Hume e Hutcheson: a “dissecção” filosófica do senso moral

May 28, 2017 | Autor: Lisa Broussois | Categoria: Ethics, Normative Ethics
Share Embed


Descrição do Produto

Flavio Williges Frank Thomas Sautter (Orgs.)

RAZÃO E EMOÇÃO

Ensaios em Ética Normativa, Metaética e Ética Aplicada.

Santa Maria FACOS-UFSM 2016

RAZÃO E EMOÇÃO: ensaios em ética normativa, metaética e ética aplicada

Nenhum aspecto da nossa vida mental é mais importante para a qualidade e sentido da nossa existência do que as emoções. São elas que fazem viver - ou, às vezes, até morrer - valer a pena. (Ronald de Sousa)

Flavio Williges - Apresentação | 3

Flavio Williges & Frank Thomas Sautter

Razão e Emoção: Ensaios em Ética Normativa, Metaética e Ética Aplicada.

Santa Maria FACOS-UFSM 2016

ISBN: 978-85-8384-033-6

FICHA TÉCNICA Diretora da FACOS-UFSM: Ada Cristina Machado da Silveira Foto de capa: Ronai Rocha. Projeto Gráfico Capa/Miolo: Estevan Garcia Poll Todos os direitos reservados.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação - CIP L951

Razão e Emoção: ensaios em ética normativa, metaética e ética aplicada / organizadores Flavio Williges, Frank Thomas Sautter. – Santa Maria, RS: FACOS-UFSM, 2016. 210 p.

1. Ética normativa. 2. metaética. 3. Ética Prática. I. Williges, Flavio. II. Sautter, Frank. CDU 17

Sumário: APRESENTAÇÃO................................................................................................ 09 Abordagens sentimentalistas em ética: um histórico e perspectivas

Flavio Williges........................................................................................... 13



Parte I: Ética Normativa

HUME E HUTCHESON: A “DISSECÇÃO” FILOSÓFICA DO SENSO MORAL

Lisa Broussois............................................................................................ 43

A APROXIMAÇÃO ENTRE SENTIDO MORAL E SENTIDO ESTÉTICO NAS TEORIAS DE SHAFTESBURY E HUTCHESON

Carla Milani Damião................................................................................ 55

FELICIDADE E VIRTUDE: O CONFRONTO CRÍTICO ENTRE A ÉTICA ARISTOTÉLICA E A FILOSOFIA PRÁTICA KANTIANA

Édison Martinho da Silva Difante............................................................ 69

AÇÃO POR DEVER, MÓBIL SUPREMO E INCLINAÇÃO EM KANT Letícia Machado Spinelli........................................................................... 81



A INVESTIGAÇÃO DIALÉTICA NA KRITIK DER PRAKTISCHEN VERNUNFT: DA ANTINOMIA E SUA FUNÇÃO CRÍTICO-SISTEMÁTICA PARA O ESTABELECIMENTO DO “SUMO BEM” E DOS “POSTULADOS DA RAZÃO PRÁTICA PURA” Luciano Duarte da Silveira....................................................................... 99 A AÇÃO COMPASSIVA NO “PIOR DOS MUNDOS POSSÍVEIS”

Mônica Saldanha Dalcol......................................................................... 115

A RAZÃO PRÁTICA COMO UMA ARTE DE SER FELIZ NA ÉTICA DE SCHOPENHAUER

Anerson Gonçalves de Lemos............................................................ 123

SOBRE O ESTUDO DA INFORMAÇÃO E DO VALOR PARA JUÍZOS MORAIS

Ana Gabriela Colantoni.......................................................................... 143



Parte II: METAÉtica

ASPECTOS GERAIS DA TEORIA METAÉTICA DE H. P. GRICE

Kariel Antonio Giarolo........................................................................... 159

DOUTRINA DO DUPLO EFEITO: A FORMULAÇÃO DE WARREN S. QUINN

Rafael Chiminte....................................................................................... 175



Parte III: ÉTICA FENOMENOLóGICA

A ÉTICA DA RESPONSABILIDADE DE HANS JONAS: ÉTICA NORMATIVA OU ÉTICA APLICADA?

