I-INTRODUÇÃO: A HERMENÊUTICA DE GADAMER

May 23, 2017 | Autor: Jade Marques | Categoria: Hans-Georg Gadamer, Gadamer, Sherlock Holmes, Hermenéutica, Hermenêutica Filosófica, BBC Sherlock
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I- INTRODUÇÃO: A HERMENÊUTICA DE GADAMER. Hans-Georg Gadamer foi um importante filósofo alemão do século XX. Não obstante tenha também se dedicado ao estudo da história da filosofia e dos pensadores gregos, marcou profundamente o pensamento ocidental com sua obra-prima Verdade e Método, publicada pela primeira vez em 1960, na qual o autor desenvolve uma hermenêutica filosófica. Influenciado pelos estudos de Martin Heidegger, de quem foi aluno e assistente na PhilippsUniversität Marburg, trouxe a historicidade para suas reflexões. Conforme explica Stein, “se o tempo é o horizonte de toda compreensão, todas as teorias devem converter-se inelutavelmente em formações históricas, e isso afetara o núcleo da razão” e conforme explica Kleberson Bresolin, "É pretensão ingênua imaginar que podemos nos elevar acima de nossa bagagem histórica. Muitas são as pretensões de anulação da subjetividade histórica do intérprete para alcançar uma objetividade comprovável." Gadamer não se preocupa com o estabelecimento de um método, como propunha Dilthey, uma vez que, não se destina a resolver problemas hermenêuticos práticos, mas sim, a construir uma teoria acerca de questões preliminares ligadas ao fenômeno da compreensão. Para ele, a compreensão é como o modo de existência do próprio indivíduo em suas mais variadas possibilidades, ou seja, caracteriza-se como uma ontologia fundamental. Deve-se, no entanto, advertir que, inexiste um “anarquismo metodológico”; pelo contrário, “o fundamento dessa recusa repousa sobre um postulado de matriz historicista e fenomenológica que inscreve o fenômeno da compreensão no mundo da vida e nas experiências ordinárias que os homens normalmente travam entre si. Gadamer analisa o descrédito sofrido pelos preconceitos durante o Iluminismo, no qual buscava-se ferrenhamente eliminar toda e qualquer parcela de subjetividade para o melhor alcance da verdade, "apenas aquilo que passa pelo crivo da razão é válido. E o que é pior, o único pressuposto assumido pelo sujeito, neste movimento, é a própria razão. Todo pressuposto, fora disso, é tido como não esclarecido e não capacitado de fundamentação"(BRESOLIN, p.63, 2008). "Esta certeza das ciências torna-se susceptível de repetição, garantindo a intersubjetividade dos resultados. Aqui, como falamos, verdade é certeza, se não for conhecimento certo, comprovado, é descartável. Mas, como será visto os fatos históricos? Terá ele algum valor para este pensamento? O Iluminismo nega a historicidade. Ela representa um percalço para o sujeito conhecedor, uma vez que caracteriza os próprios preconceitos deste. Para Gadamer, no Iluminismo o sujeito é desprendido de sua temporalidade existencial para analisar/comprovar apenas com sua razão “esclarecida”, livre de qualquer preconceito ou autoridade"(BRESOLIN, p.64, 2008). Mas seria realmente possível um afastamento dos preconceitos pra realizar uma análise parcial? Para Gadamer, semelhante coisa não é possível, pois somos seres temporais, inseridos num determinado momento histórico com características próprias. Somos seres factíveis, marcados pela temporalidade do mundo, esse mundo que irá constituir o horizonte do nosso processo de compreensão. Entretanto, estes fatos históricos inseridos em nós, os preconceitos, por um lado, limita toda compreensão, mas, por outro lado, explicitados, analisados e interpretados tornamse a “mola-propulsora” da compreensão. "Dentro da construção filosófica de Gadamer,

