imaginada enquanto ser  particular  ou  enquanto  representação  mnemônica  do  gênero,  pois  a  única designação  pela  qual  é  nomeada  é  “Fulana”  –  transforma­se  em  tema  para  a representação poética do processo de materialização e humanização da mitológica e idealizada figura da musa que, principalmente a partir do modernismo, encarna­se na presença física da mulher, representada predominantemente em sua superficialidade, pois apreendida dentro de uma estrutura essencialmente patriarcal de sociedade. A  imagem  da  musa  enquanto  entidade  mitológica  capaz  de  inspirar  a  criação artística e científica origina­se na antiga Grécia. Segundo a mitologia grega, as musas surgem a partir do desejo dos deuses do Olimpo de perpetuar a glória da vitória sobre os filhos de Urano, conhecidos como titãs. Zeus, incumbido de encontrar o meio pelo qual  perpetuaria  a  vitória  dos  deuses,  relaciona­se  com  Mnemósine,  a  deusa  da memória.  Desta  relação  nascem  nove  filhas,  destinadas  a  cantar  as  glórias  dos deuses acompanhadas pela lira de Apolo. Segundo a crença grega, destas divindades provém a inspiração para o canto dos primeiros aedos. Esta ideia da vinculação entre arte e inspiração mediada por uma figura externa http://ojs.gc.cuny.edu/index.php/lljournal/article/view/1439/1498

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Humanização da figura feminina em o mito de Carlos Drummond de Andrade | Rediver | LL Journal

perpassa  toda  a  tradição  da  poesia  ocidental  e,  dentro  dela,  as  musas  são  um  dos elementos  mais  marcantes  e  recorrentes.  Na  própria  estrutura  da  poesia  épica, delimita­se  uma  parte  imprescindível  chamada  de  invocação,  na  qual  o  poeta  pede auxílio a entidades mitológicas para compor seu canto. Esta parte da epopeia pode ser observada  na  tradição  poética  de  língua  portuguesa  em  Camões,  “E  vós,  Tágides minhas, pois criado/ Tendes em mi um novo engenho ardente,/ Se sempre, em verso humilde,  celebrado/  Foi  de  mi  vosso  rio  alegremente,/  Dai­me  agora  um  som  alto  e sublimado,/ Um estilo grandíloco e corrente [...]” (Camões 12). Porém, é na poesia lírica que a imagem da musa descerá, gradativamente, do panteão  dos  deuses  a  terra;  e  o  primeiro  passo  será  a  transformação  da  deusa  em mulher idealizada, a partir do qual ganhará, paulatinamente, contornos mais realistas. Para  a  ilustração  deste  movimento  dentro  da  tradição  poética  brasileira,  pode­se recorrer a Marília de Dirceu, obra de Tomás Antônio Gonzaga (1744­1810), na qual a figura feminina, embora idealizada como nas demais produções árcades, ganha certos contornos  realistas,  segundo  a  visão  de  alguns  críticos,  pautados  na  historiografia literária, que apontam Marília como Maria Dorotéia Joaquina de Seixas, adolescente de 17 anos pela qual Tomás Antônio Gonzaga apaixonou­se aos 40 anos e, com a qual, não  pôde  casar­se  devido  à  prisão  e  exílio  sofridos  em  decorrência  de  seu envolvimento  com  a  Inconfidência  Mineira.  E  é  justamente  este  movimento  de corporificação  gradativa  e  constante  da  musa  que  será  tema  em  O  mito  de  Carlos Drummond de Andrade. Publicado  na  obra  A  rosa  do  Povo  (1945)  –  livro  “dos  mais  discutidos  e apreciados  da  poesia  moderna  brasileira:  celebrado  como  ponto  alto  da  poesia  de participação  social,  é,  ao  mesmo  tempo,  marco  da  linguagem  modernista,  por  sua expressão vigorosa e arrojadamente inventiva.” (Achcar 48) –, o poema O mito, além de  representar  uma  discussão  com  a  tradição  poética  em  relação  à  ideia  da  musa inspiradora, revela um denso questionamento vinculado às relações sociais, dentro de uma  perspectiva  manifestadamente  pautada  na  ideia  de  embate  entre  classes, realizada  por  um  poeta  indissoluvelmente  ligado  a  seu  tempo,  que  possui  uma consciência avassaladora deste fato – chave que não pode ser perdida na leitura deste poema. Porém, para evitar uma análise equivocada, que pretenda apreender o poema apenas  em  um  discurso  verificável  histórica  e  sociologicamente,  também  se  deve atentar à advertência de Mirella Márcia Longo: O poeta mineiro jamais conseguiu aderir completamente às grandes construções ideológicas do século XX. Sua breve aproximação ao socialismo reflete antes o seu  humanismo,  sem  chegar  a  constituir  uma  adesão  completa.  Às  soluções propostas pelas arquiteturas políticas – fascismo, stalinismo – e pelas ideologias religiosas, ou mesmo pelos psicologismos, Drummond responde com gestos de negação  e  suspeita,  permanecendo  com  a  perspectiva  que  lhe  oferecem  as próprias retinas fatigadas na insistente inspeção do mundo. (1)