Lilian Simone Godoy Fonseca................................................................ 185

LEITURA FENOMENOLÓGICA DO SI MESMO COMO SUJEITO ÉTICO EM EMMANUEL LEVINAS

Silvestre Grzibowski............................................................................... 193

RESPEITO E “CASOS DIFÍCEIS” EM PAUL RICOEUR

Adriane da Silva Machado Möbbs......................................................... 205



Parte IV: ÉTICA PRÁTICA

AS TESTEMUNHAS DE JEOVÁ E AS TRANSFUSÕES DE SANGUE: LIBERDADE INDIVIDUAL E DEVERES DO ESTADO Gabriel Goldmeier & Elena de Oliveira Schuck.................................. 223 BEM-ESTARISMO, JUSTIÇA E AS TECNOLOGIAS DE APRIMORAMENTO HUMANO Mateus Stein............................................................................................ 237

AS CRÍTICAS DE GARY L. FRANCIONE À TEORIA DOS DIREITOS ANIMAIS DE TOM REGAN Gabriel Garmendia da Trindade........................................................... 243

RAZÃO E EMOÇÃO: ensaios em ética normativa, metaética e ética aplicada

Hume e Hutcheson: a “dissecção” filosófica do senso moral

Lisa Broussois

UFMG / Université de Lausanne

1 Introdução A evocação de um senso moral na terceira parte do Tratado da natureza humana de David Hume lembra os sentimentalistas morais, como Lorde Shaftesbury ou Francis Hutcheson. Hume parte de uma constatação geral da observação da natureza humana, segundo a qual temos tal senso. Porém, o que significa? De fato, Hume, seguindo Hutcheson, já afirma que a motivação da ação é sempre passional e que o julgamento moral é ligado a sentimentos. No entanto, ao contrário de Hutcheson, Hume tenta investigar a origem do senso moral. Podemos afirmar, como amiúde ouvimos, que o senso moral soe ser, para Hume, uma expressão desprovida de conteúdo, uma fig-leaf1? Mas por que motivo(s), então, decide ele mencioná-lo, senão por alguma boa razão? Com efeito, após a descoberta do mecanismo de simpatia, poderíamos imaginar que não seria mais admissível falar de “senso” moral. É escorreito? O presente artigo defende que NÃO. A solução, aqui apresentada, é surpreendentemente simples. Consiste em partir de dois pontos de vista diferentes, em relação à distinção entre senso moral e simpatia. Como tornar isso possível? Para responder, pretendemos visualizar, em primeiro lugar, como a articulação entre simpatia e senso moral seria uma aplicação direta da famosa distinção de Hume entre anatomia e pintura, distinção essa que ele próprio usa, justamente na sua correspondência com Hutcheson. Buscamos entender, em segundo lugar, Uma folha de figo. Jean-Pierre Cléro explica : « que, déjà chez Hume, dès le livre III du Traité de la nature humaine, la notion ne soit plus qu’une fig-leaf recouvrant des processus qui n’ont rien à voir avec la façon dont on imagine les vivre. » (“que, já em Hume, desde o livro III do Tratado da natureza humana, a noção não seja mais do que uma fig-leaf recobrindo processos que nada têm a ver com o modo como imaginamos vivê-los.”) (CLERO, J-P. Le sens moral chez Hume, Smith et Bentham. In: JAFFRO, L. (coord.). Le sens moral Une histoire de la philosophie morale de Locke à Kant. Paris : PUF, 2000, tradução minha). 1

Lisa Broussois | 43

Flavio Williges & Frank Thomas Sautter

o que diferencia o ponto de vista de Hutcheson do ponto de vista de Hume sobre o senso moral. Chegamos assim, ao final, à análise da “dissecção” anatômica que Hume efetua sobre o próprio conceito de senso moral de Hutcheson e à explicitação de sua relação com a simpatia.