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encontramos a dialética entre pergunta e resposta. Tal dialética representa a possibilidade histórica da compreensão,na medida em que proporciona a fusão dos horizontes do texto e do intérprete. Quando entendemos a pergunta colocada pelo texto, abrimos as possibilidades de sentido.Sendo assim, a tarefa do intérprete é descobrir a pergunta a que o texto vem dar resposta. Todavia, Gadamer reconhece que há um condicionamento dosujeito pelo objeto, ou seja, há uma limitação da atuação do intérprete frente ao objetointerpretado, quando diz: “A tarefa hermenêutica se converte por si mesma num questionamento pautado na coisa em questão, e já se encontra sempre co-determinada por esta" (GOMES; ARANTES, p.26, 2006). A hermenêutica de Gadamer foge a qualquer perspectiva metodológica de apreensão da verdade, ao contrário de Betti. Ele não pretende apresentar uma técnica para a compreensão, mas parte da "radical finitude de homem" para encontrar o verdadeiro sentido. Segundo Gadamer, é possível para a hermenêutica explicar como acontece o momento da interpretação que, nesse caso, será a participação, por duas ou mais pessoas de um mesmo sentido. Tal participação leva-nos, invariavelmente, a uma concepção de objetividade. Se um sentido é comum a um grupo de pessoas, podemos dizer que esse sentido é objetivo. Tendo isso em vista, Palmer acredita que Gadamer é irônico no título de seu livro "Verdade e Método"(Warheit und Method), pois o método não é o caminho para a verdade. Não se pensa que Gadamer zomba do procedimento metódico, mas que está, na verdade, insatisfeito com os resultados alcançados por ele. Gadamer olha para a tradição e vê nela que toda a verdade está ligada ao método dedutivo ou ao método indutivo, principalmente a partir de Bacon."Gadamer crê que a verdade não pode ser reduzida a um procedimento. Ele afirma que o conceito de verdade reduziu-se ao conceito de certeza, ou seja, a certeza de um procedimento que pode ser realizado por qualquer um, em qualquer lugar que obterá os mesmos resultados, isto é, a intersubjetividade dos resultados. Ora, isso é uma uniformização da verdade. Logo, “a verdade (veritas) só se dá pela possibilidade de verificação, então o parâmetro que mede o conhecimento não é mais sua verdade, mas sua certeza”(BRESOLIN, p.65, 2008). A proposta de nosso autor é demonstrar que a ciência apenas admite como “satisfação de verdade aquilo que satisfaz o ideal de certeza”. No entanto, existem âmbitos que a ciência não consegue mensurar ou aplicar um método. A própria divisão da obra Verdade e Método está proposta em três partes/âmbitos que a ciência não abarca e, não é por este fato, que deixam de ser verdade. São elas a verdade da arte, a verdade da história e a verdade da linguagem. Segundo Stein, isto soa como um “tipo de verdade à qual temos acesso por caminhos totalmente diferentes dos que estão estabelecidos pelo conhecimento científico em geral”. A hermenêutica filosófica vai ao encontro destas verdades, não com um método implacável nas mãos, mas com a própria facticidade humana como condição de toda a compreensão, ou seja, “estamos sempre presos nos limites de nossa situação hermenêutica”. Por outro lado, a ciência, com sua bandeira de verificabilidade e certeza erguida, ignora tais verdades, pois não podem ser submetidas ao método, uma vez que vai além dele. A verdade não pode ser reduzida apenas ao que é certo, pois algo se dá alheio ao método. A verdade, na concepção de Gadamer, pode, sem dúvida, ser aproximada ao conceito de verdade heideggeriano.

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II- A IMPORTÂNCIA DOS PRECONCEITOS.

