Iberismo de esquerda: Guerreiro Ramos e a inversão da tradição (Left-wing Iberism: Guerreiro Ramos and the reversal of the tradition)

May 23, 2017 | Autor: Bernardo Bianchi | Categoria: Brazilian Studies, Political Science, History of Political Thought
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33º Encontro Anual da Anpocs

GT39 Teoria política: para além da democracia liberal ?

Iberismo de esquerda: Guerreiro Ramos e a inversão da tradição

Bernardo Bianchi Barata Ribeiro (IUPERJ) Rafael Assumpção de Abreu (IUPERJ) Jorge Gomes de Souza Chaloub (PUC-Rio)

2009

Iberismo de esquerda: Guerreiro Ramos e a inversão da tradição

1. Introdução

Guerreiro Ramos se coloca como pertencente a uma tradição de pensamento insuspeita1, os chamados pragmáticos críticos2, que, em linhas gerais, correspondem aos autores denominados ibéricos, entre os quais se incluem Visconde do Uruguai e Oliveira Vianna. Tais autores se caracterizam pela predominância da tradição ante o moderno, com a recusa do protagonismo político do povo. O iberismo espelha um ideal comunitário, que visa uma comunidade nacional, organizada hierarquicamente sob o pálio da autoridade. A ênfase recai sobre o comando, fortalecido pela centralização político-administrativa. A liberdade seria, ao menos na realidade brasileira, indissociável da autoridade política, constituindo, sobretudo, uma conquista do público junto ao privado. Obviamente, é importante explicar a “intenção básica” subjacente a este “estilo de pensamento”3 para que possamos compreender sua unidade e aquilo contra o quê ele se estrutura. Com efeito, no caso de Uruguai bem como no de Oliveira Vianna, o que estava em jogo era principalmente a inadequação de determinados sistemas normativos às condições de existência dos destinatários da lei. Se Uruguai escreve contra os descaminhos e quase desastres do Período Regencial, do Código de Processo Criminal, de 1832, e do Ato Adicional, de 1834, Oliveira Vianna escreve, principalmente, contra as ilusões da ordem republicana liberal, desenhada pela Constituição de 1891. Ou seja, a intenção básica em questão se refere a certo realismo político, que abrange tanto a descrença em relação a pretensões de modificação súbita da realidade quanto a desconfiança de se tomar a política como foro suficiente para a estruturação da sociedade. Portanto, não é porque as leis consideram os homens capazes de se autogovernarem que assim será. Cumpre atentar, principalmente, para as relações efetivas que se estabelecem entre a situação do povo e o ordenamento jurídico vigente. Somente desta maneira pode ser evitada a dicotomia entre o País real – as relações 1

RAMOS, Alberto Guerreiro. O Problema Nacional do Brasil. Rio de Janeiro: Ed. Saga, 1960, p. 13. V. RAMOS, Alberto Guerreiro. “A inteligência brasileira na década de 1930, à luz da perspectiva de 1980”. In: Revolução de 30: seminário internacional realizado pelo CPDOC/FGV. Brasília: Ed. UNB, 1982, pp. 527-548. 3 Utilizamos categorias tomadas de empréstimo ao texto de Mannheim sobre o pensamento conservador (MANNHEIM, Karl. “Conservative Thought”. In: Essays on Sociology and Social Psychology. Londres: Routledge and Kegan Paul, 1953). 2

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socioeconômicas vigentes – e o País legal – as intenções políticas encarnadas em leis descoladas da realidade. As leis devem ser consideradas na sua dimensão dinâmica e produtiva, em contato com o real, e não como realidades estáticas e abstratas, decretos capazes de transformar o mundo sem sair das repartições públicas em que são produzidos. Desse modo, podemos entender o Estado-Novo, bem como a centralização política subseqüente ao Golpe da Maioridade, como decantações do mesmo ideal de moderação dos fatores reais de poder e de educação do povo, como se fosse o caso de uma tutela rumo à civilização e à maioridade política. O moderno precisaria do filtro da tradição para vigorar.

A crítica aos formalismos juridicistas, calcada em algumas percepções centrais sobre a realidade brasileira, dá unidade ao diverso, permitindo delinear linhagens em meio aos distintos projetos de Brasil formulados. Agrega projetos liberais conservadores, que almejam a construção de uma sociedade liberal aos moldes ingleses por meio da pedagogia do autoritarismo instrumental, a ideários antiliberais, que imputam a tradição o papel de fim, para além dos meios. O fundamental é compreender que, mais do que um conjunto bem determinado de teses, trata-se de um modo de retratar e atuar sobre a dinâmica política brasileira. A auto-imagem não deve ser lida como índice de um efetivo escopo realista dos ibéricos, uma vez que a realidade era sempre percebida a partir de um certo centro, com os grotões retratados apenas como contraponto, mas, sobretudo, como expressão de um influente discurso político, determinante em diversos pontos de inflexão da história brasileira. O compromisso com tal perspectiva, ademais, impõe aos ibéricos uma vinculação mais estrita à historicidade. A ênfase nas condições materiais determina um diálogo constante com o real, com os vestígios dos embates políticos sempre presentes nas construções teóricas. Em virtude de tal perspectiva teórica, a reconstrução da trajetória ibérica expõe muito claramente as tensões entre os ideários e o real, a mútua implicação entre as palavras e as coisas.

Ao considerarmos estas questões como aquilo que motiva e unifica uma tradição, compreender a inserção de Guerreiro Ramos é entendê-lo como pensador que prossegue no interior de uma linhagem mas a modifica, como homem do seu próprio tempo. A Constituição de 1946 e o surgimento de um sistema partidário mais competitivo talvez forneçam algum fundamento sociológico para o desenvolvimento do pensamento político 2

de Guerreiro Ramos, afinado com a problemática realista dos iberistas, mas atento a uma situação em que o dogma da menoridade do povo perdia muito do seu caráter axiomático. A inversão, portanto, atribuída a Guerreiro Ramos, se intensifica ao conferir novo papel ao povo enquanto ator capaz de conduzir o desenvolvimento nacional. Mas a sociologia de Guerreiro Ramos, ao elevar a concepção de povo como elemento central, elabora uma análise que compreende a questão como fruto de um movimento que é, por sua vez, propiciado por um processo histórico e fertilizado pelas condições socioeconômicas da época. Assim, na relação efetuada por ele, entre povo e nação, podemos encontrar a realização de uma nação outrora projetada ao futuro, como aposta. Desse modo, a noção de povo como categoria possível no contexto brasileiro, que permite alcançar o ideal de liberdade, de autonomia popular, bem como o florescimento de uma consciência crítica, dependeriam, para o seu surgimento, de condições sociais gerais e estruturais. A sociologia de Guerreiro Ramos pretende, nesses termos, demonstrar que, no caso brasileiro, o povo nasce como fenômeno dependente de condições materiais específicas.