2 Retrospectiva Antes da publicação da terceira parte do Tratado da natureza humana, o recente amigo de David Hume (1711-1776), o filósofo Francis Hutcheson (1694-1746), enviou-lhe seus comentários. A terceira parte é, com efeito, a parte moral do estudo de Hume sobre o funcionamento da mente humana. Hutcheson era reconhecido, na época, por ser um dos maiores especialistas em filosofia moral, em virtude de seu papel como consagrado professor da Universidade de Glasgow nesta área. Sobretudo, Hutcheson possuia exatamente o que Hume, de certa maneira, procurava: o sucesso literário, o reconhecimento de suas obras. De fato, após a publicação das duas primeiras partes do Tratado, marcada pelo insucesso, Hume não desejava ver a história se repetir. Um grande nome da filosofia era o que ele precisava para dar visibilidade a seus escritos e ajudar-lhe a publicar. Além do mais, ele imaginou poder corrigir as razões do seu insucesso através dos conselhos de uma “autoridade”. Nessa perspectiva, começou a correspondência entre Hume e Hutcheson. No entanto, Hume não estava realmente aberto a aceitar todas as críticas do seu novo amigo. Uma tensão surgiu quando Hutcheson criticou o caráter insuficiente da defesa da virtude na filosofia do Tratado de Hume. Como defender a virtude à maneira de Hutcheson, quando Hume estava desenvolvendo seu próprio projeto filosófico, com seus próprios objetivos? Quiçá o Hume do Tratado desejasse ser um filósofo do senso moral, tal como Hutcheson, mas devia fazê-lo a seu próprio modo. Hume tentou mostrar, assim, que uma teoria do senso moral e uma teoria da simpatia podiam ser compatíveis, mediante o processo de “dissecção” filosófica do próprio conceito de senso moral de Hutcheson.

44 | Lisa Broussois

RAZÃO E EMOÇÃO: ensaios em ética normativa, metaética e ética aplicada

3 O anatomista A “dissecção” do senso moral tem como ponto de partida uma distinção fundamental, feita por Hume, entre um anatomista e um pintor. É interessante notar que essa distinção aparece pela primeira vez na carta de 17 de Setembro de 1739, na qual Hume responde a alguns comentários de Hutcheson sobre a terceira parte do Tratado da natureza humana: “Há diferentes modos de se examinar a mente assim como o corpo. Pode-se considerá-los seja como anatomista, seja como pintor, para descobrir seus mais secretos motores e princípios, ou a graça e a beleza de suas ações. Eu imagino que seja impossível combinar essas duas perspectivas. Onde você retirar a pele e exibir todas as partes em minúcias, aparece algo trivial, mesmo nas mais nobres atitudes e mais vigorosas ações; nem sempre você pode tornar o objeto gracioso e atraente, a não ser revestindo as peças novamente com pele e carne e apresentando apenas seu vislumbre externo2.” (HUME, D., [Carta]  17 de setembro de 1739, Ninewells [para] HUTCHESON, F., Glasgow. Resposta de Hume a Hutcheson, tradução minha.)

A distinção entre o anatomista e o pintor é uma distinção filosófica, que se repete mais de uma vez nas obras de Hume. Depois da carta a Hutcheson, ela aparece na conclusão do Tratado, III iii 6 6 e na introdução da Investigação acerca do entendimento humano. Existem muitas interpretações diferentes para se entender a comparação em pauta: uma diferença de métodos filosóficos, uma distinção entre dois estilos de escritura, entre dois gêneros literários, ou mesmo dois objetivos filosóficos complementares. A perspectiva e os destinatários soem também ser distintos. A guisa de exemplo, no artigo “The Anatomist and the Painter: The Continuity of Hume’s Treatise and Essays” (1991), J. Immerwahr vê essa distinção através de duas justificativas complementares. O pintor deve ajudar-nos a ter uma vida mais virtuosa e feliz, enquanto o anatomista deve dar assistência ao pintor (ou seja, à filosofia prática). K. Abramson mostra, contudo, no seu artigo “Hume’s Distinction between Philosophical Anatomy and Painting” (2007), que a anatomia não tem como 2 “There are different ways of examining the mind as well as the body. One may consider it either as an anatomist or as a painter: either to discover its most secret springs and principles, or to describe the grace and beauty of its actions. I imagine it impossible to combine these two views. Where you pull off the skin and display all the minute parts, there appears something trivial, even in the noblest attitudes and most vigorous actions; nor can you ever render the object graceful or engaging, but by clothing the parts again with skin and flesh, and presenting only their bare outside.”