Outro aspecto fundamental à análise do poema em questão é o compromisso, assumido  conscientemente  por  Drummond,  com  a  linguagem  poética,  o  que resplandece na qualidade, ritmo e consistência de seus versos. E é por este aspecto que se iniciará a leitura deste poema, pois, como Bosi adverte No  poema,  o  desenho,  o  ritmo  e  a  extensão  da  frase  não  são  aleatórios  nem puramente  convencionais.  Se  a  forma  é  artística,  se  construção  e  expressão andam juntas, sempre se dá algum nexo entre a sintaxe do período e a ideia ou sentimento que se quer significar. (226)

O poema O mito divide­se em quarenta e cinco estrofes de quatro versos e uma –  a  última  –  de  dois  versos,  sendo  todos  os  versos  compostos  por  redondilhas maiores (sete sílabas poéticas) e sem rimas fixas, o que confere ao poema um ritmo dinâmico  e  concentrado,  perpassado  por  um  conjunto  bastante  diversificado  de imagens. Verso extremamente rítmico e de fácil memorização, o heptassílabo é utilizado frequentemente em canções e quadras populares, tendo sido popularizado na tradição lírica portuguesa a partir das cantigas medievais. Além disto, o verso de sete sílabas “é o  mais  simples,  do  ponto  de  vista  das  leis  métricas.  Basta  que  a  última  sílaba  seja acentuada, os demais acentos podem cair em qualquer outra sílaba” (Goldstein 27), o que confere maior predileção por este verso nas produções populares.

IN F O R MA C IÓ N Para los autores/as

ELEMEN TO S R ELA C IO N A D O S  Mostrar todos A C ER C A   D E LO S A U TO R ES / A S Guizzo Antonio Rediver UNIOESTE ­ Universidade do Oeste do Paraná  Brazil Professor temporário e doutorando da Instituição UNIOESTE ­ Universidade do Oeste do Paraná; Professor da FAESI; Professor da Secretaria de Educação do Estado do Paraná Grade Maíra Soalheiro Brazil da Cruz Antonio Donizeti Brazil

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TA MA Ñ O   D E F U EN TE

Além dos versos, a estrofação do poema em quadras remete, também, a uma forma  de  divisão  vinculada  à  sabedoria  popular  e  de  fácil  memorização,  forma frequente em cantigas de roda e ditados. A escolha da estrofação e da métrica no poema remete, assim, a uma forma e um ritmo que, por sua recorrente presença na cultura popular, ativa certas estruturas mnemônicas  formadas  através  da  repetição  de  cantigas  e  quadras  populares, principalmente na infância, e provoca certo sentimento de familiaridade no leitor, o que acarreta  certa  pregnância  dos  versos  sobre  a  memória,  como  se  a  estrutura  do primeiro ecoasse sobre o segundo e assim sucessivamente. Somada a esta estrutura, a  repetição  constante  da  palavra  “Fulana”,  predominante  nos  primeiros  versos, imprime sentimento de aflição crescente diante das tentativas frustradas de delimitar a imagem feminina enquanto ser ou ideal ou humano. Sequer conheço Fulana,  vejo Fulana tão curto, 

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Humanização da figura feminina em o mito de Carlos Drummond de Andrade | Rediver | LL Journal Fulana jamais me vê,  mas como amo fulana (Drummond 84).