Entretanto, compreender a ascensão do povo como protagonista no processo político-social não significa entender o processo dotado de uma espontaneidade. Ou seja, o povo capaz de educar-se a si mesmo age em fragmentos, se não estiver pautado em um movimento popular e nacional. Em Guerreiro Ramos, portanto, a ação política é obra de um projeto capaz de unificar aquilo que deve constituir-se enquanto elemento nacional. Neste ponto, o nacionalismo de Guerreiro Ramos é devedor da tradição iberista, daqueles construtores da ordem que forneceram as bases onde, nos cruciais anos 50 e 60, se assentavam os elementos Estado e nação no Brasil. Além disso, aqui, reside uma característica do pensamento de Guerreiro Ramos que acentua a tensão sempre presente em sua sociologia: o povo enquanto totalidade só pode ser dirigente indireto do processo. Ou seja, o povo determina o seu próprio destino por meio de sua vanguarda. Uma vanguarda que, por sua vez, não age descolada do povo, cujos atributos e características a transformam em miniatura deste. A vanguarda, em Guerreiro Ramos, deveria congregar, assim, as propriedades formadoras de um projeto emancipador popular: ser nacionalista, de esquerda e democrático.

Enfim, se podemos compreender o apego de Guerreiro Ramos, no sentido de enfatizar as condições socioeconômicas e o processo histórico, à tradição iberista, é 3

necessário não perder de vista a traição que ele realiza, ou melhor, a inversão que ele opera.

2. Conservadorismo e tradicionalismo no pensamento brasileiro

O chamado iberismo seria caracterizado pela valorização da matriz da ibérica, a partir da crença na tradição como o caminho para a ordem e para o moderno. As peculiaridades da formação latino-americana, no entanto, impediriam a escolha dos caminhos percorridos nos países centrais. Faz-se necessário, nesses termos, o desbravamento de um novo percurso, com novas instituições, para que não se incorra na anarquia ou na estagnação. O Estado tem um papel central nessa trajetória, haja vista sua anterioridade em relação à sociedade. Em sequência distinta da europeia, e mesmo da norte-americana, a presença do Estado sempre antecedeu e ordenou a sociedade, impedindo que a ausência de vínculos cívicos e sociais e a desproporção entre reduzida população e imensidão de terras resultasse na desordem. José Murilo de Carvalho explicita: “O iberismo pode ser entendido, negativamente, como a recusa de aspectos centrais do que se convencionou chamar de mundo moderno. É a negação da sociedade utilitária individualista, da política contratualista, do mercado como regulador das relações econômicas. Positivamente, é um ideal de sociedade fundado na cooperação, na incorporação, no predomínio do interesse coletivo sobre o individual, na regulação das forças sociais em função de um objetivo comunitário.” 4.

Pode-se distinguir, na seara desta tradição, entre iberistas instrumentais, a grande maioria, e ideológicos. As distinções primordiais se fundam na visão da cultura anglosaxã, especialmente a norte-americana, e no papel dos pensadores nacionais na construção desta tradição ibérica. Enquanto os instrumentais não atribuem uma visão necessariamente negativa aos anglo-saxões, os ideológicos se opõem aos valores materiais inerentes a estas culturas, evocando Ariel5, “que nega os valores da cultura 4 CARVALHO, José Murilo de. “A Utopia de Oliveira Vianna”. In: Pontos e Bordados: escritos de história e política. Belo Horizonte: UFMG, 1998, p. 214. 5 A menção a Ariel é clássica na ensaística latino-americana. Trata-se de referência a obra de William Shakespeare, A Tempestade, redigida quando da chegada de Colombo à América. Shakespeare retrata dois espíritos, Ariel e Caliban, que se emancipam de seu senhor, Próspero, mas continuam aprisionados em sua língua e seu mundo. Ariel representa a espiritualidade e os “elevados” desígnios, ao passo que Caliban se vincula aos baixos instintos e prazeres. Referências a Ariel vêm, em geral, carregadas de marcas elitistas, enquanto as citações de Caliban se aproximam que análises que defendem a centralidade das massas no processo político. No pensamento político brasileiro, em especial, as menções se proliferaram nos autores

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material e se reconhece como parte de um ocidente espiritualizado que o capitalismo põe em situação de ameaça.”6 7. Ademais, os chamados iberistas instrumentais eram, em geral, partidários da construção própria de um modelo político, enquanto os ideológicos e remetiam a uma pura herança, sempre vinculada às suas origens europeias. Um bom exemplo deste iberismo como tradição histórica que antecede a própria América e é por vezes retratado como herança, porém sem recair em um aristocratismo arielista, é o livro de Richard Morse, “O espelho de Próspero”, no qual o iberismo surge como alternativa às limitações da modernidade hegemônica.

Nos autores afeitos a este iberismo autóctone, por outro lado, o modelo de civilização anglo-saxã era constantemente apontado como o mais bem estruturado. Grandes representantes desta linhagem defendem tal ponto, como o Visconde de Uruguai , que asseverava a necessidade do Brasil passar pelo modelo francês para um dia alcançar o inglês, e Oliveira Vianna, ao menos em sua primeira fase, que não escondia sua admiração pelas instituições inglesas e americanas. A questão não era qualidade em si das instituições liberais, ou sua adequação aos países que as gestaram, mas a inconformidade destas à realidade brasileira: “O idealismo republicano falhou, desta arte, logo no início da sua experiência constitucional, porque eram completamente hostis a qualquer surto idealista as circunstâncias do momento histórico que envolveram os primeiros anos do novo regime. Mesmo, porém, que essas circunstâncias lhe fossem favoráveis, ainda assim a bela ideologia da Constituinte teria que fracassar da mesma forma, senão imediatamente como aconteceu, pelo menos com o correr dos tempos, à medida que se fosse acentuando o desacordo entre seus princípios de as condições metais e estruturais do nosso povo.” 8.