Lisa Broussois | 45

Flavio Williges & Frank Thomas Sautter

único objetivo servir à pintura: uma anatomia bem laborada teria como consequência, entre outros, servir a pintura. Não queremos embarcar na polêmica e defender uma interpretação em particular, mas somente refletir sobre como o senso moral foi usado para marcar, ainda mais, essa distinção entre anatomista e pintor. Com efeito, o senso moral é um conceito comum à filosofia de Hutcheson e à filosofia de Hume no Tratado. Não obstante, Hume deixa claro que não pretende seguir o caminho de Hutcheson, posto que Hume faz essa distinção entre o anatomista e o pintor. Na carta a Hutcheson, Hume se posiciona como anatomista. No Tratado, pode-se defender que foi também o caso: Hume quer ser anatomista e Hutcheson passa a ser, assim, um exemplo de pintor. A alusão à comparação do anatomista e do pintor na conclusão do Tratado (HUME, D., 2007, p. 660) faz, claramente, referência à correspondência entre os dois filósofos e mostra, mais uma vez, um Hume que busca descobrir os princípios e segredos da mente, a qualquer preço. Nada obstante, é possível conjecturar que anatomia e pintura foram duas formas de filosofia humeana. Isso ocorre, unicamente, se consideramos essas duas formas de maneira separada: Hume pode ser anatomista numa obra e pintor em outra. O pintor e o anatomista não coabitam na mesma obra, pois as visões são dificilmente conciliáveis. No Tratado, como Hume opta por ser um anatomista, torna-se para ele natural deixar o papel do pintor para outrem. No caso da análise do senso moral, é evidente que Hutcheson se torna o pintor. Hume quer cortar a “pele” do senso moral para revelar o que está escondido por detrás. Ele almeja examinar o mecanismo interno do funcionamento da mente humana e do seu senso da moralidade. O risco é exibir a verdade de maneira menos graciosa e atraente. Sem embargo, o senso moral não pode ficar como uma “qualidade oculta”, segundo as próprias palavras de Hutcheson na sua Investigação sobre a origem de nossas ideias da beleza e da virtude em dois tratados, II, 7 (HUTCHESON, F., 2008, p. 179). Ademais, o fato de se descobrir os princípios da virtude pode também servir, de certo modo, à própria causa da virtude: mostrar que somente há boas coisas na origem da virtude é recomendável para se defender a virtude.

46 | Lisa Broussois

RAZÃO E EMOÇÃO: ensaios em ética normativa, metaética e ética aplicada

4 O senso moral segundo Hutcheson O que seria um filósofo do senso moral à maneira de Francis Hutcheson? Para Hutcheson, o senso moral é a base natural de nossa aprovação ou condenação moral. Com o senso moral, recebemos a percepção, aparente ou real, do caráter vicioso ou virtuoso de uma ação ou de uma pessoa. Este senso é um princípio de aprovação ou desaprovação. Em outras palavras, o senso moral é uma qualidade natural do ser humano, que permite perceber o caráter virtuoso ou aparentemente virtuoso de uma pessoa ou de uma ação (HUTCHESON, F., 2008, p. 88). Do mesmo modo, o senso moral é o instrumento de percepção do caráter vicioso ou aparentemente vicioso de uma pessoa ou de uma ação. O que importa é o efeito da ideia da virtude sobre nós. A percepção de uma qualidade real ou do resultado de uma relação entre qualidades reais no objeto, engendra uma ideia da virtude na mente e essa ideia sempre traz um prazer particular. Seguindo um caminho similar, a ideia de vício, recebida através da percepção do senso moral, sempre traz uma sensação de dor. A percepção do senso moral é imediata e involuntária. É uma percepção secundaria, uma percepção que ocorre dentro das próprias percepções dos cinco sentidos externos, como a visão ou a audição, por exemplo. Assim define Hutcheson o senso moral: “uma determinação da mente a receber uma ideia qualquer da presença de um objeto nos aparecendo, independentemente de nossa vontade3.” (HUTCHESON, F., 2008, p. 90)

Hutcheson é um filósofo que pensa, em primeiro lugar, nas consequências práticas da filosofia, sobretudo da filosofia moral. Referindo-nos ao livro Ethics de J. L. Mackie (MACKIE, J. L., 1977), podemos dizer que Hutcheson estaria preocupado com questões de primeira ordem, ou seja, questões de ética normativa: que deveríamos fazer? O que seria bom fazer? Segundo quais princípios? Hutcheson, como professor, se julga responsável pela formação moral de seus estudantes. Porém, não se limita a isso: era questão, igualmente, tornar os estudantes verdadeiros cidadãos. Em outras palavras, Hutcheson, claramente, arquiteta um projeto de estudo do fun3 “a determination of the mind, to receive any idea from the presence of an object which occurs to us, independent on our will.”