Além disso, a maioria das estrofes do poema, embora em estrita relação com as demais,  mantém  certa  autonomia  de  sentido,  o  que  revigora  a  marcação  rítmica  e  a impressão de ressonância, ao mesmo tempo em que invoca uma individuação, suscita um  ritmo  de  permanência,  revivificador  de  uma  estrutura  que  reproduz  a  procura angustiante do eu­lírico por uma resposta ao mistério de Fulana. Mas,  além  da  forma,  a  poesia  é  a  vivificação  de  um  sentimento  expresso  por meio de uma coerente complexidade de imagens. Assim, para adentrar ao universo do poema,  deve­se  compreender  a  estrutura  das  imagens  –  segundo  Laplantine  e Trindade, “construções baseadas nas informações obtidas pelas experiências visuais anteriores.” (5). A  primeira  característica  da  imagem  é  sua  relação  com  a  empeiria,  com  o mundo  sensível.  Sob  este  ínterim,  não  há  como  desvincular  imagem  e  percepção sensorial.  Entretanto,  a  imagem  não  é  o  objeto  em  si,  mas  uma  construção estabelecida  na  dialética  entre  a  realidade  do  objeto  e  certas  estruturas  do pensamento, representações da exterioridade mediadas por estruturas internas. Outra  característica  da  imagem  é  o  seu  caráter  alógico  de  estruturação,  pois “não  pode  ser  reduzida  a  um  argumento  ‘verdadeiro’  ou  ‘falso’  formal”  (Durand,  O imaginário  10),  ou  reduzida  a  um  sentido  inequívoco,  pois  há,  nela,  sempre  uma pregnância  que  permite  inferir­se  a  partir  dela  diversos  sentidos  –  “todo  ‘objeto’ imaginário é constitutivamente ‘dilemático’ (Claude Lévi­Strauss) ou “anfibológico” (isto é,  “ambíguo”  ao  compartilhar  com  seu  oposto  uma  qualidade  comum)”  (Durand,  O imaginário 84). No  mais,  a  imagem  manifesta­se,  também,  por  meio  do  símbolo  –  signo concreto,  e  não  arbitrário,  que,  por  relação  natural,  evoca  uma  entidade  ausente  ou não percebida; esta simbolização permite que o conhecimento seja condensado – “É graças  aos  símbolos  que  o  homem  sai  de  sua  situação  particular  e  se  ‘abre’  para  o geral e o universal” (Eliade 172). Pode se observar, desta forma, que o pathos veiculado pelo poema é expresso e  reiterado  pela  constelação  de  imagens  que  o  enforma  e  o  anima.  Mas,  apesar  do caráter dilemático e alógico das imagens, o poema dispõe­se segundo uma unidade de sentimento  que  o  orienta  e  que  pode  ser  apreendida  analogicamente  –  “Se  o sentimento é vivo e profundo, as figuras repontarão e a fantasia estética saberá dar­ lhes  ritmo  e  coerência”  (Bosi  231).  Assim  sendo,  no  poema  O mito,  encontrar­se­á uma  constelação  de  imagens  que,  em  conjunto,  orientar­se­á  dentro  de  certa coerência  que  poderá  ser  apreendida  se  mediada  pelo  sentimento  que  o  anima:  a procura dialetizante pela definição, delimitação e encarnação do objeto amoroso. Desta forma, após o eu­lírico sublimar a figura de Fulana na primeira estrofe – Fulana jamais me vê,/ mas como eu amo Fulana” –, na segunda, as imagens remetem­ se  à  contraposição  entre  a  ideia  de  amor  romântico  e  o  sexo,  contradição  que,  na justaposição de universos inconciliáveis dentro de uma tradição literária que segrega a idealização amorosa da relação carnal, representará a abertura da vazão de diversas imagens que dialética e suplementarmente culminarão na resolução da busca. Amarei mesmo Fulana?  ou é ilusão de sexo?  Talvez a linha do busto,  da perna, talvez do ombro  (Drummond 84).

