I ENCONTRO BRASILEIRO DE MÚSICA POPULAR NA UNIVERSIDADE - Dona Conceição e seus sambas

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Dona Conceição e seus sambas MAIA, Leandro (UFPel) [email protected] Resumo: O presente trabalho informa o andamento da pesquisa “Dona Conceição e Seus Sambas” sobre a produção da cancionista Conceição Teixeira, cuja obra tem sido estudada pelo MÍDIA – Núcleo de Produção Musicalda UFPel. Dentre outras ações, o trabalho resultou em produto audiovisual realizado com recursos do PROEXT/MEC 2014 e apresentou pela primeira vez a compositora pelotense de 84 anos, bem como parte de sua intensa produção musical ainda inédita. Este texto também inclui a partitura do samba “Azoar” e analisa brevemente a canção como demonstração dos procedimentos metodológicos utilizados. A pesquisa desenvolve-se sob referencial teórico que dialoga com autores cancionistas como Tatit (2008), Sandroni (2001) e Maia (2007), adotando uma combinação de diversas abordagens metodológicas tais como Estudo de Caso, Análise Musical e Pesquisa Etnográfica. Palavras-chave: Canção Popular, Análise da Canção, Dona Conceição Teixeira. Abstract: This paper approaches the songwriting production relized by Misses Conceição Teixeira, whose songs have been studied by MIDIA – Musical Production Center – an Extension Program from Universidade Federal de Pelotas. This work is linked to the research project “Misses Conceição and her sambas”. Among other actions, an audio-visual was made with support from Brazilian Ministry of Education presenting the 84 years old still unheard songwriter. This work includes the score sheet and musical analysis to her samba “Azoar”. This research has developed its theoretical approaches from Tatit (2008), Sandroni (2001), and Maia (2007) using methodological procedures like Case Studies, Musical Analysis and Etnography. Keywords: Popular Song, Song Analisys, Dona Conceição Teixeira.

Sobre Dona Conceição Teixeira Conceição Teixeira, ou Dona Cô, é uma personalidade da cidade de Pelotas/RS conhecida por já ter criado mais de cinquenta filhos adotivos ao longo dos seus 84 anos de vida. Mantenedora de um lar situado na popular Vila Castilhos, a “Conceição das Crianças” recebe ajuda de apoiadores e de programas sociais do governo. Atende, também, pessoas em busca de orientação espiritual e conselhos da através prática dos cultos afro-brasileiros, dentre eles a Umbanda, tendo São Jorge Guerreiro (Ogum) como centro de seu terreiro doméstico, acompanhado de outras divindades, como caboclos, ciganos, santos e orixás. O que poucos sabem é que Dona Conceição Teixeira já compôs, segundo suas próprias contas, mais de mil sambas os quais ela denomina como filhos de papel: “Eu sempre tive vontade de criar minhas crianças de carne e osso e as minhas crianças,

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que são as minhas composições (de papel), que eu sempre gostei.”50 Este rico acervo é guardado em sua residência numa grande sacola plástica e em caixas de cadernos, blocos e papéis diversos, contas de água e luz, envelopes de cartas e outros suportes. Restaram também algumas fitas cassete, nas quais Dona Cô gravou algumas de suas canções a capella antes do aparelho ser danificado pelo tempo e de suas peças não encontrarem reposição. As novas tecnologias de registro, tais como os gravadores digitais, não despertaram o interesse da compositora, que considera complexa e enfadonha sua manipulação. Conceição, então com 84 anos de idade, iniciou suas composições aos quatorze, mas estes setenta anos de música ficaram restritos a poucos privilegiados. Foi um amigo quem recomendou: - “Conceição, tu vais ter que criar ou os teus filhos de papel ou os teus filhos de carne e osso, os dois juntos não vai dar”51 – alertando-a de que sua condição de mantenedora de um lar de crianças seria incompatível com a atuação como compositora popular. Cô, como gosta de ser chamada, retirou-se da vida musical pública, mas seguiu fazendo suas composições, seus “filhos de papel”, sem poder difundir sua produção na noite pelotense. Ainda nos anos 70, antes de constituir-se esta grande mãe adotiva, chegou a inscrever-se na SBACEM (Sociedade Brasileira de Autores, Compositores e Escritores de Música), o que confirma sua adesão e pretensão ao ofício de compositora popular. Passados muitos anos, a compositora retoma sua vontade de expor seu trabalho dizendo: - “agora que todo mundo mais ou menos já sabe quem eu sou, a minha identidade, agora eu quero mostrar para as outras pessoas os meus outros filhos, que são os meus filhos de papel”.52 Como atividade complementar ao projeto de extensão “MIDIA - Núcleo de Produção Musical da UFPEL”, dedicado originalmente ao desenvolvimento de atividades junto à Discoteca L.C. Vinholes do Centro de Artes da UFPel e à Rádio Federal FM Educativa, vinculado a este projeto de pesquisa, realizou-se o minidocumentário “Dona Conceição e Seus Sambas”, uma coprodução com os Bacharelados de Música Popular e de Cinema. O referido projeto contou em sua totalidade com a participação de seis alunos bolsistas e quatro professores dos cursos de Música Popular, Ciências Musicais, Jornalismo, Cinema e Audiovisual e Cinema 50