Lisa Broussois | 47

Flavio Williges & Frank Thomas Sautter

cionamento da mente humana. Não obstante, esse projeto sempre visa um objetivo prático: moral e/ou político. Assim, não lhe convém muito estudar a virtude sem praticá-la ou, no mínimo, sem motivar sua prática. Descobrir os princípios da virtude, segundo o projeto de Hume, não contribui a tornar a virtude mais desejável, pensa Hutcheson. Mostrar que a virtude serve ao interesse pessoal ou que suscita o orgulho ou que é um produto da razão não serve à causa da virtude, pois a razão nunca conseguiria produzir amor. Não se necessita saber de onde provém a virtude para amá-la e depreender sua necessidade prática, assevera Hutcheson. Por sua vez, Hume quer examinar os detalhes, ver as coisas de muito perto, mas termina por perder a visão global do objeto e seu caráter prático. Uma analogia visual interessante está em algumas representações de anatomia medieval como a do famoso anatomista Mondino de Liuzzi4. Nela vemos, em destaque, um anatomista, longe de tudo, longe da prática: um anatomista que estuda os livros, que dá instruções e lições, sem nunca aproximar-se do corpo e fazer ele mesmo a dissecção. Um anatomista medieval desse tipo aproxima a anatomia a um mero estudo teórico. Não é ele próprio que pratica a dissecção do corpo, mas sim outro indivíduo, que não é anatomista, mas que apenas segue as instruções de maneira indireta, passando ainda através de uma terceira pessoa. Para efetuar o trabalho, temos assim, o anatomista, mais um auxiliar que mostra onde cortar a pele e mais o executante que faz a dissecção. Esse padrão, aplicado à filosofia, seria o oposto do modelo seguido por Hutcheson. Para Hutcheson, o filósofo não pode ignorar o mundo dentro do qual ele vive e, se a anatomia não serve à filosofia prática, isso se torna um problema basilar. Hutcheson diz: “Parte alguma da filosofia tem maior importância, que não um justo conhecimento da natureza humana e de seus vários poderes e disposições. [...] Geralmente, reconhecemos que a importância de qualquer verdade nada mais é que seu momento ou sua eficácia para tornar os homens felizes ou ainda dar-lhes o maior prazer e o mais duradouro; e sabedoria denota apenas uma capacidade de perseguir este fim pelos melhores meios5” (HUTCHESON, F., 2008, p. 7, tradução minha) 4 Uma dessas figuras (Mondino de Liuzzi) disponível em: . Acesso em: 28 de julho de 2012. 5 “There is no part of philosophy of more importance, than a just knowledge of human nature, and its various powers and dispositions. […] We generally acknowledge, that the importance of any truth is nothing else than its moment, or efficacy to make men happy, or to give them the greatest and most lasting pleasure; and wisdom denotes only a capacity of pursuing this end by the best means.”

48 | Lisa Broussois

RAZÃO E EMOÇÃO: ensaios em ética normativa, metaética e ética aplicada

Hutcheson sempre imagina a aplicação que podemos fazer do conhecimento da natureza humana, sempre pensando na ligação entre os meios e os fins.