Na quarta estrofe, seguindo esta orientação, inicia­se a enumeração de ações que revelam um cotidiano, uma rotina de vida que, embora valorizada enquanto status social – dança, esporte, bar –, aproxima a imagem de Fulana da representação de uma mulher  não  mais  inatingível  enquanto  figura  idealizada,  mas  enquanto  ser  de  classe social diversa. Mas Fulana vai se rindo...  Vejam Fulana dançando.  No esporte ela está sozinha.  No bar, quão acompanhada (Drummond 85).

Mas  além  da  classe,  “Fulana”,  ao  contrário  da  mulher  patriarcal,  possui autonomia  de  seu  desejo  e  vontade:  “Fulana”  é  livre,  não  pertence  à  determinada família, e a liberdade é condição que fortalece o lugar desta mulher enquanto pessoa, ser não simplesmente sujeitado às circunstâncias sociais, como entende Chauí: Considerando  que  a  humanidade  dos  humanos  reside  no  fato  de  serem racionais, dotados de vontade livre, de capacidade para a comunicação e para a vida  em  sociedade,  de  capacidade  para  interagir  com  a  Natureza  e  com  o tempo, nossa cultura e sociedade nos definem como sujeitos do conhecimento e da ação, localizando a violência em tudo aquilo que reduz um sujeito à condição de objeto (308).

Tal liberdade de Fulana – condição que o homem, ainda sob a estrutura de uma sociedade patriarcal, não está totalmente apto a conviver – é possibilitada pelo poder http://ojs.gc.cuny.edu/index.php/lljournal/article/view/1439/1498

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econômico. Como salienta Ribeiro, Somente  quando  ascende  da  pobreza  a  certa  suficiência  econômica  é  que  a mulher  alcança  condições  mínimas  para  aspirar  a  uma  vida  sentimental autônoma, para impor dignidade às relações sexuais, conduzindo­as à forma de um  jogo  coparticipado  e,  finalmente,  à  oportunidade  de  estruturar  uma  vida familiar  estável,  revestida  dos  símbolos  religiosos  e  legais  do  reconhecimento social (239­240).

Nas próximas estrofes, esta condição é explicitamente posta: “É dama de alta fidúcia,/  tem  latifúndios,  iates,/  sustenta  cinco  mil  pobres./  Menos  eu...  que  de orgulhoso/ Me basto pensando nela” (Drummond 85). Porém,  embora  inserida  em  uma  realidade  social,  Fulana  continua  a  figurar, antagonicamente,  elementos  idealizados  na  representação  da  mulher  segundo  uma tradição literária ocidental. Como deixar de invadir  sua casa de mil fechos  e sua veste arrancando  mostrá­la depois ao povo tal como é ou deve ser:  branca, intata, neutra, rara,  feita de pedra translúcida,  de ausências e ruivos ornatos  (Drummond 85­86).

Os adjetivos “branca, intata, neutra, rara”, tão recorrentes na representação do amor  idealizado  romântico,  inferem,  novamente,  para  uma  sublimação,  pois,  como afirma Gilbert Durand, representam o arquétipo da luz uraniana que contrapõe­se às imagens das trevas, da queda e da morte (“Fulana é vida”). Além disto, representam uma corporeidade diversa da matéria, do natural, já que é perpassada por ausências e possui forma translúcida. Seguindo  o  movimento  pressuposto,  em  contraposição  a  estes  adjetivos positivos dentro de uma escala idealizante, nas estrofes seguintes, Fulana reincorpora­ se em imagem real ao provocar a excitação no eu­lírico. Mas como será Fulana,  digamos, no seu Banheiro?  Só de pensar em seu corpo  o meu se punge... Pois sim  (Drummond 86).

A  simples  inferência  do  baixo  corpóreo  serve  para  reatualizar  a  imagem  da mulher enquanto ser real, que se distancia da representação idealizada. Este jogo de contrastes  entre  o  real  e  o  ideal,  ora  aproximando­se  de  um  extremo,  ora  de  outro, mantém a tensão no poema e, assimilado ao ritmo, métrica e estrofação, configura a angústia do eu­lírico, manifestada mais declaradamente em outras passagens: Mas fulana será gente?  Estará somente em ópera? Será figura de livro?  Será bicho? Saberei? (Drummond 86).