Depoimento de Conceição Teixeira para o minidocumentário “Dona Conceição e Seus Sambas” (Maia; Langie, 2014). 51 Idem. 52 Ibidem.

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de Animação; possibilitando ampliar a integração entre a Discoteca e a Rádio através da produção de conteúdo radiofônico. Além disso, foram realizadas ações de tombamento, salvaguarda e manutenção de acervo fonográfico. É possível acessar o minidocumentário realizado através do canal “MIDIA UFPEL” no YouTube, que compreende breve entrevista com Dona Conceição, imagens e a performance da vivo da canção “Azoar”, da qual comentaremos a seguir. Abordagens Metodológicas Esta pesquisa configurou-se como um Estudo de Caso, lembrando que o “estudo de caso não é uma escolha metodológica, mas uma escolha do que vai ser estudado” (Stake, 2000, p. 435). Dentre outros aportes teórico-metodológicos, destacamos a Etnografia, abordagem qualitativa que, para “conhecer as concepções e os significados das ações e situações que constituem a cultura dos atores sociais, utiliza-se de um conjunto de técnicas específicas para descrevê-la.” (Prass, 1998, p. 5). Através de procedimentos como observação participante, realização de entrevistas e sessões de registro em áudio e vídeo, foi possível acercar-se do contexto criativo de Dona Conceição Teixeira. Ao mesmo tempo em que a pesquisa de abordagem etnográfica se dedica a conhecer a compositora, a crítica e a análise musical são fundamentais para estudar profundamente sua obra. É importante salientar que o foco nas canções propriamente ditas é um campo que ainda apresenta muito a ser desenvolvido no âmbito da universidade brasileira. Como ilustra Nestrovski: Com toda a influência que a canção exerce sobre os modos de ser e de estar no Brasil, é surpreendente que a bibliografia a respeito não seja muito maior, e que até hoje, por exemplo, sejam tão poucos os programas universitários dedicados ao assunto. (Nestrovski, 2007, p. 7).

O enfoque sobre a canção em si se dá através da análise cancional, que ocorre com base nos procedimentos que estabelecem sua abordagem “intracancional” e “extracancional” (Maia, 2007). A análise “intracancional” trata da relação interna dos elementos presentes na canção tais como texto, melodia, ritmo, harmonia, arranjo e interpretação, ou seja, a conexão, propriamente dita, entre letra e música na produção do discurso da canção. A segunda, chamada de “extracancional”, considera a presença implícita e explícita de elementos externos da canção, tais como sua relação com