Ou ainda: “Herdamos a centralização da monarquia portuguesa. (...) Não tínhamos, como a formaram os ingleses por séculos, como a tiveram herdada os Estados Unidos, uma classificados como autoritários ou partidários de uma ideologia de Estado, na primeira metade do século XX .(ver LAMOUNIER, Bolívar. “A formação do pensamento político autoritário na primeira república. Uma interpretação”. In: História Geral da Civilização Brasileira, vol. IX. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003) 6 VIANNA, Luiz Werneck. “Americanistas e Iberistas: a polêmica de Oliveira Vianna com Tavares Bastos”. In: A revolução passiva: iberismo e americanismo no Brasil,.Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 154. 7 O grande nome deste iberismo ideológico foi o ensaísta uruguaio José Enrique Rodó, autor do clássico Ariel. No Brasil um nome importante foi Eduardo Prado, autor de A ilusão americana. Quanto a Morse, pode-se melhor compreende-lo a partir do seu debate com Simon Schwartzman em: SCHWARTZMAN, Simon, O espelho de Morse, e MORSE, Richard, A miopia de Schwartzman. 8 VIANNA, Francisco José de Oliveira. O idealismo da Constituição. Rio de Janeiro: Terra de Sol, 1927, p. 36.

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educação que nos habilitasse praticamente para nos governarmos nós mesmos; não podíamos ter adquirido os hábitos e o senso prático para isso necessários.” 9.

Mais do que natural, é necessária a existência de um Estado a, de acordo com a tradição ibérica, organizar e estruturar esta sociedade desfibrada. A realidade brasileira clama por uma situação na qual “o governo devia adotar atitude pedagógica em relação ao autogoverno.”

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. Emerge o paradigma do Estado pedagógico, que não seria um fim

em si mesmo, mas uma etapa necessária à implantação das liberdades políticas plenas. A tradição ibérica, com seus imperativos de ordem, se conjuga a defesa de um autoritarismo instrumental, a partir da reiterada crença na minoridade do povo. As explicações para tal fenômeno divergem, indo desde a ausência da “township” americana, em Uruguai, até a conjugação entre ordenação interna e anomia externa promovida pelo latifúndio, em Vianna, mas o diagnóstico de uma sociedade carente de um tutor persiste.

O conservadorismo imperial foi terreno fértil para esta crença. Composta por figuras cuja principal preocupação era a construção da ordem monárquica 11 e a garantia da unidade territorial e política, a elite conservadora construiu uma visão do processo político que sacrificava os direitos civis em prol dos políticos, amparada na idéia de que só um Estado forte poderia impedir a anarquia e fragmentação territorial, que então imperava nas jovens repúblicas latino-americanas. A influência primordial vinha de terras francesas, mas do liberalismo conservador da restauração e da monarquia de julho, que, com sua preocupação em conter os excessos da revolução francesa, buscava “resgatar a política do domínio da paixão a que a tinham confinado os homens de 1789, e recolocá-la dentro do círculo da razão”

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. Guizot, Thiers e Renan davam o tom das

sessões do Conselho de Estado e do Senado vitalício, principais centros de formulação da política imperial. O regime, que na forma se assemelhava ao parlamentarismo inglês, era

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SOUSA, Paulino José Soares de. “Ensaio sobre o Direito Administrativo”. In: José Murilo de Carvalho (org.). Visconde do Uruguai. São Paulo: Editora 34, 2002, p. 429. 10 CARVALHO, José Murilo de. “Entre a autoridade e a liberdade”. In: Visconde do Uruguai. São Paulo: Editora 34, 2002, p. 35, 11 Sobre os meandros deste processo, ver CARVALHO, José Murilo de. A construção da ordem. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. 12 CARVALHO, José Murilo. “A Utopia de Oliveira Vianna”. In: Pontos e Bordados: escritos de história e política. Belo Horizonte: UFMG, 1998, p. 214.

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temperado com instituições e idéias deste liberalismo conservador francês. Faoro assevera: “Na verdade, o governo parlamentar, tal como o exerce Pedro II, preocupado em exercer a suprema inspeção administrativa, guardar um círculo de ação própria do poder sem responsabilidade ministerial e de nomear e demitir os ministros, embora excepcionalmente e com cautelas, não corresponde ao sistema em curso na Inglaterra, imã, ao mesmo tempo, das vontades e teorias. Parlamentarismo dualista, filho da monarquia limitada, traduzia, não o palco bretão, mas as vicissitudes da restauração francesa (1814-1830) e da monarquia de julho(1830-1848), sujeito aos mesmos desafios, vítima de iguais cóleras e decepções. Seguia, embora imitasse o parlamentarismo inglês, na verdade, o rumo oposto, de exercício pleno do Poder Moderador, que, de arma de reserva, pela continuidade, atuava como rotina do regime.” 13.

As próprias instituições do Império já o denunciavam. O poder moderador, formulado por Benjamin Constant, vinculava os dois principais partidos ao poder pessoal do imperador, que caracterizava toda a estrutura política do Segundo Reinado. Em detrimento da tese de Thiers, de que o rei reina e não governa, vigorava o sistema de Guizot, para quem “o rei não se distingue do ministério”14, ou, em melhor forma, a versão bem nacional de Itaboraí: “o rei reina, governa e administra”15.

Outra tese central era a necessidade da centralização, política e administrativa. Inspirados por Tocqueville, mas interpretando-o à luz das condições pátrias, os saquaremas modificavam a organização política proposta pelo francês, que defendia, à moda americana, a centralização política combinada à descentralização administrativa. Uruguai admirava o modelo, mas argumentava a necessidade de sua implantação gradual. A centralização política era intocável, mas a administrativa deveria ser aos poucos implantada. O país ainda não estava preparado para tal tipo de instituições liberais. Algum tipo de mediação fazia-se necessário.

O iberismo encontra mais uma encarnação em parte da tradição do pensamento político autoritário, gestada na primeira república. Não obstante a presença de certo autoritarismo instrumental no ideário saquarema do segundo reinado, a definição de uma ideologia plenamente autoritária ocorre com autores como Oliveira Vianna, Alberto

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FAORO, Raymundo. Os Donos do Poder: Formação do patronato político brasileiro. São Paulo: Globo, 2001, p. 393. 14 Ibidem, p. 395. 15 Ibidem, p.403.