Esta dialética é reiterada, manifestadamente, também, na décima sexta estrofe, através  do  adjunto  adverbial  de  intensidade  ‘às  vezes’  –  “Fulana  às  vezes  existe demais” – e nas imagens de dois versos subsequentes – “eis que Fulana me roça”, “Olho:  não  tem  mais  Fulana”.  Para  tentar  determinar,  definir,  corporificar  a  presença inconstante e etérea de Fulana, a partir da décima oitava estrofe, o eu­lírico abre mão de  diversos  recursos.  O  primeiro  é  a  inquirição  de  operários,  boiadeiros,  doutores  e jornais – imagens que representam o conhecimento popular, científico e midiático – por evidências  que  levariam  ao  encontro  de  Fulana,  quando  todos  respondem negativamente ao anseio. O  segundo  meio  pelo  qual  procura  Fulana  é  a  tentativa  de  dedução  de  seu paradeiro, de busca hipotética por um espaço no qual Fulana encontrar­se­ia. talvez dance no cassino ou, e será mais provável, talvez beije no Leblon,  talvez se banhe na Cólquita (Drummond 87);

Nesta passagem, o movimento dialetizante do poema aponta para lugares que representam ora uma condição social elevada, mas real da personagem, – Leblon –, ora um espaço mítico – Cólquita, lugar que escondia tesouros como o velocino de ouro que era habitado por ninfas. As próximas estrofes também confrontarão uma presença real, estabelecida por meio de ações cotidianas – “talvez se pinte no espelho”, “talvez fume  de  piteira”  –,  com  uma  presença  idealizada,  mas,  desta  vez,  não  mais  em  um espaço mitológico, e sim inserindo Fulana em um ambiente moderno de mitificação: o espaço midiático. http://ojs.gc.cuny.edu/index.php/lljournal/article/view/1439/1498

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Humanização da figura feminina em o mito de Carlos Drummond de Andrade | Rediver | LL Journal Esse insuportável  riso de Fulana de mil dentes  (anúncio de dentifrício)  é faca me escavacando (Drummond 89).

Nesta  estrofe,  também  é  evidente  o  desgaste  que  a  angustiante  busca  de Fulana determina, representada pelas imagens “mil dentes” e “faca me escavacando”. Segundo  Durand,  o  movimento  anárquico,  nas  representações  do  imaginário, representa  negatividade,  caos.  As  imagens  elencadas  apontam  para  esta  sensação porque nelas ocorre um deslizamento de um esquema teriomórfico de representação da animação que infere o caos, o fervilhar anárquico, o formigamento – a “animação duplicada pela angústia diante da mudança, a partida sem retorno e a morte” (Durand, As  estruturas  77).  É  o  fervilhar  transformado  em  agressividade,  sadismo  dentário, boca  que  morde,  que  tritura,  que  representa  um  esquema  pejorativo  da  animação reforçado  pelo  traumatismo  da  dentição  na  primeira  infância,  “É  assim  uma  goela terrível,  sádica  e  devastadora  que  constitui  a  segunda  epifania  da  animalidade” (Durand,  As  estruturas  85),  nas  quais  agrupam­se  isomorficamente  imagens  que representam  um  dilaceramento  penoso,  um  caminho  de  atrição  com  a  vida,  por  fim, agonia  profunda.  A  isto,  soma­se  o  significante  do  signo  linguístico  “dentifrício”,  que através do som da consoante “r” reproduz esta imagem. A  outra  tentativa  de  corporificação  de  Fulana  é  encenada  por  meio  de  uma espécie  de  ataque,  que  representa  a  tentativa  de  tornar  o  mito  susceptível  a adversidades que o humanizariam. Quero morrer sufocado, quero das mortes a hedionda, quero voltar repelido pela salsugem do largo, já sem cabeça e sem perna, à porta do apartamento, para feder: de propósito, somente para Fulana (Drummond 89).