A proposta da hermenêutica filosófica não garante a verificabilidade da verdade (certeza), assim como o metodologismo empregado pelas ciências. Pelo contrário, partindo da historicidade do homem, de sua vivência, vai ao encontro da alteridade para daí surgir a compreensão. Gadamer está preocupado com as possibilidades da compreensão e não com uma técnica de compreensão. Nosso autor não nega o trabalho e o sucesso que alcançou o procedimento metódico das ciências, antes, nota “que o espírito metodológico da ciência se impõe por toda a parte. Não queremos, de maneira alguma, desprezar a importância que método científico possui para as ciências humanas. Assim sendo, a hermenêutica de Gadamer é contra o método, mas não no sentido de anulá-lo, declarando-se absoluta, mas apenas um modo diferente, do encontro com a verdade, um encontro no sentido mais originário (sem método mediando sujeito-objeto). "Logo, a hermenêutica filosófica não é um novo método, isto é, o que “temos não é uma diferença dos métodos, mas uma diferença dos objetivos do conhecimento”(BRESSOLIN, 2008, p. 71). Afirma-se, então, que sempre “partimos do fato de que uma situação hermenêutica está determinada pelos preconceitos que trazemos conosco”. A própria historicidade do intérprete é levada em consideração. Seus preconceitos se transformarão na pré-compreensão do sentido da obra em questão. "Compreendemos a partir de nossos pré-conceitos que gestaram na história e são agora ‘condições transcendentais’ de nossa compreensão" (BRESSOLIN, 2008, p.72). Por conseguinte, os preconceitos não são limitação do conhecimento humano, antes, “são mais que seus juízos, constituem a realidade histórica de seu ser”. Portanto, para Gadamer, tradição e autoridade não precisam ser mais vistas como inimigas da razão, mas como algo que possibilita o encontro com a verdade. "Duas coisas fundamentais podem ser notadas até aqui: i) os limites de nosso compreender, isto é, sempre compreendemos a partir de nossos preconceitos. Segundo Palmer, “não pode haver qualquer interpretação sem pressupostos”41. ii) A tentativa da superação da filosofia da subjetividade. O ideal de transparência do sujeito, a tentativa de absolutização da reflexão, típica da filosofia moderna da consciência, são transpassados por esta real finitude do homem. Logo, pertencemos a historia e não ela a nós. A razão, agora, é marcada pela historicidade do eis-aí-ser"(BRESSOLIN, 2008, p.72). Não há necessidade da negação dos preconceitos que, desde sempre, estão presente no homem. Eles são a própria condição de possibilidade do compreender. Palmer, concorda com M. Oliveira dizendo que os pré-juízos não são algo que devamos aceitar ou que possamos recusar; são a base da capacidade que temos para compreender a história. Estes preconceitos são frutos da tradição na qual estamos inseridos. São o horizonte a partir do qual compreendemos. Horizonte, para Gadamer, significa “o âmbito de visão que abarca e encerra tudo o que pode ser visto a partir de um determinado ponto". Enfim, os preconceitos são esta carga histórica que sempre caminha conosco determinando, juntamente com o encontro com a coisa mesma, o como compreendemos.

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De acordo com ele, existem preconceitos legítimos e ilegítimos. O encontro com a coisa mesma prova que o Iluminismo estava errado e que há preconceitos que favorecem a compreensão. Gadamer diz que se se quiser fazer justiça ao modo de ser finito e histórico do homem, é necessário levar a cabo uma reabilitação radical do conceito de preconceito e reconhecer que existe preconceitos legítimos. Logo, a pretensão da hermenêutica é a saída da particularidade subjetivista do intérprete e da particularidade da obra (como pretendia Schleiermacher) para uma elevação, para uma fusão de horizontes. Mas, o encontro com a coisa mesma serão a prova de fogo dos preconceitos, onde serão distinguidos os verdadeiros dos falsos, por isso, uma consciência formada hermeneuticamente deve ser de antemão receptiva à alteridade do texto. "Nesta perspectiva, afirma Flickinger que a alteridade “trata-se sempre de algo ou de alguém que se encontra à nossa frente e, como tal, dirige-se a nós e inquieta-nos, devido única e exclusivamente ao fato de ser outro que nós mesmos”50. É esta interpelação, o encontro com a obra que proporá uma revisão da précompreensão. Portanto, é uma relação dialógica, onde o intérprete põe a escutar a coisa mesma, a fim de convalidar ou não seus preconceitos. Deste modo, 'outro não é outro porque existe enquanto ente ao lado de outros entes, mas porque é reconhecido como outro pelo eis-aí-ser que, na sua finitude, abre-se a diferença'"(BRESSOLIN, 2008, p.74). "Gadamer demonstra que o objeto deve manter uma certa distância de seu autor para que ganhe uma “alteridade autônoma”, isto é, para que possa ter uma existência e uma essência próprias.Essa“ alteridade autônoma” remete-nos à ideia do Cânone da Autonomia,de Betti, em que a forma significativa, que é a expressão de uma mente vivente e vibrante, adquire, após sua exteriorização, vida própria diferente de seu autor. Visualizamos, ainda, semelhanças, quando Gadamer relaciona a ideia de objetividade à ideia de linguagem. A linguagem é tratada pelos dois autores de forma totalmente diferente: para Betti, a linguagem é meio pelo qual a compreensão ocorre e, para Gadamer, a linguagem é reconhecida como um momento estrutural interno da compreensão; entretanto, é por meio dela que os dois pensadores erigem seus conceitos de objetividade" (GOMES; ARANTES, p.27, 2006). Esta abertura do homem à alteridade é condição fundamental sem a qual não haveria entendimento, é nesta relação de diálogo, entre Eu-Tu, que se dará a filtragem da précompreensão, colocar-se em contato com a coisa mesma é sinônimo de constatação de que os preconceitos não são verdades infalíveis, tampouco eternos: O horizonte do intérprete está sempre aberto, colocando seus preconceitos à prova. Cabe, nesta instância, pesquisar como se adquire o referido horizonte. Gadamer inicia a reflexão reforçando sua habitual crítica à consciência histórica. Conhecer historicamente determinado texto jamais deve se confundir com um deslocamento ao horizonte do outro para percebê-lo sob seus próprios padrões, sem qualquer influência do tempo presente. O pretenso objetivismo daí resultante esquece que quem deseja compreender não consegue se blindar da realidade e das próprias percepções. A historicidade do homem é inseparável. Embora o vangloriado ato de se transportar para o horizonte do outro retire do intérprete a análise de sua própria posição, não há entendimento ou diálogo. O filósofo inclusive compara tal situação com determinadas consultas médicas nas quais o profissional apenas pode conhecer o paciente e suas queixas, sem chegar a qualquer