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outras canções, citações e referências melódicas, sua relação com outros autores e tradições, assim como a presença de elementos intertextuais e a possibilidade de diálogo com outros elementos da arte, da cultura e da sociedade suscitados a partir de um atento processo de leitura-escuta. No caso da canção Azoar, como veremos, ambas as análises parecem evidenciar a condição feminina como elemento chave de compreensão da obra. A pesquisa como um todo alterna dois momentos: a etnografia realizada no lar Dona Conceição e a análise de suas composições. A etnografia permitiu o acesso dos pesquisadores às canções não registradas, enquanto a análise cancional permitiu focar na obra propriamente dita. No que se refere ao estudo da canção, além de Maia (2007), busca-se também o diálogo com Tatit (2008) e sua abordagem semiótica da canção, que sistematiza e aponta questões pertinentes a respeito do pensamento do cancionista: A canção popular é produzida na intersecção da música com a língua natural. Valendo-se de leis musicais para sua estabilização sonora, a canção não pode, de outra parte, prescindir do modo de produção da linguagem oral. Daí a sensação de que um pouco de cada obra já existia no imaginário do povo, senão como mensagem final, como maneira de dizer. Estudar a canção é no fundo aceitar o desafio de explorar essa área nebulosa em que as linguagens não são totalmente “naturais” (no sentido semiótico do termo), nem totalmente “artificiais” e precisam das duas esferas de atuação para construir seu sentido. (Tatit, 2008, p. 87).

A obra de Conceição Teixeira é um belo exemplo desta articulação entre música e linguagem verbal. De fato, temos a sensação de que suas canções já existiam em nosso imaginário. Neste sentido, o desafio de explorar essa “área nebulosa” que reside na articulação de melodia e texto encontra-se no centro desta pesquisa acadêmica.

Essa noite eu vou azoar “Azoar” é um samba composto por Dona Conceição há cerca de dois anos. É possível perceber o tom jocoso da autora e o caráter cronista da canção, que narra o desabafo de uma amiga descontente com o marido. A canção propõe a emancipação da mulher em rumo à independência, com humor, sátira e olhar crítico às relações humanas. Em depoimento aos entrevistadores antes da gravação da canção, Dona Conceição relatou o fato que a motivou a compor este samba:

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Uma vizinha minha, 28 anos, casada, o marido sempre fazendo uma coisa e outra e dizia pra ela: - “se eu te largar, tu não vive nada, tu não cresce, tu só vive por que eu existo. E eu te amo, porque senão te largaria.” E ela ficou pensando: - “Olha, não vou mais dormir de touca, que já dormi muitos anos, ele me trata que nem gato e sapato, parece assim que eu sou um nada. Então eu vou embora, vou deixar a casa. A minha vontade – ela disse – é azoar, é beber todas, é azoar mesmo”.

Ao assumir poeticamente a identidade da amiga, Dona Conceição canta em primeira pessoa, dando ênfase e verossimilhança ao caso narrado e com isto diz um basta às chantagens emocionais do marido. Vejamos a letra e a partitura deste samba: Azoar (Conceição Teixeira) Essa noite eu vou azoar O tempo vai mudar E eu vou (vou) dar de louca Vou beber todas pra me esquecer Do tempo que eu passei Quando dormia de touca Fez de mim que nem gato e sapato Me tratou qual um trapo Que ninguém dá valor (diz) Diz a todos que ainda me ama Na real desconheço Que isso seja amor Que amor que judia maltrata? Esse amor não faz falta Ninguém merece ter Já cansei de ser sua escrava E em sua conversa fiada Eu não vou mais crer (se liga) Se liga Vou mudar de atitude Vou crescer vou vencer E vou lhe surpreender Não se esqueça Que o mundo dá voltas E que na minha porta Você precise bater E eu não vou atender53

53

A performance desta canção, realizada pela própria compositora Conceição Teixeira acompanhada ao violão por Negrinho Martins pode ser conferida ao final do minidocumentário “Dona Conceição e Seus Sambas” no canal “Midia Ufpel” no YouTube.