A  imagem  do  suicídio  como  expediente  derradeiro  evoca  a  encenação  da supremacia do amor sobre a própria vida, imagem comum no período romântico. No poema,  a  imagem  é  representada  pelo  grotesco,  forma  de  expressão  frequente  da geração  denominada  ultrarromântica,  que  tem  como  seu  maior  nome  Álvares  de Azevedo na lírica brasileira. Victor  Hugo,  um  dos  principais  representantes  do  romantismo  francês,  já apontava para a importância do grotesco nesta estética romântica: A poesia nascida do cristianismo, a poesia de nosso tempo é, pois, o drama; o caráter  do  drama  é  o  real;  o  real  resulta  da  combinação  bem  natural  de  dois tipos,  o  sublime  e  o  grotesco,  que  se  cruzam  no  drama,  como  se  cruzam  na vida e na criação (Victor 46).

A presença do grotesco e da morte por amor na obra em análise nos remete à Fulana  enquanto  representação  idealizada,  ao  mesmo  tempo  em  que  representa, paradoxalmente, uma tentativa de humanizá­la. Isso se faz através da aproximação do grotesco ao sublime, do corpo que fede à porta de Fulana, perspectiva que em uma poesia  mais  antiga  não  havia  ocorrido  –  “Os  sátiros,  os  tristões,  as  sereias,  são apenas disformes... Há um véu de grandeza ou de divindade sobre outros grotescos.” (Victor 30) –, mas já era peculiar para a vertente romântica. Posteriormente, a tentativa será transformar Fulana em figura grotesca, mas este ensejo já é repelido na mesma estrofe. já morto me quererá? Esconjuro, se é necrófila... Fulana é vida, ama as flores, as artérias e as debêntures  (Drummond 89).

Em  seguida,  o  espírito  que  anima  as  imagens  formadoras  da  idealização  de Fulana esforçar­se­á em caracterizá­la com símbolos que orientam uma positividade tecnológica, norteada por uma perspectiva positivista de evolução. Fulana é toda dinâmica, tem um motor na barriga. Suas unhas são elétricas, seus beijos refrigerados, desinfetados, gravados  em máquina multilite.  Fulana, como é sadia! Os enfermos somos nós (Drummond 89).

Tecnologia  asséptica,  imagem  de  um  mundo  ordenado  e  higienizado  do  qual Fulana  representa  o  auge;  igualmente,  uma  idealização.  Após  este  movimento,  a http://ojs.gc.cuny.edu/index.php/lljournal/article/view/1439/1498

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consciência  contida  no  poema  agirá  em  favor  da  germinação  de  uma  dúvida, movimento  que  refletirá,  novamente,  a  intenção  idealizadora  do  poema  contraposta pela imagem da mulher enquanto ser físico e tátil. Sou eu, o poeta precário  que fez de Fulana um mito, nutrindo­me de Petrarca, Ronsard, Camões e Capim; que a sei embebida em leite, carne, tomate, ginástica, e lhe colo metafísicas, enigmas, causas primeiras (Drummond 89).