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tipo de entendimento. A compreensão se dá de forma produtiva, logo, é preciso dialogar, ter abertura para que o texto venha à tona. Fazer valer os preconceitos como verdades inalteráveis é tapar os ouvidos a voz da obra. É, em última análise, manipulação, no sentido de querer compreender o outro sem a interpelação de sua voz. É uma compreensão sem diálogo, que é paradoxal devido a ausência de correspondência. Por fim, "'o reconhecimento da alteridade do outro, que a converte em objeto de conhecimento objetivo, é, no fundo uma suspensão de nossa própria pretensão'"(BRESSOLIN, 2008, p. 75). "Para acontecer a compreensão, necessariamente, precisa-se dos preconceitos do intérprete, uma vez que formam a própria pré-compreensão, para desencadear o diálogo entre intérpreteobra. Daí se afirma não só no “fim” temos conhecimento, mas também no início. A anulação, por conseguinte, é a tentativa de fazer valer a obra em sua origem, abandonando ou pretendendo abandonar todos os preconceitos do intérprete. Para a hermenêutica de Gadamer, isso é insustentável porque desde sempre somos históricos e tudo que compreendemos possui respingos de nossos preconceitos. Deve existir, portanto, um termo médio entre dogmatismo e anulação. É neste meio-termo que se situa a hermenêutica filosófica e a possibilidade da compreensão"(BRESSOLIN, 2008, p.76).

III- SHERLOCK HOLMES: O HOMEM QUE FOGE Á GADAMER OU O TUTOR HERMENÊUTICO QUE NÃO CONHECÍAMOS?

— Ao lhe ouvir apresentar suas razões — comentei, a coisa sempre me parece tão ridiculamente simples que eu poderia facilmente fazer o mesmo, mas a cada nova instância do seu raciocínio, fico embasbacado até você explicar o processo. No entanto, acredito que meus olhos sejam tão bons quanto os seus. — Certamente — ele respondeu, acendendo um cigarro e se jogando sobre uma poltrona, — Você vê, mas não observa. A distinção é clara. Por exemplo, já viu frequentemente os degraus que levam da entrada até esta sala. — Frequentemente. — Quão frequentemente? — Bem, algumas centenas de vezes. — Exato! Você não observou. No entanto, viu.(...) "Um escândalo na Boêmia". DOYLE, p. 16, 2013.