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Torres, Francisco Campos, Azevedo Amaral, dentre outros.16. Na verdade, trata-se da conjunção entre um cenário internacional amplamente refratário aos valores democráticos 17 e a longa tradição ibérica supracitada. Ao lado dos construtores da ordem imperial e dos liberais conservadores franceses surgem novas referências, que vão do organicismo romântico ao positivismo, passando pelo pensamento conservador católico e pelo elitismo, sem falar nos teóricos dos inúmeros regimes autoritários europeus, como Carl Schmitt e Del Vecchio. Bolívar Lamounier vincula essas vastas referências às “duas metades do organicismo romântico”. Ele explicita: “Mas em todo o seu percurso o organicismo romântico manteve uma unidade contraditória de duas metades, uma conservadora e outra revolucionária. Na segunda metade do século, notadamente a partir de 1870, a metade conservadora funde-se com o positivismo, dando como resultado a sociologia histórico-organicista à la Gumplowicz, cuja influência sobre os críticos elitistas da democracia liberal – Mosca, Pareto e Michels – é bem conhecida. A metade revolucionário inspira-se no aspecto fáustico, criador, carismático, esteticista, do Romantismo. Sua tradução no plano política é invariavelmente voluntarista, mobilizante, quer na deificação fichtiana da Nação de do Estado, quer em sua forma anarquista, quer, finalmente, no mito soreliano. A ideologia fascista italiana se configura, precisamente, na junção destas duas correntes, com a contribuição adicional da psicologia coletiva de Tarde, Sighele e Le Bon, e das diversas modalidade de antiintelectualismo e anti-racionalismo do fim do século: Bergson, Nietszche e William James.”18

A absorção destas idéias não ocorreu acriticamente, mas se vinculou aos problemas e novas questões colocadas ante estes autores. Se a preocupação do Império se concentrava, primordialmente, na unidade e estabilidade do regime, com o advento da república, a intensa urbanização e a progressiva instauração de uma sociedade de massas no Brasil, a questão da legitimidade reveste-se de uma nova importância. Neste sentido: “Pois bem: a absorção deste mundo de idéias na ideologia estatal-centrista brasileira se deu através de uma acentuação do elemento positivista e dos aspectos conservadores da linguagem organicista. Dentro desta perspectiva, é palpável a adequação da metáfora organicista para expressar uma visão conservadora do próprio processo de mudança que se pretende acionar, ressaltando a perdurabilidade do passado no presente, a concepção do crescimento e da mudança como desenvolvimento de um princípio interno contido na origem, a indispensável maturação do corpo social antes da efetivação de reformas ou enxertos institucionais.” 19.

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LAMOUNIER, Bolívar. “A formação do pensamento político autoritário na primeira república. Uma interpretação”. In: História Geral da Civilização Brasileira, vol. IX. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003, p. 371. 17 HOBSBAWN, Eric. A Era dos Extremos. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. 18 LAMOUNIER, Bolívar. “A formação do pensamento político autoritário na primeira república. Uma interpretação”. In: História Geral da Civilização Brasileira, vol. IX. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003, p. 390. 19 Ibidem, p. 390.

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Algumas das novas teorias remetem aos antigos princípios ibéricos dos liberais conservadores. O horror ao conflito, a recusa ao indivíduo e ao mercado como princípios reguladores da sociedade, a defesa de um Estado centralizado e forte para organizar a sociedade, a crença na imaturidade das massas, que as fazem cortejar a anarquia, dentre outras teses encontram aqui novas configurações. Bolivar Lamounier elenca oito componentes desta estrutura autoritária, delineando uma “ideologia de Estado” na primeira metade do século XX 20: 1. Predomínio do princípio “estatal” sobre o princípio de “mercado”; 2. Visão orgânico-corporativa da sociedade; 3. Objetivismo tecnocrático; 4. Visão autoritária do conflito social; 5. Não-organização da “sociedade civil”; 6. Não-mobilização política; 7. Elitismo e voluntarismo como visão dos processos de mudança política; 8. O Leviatã benevolente.

Impõem-se, todavia, algumas distinções, para evitar uma demasiada simplificação do ideário autoritário. Se as similaridades são muitas, de modo a possibilitar sua reunião em um mesmo estilo de pensamento, não são menores a divergências entre os autores Cabe, por exemplo, uma distinção entre as distintas vertentes do autoritarismo brasileiro, de modo a separá-los enquanto autoritários instrumentais, ideológicos e naturalistas

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.

Os últimos, representados, sobretudo, pelos integralistas, defendiam o regime autoritário em virtude das diferentes capacidades políticas de cada homem. Somente alguns seriam aptos para o exercício do poder, o que torna a democracia um regime antinatural. Os ideológicos, como é o caso de Francisco Campos e Azevedo Amaral, vinculam a necessidade dos modelos autoritários ao processo histórico, em especial a plena instauração das relações sociais modernas. A sociedade de massas radicaliza os conflitos, tornando-os incontroláveis pelas dinâmicas liberais do mercado e do parlamento. 20

LAMOUNIER, Bolívar. “A formação do pensamento político autoritário na primeira república. Uma interpretação”. In: História Geral da Civilização Brasileira, vol. IX. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003, p. 386. 21 SANTOS, Wanderley Guilherme. “A práxis liberal no Brasil”. In: Décadas de espanto e uma apologia democrática. Rio de Janeiro: Rocco, 1998, pp. 43-46.

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Explicitam-se neste ponto, muito claramente, as questões candentes para tais pensadores. De todo modo, o autoritarismo não seria fenômeno transitório, mas tendente a perdurar e até mesmo se intensificar com o devir histórico. Os autoritários instrumentais, por fim, entendem o recurso ao autoritarismo como medida transitória, em geral justificada pela formação histórica e situação contemporânea da sociedade brasileira. Não se trata do melhor regime, mas do mais adequado, até o desenvolvimento dos laços sociais e cívicos na realidade nacional. As sociedades não apresentariam formas naturais de desenvolvimento, precisando antes ser guiadas. Nesta linha se destacam Oliveira Vianna e Alberto Torres.

Nem todas as vertentes autoritárias estão inseridas na linhagem ibérica. Os autoritários ideológicos e naturalistas não compreendem a dinâmica política a partir da tradição, nem vinculam sua argumentação à especificidade da sociedade brasileira. A ruptura é uma marca das suas obras, não a retomada de qualquer construção teórica anterior. O realismo, aspirante a uma percepção objetiva da realidade brasileira, não afasta a desterritorialidade dos argumentos, amparados na configuração das sociedades modernas, não em uma peculiaridade nacional. O autoritarismo não decorre da tradição ibérica, mas da gestação de uma nova ordem mundial, na qual o Brasil se insere. Em que pese a coincidência de algumas teses, o escopo geral dos ideários é amplamente diverso.