5 O senso moral segundo Hume No Tratado, livro III, i, 2, Hume escreve: “As distinções morais são derivadas de um senso moral6” (HUME, D., 2000, p. 509). O conceito de “senso moral” não é muito recorrente na filosofia de David Hume. Porém, ele é um dos conceitos os mais fundamentais da filosofia moral da terceira parte do Tratado. O livro III (principalmente III, i, 2 e III, iii, 1) é claramente uma tentativa elaborada de entender seu funcionamento e seu significado. Para Hume, o modelo de Newton e as ciências empíricas são determinantes na maneira de se conceber as questões morais. Quando trata do senso moral, Hume o aborda como um fenômeno da moralidade e se empenha em elucidar os mecanismos de funcionamento desse fenômeno. Seguindo Hutcheson, Hume igualmente reflete sobre a separação entre razão e sentimentos e dá aos sentimentos o caráter motivacional que falta à razão. Indo além, Hume imagina uma ligação plausível entre a razão e a produção de um sentimento. A elaboração artificial de alguma coisa, por exemplo, uma virtude, não restringe a possibilidade que essa mesma coisa seja amada naturalmente. Hume exemplifica tal situação apontando a virtude artificial da justiça. Para abordar o senso moral, Hume começa com as percepções. Ele afirma, na terceira parte do Tratado, i 1 2 : “Já observamos que nada jamais está presente na mente senão suas percepções; e todas as ações como ver, ouvir, julgar, amar, odiar e pensar incluem-se sob essa denominação. Qualquer ação exercida pela mente pode ser compreendida sob o termo percepção; consequentemente, esse termo não se aplica menos aos juízos pelos quais distinguimos entre o bem e o mal morais que a qualquer outra operação da mente. Aprovar um caráter e condenar outro são apenas duas percepções diferentes7. (HUME, D., 2000, p. 496)” 6 “Moral distinctions deriv’d from a moral sense”. Todas as citações seguintes de Hume em inglês provem da edição Norton & Norton (HUME, D., 2007). 7 It has been observ’d, that nothing is ever present to the mind but its perceptions; and that all the actions of seeing, hearing, judging, loving, hating, and thinking, fall under this denomination. The mind can never exert itself in any action, which we may not comprehend under the term of perception; and consequently that term is no less applicable to those judgments, by which we distinguish moral good

Lisa Broussois | 49

Flavio Williges & Frank Thomas Sautter

A aprovação e desaprovação moral são percepções. Como se trata de uma percepção, não se exclui falar de senso moral para designar nossa faculdade de perceber moralmente: ou seja, para designar um tipo de sensibilidade particular à natureza humana. Assim falando, não estamos muito longe da própria filosofia de Hutcheson. Uma percepção pode ser uma impressão ou uma ideia. Para Hume, a razão não pode motivar uma ação ou uma afeção (pelo menos, de maneira direita, não poderia). Se seguirmos esse caminho, somos levados a privilegiar a impressão em caso do “julgamento” moral. Destarte, o termo “julgamento” se tornaria inapropriado. Como a moralidade está ligada a sentimento de prazer ou de dor, poderíamos basear-nos em mera impressão de reflexão para a aprovação ou a condenação moral. Se o senso moral for uma impressão de reflexão, ele não pode ser associado a um cálculo da razão ou a um raciocino qualquer. O senso moral de Hume não é um “senso comum” ou um “bom senso”, se essas expressões se reportam a algo racional. Hume explica, no Tratado, terceira parte, i 1 6 : “A moral desperta paixões, e produz ou impede ações. A razão, por si só, é inteiramente impotente quanto a esse aspecto. As regras da moral, portanto, não são conclusões de nossa razão8.” (HUME, D., 2000, p. 497)

Contudo, o senso moral pode ser dissecado até que possamos chegar à origem de seu funcionamento. O senso moral de Hutcheson implica numa percepção involuntária e imediata: tão rápida que não nos dá tempo para pensar no momento da percepção. Para Hume, essa rapidez, esse caráter imediato e involuntário, não significam a ausência de um mecanismo artificial de elaboração por detrás. Pode provir da própria tendência do ser humano a incorporar seus modos de reação e de ação através do hábito. O ser humano é suscetível de criar reflexos para pensar e agir de maneira imediata. A questão não é de se afirmar que o senso moral não seja algo natural. Sobretudo porque o artificial e o natural nem sempre se excluem na filosofia de Hume. Hume busca simplesmente entender como o senso moral funciona: quais são seus princípios. A dissecção do senso moral acaba por produzir, ao final, um novo conceito: a and evil, than to every other operation of the mind. To approve of one character, to condemn another, are only so many different perceptions.”. 8 “Morals excite passions, and produce or prevent actions. Reason of itself is utterly impotent in this particular. The rules of morality, therefore, are not conclusions of our reason.”