Nestas estrofes, o espírito que mitifica Fulana permanece em estado latente, e sua  força  e  origem  são  analisadas  pelo  próprio  eu­lírico.  Nesta  trajetória  de descoberta,  três  poetas,  considerados  clássicos,  são  citados  –  o  francês  Pierre  de Ronsard  (1536­1585);  o  italiano  Francesco  Petrarca  (1304­1374),  considerado  o inventor do soneto; e o português Luís Vaz de Camões (1524­1580), tido como o maior poeta  de  língua  portuguesa.  Estes  poetas  mantêm  traços  comuns  em  suas  obras:  a influência dos modelos líricos greco­romanos; a predileção pelo amor espiritual e nunca consumado  em  detrimento  do  amor  carnal;  o  amor  cortês  e  a  subserviência  em relação à amada herdados da poesia trovadoresca; e a idealização da figura feminina, colocada em um patamar inatingível ao amante, no qual permanece imaculada. A  estas  características  fundantes  do  amor  platônico,  o  eu­lírico  contrapõe  o quarto  nome,  “Capim”,  que  se  refere  ao  alimento  comum  aos  equinos,  embora  seja empregado aí como substantivo próprio. Pode se concluir que o poeta, ao nutrir­se de “Capim”,  equipara­se,  ironicamente,  ao  burro,  de  maneira  metafórica,  inferindo  que  a falta de inteligência teria feito com que fizesse de Fulana um mito. Seguindo  a  mesma  constatação,  estabelece­se  o  vínculo  de  Fulana  com  a realidade  por  meio  da  enumeração  de  elementos  cotidianos  –  leite,  carne,  tomate, ginástica  –;  porém,  em  tom  confidente,  o  eu­lírico  declara  que  tem  consciência  da responsabilidade do movimento que transforma Fulana em mito, pois destes elementos cotidianos ele colhe “metafísicas, enigmas, causas primeiras”. A partir desta conscientização máxima do movimento idealizador, as próximas estrofes  nortear­se­ão  através  de  um  projeto  de  reconstrução  de  Fulana,  uma  outra Fulana distanciada do mito e da classe que a tornam inatingível. Mas, se tentasse construir outra Fulana que não essa de burguês sorriso e de tão burro esplendor (Drummond 90).

E  após  este  processo  de  reconstrução,  já  com  “as  contradições  extintas”  e ambos  “abrasados”,  Fulana,  substantivo  que,  embora  empregado  como  próprio,  não designa alguém em especial, e é substituído por Amiga – palavra grafada com inicial maiúscula, que igualmente não define alguém em particular, mas já carrega em si certa conotação sentimental. A  palavra  “amiga”  é  revestida  por  um  caráter  de  intimidade  fraternal  e,  ao empregá­la  como  nova  designação  para  Fulana,  descaracteriza­a  do  patamar  de objeto de desejo. Fulana já não é mais musa amada, é a amiga, ela e o amante são a “mesma coisa”, mesmo nível, desprovidos de classe, amor, mito. E digo a Fulana: Amiga, afinal nos compreendemos. Já não sofro, já não brilhas, mas somos a mesma coisa. (Uma coisa tão diversa  da que pensava que fôssemos) (Drummond 90).

Mas  além  do  conglomerado  de  imagens  motivadas  em  um  poema  e  de  sua composição  estrutural,  o  poeta  não  deixa  de  existir  enquanto  ser  inserido  em  uma sociedade. A poesia, embora consagração de um instante que ressoa ad aeternum, é sempre envolta, inexoravelmente, por seu contexto de produção, pois sujeito e objeto, poeta  e  palavras,  não  o  são  senão  em  sociedade,  “as  palavras  não  são  outra  coisa senão significados disto e daquilo, ou seja, de objetos relativos e históricos” (Paz 225). Logo,  como  bem  orienta  Octavio  Paz,  “o  poema  não  teria  sentido  –  nem  sequer existência – sem a história, sem a comunidade que o alimenta e à qual alimenta” (226). Nesta  perspectiva,  cabe  salientar  que  o  poema  O  mito  encontra­se  em  uma obra  que  é  marcadamente  orientada  por  uma  intenção  de  participação  social  em  um mundo  que,  naquele  momento,  exigia  que  a  poesia  aderisse  à  vida  coletiva,  como salienta Antonio Candido: Essa função redentora da poesia, associada a uma concepção socialista, ocorre em  sua  obra  a  partir  de  1935  e  avulta  a  partir  de  1942,  como  participação  e

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Humanização da figura feminina em o mito de Carlos Drummond de Andrade | Rediver | LL Journal empenho político. Era o tempo da luta contra o fascismo, da guerra de Espanha e, a seguir, da Guerra Mundial – conjunto de circunstâncias que favoreceram em todo o mundo o incremento da literatura participante (69).