Os autoritários instrumentais, por outro lado, são herdeiros diretos desta tradição saquarema. As referências às elites imperiais são constantes e repletas de elogios aos grandes nomes do liberalismo conservador, como Bernardo Pereira de Vasconcelos, José Bonifácio e o Visconde do Uruguai

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. A tradição determina os percursos mais

adequados, pois as instituições devem decorrer das condições materiais e históricas do país, pautadas pelo realismo, em detrimento do fetichismo formal dos liberais. Não há possibilidade de ordem fora do Estado, único capaz de evitar os descaminhos das massas, ainda despreparadas para a vida democrática. As soluções antiliberais não seriam as melhores, mas as únicas possíveis ante o presente estágio da sociedade brasileira. Configura-se, muito claramente, a persistência de uma tradição ibérica no pensamento social brasileiro. José Murilo de Carvalho afirma:

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VIANNA, Francisco José de Oliveira. O Ocaso do Império. Brasília: Senado Federal, 2004..

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“...vários pontos centrais do pensamento de Oliveira Vianna enraizavam-se na tradição brasileira e não na estrangeira. Ele mesmo reconhecia sua dívida com alguns de seus predecessores, particularmente com Alberto Torres e Sílvio Romero. Mas creio que deita raízes numa família intelectual que antecede de muito Silvio Romero e que tem longa descendência. Falo de uma linha de pensamento que começa com Paulino Jose Soares de Sousa, o visconde de Uruguai, passa por Silvio Romero e Alberto Torres, prossegue com Oliveira Vianna, e vai pelo menos até Guerreiro Ramos.”(grifos nossos) 23.

Ao lado da sociologia de Le Play, da antropologia física e da psicologia coletiva de Le Bon, tinha grande presença entre as fontes de Oliveira Vianna a história intelectual brasileira, em muito vinculada à influência direta de Alberto Torres, claro membro da linhagem ibérica

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. As referências exógenas eram sempre filtradas a por uma

determinada percepção da realidade brasileira, em reiterada reinvenção de conceitos. As semelhanças, entretanto, não anulam as claras distinções entre os autores. Um ponto os afastava necessariamente, já que, como destaca José Murilo de Carvalho: “Oliveira Vianna absorveu muitos temas do liberalismo conservador do Império. (...) Mas teríamos com sua inclusão nesta corrente esgotado o conteúdo de sua obra? Certamente que não. Se são muitos os pontos de contato, não são menores suas divergências. Os liberais conservadores eram exatamente isso, liberais conservadores. Seu conservadorismo não eliminava o liberalismo. Seu modelo de sociedade, ou sua utopia política, continuava sendo a sociedade liberal e a política liberal.” 25.

Distintamente dos saquaremas, todos os autoritários eram manifestamente antiliberais, quando das formulações de propostas política para o presente.. Mesmo os autoritários instrumentais, como Oliveira Vianna, que elogiavam as sociedades liberais anglo-saxãs, afastavam qualquer resquício desta trajetória de concretização do moderno em terras brasileiras. O Brasil está vinculado a sua tradição ibérica, e não se trata sempre de um iberismo enquanto meio, mas de uma tradição ibérica que por vezes transcende os recursos ao autoritarismo. O último Oliveira Vianna, por exemplo, o formulador do corporativismo estadonovista, vislumbra o progresso, mas somente como processo inevitável a ser dirigido pelo tradicional. As instituições modernas necessitam do filtro da tradição, do Estado. Werneck Vianna expõe: “Ibéria, agora, plena e que não se nega ao moderno, à condição de submetê-lo à tradição (...) A fim de sobreviver, a tradição

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CARVALHO, José Murilo. “A Utopia de Oliveira Vianna”. In: Pontos e Bordados: escritos de história e política. Belo Horizonte: UFMG, 1998, p. 214. 24 José Murilo de Carvalho (“Introdução a Populações Meridionais do Brasil”. In: Silviano Santiago (org.). Intérpretes do Brasil, vol. I. São Paulo: Nova Aguilar, 2002) explicita as principais referências de Oliveira vianna. 25 CARVALHO, José Murilo. “A Utopia de Oliveira Vianna”. In: Pontos e Bordados: escritos de história e política. Belo Horizonte: UFMG, 1998, p. 213.

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patrícia precisa pôr a modernização sob sua administração política ...”26. Os liberais conservadores aderiam ao iberismo apenas como meio, etapa imprescindível da civilização pátria, ao passo que os teóricos autoritários da primeira república, em especial Oliveira Vianna e Alberto Torres, nem sempre o restringiam a mero instrumento, mas afirmavam-no como ideal de civilização ibérica a ser alcançada. A qualificação de autoritários instrumentais, acima referida, não coincide necessariamente com o iberismo dos autores, que por vezes concebem a tradição ibérica como algo mais que um meio. As modulações internas às obras, como a distinção entre um primeiro Oliveira Vianna, autoritário instrumental, e um Oliveira Vianna corporativista, mais afeito a outras soluções políticas, devem ser mais detidamente analisadas. Tal tarefa, todavia, transcende os limites da presente dissertação.

Certamente, é possível acrescentar outros atores a esta linhagem ibérica. Os positivistas, por exemplo, advogam concepções de Estado e política bem próximas das anteriormente expostas. A acrimônia ao dissenso, a crítica ao individualismo liberal em prol do conceito de pessoa, derivado da tradição católica, e a defesa de um Estado tutelador não escondem sua filiação ao iberismo. 27. Mesmo os modernos analistas estão repletos de filiações às tradições ibérica e americana. Como bem explicita Gildo Marçal Brandão: “...não será surpresa constatar que , sem deixar de representar um notável avanço de absorção dos “avanços metodológicos” da ciência social internacional, os( a maioria dos) trabalhos mais importantes que foram publicados no País nas últimas décadas sobre eleições, partidos e sistemas partidários, governo, instituições e políticas públicas, podem ser enquadrados em uma ou em outra orientação.” 28.

O escopo desta exposição não é, certamente, promover uma ampla reconstrução da tradição ibérica, mas retratar as principais idéias de uma das linhas mais influentes, talvez a mais influente, do pensamento político-social brasileiro. A exposição desta linhagem, portanto, não mais se alongará.