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Tendo inspirado um impressionante número de 254 adaptações durante os últimos cem anos, Sherlock Holmes, segundo o Guinness Book de maio de 2012, tem sido o ser humano literário mais retratado em filmes e programas de televisão, dentre os quais podemos destacar a recente série produzida pela BBC, "Sherlock". É justo dizer que tais adaptações modernas continuam a preservar o potencial de exploração do personagem e a aventura, pelo menos para aqueles que não estavam acostumados com o gênero de mistério até o presente momento. Apesar das tentativas de sepultar o detetive e continuar com sua carreira como escritor, dando enfoque para as suas obras que julgava mais importantes, á exemplo da Guerra dos Bôeres, Sir Arthur Conan Doyle já havia dado início a algo bem maior do que si próprio. Depois de conduzir Sherlock Holmes à morte pelo salto de uma cachoeira na pequena história de 1893, que ficou conhecida como "O problema final", Conan Doyle não conseguira manter Sherlock morto por muito tempo, a pressão da demanda popular e a promessa de ostensivo retorno financeiro, impeliram-no a ressuscitar o detetive numa antologia de contos que seria publicada com o título de "O Retorno de Sherlock Holmes". Ao criá-lo, Sir Arthur Conan Doyle se deparou com uma personagem que se revelara muito querida pelos leitores de sua época, e que ainda se conserva muito atraente em pleno século 21. Mas o quê há em Sherlock Holmes que cativa tanto os leitores? Segundo o próprio Sherlock Holmes, a maneira para se resolver um mistério assertivamente consiste em, primeiro coletar as informações, para daí deduzir uma conclusão, tomando as precauções para que os fatos não sejam adulterados de maneira a sustentar seus preconceitos. Destarte, Sherlock Holmes parece ser o maior herói da ciência moderna, quem sabe, fortemente, caçar e encontrar a verdade, como um bom cão de fila, como certa vez Watson compara-o numa de suas aventuras, assemelhando-se, assim aos iluministas citados em letras precedentes: "(...) para alguém tão treinado no racional, admitir tais intrusões em seu temperamento sensível e precisamente ajustado significaria introduzir um fator de distração que poderia pôr em dúvida todos os seus resultados mentais. Areia num instrumento delicado, ou uma trinca numa de suas poderosas lentes, seriam coisas menos perturbadoras do que uma forte emoção para uma natureza como a dele." (DOYLE, p.12, 2013). Mas o problema é, como Gadamer nos conta, que não conseguimos evitar teorizar antes de termos coletado todos os fatos, nem mesmo Sherlock. Então, apesar do que o detetive costuma dizer, há mais sobre ele do que aparenta. Parte do que faz ler Sherlock Holmes uma experiência tão aprazível, é que suas aventuras brincam com nossas intuições e preconceitos. Frequentemente tentamos encontrar o sentido das situações que são expostas em seus casos excêntricos, tentamos pensar o que pode ter acontecido, e por quê? No progresso da história, nossas intuições são novamente postas á prova, testadas, ao passo que as pistas são confirmadas ou rejeitadas, Sherlock promove um constante encontro do preconceito com a coisa em si, um constante "eu-tu". Assim que as peças do quebra-cabeça se completam, passamos a entender de forma clara o que realmente sucedera no mistério, ou se somos realmente bons, habituados aos jogos daquelas narrativas, temos nossos preconceitos confirmados. No entanto, os leitores costumam dizer que os contos são instigantes porque o leitor geralmente se insere no meio de uma linha que se põe entre Watson e Holmes, ou seja, nem tão "lento" quanto o médico do exército e leal companheiro, mas nem tão veloz e perspicaz quanto o distinto detetive. Em um certo sentido,