50 | Lisa Broussois

RAZÃO E EMOÇÃO: ensaios em ética normativa, metaética e ética aplicada

simpatia. Porém, Hume vai distinguir senso moral e simpatia, na terceira parte do Tratado, iii 6 3, da maneira seguinte: “Um leve conhecimento dos assuntos humanos é suficiente para se perceber que o sentido da moralidade é um princípio inerente à alma, e um dos elementos mais poderosos de sua composição. Mas esse sentido deve certamente ganhar mais força quando, ao refletir sobre si próprio, aprova os princípios de que deriva, sem encontrar em seu nascimento e origem nada que não seja grande e bom. Aqueles que reduzem o sentido da moralidade a instintos originais da mente humana podem defender a causa da virtude com bastante autoridade; mas carecem da vantagem daqueles que explicam esse sentido por uma simpatia extensa com a humanidade9.” (HUME, D., 2000, p. 658)

A simpatia é o princípio do senso moral: a sua origem. Como é possível a transição entre simpatia e senso moral? Hume mostra que o senso moral nasce de uma extensão da simpatia através de regras gerais, ou melhor, generalizadas, feitas de maneira a ser válidas para o interesse de todo o mundo e não somente para nós ou nossos amigos. Os seres humanos, parciais, deixam de lado seu interesse pessoal, voltam-se para o interesse estendido aos outros seres humanos e abandonam assim sua parcialidade. Alternativamente, podemos considerar que o ser humano não deixa realmente seu interesse pessoal, mas logra estender esse interesse para nele incluir a outrem. Em todo caso, o ser humano tem a capacidade de se tornar imparcial e desinteressado (no sentido do que não está mais interessado apenas em seu interesse próprio). Como? Deixando seu ponto de vista particular para tentar tomar um ponto de vista da humanidade inteira. A simpatia funciona da maneira seguinte: tenho uma impressão dentro de mim, viva. Uma parte dessa vivacidade pode ser transferida aos objetos com os quais tenho relação. O ser humano tem relação de contiguidade e semelhança com os outros seres humanos. Os humanos são suficientemente próximos para dizer que nenhum deles poderia ter uma afeção que outrem não seria capaz de sentir, mesmo que seja em outro grau de intensidade. Com a imaginação, a relação com os 9 “It requires but very little knowledge of human affairs to perceive, that a sense of morals is a principle inherent in the soul, and one of the most powerful that enters into the composition. But this sense must certainly acquire new force, when reflecting on itself, it approves of those principles, from whence it is deriv’d, and finds nothing but what is great and good in its rise and origin. Those who resolve the sense of morals into original instincts of the human mind, may defend the cause of virtue with sufficient authority, but want the advantage, which those possess, who account for that sense by an extensive sympathy with mankind.”

Lisa Broussois | 51

Flavio Williges & Frank Thomas Sautter

outros é ainda mais forte. Interpreto as ações de uma pessoa como indicações que me fazem entender que o outro está sentindo prazer ou dor. Dependendo do contexto, uma pessoa chorando pode fazer-me pensar que está sofrendo. A partir de sinais, chegamos a imaginar ou reflexionar sobre as emoções de outrem de maneira viva, por força de nossas relações com cada ser humano. Perceber os efeitos de uma paixão me conduz à causa: a paixão mesma. A ideia da paixão é tão viva que se torna uma impressão. Estendida por regras gerais, segundo Hume, a simpatia se torna um senso moral a partir do momento que seu mecanismo seja acobertado. O senso moral é imediato e involuntário devido à força do hábito. O hábito, por exemplo, de se interpretar os sinais das paixões, o hábito de se adotar um ponto de vista desinteressado e imparcial, deixam o mecanismo mais rápido e inconsciente na prática. O senso moral é constituído como o reflexo de um mecanismo integrado, que é um mecanismo de simpatia corrigida por regras gerais.