26

VIANNA. Luiz Werneck, Americanistas e Iberistas: a polêmica de Oliveira vianna com Tavares Bastos, In. A revolução passiva: iberismo e americanismo no Brasil. 27 CARVALHO, José Murilo. “A Utopia de Oliveira Vianna”. In: Pontos e Bordados: escritos de história e política. Belo Horizonte: UFMG, 1998, p. 214. Sobre o positivismo, ver também: CARVALHO, José Murilo de. “A utopia positivista no Brasil: um bolchevismo de classe média”. In: Pontos e Bordados: escritos de história e política. Belo Horizonte: UFMG, 1998. 28 BRANDÃO, Gildo Marçal. Linhagens do pensamento político brasileiro. São Paulo: Hucitec, 2007, p. 35.

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3. As singularidades de Guerreiro

O constante desígnio de aproximar pensamento e realidade condiciona toda a produção de Guerreiro Ramos. A história das idéias não lhe interessa como relíquia arqueológica, reconstruída pelo capricho de um investigador esteta que admira a beleza de antigas construções. O sentido e a importância do pensamento social brasileiro não se justificam pela reconstrução do passado, mas pelas demandas de hoje e perspectivas do amanhã. Estudar o legado intelectual brasileiro é, todavia, mais do que relevante, trata-se de uma etapa necessária das reflexões sobre a realidade do país. De fato, as idéias não se referem somente às determinações sociais, mas são profundamente condicionados por outras reflexões, conceitos e teses. Os juízos não emergem do vácuo, já que antes se vinculam, voluntária ou involuntariamente, a certas linhagens intelectuais, estilos de pensamento. Ao adotar esta perspectiva na interpretação da história das idéias no Brasil, Guerreiro já se vincula a uma das tradições que a atravessam.

A organização do pensamento social brasileiro a partir da recepção de idéias estrangeiras não é, definitivamente, original. Pode-se remeter tal a perspectiva a Oliveira Vianna, que distingue os teóricos brasileiros entre idealistas constitucionais e orgânicos 29

. A ampla maioria dos cientistas sociais e historiadores contemporâneos recorre a esta

dicotomia, amparada, em última análise, nas duas linhagens referidas, muitas vezes representadas em outros termos, tais como ibéricos e americanos, autoritários instrumentais e liberais doutrinários, dentre outros. Distinções existem, mas a divisão entre uma perspectiva, que submete as idéias à realidade social brasileira, e outra, que promove a política à instrumental central da vida comum, defendendo a aplicação imediata das idéias estrangeiras, perdura.

A mencionada distinção não é, todavia, neutra. Não sem razão ela remonta a uma figura central da tradição ibérica, Oliveira Vianna. Adotá-la significa, de certo modo, aproximar-se do iberismo, retratar a história das idéias ao mesmo tempo em que se insere, irremediavelmente, em uma das vertentes identificadas.

29

VIANNA, Francisco José de Oliveira. O idealismo da Constituição. Rio de Janeiro: Terra de Sol, 1927.

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Guerreiro Ramos divisa dois estilos de pensamento30 na inteligência brasileira: a hipercorreção e o pragmatismo crítico. A distinção se ampara no mesmo critério acima tratado, a recepção das idéias estrangeiras, o modo de inseri-las na realidade nacional. Ao optar pela centralidade deste referencial Guerreiro revela seu lado, sua filiação, em algumas ocasiões expressa: “Demos a este livro o título de ‘O Problema Nacional’ com plena consciência de que ele vai situar-se na tradição de sociologia militante no País, que vêm desde o Visconde do Uruguai, Paulino José Soares de Souza, até Oliveira Vianna, passando por Silvio Romero, Euclides da Cunha e Alberto Torres.” 31.

A hipercorreção se caracteriza pela adesão irrestrita a teorias importadas. Os antecedentes históricos, assim como a atual condição social, não limitam a utilização de conceitos absolutamente estranhos à realidade nacional. As bem sucedidas experiências de outros povos podem e devem nos servir de modelo. Antes importa a engenhosa construção das idéias que o contexto no qual estas se inserem. O progresso passa pela ruptura, não pela reiteração, a política pode confrontar o social.

O pragmatismo crítico, por sua vez, submete as idéias importadas ao contexto nacional. As teorias são filtradas pela tradição, interpretadas e utilizadas a partir dos parâmetros brasileiros, de modo que um juízo de relevância e adequação precede sua veiculação. Construções intelectuais são instrumentos, não fins. Guerreiro assim o define: “O pragmatismo crítico, ao invés, caracteriza o posicionamento de intelectuais que, por força de sua identificação positiva com o elemento nacional e de sua sensibilidade às condições contextuais típicas do meio em que vivem, tendem mais a se servir das idéias e teorias importadas do que a admitir a sua exemplaridade abstrata.” 32.

Diversos autores escapam a tal dicotomia, flertando, a depender da época e tema, com posturas teóricas distintas. Pode-se, contudo, precisar, no mais das vezes, o caminho mais frequentemente percorrido, alinhá-los a determinada linhagem.

30

Sobre o conceito de estilo de pensamento ver: MANNHEIM, Karl. “Conservative Thought”. In: Essays on Sociology and Social Psychology. Londres: Routledge and Kegan Paul, 1953. 31 RAMOS, Alberto Guerreiro. O Problema Nacional do Brasil. Rio de Janeiro: Ed. Saga, 1960, pp. 13-14. 32 Idem, “A inteligência brasileira na década de 1930, à luz da perspectiva de 1980”. In: Revolução de 30: seminário internacional realizado pelo CPDOC/FGV. Brasília: Ed. UNB, 1982, p. 533.

14

O critério de divergência remete ao trato ante as idéias importadas, à prática da redução sociológica. De fato, o pragmatismo crítico nada mais é do que a subsunção dos conceitos estrangeiros ao processo redutivo, ao passo que a hipercorreção consiste na recusa a qualquer postura prática semelhante. A redução sociológica, nas próprias palavras de Guerreiro Ramos, é uma “atitude metódica” que consiste, dentre outras coisas, em “um procedimento crítico-assimilativo da experiência estrangeira”

33

. Ao

destacar que “a perspectiva em que estão os objetos em parte os constitui” 34, ele recusa qualquer imediatismo na utilização das idéias importadas, em direta dissensão ante os hipercorretos.