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quando nos deixamos adentrar em um mistério, descobrimos nossos próprios preconceitos enquanto a história se desenrola. Talvez, gostemos tanto de mistérios porque eles representam um exercício de auto-descobrimento que desenterra nossas pressuposições. É aqui que isto começa a soar, suspeitamente, como a forma com a qual Gadamer descreve o ciclo hermenêutico em seu livro "Verdade e Método" (Warheit und Method). Partindo do trabalho de seu mentor, Martin Heidegger, Gadamer leciona que todos nós, quando vamos ler um texto, já vamos como uma ideia do que poderemos ler no interior dele. Logo, se desejamos realmente compreender um texto, enquanto o desbravamos, vamos substituindo nossos préjulgamentos por outros mais consoantes com que achamos de fato, escrito. Então, como fora dito anteriormente, de uma maneira, nossos preconceitos ajudam-nos a compreender os textos, na medida em que estamos a abertos as reinvenções provocadas por eles, de uma maneira que atiça nossas concepções primevas, num ciclo em que, inicialmente, interpretamos o texto de acordo com nossos preconceitos, somos "puxados" pelo texto, e aí repensamos nossos preconceitos, seja descartando-os, confirmando-os ou modificando-os. Operamos deste modo até que as peças do quebra-cabeça se completem, e os fatos comecem a ganhar evidência. Desta maneira, ao contrário do que Holmes diz em "Um escândalo na Boêmia", de que é um grande erro começar a teorizar antes de ter dados coletados, pois aí o indivíduo começaria a, insensivelmente, adequar os fatos ás teorias e não as teorias aos fatos, Gadamer dirá que não há uma ordem estática entre os fatos e as teorias, há, antes, uma dialética entre estes dois campos que se retroalimentam continuamente durante o empreendimento da interpretação. O próprio Sherlock bebe na fonte desta dialética em algumas ocasiões, apesar do que diz, principalmente para interpretar as pessoas, geralmente seus clientes, baseando-se em arquétipos e probabilidades, por exemplo: "(...) o homem que escreveu este bilhete é alemão, note a construção peculiar da frase: 'tal relato sobre o senhor todas as fontes nos fizeram'. Um francês ou um russo não poderiam ter escrito isso. Só os alemães são tão descorteses com os verbos". Nota-se que aqui o detetive utiliza uma concepção que possui sobre os alemães para conhecer a procedência do bilhete que lhe chegara, posteriormente, confirma-se que o autor realmente era um nobre boêmio, todavia, um russo também poderia ter escrito semelhante coisa, posto que a língua russa também opera com construções do tipo "SOV", presumindo-se assim, em parte, a presença de uma intuição do detetive levando em conta os critérios de probabilidades e arquétipos. Como cada novo caso para Sherlock Holmes funciona como um texto que chama para a interpretação, cada mistério é para nós um texto que nos convida a um exercício de hermenêutica. Enquanto Sherlock traz à tona pistas e faz conclusões, ele nos leva junto consigo ao passo que revela e concilia informações, e nos guia pelas veredas de um processo em que podemos medir nossos preconceitos em contraposição às pistas do caso. Então, possivelmente, Sherlock não é apenas um herói da ciência moderna, munido apenas com os poderes da ciência e da abdução, mas também, um instrutor nas artes da hermenêutica. Antes que proclamemos Sherlock Holmes como um "herói da hermenêutica", é preciso, no entanto, salientar a importante diferença existente entre a hermenêutica gadameriana e a abdução de Sherlock. Para Sherlock, a obtenção de todas as informações o guiará à conclusão do que realmente aconteceu, enquanto Gadamer pode não ser assim tão otimista. O último

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enxerga o processo de interpretação como infinito: nós nunca, definitivamente, chegamos com as nossas conclusões, ao final do sentido do texto, Sherlock, contudo, quer revelar toda a realidade existente por trás das pistas e ali "encerrar o caso". Enquanto a concepção de Gadamer requer de nós o abandono da noção de que podemos ter a realidade totalmente revelada, isso não quer dizer que o trabalho investigativo é obsoleto. O ciclo hermenêutico ainda nos permite perseguir interpretações mais adequadas e empreender conclusões mais razoáveis. Então, o trabalho de Sherlock não é mera dedução fria dos fatos como ele próprio supõe, ele aplica hermenêutica às pistas. E, ao passo que ele performa hermenêutica, somos levados aos arcanos em que nós mesmos experienciamos o círculo hermenêutico.

REFERÊNCIAS

GOMES, Alexandre., & ARANTES, Bruno. A Teoria hermenêutica de Emílio Bettie e a objetividade da hermenêutica jurídica. Revista da Faculdade de Direito da UFMG - Belo Horizonte - nº.49 / Jul. – Dez., 2006

Disponível em: http://www.ambitojuridico.com.br/site/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=8349&revi sta_caderno=15. Acesso em: 18/11/2016.

BRESSOLIN, Klebersson. Gadamer e a reabilitação dos preconceitos. INTUITIO. Porto Alegre No.1 Junho 2008 p. 63-81.

Disponível em: http://www.groundmotive.net/2013/10/sherlock-holmes-and-case-ofhermeneutic.html. Acesso em: 18/11/2016.

PALMER, R. Hermenêutica. Trad. Maria Luíza R. Ferreira. Lisboa: Edições 70, 1969.

GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Tradução Flávio Paulo Meurer. 2.ed. Petrópolis: Editora Vozes, 1998.

OLIVEIRA, M. A. de. Reviravolta lingüístico-pragmática na filosofia contemporânea. 2.ed. São Paulo: Loyola, 2001.

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DOYLE, A.C. As aventuras de Sherlock Holmes. 1ªedição. Companhia Editora Nacional. São Paulo. 2013.

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