6 Conclusão Em conclusão, a relação entre senso moral e simpatia seria uma verdadeira chave da filosofia moral de Hume. O que é o senso moral de Hume? Quiçá seja, nada mais, nada menos, que nossa própria manifestação da experiência moral na prática: ou seja, um conceito de importância considerável. A partir daqui, entendemos que a aprovação ou condenação moral pode ser explicitada de duas formas. De um primeiro ponto de vista, consideramos um mecanismo oculto, mecanismo do qual sequer temos consciência no momento da ação, no cotidiano. Falamos, dessa maneira, de simpatia. Pelo flanco contrário, de outro ponto de vista, podemos nos concentrar no resultado, sobre a percepção que temos no momento da ação, na vida prática. Desse segundo ponto de vista, falamos de senso moral. Por quê? Porque é sob esta última forma que a experiência moral se manifesta a nós. A simpatia é o princípio que está na origem do senso moral. Porém, a força do hábito na experiência, faz desse mecanismo uma segunda natureza, a tal ponto que nunca é sob a forma de simpatia que se manifesta o mecanismo de “julgamento moral”. É sim sob a forma de um “senso”. Destarte, no contexto do Tratado, falaremos de simpatia quando 52 | Lisa Broussois

RAZÃO E EMOÇÃO: ensaios em ética normativa, metaética e ética aplicada

necessitarmos referir-nos ao mecanismo de funcionamento e de origem do senso moral. Falaremos de senso moral quando desejarmos referir-nos à experiência prática moral imediata e involuntária de aprovação ou condenação moral. Nos dois casos, uma simpatia estendida à humanidade inteira e acompanhada pela força do hábito consegue tornar quase natural um senso criado a partir de um mecanismo complexo. O trabalho do anatomista é descobrir quais são os princípios de qualquer funcionamento ligado à natureza humana. Para Hutcheson, como para Hume, o senso moral, natural ou construído, tem, ao final, os mesmos efeitos: ele nos leva a interessar-nos pelo bem da sociedade, ele nos sensibiliza a alguns fins que não são diretamente ligados a nosso interesse pessoal, ele nos faz interessar pela busca da felicidade dos outros seres humanos. Cumpre observar que o senso moral concerne a todos os seres humanos, mas não é, por si só, um motivo de ação. Hume não faz do senso moral o todo da experiência moral, posto que há outros princípios que agem, através das virtudes artificiais, por exemplo. Contudo, ele mostra como o senso moral é o resultado de uma ligação fundamental do ser humano com os demais. De fato, não há verdadeira oposição ou rejeição de Hutcheson na filosofia do senso moral de Hume. A ideia de Hume é ultrapassar seus predecessores e os conflitos deles. De certa maneira, Hume é um seguidor de Shaftesbury e Hutcheson, mas também de Hobbes, Locke, Mandeville e Clarke, mesmo quando ele os critica. Porém, ele quer aprofundar-se, para conseguir conciliar: resolver os problemas resultantes dessas filosofias. Analisando melhor a perspectiva de Hume, vemos que ele considera o senso moral como um conceito válido, mas inacabado. Porém, segundo Hutcheson, o Hume anatomista perdeu o essencial do problema. No final, a relação entre os dois filósofos deixa conjecturar que não é muito simples, para um anatomista e um pintor, trabalhar juntos. O resultado, contudo, parece valer a pena: serve a enfatizar a riqueza e a complexidade de um bom debate sobre um grande conceito de filosofia moral.

Lisa Broussois | 53

Flavio Williges & Frank Thomas Sautter

Referências HUME, David. Tratado da natureza humana. São Paulo: Editora Unesp, 2000. HUME, David. A Treatise of Human Nature. In D.F. Norton & M. J. Norton (Eds.), Oxford: Oxford University Press, 2007. HUTCHESON, Francis. An Inquiry into the Original of our Ideas of Beauty and Virtue. Indianapolis: Liberty Fund, 2008. HUTCHESON, Francis. Collected works of Francis Hutcheson. Hildesheim, Zürich, New York: G. Olms, 1990. ABRAMSON, Kate. Hume’s Distinction between Philosophical Anatomy and Painting. Philosophy Compass 2.5, p. 680-698, 2007. IMMERWAHR, John. The Anatomist and the Painter: The Continuity of Hume’s Treatise and Essays. Hume Studies XVII, 1, p. 1-14, april 1991. JAFFRO, Laurent (coord.). Le sens moral Une histoire de la philosophie morale de Locke à Kant. Paris : PUF, 2000. MACKIE, John Leslie. Ethics Inventing Right and Wrong. London: Pelican Books, 1977. SCOTT, William Robert. Francis Hutcheson: His Life, Teaching And Position In The History Of Philosophy. London: Thoemmes Press, 1900/1992.

54 | Lisa Broussois

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.