Trata-se de um libelo contra a mentalidade colonial, então em processo de ampla decadência. Guerreiro destaca a existência histórica de uma profunda heteronomia intelectual no Brasil, uma vez que as principais idéias políticas decorreriam do influxo externo. A partir do progresso econômico e urbano do país, entretanto, torna-se possível a afirmação da nacionalidade, o Brasil entra na história, superando o caráter meramente reflexo em prol da autodeterminação. A redução sociológica é componente necessário deste processo de autonomia, uma vez que promove a consciência da realidade nacional, constrói uma personalidade nacional. Não se trata, com efeito, de uma apologia ao isolamento local, de certa glorificação pátrio em detrimento das demais culturas. A redução sociológica se pauta por “uma aspiração ao universal, mediatizado, porém, pelo local, regional, nacional”

35

. A compreensão do universal passa por uma consciência do

pátrio, que permite retirar do plano meramente abstrato os conceitos estrangeiros, percebendo a perspectiva inerente às idéias.

3.1 A subversão da tradição

Se nos propusermos a analisar o tema da ausência nos argumentos dos pensadores da tradição do iberismo nos deparamos com uma perspectiva que, ao proclamar a inexistência de características que conformam a tradicional idéia de povo no Brasil, vê a necessidade de eleger um elemento dirigente que anunciaria a direção para a 33

RAMOS, Alberto Guerreiro. A redução sociológica. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1965, p. 83. Ibidem, p. 83. 35 Ibidem, p. 84. 34

15

construção da nação. Podemos, resumidamente, compreender o tema da ausência pelo modo como este se insere nos debates sobre a formação do Estado nacional no Brasil: Nos debates sobre a construção do Estado no Brasil, o tema da centralização e descentralização política esteve presente em diversos momentos da história: Império, Primeira república, Estado Novo. Assim, podemos pensar em uma tradição que se formou sob a justificativa de que o federalismo - a descentralização, a autonomia das províncias, dos Estados - defendido pelos liberais, como possibilidade para o Brasil, sofreria, para a sua consolidação, com a ausência de características formadoras que propiciassem ao povo o exercício da política sob o arranjo do federalismo. Ou seja, contra o idealismo dos liberais, inspirados no exemplo norte-americano (Tavares Bastos), a tradição do iberismo (Visconde do Uruguai, Oliveira Vianna), com a crítica da ausência, elaborou um pensamento que apenas considerava o Estado centralizado como capaz de ser o guia na incorporação, no Brasil, do movimento modernizante. Poderíamos aglutinar o tema da ausência, portanto, sob os três seguintes pontos: da nação no sentido herderiano; de costumes e tradições do mundo anglo-saxão; e a ausência de solidariedade social.

No embate, portanto, entre a concepção de liberdade defendida por Tavares Bastos e a autoridade que deveria atuar dando o sentido, o rumo, para a formação nacional, esta segunda perspectiva, na ausência de um povo dotado de virtude, nomeia o Estado centralizador como o próprio detentor da virtude, o elemento dirigente da política, a desenvolver a cultura política, o civismo, a solidariedade social: em Visconde do Uruguai e Oliveira Vianna.

Em relação a este último, sua perspectiva sociológica e sua atuação no Estado Novo significaram, primordialmente, a junção, por meio de um Estado detentor da virtude, da política e do direito. O direito, na legislação do trabalho, a serviço do projeto civilizatório do Estado nos anos 1930. É, pois, na junção entre Estado e direito, no período Vargas, em uma perspectiva de que o caminho modernizante deveria ser conduzido pelo alto, que residem as conseqüências para um federalismo estabelecido anteriormente, alterado, agora, para um processo de controle e de recentralização. O tema, portanto, de uma função ético-pedagógica do direito atrelada ao Estado, representava, de uma maneira mais ampla, óbvias conseqüências ao modelo federativo. 16

Por meio da representação funcional, da Constituição de Francisco Campos, e do ideal de construção da nação no regime Vargas, a concepção de unidade e de expansão de um ideal de civilização, alterariam os rumos do federalismo no Brasil: com a conexão entre Estado e direito, não haveria espaços para a descentralização completa em um projeto cujo objetivo claro era a tentativa de homogeneização em meio a uma experiência anterior de assimetrias entre as regiões.

Neste período, portanto, sob o binômio Estado e direito, podemos acentuar os efeitos centralizantes na legislação corporativista e no declínio do ideal federalista. Este último, por sua vez, permaneceria na história brasileira como ideal normativo de uma junção, qual seja a correspondência entre descentralização e democratização. O ideal do liberalismo federalista de Tavares Bastos permaneceria, demonstrando a tensão existente e permanente na política brasileira, que permanece até os nossos dias, com o pacto federativo de 1988.

Ao situarmos Guerreiro Ramos nesta tradição, vínculo estabelecido pelo próprio autor, devemos compreender o modo como por ele é avaliado o tema da ausência. Não é necessário que o leitor de Guerreiro Ramos se esforce demasiadamente para compreender que a ausência diagnosticada por Visconde do Uruguai e por Oliveira Vianna, por exemplo, não era mais do que um problema superado pela tradição do pragmatismo crítico. Contudo, principalmente em relação à inteligência dos anos de 1930-1945, a preocupação, bem como, a realização da nacionalidade brasileira por esta linhagem, foi considerada por Guerreiro Ramos como um dos traços que configuravam a autenticidade e superioridade desta corrente do pensamento político em seu projeto políticoinstitucional para o Brasil, apesar de suas ambigüidades e equívocos36.

36

“O pragmatismo crítico tem sido objeto de minhas análises desde os primeiros anos de 1950. Interpretei os seus representantes como indivíduos que tentaram contribuir para a articulação no Brasil de uma ciência social depurada de distorções hipercorretas. Este objetivo inspira a obra de vários integrantes da inteligência brasileira desde o Império. Na década de 1930, muito do que constituiu o arcabouço institucional do país foi fruto da prática daquela ciência social cujos elementos rudimentares são visíveis nos estudos de Oliveira Vianna, Martins de Almeida, Azevedo Amaral e outros. Procurei mostrar que estes homens eram continuadores de um esforço multigeracional de construção da nacionalidade brasileira” (RAMOS, Alberto Guerreiro. “A inteligência brasileira na década de 1930, à luz da perspectiva de 1980”. In: Revolução de 30: seminário internacional realizado pelo CPDOC/FGV. Brasília: Ed. UNB, 1982, pp. 540).

17

Ao avaliar, portanto, este legado para a história política brasileira, Guerreiro Ramos considerou os anos de 1950 como o ponto mais elevado da realização deste projeto. A ausência, assim, perderia a sua eficácia enquanto diagnóstico. A realidade denunciaria a consumação, o preenchimento, das concepções de povo e nação no Brasil.