Este engajamento ocorre, de maneira mais significativa, na obra A rosa do povo (1945). Nesta, se amplia a consciência de um “mundo errado” e o desejo de superá­lo, o que é visível no poema O mito. E é por meio deste olhar atravessado por ideologias anticapitalistas,  de  inspiração  marxista,  que  a  intenção  da  humanização  de  Fulana transita,  não  mais  na  exclusiva  procura  por  destituí­la  de  um  patamar  de  idealização mítica,  mas,  também,  através  do  desejo  de  libertá­la  dos  grilhões  que  a  prendem  à privilegiada  e  injusta  alta  classe  –  “Mas,  se  tentasse  construir  outra  Fulana  que  não essa  de  Burguês  sorriso”.  O  eu­lírico,  movido  por  uma  utopia  política  de  um  mundo sem  classes,  de  igualdade  e  justiça,  no  qual  os  males  seriam  superados  pela destituição  da  classe  burguesa,  compõe  uma  imagem  sensível  para  Fulana, distanciada do mito e da idealização romântica. E colocamos os dados  de um mundo sem classe e impostos; e nesse mundo instalamos  os nossos irmãos vingados. E nessa fase gloriosa, de contradições extintas, eu e Fulana, abrasados,  queremos... que mais queremos?  (Drummond 90)

Vence­se o obstáculo da realidade social e ambos, abrasados e despojados das estruturas  que  o  separavam,  se  compreendem  –  “já  não  sofro,  já  não  brilhas,/  mas somos a mesma coisa” –, distantes de um mundo que também segrega o eu­lírico e mitifica  Fulana.  E  esta  possibilidade  do  conhecimento  do  outro  surge  a  partir  da experiência  e  engajamento  político  que,  como  salienta  Antonio  Candido,  “permitiu transfigurar o quotidiano através do aprofundamento da consciência do outro” (81). A  plurissignificação  do  objeto  estético  da  poesia,  o  poema,  diferentemente  de outros  discursos,  não  permite  seu  enclausuramento  em  um  sentido  determinado;  o poema  será  sempre  algo  a  mais.  Nestas  páginas,  buscou­se  apreender  O mito,  de Carlos  Drummond  de  Andrade,  dentro  de  uma  procura  pela  corporificação  da  figura feminina  inserida  em  uma  estrutura  dialetizante,  que  ora  pendia  a  idealização,  ora  a realidade. Embora seja muito mais do que esse viés, foi perceptível, em O Mito, esta intenção  a  partir  de  uma  análise  da  estrutura  –  ritmo,  estrofação,  metrificação  e escolhas lexicais –, das imagens movidas pelo eu­lírico e do momento social no qual a obra é produzida. Mas o real e inexplicável espírito que move a obra ressoa em cada leitor  e  a  cada  leitura  permanece  intacto,  em  um  misterioso  universo,  que  pouco compreendemos, embora alguns o encontrem e dele colham seus poemas, e que se chama poesia.

Bibliografia Achcar, Francisco. Folha explica: Carlos Drummond de Andrade. São Paulo: Publifolha, 2000. Andrade, Carlos Drummond de. A rosa do povo. São Paulo: Record, 2002. Bosi, Alfredo. Leitura de poesia. São Paulo: Ática, 1996. Camões, Luís de. Os Lusíadas. São Paulo: Klick, 1999. Candido, Antonio. Vários Escritos. São Paulo: Duas Cidades, 1995. Chauí, Marilena. Convite à filosofia. São Paulo: Editora Ática, 2004. Durand, Gilbert. As estruturas antropológicas do imaginário. São Paulo: Martins Fontes, 2002. ­­­: O imaginário: ensaio a cerca das ciências e da filosofia da imagem. Rio de Janeiro: Difel, 2004. Eliade, Mircea. O sagrado e o profano. São Paulo: Martins Fontes, 1992. Hugo, Victor. Do grotesco e do sublime; tradução do prefácio de Cromwell. São Paulo: Perspectiva. 2004. Laplantine, François & Trinidade, Liana. O que é imaginário. São Paulo: Brasiliense, 2001. Longo, Mirella Márcia. “Um amante torto”. Caderno cultura do jornal A Tarde, 2007. Paz, Octavio. O arco e a lira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982. Ribeiro, Darci. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. São Paulo: http://ojs.gc.cuny.edu/index.php/lljournal/article/view/1439/1498

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Compa¬nhia das Letras, 1995.

 

PhD Program in Hispanic and Luso­Brazilian Literatures and Languages   The Graduate Center | CUNY ISSN: 1930­1693

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