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Breve Análise “Azoar” é um samba tradicional em duas partes. Já em uma primeira impressão vale destacar a absoluta competência prosódica no encaixe de letra e música, sobretudo num samba marcado pela intensa articulação de texto, que se desenvolve predominantemente em semicolcheias e acentuação contramétrica. Antes de comentar a canção propriamente dita, é interessante mencionar que Dona Conceição não toca nenhum instrumento musical e costuma entoar suas canções a capella ecom marcação de mão direita, percutindo como se tivesse um pandeiro na mão, mas em objetos como chaves, cadernos ou mesas. Vale lembrar que Lupicínio Rodrigues também compunha assim, utilizando apenas a voz e caixinha de fósforo. Via de regra, Conceição faz letra e música simultaneamente, num encaixe simultâneo de melodia e letra. Outro fato que chama a atenção é a memória musical da autora, que lembra perfeitamente incontáveis melodias apenas lendo as palavras anotadas em cadernos ou folhas soltas, conforme é possível conferir no audiovisual produzido. Além da memória privilegiada, característica de sua condição de compositora e mãe de santo, Dona Conceição demonstra grande domínio do discurso musical, ao ponto de entoar melodias sofisticadas, apresentando modulações e acidentes diversos, subentendendo uma harmonia que não se restringe às funções básicas de tônica, subdominante e dominante, mas também dominantes secundárias e empréstimos modais, característicos de sambas e choros bastante requintados. O seu trabalho criativo apresenta equilíbrio estrutural, elaboração melódica e desenvoltura na articulação rítmica. Sobre a articulação das palavras no samba, Sandroni descreve: É sabido que os cantores populares influenciados pela cultura afrobrasileira têm forte tendência a cantar articulando as sílabas (ou boa parte delas) fora dos pontos de apoio sugeridos pela teoria ocidental do compasso. Mas não há, na literatura sobre samba que eu conheço, nenhuma constatação de que exista um “sistema” na maneira como essa contrametricidade se organiza: Brasílio Itiberê afirma mesmo que “o que se encontra no canto popular [brasileiro] é a múltipla variedade de uma rítmica livre, espontânea, saiu-como-saiu”. Ora, ao estudar o período mencionado, verifiquei ao contrário, e não sem surpresa, a existência de um grande número de sambas cujas melodias tendem a se organizar ritmicamente de maneira determinada, e não aleatória. (Sandroni, 2001, p. 202).

Na partitura abaixo é possível identificar claramente o expresso pelo autor. O estabelecimento do ritmo, assim como da melodia e da harmonia, na canção popular não

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pode ser taxado como aleatório, pois segue estruturas musicais e linguísticas construídas coletivamente e compartilhadas socialmente. Não é exatamente uma regra que se impõe ao compositor/compositor, mas uma sintaxe cancionística, ou seja, um conjunto de relações entre os elementos constitutivos de uma determinada linguagem que intuitivamente – ou não – são utilizados na produção do discurso. Em português, por exemplo, dizemos “cachorro branco”. Em inglês a sintaxe seria “branco cachorro”. O mesmo que ocorre em relação às palavras de um texto ou discurso, que podem se tornar ininteligíveis caso estejam fora da sintaxe usual para os falantes de determinada língua. Esta “consciência sintática musical” é bastante perceptível nas canções de Conceição Teixeira, pois apresentam imensa compatibilidade entre texto e música. Esta característica contribui enormemente para sua eficácia cancional. Neste trabalho, vamos observar alguns pontos a título de ilustração. Vejamos já de início:

Note-se que a palavra “azoar”, que significa “irritar”, mas também “farrear”, apresenta-se como o trecho inicial mais agudo, criando-se também a tematização com a repetição melódica em “vai mudar”, coincidindo movimento melódico e rima, embora em acentuação rítmica diferente:

Percebe-se também o interessante desfecho dado pela repetição da palavra “vou”, em “eu vou, vou dar de louca”, que imita a coloquialidade da fala cotidiana em seus pequenos tropeços, dando a impressão do pequeno descontrole da personagem da canção. Este recurso cria grande presentificação – no sentido de valorização da presença – pois parece que a canção está sendo composta na hora em que é cantada. O que está sendo dito parece ser realizado “aqui e agora”, elemento que chama a atenção de autores

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como Luiz Tatit, que valoriza a presença dos dêiticos e outros recursos de presentificação do cancionista. Vale perceber a bela aplicação da pausa em meio à mudança de harmonia que, numa tonalidade de lá maior apresenta a nota sol natural precisamente na palavra “louca”, numa sensível superior da nota fá#, tônica de F#7, acorde com função de dominante secundária do segundo grau da tonalidade, criando tensão harmônica e reforçando a “loucura” desta personagem-narradora em primeira pessoa:

Vale ressaltar o caráter rítmico do trecho “vou dar de louca”, que acelera e reforça também seu caráter contramétrico, antecipando a sílaba tônica da palavra “louca”. Esta mudança rítmica desestabiliza o discurso musical surpreendendo o ouvinte com a “loucura” e a imprevisibilidade da personagem. Temos, portanto, um elemento chave para a compreensão da canção não somente “meio”, mas como a própria mensagem. A canção não apenas diz sobre a loucura, mas também mostra esta “loucura” ao envolver a melodia-letra num todo de significação. No caso, trata-se aqui da “loucura” lúcida de uma mulher que se revolta contra o subjugo do marido opressor. “Azoar” apresenta grande conteúdo social, se considerarmos precisamente o feminino discutido pela própria mulher. É como se “Azoar” fosse uma metáfora da própria condição da compositora, que se liberta do subjugo da sociedade que a impõe que, para ser mãe, é necessário que abdique de sua música. Eis uma canção que mereceria análise mais detalhada devido aos inúmeros exemplos de gestos composicionais que possibilitam a coesão entre melodia e letra, não sendo possível esgotá-los neste breve artigo. No entanto, ainda cabe chamar a atenção para outros trechos como é o caso da segunda parte:

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É notável a asseveração da cancionista através da repetição temática das notas ré, fá# e mi, sendo a nota fá# a sílaba tônica das palavras com a nota mais aguda da melodia, aqui em negrito:

se liga vou mudar de atitude vou crescer vou vencer

E o desfecho literalmente surpreendente, alcançando o trecho mais agudo da música alterado ritmicamente pela presença das quiálteras, quebrando a lógica estabelecida até então da articulação em semicolcheias e o reforço temático assertivo até então na nota fa#, agora na nota lá – a mais aguda da canção – repousando através de um pequeno melisma – única vez que ocorre na música – na sílaba “der” de “surpreender”. Diz textualmente e mostra musicalmente. Note-se também o destaque das sílabas gerado pela mudança rítmica em tercinas, tal qual ocorre num discurso falado:

E vou lhe sur-pre-en-der

Outros elementos perceptíveis são as repetições de sílabas e palavras, tais como “diz, diz a todos que ainda me ama”, “se liga”, que atuam como interpelações típicas do samba. Outra característica desta canção é justamente a alternância entre fala e canto, evidenciada pela repetição de notas, também características de sambas como o partido alto ou samba de breque, onde canto e fala se aproximam em trechos pontuais, muitas vezes com uma função de interpelação ou comentário, deixando clara a existência de um interlocutor. A coloquialidade – elemento destacado por Tatit como chave para o

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êxito enunciativo de uma canção – é notável na obra de Dona Conceição e auxilia a compreender melhor a comunicabilidade e a identificação que temos com sua obra. No contexto da vida e obra de Dona Conceição a canção “Azoar”, embora saibamos tratar-se da ficcionalização de uma história real ocorrida com uma amiga que se rebelou contra o marido, parece desprender também a voz feminina desta compositora que teve de esconder seus sambas por décadas para não ver comprometida sua atuação como mantenedora do lar de crianças. Azoar é vez do “a”. Azar do “o”. Referências MAIA, Leandro Ernesto. Quereres de Caetano: da canção à Canção. Dissertação de Mestrado, UFRGS, 2007. MAIA, Leandro; LANGIE, Cíntia. Dona Conceição e Seus Sambas. Minidocumentário, UFPel, 2014. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=aUguac4Anbs. Acesso em: 20 fev. 2014. NESTROVSKI, Arthur (org.). Lendo Música: 10 ensaios sobre 10 canções. São Paulo: Publifolha, 2007. PRASS, Luciana. Saberes musicais em uma Bateria de Escola de Samba: uma etnografia dos Bambas da Orgia. Porto Alegre: UFRGS Editora, 2003. SANDRONI, Carlos. Feitiço decente: transformações do samba no Rio de Janeiro (1917-1933). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. STAKE. R. E. Case studies. In: DENZIN, N. K.; LINCOLN, Y. S. (eds.). Handbook of qualitative research. London: Sage, 2000. p. 435-454. TATIT, Luiz. Musicando a Semiótica: ensaios. São Paulo: Annablume, 2008. TEIXEIRA, Conceição. Azoar. Samba Canção. In: MAIA, Leandro; LANGIE, Cíntia. Dona Conceição e Seus Sambas. Minidocumentário, UFPel, 2014. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=aUguac4Anbs. Acesso em: 20 fev. 2014.

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