Em O problema nacional do Brasil, Guerreiro Ramos narra a efetivação, no Brasil, da concepção de povo. Segundo o autor, este trajeto é dificultado por uma característica brasileira: fomos, até recentemente, um país sem povo37. Esta afirmação que, para o autor pertencia ao passado, mesmo que recente, era conseqüência de ausências agora superadas. Estas deficiências anteriores, decorrentes de um não compartilhamento, da impossibilidade de unidade, são resumidas na obra de Guerreiro Ramos como relações materiais de interdependência, condição necessária para a formação de um povo. Isto significaria, considerando a fase capitalista de desenvolvimento, a constituição de um mercado interno. O mercado interno, portanto, como produtor de condições materiais específicas era a exigência necessária para a formação da nação em seu significado moderno: Na fase capitalista do desenvolvimento econômico-social os povos só se formam ao constituírem um mercado interno, seu substrato material. Nessa fase, o povo, do ponto-de-vista objetivo, é um conjunto de pessoas integradas num mercado próprio. Foi justamente esse requisito que faltou ao no Brasil, para que no passado pudesse ter verdadeiramente um povo38.

A superação, no caso brasileiro, da ausência de povo foi produto do desenvolvimento dessas condições materiais, de um mercado interno que alterou as relações entre as regiões brasileiras, antes em completa desarmonia, para um intercâmbio e comunicação que constituíram um sistema econômico nacional. Mais uma vez, podemos pressupor a atribuição, por parte de Guerreiro Ramos, aos pragmáticos críticos dos anos de 1930-45: Só no decorrer das últimas três décadas se estabeleceram no país condições tais como intercâmbio econômico entre regiões antes insuladas, sistema nacional de transportes e comunicações, prática intensiva e extensiva de pagamentos a fatores que, diminuindo crescentemente o setor interno da economia natural e incorporando cada vez mais a população camponesa no circuito monetário, estão propiciando a efetiva configuração do povo brasileiro

37 38

RAMOS, Alberto Guerreiro. O Problema Nacional do Brasil. Rio de Janeiro: Ed. Saga, 1960, p. 228. Ibidem, p. 228.

18

como ente político, apto a reivindicar e a exercer as prerrogativas típicas de uma adulta personalidade histórica39.

A proeminência de

uma elite intelectual

e política neste processo,

compreendendo, aqui, a inteligência vinculada ao Estado Novo, deve-se, principalmente, a definição elaborada por Guerreiro Ramos, de desenvolvimento da nação como problema essencialmente político e secundariamente econômico40.

Contudo, o

estabelecimento dessas condições materiais alteraria o quadro brasileiro, ao conduzir a formação do povo, de tal modo que a subversão de Guerreiro em relação à tradição intelectual poderia se realizar. Este processo, portanto, ao inserir o Brasil na história como condutor do seu próprio destino, teria como guia seu próprio povo, como categoria cardinal da história contemporânea do Brasil (...). É o povo que, na história contemporânea do Brasil, exerce a função de dirigente por excelência do processo histórico-social41.

Assim, portanto, poderíamos pressupor que o argumento forte entre os pragmáticos críticos, da concepção do Estado virtuoso como elemento dirigente perderia, aparentemente, sua função, com Guerreiro Ramos. Este autor, ao definir a relação entre nação e povo no Brasil, como fruto de condições materiais específicas, ou seja, relação que se desenvolve em um período determinado, afirmou a ascendência do povo como dirigente do processo de desenvolvimento. Para Guerreiro Ramos, portanto, o seu tempo era o futuro de Martius, era o tempo do nacionalismo libertador no Brasil (Guerreiro Ramos; 1950).

Mas, mesmo em sua subversão, Guerreiro Ramos não deu um passo tão largo em relação à tradição a ponto de afirmar um protagonismo do povo. A modernização guiada pelo Estado perderia, portanto, apenas aparentemente, sua função com Guerreiro Ramos42. Ou seja, é factível sublinhar que, nem com Guerreiro Ramos, a autonomia do

39

RAMOS, Alberto Guerreiro. O Problema Nacional do Brasil. Rio de Janeiro: Ed. Saga, 1960, pp. 228229 40 Ibidem, p. 228. 41 Ibidem, p. 229. 42 É interessante notar a classificação de Guerreiro Ramos em relação aos pragmáticos críticos de 1930-45 e a sua teorização sobre a vanguarda. Segundo o autor, essa liderança se constituiu “em duradoura vanguarda civil do país” (RAMOS, Alberto Guerreiro. “A inteligência brasileira na década de 1930, à luz

19

povo alcançaria, de fato, a sua realização. Aqui, o elemento dirigente sobreviveria sendo exercido pela elite do povo, sua vanguarda: Se, como se afirmou, o povo é hoje o dirigente do processo brasileiro, não pode realizar esta função de modo direito, senão em momentos extraordinários. Ordinariamente, terá que agir por intermédio de sua vanguarda. A vanguarda do povo é sua consciência militante. (...) Compõe-se majoritária, porém não exclusivamente, de trabalhadores. É constituída, ademais, de elementos oriundos de outras classes e categorias. Assim é que, para constituí-la em nosso país, socorrer-se-á, naturalmente, de trabalhadores de diferentes categorias, de empresários industriais, comerciais e agrícolas, de quadros técnicos profissionais e de outros elementos da pequena burguesia, militares, estudantes e intelectuais43.

De tal modo, ao percorrermos esta linhagem do pensamento político brasileiro, que culminaria em Guerreiro Ramos, podemos destacar uma perspectiva perene no pensamento político brasileiro do elemento dirigente, mesmo não sendo relacionado diretamente com o Estado centralizador. Até mesmo na inversão proposta por Guerreiro Ramos, do povo como condutor do processo civilizatório, a vanguarda nos é apresentada como o elemento dirigente. A concepção, pois, desta linhagem do pensamento político brasileiro que, ao considerar o povo como não portador da virtude política, tem como conseqüência elevar como guia o Estado, a vanguarda, e o centro a guiar as regiões menos desenvolvidas. Assim, consistiu, a crítica, por exemplo, ao liberalismo político, ao federalismo e a democracia representativa. As conseqüências que esta tradição impõe a história política brasileira permanecem presentes até os dias atuais, mesmo que convivamos

hoje

com

instituições

políticas

próprias

do

federalismo

e

da

descentralização. O federalismo brasileiro com suas características muito peculiares denuncia o legado destes pensadores e dos períodos nos quais pensaram e viveram o Brasil. Assim, compreender estes debates e seus resultados práticos significa conhecermos a nós mesmos.

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