Ícones e Gafanhotos

July 18, 2017 | Autor: Julio Pinto | Categoria: Semiotica
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De ícones e Gafanhotos



Julio Pinto[1]


Propõe-se, à guisa de abstract inicial, uma questão: é possível
escapar ao simbólico? Seria uma possibilidade o alcance daquilo que, sem
dúvida, e.e. cummings buscava desesperado, a saber, a agreste
materialidade de um som, o rude impacto do visto? Não é outra coisa que
aquele poeta do átomo de sentido buscou com seu gafanhoto, tão bem
traduzido por Augusto de Campos:[2]


o-h-o-t-n-a-f-g-a
que
s)e e(u olh) o
paraoaltor
HOTGOAFAN
eunindose(n-
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eGaNdO .gOaTfOaNh)
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recom (tor) pon (n) d (ar-se) o
;gafanhoto,



Esse poema, agora já exemplar para os que militam nas interfaces do
vídeo, da animação digital, da música e da poesia, assenta-se em um
recurso: a tentativa de desestabilizar o signo simbólico ao expor dele as
entranhas e, assim, produzir o estranho: estranhar as entranhas.
A ostranenie [3] foi produzida simplesmente. Bastou esfacelar as
palavras, destruir delas as fronteiras, para que o artifício icônico
assumisse a preponderância. Ficou possível dar a entender a tecedura da
percepção de um salto mal visto pelo olho: borrão que passa diante das
vistas indicando o percurso do inseto no ar e a gradual recomposição da sua
forma percebida assim que ele pousa e vai assumindo a estase. Junto com a
assunção da forma, o icônico se recompõe em símbolo para aparecer,
inexorável, novamente como palavra inteira: gafanhoto. Estranho, isto: o
símbolo determina a forma.
Simples e direto o insight de cummings: é possível ocultar o
simbólico temporariamente e fazer aparecer dele o intestino icônico-
imagético, mas o gesto adâmico de nomear – designar com símbolos – é mais
forte. Nossa cognição ou, pelo menos, nosso hábito, assim o demanda. Não é
à toa que Peirce diz da imagem:

Um signo por primeireza é uma imagem de seu objeto, e, falando
mais estritamente, só pode ser uma idéia. Pois ele deve produzir
uma idéia interpretante e um objeto externo excita uma idéia por
uma reação no cérebro. Mas, estritamente falando, mesmo uma idéia,
exceto no sentido de uma possibilidade, ou Primeireza, não pode ser
um ícone...Qualquer imagem material é grandemente convencional em
seu modo de representação. [4] (CP 2.276)

Há muita coisa nessa caracterização do signo primeiro. Em primeiro lugar,
a curiosa frase "um objeto externo excita uma idéia por uma reação no
cérebro" já, de maneira implícita, temporaliza a relação de representação e
a coloca como um dentro-fora peculiar. Em segundo lugar, fala de imagem
como idéia, isto é, algo que é a partir de algo (isto é, algo já dado). Em
terceiro lugar, não existe representação puramente icônica, isto é,
puramente analógica, já que "qualquer imagem material é grandemente
convencional em seu modo de representação". O termo convencional é
utilizado aqui de maneira inequívoca para se referir àquilo que Peirce
chama de thirdness e que eu traduzo como terceireza, registro de
experiência que é da ordem da previsão e, portanto, do nome, símbolo e
argumento determinante da experiência (aquilo que se sabe vai acontecer).
Convém repetir, aqui, à guisa de lembrança, as tradicionais concepções de
símbolo e ícone na semiótica peirceana: o símbolo é aquele signo capaz de
evocar seu objeto simplesmente pela força do hábito; é o signo-lei, o
próprio habitus. O ícone é aquele signo que exibe, em si, as formas de seu
objeto. Dito de outra forma, ele partilha, com seu objeto, de qualidades,
formas, sensações, cores. O ícone seria o modo pelo qual a convenção
simbólica dá conta do sensorial. E, é óbvio, a convenção se traduz tanto em
estipulabilidade quanto em arbitrariedade. [5]
Há mais coisas implícitas nesse pequeno parágrafo de Peirce. O que
temos é a corroboração teórica da experimentação de cummings. O signo cede
lugar temporariamente à experiência da imagem, a algo que recende à
sensorialidade do ver para, logo depois, retomar seu estatuto de idéia:
idéia de sensação, é claro. É possível levar isso mais adiante e afirmar
que, talvez, as sensações sejam ditadas pelas idéias que temos delas.
Certamente, não se fala aqui de sensações como simulacros de idéias. O que
está nas entrelinhas é que as idéias se compõem de sensações e que é-nos
difícil ter uma sensação de uma pura originalidade, no sentido semiótico do
termo. A originalidade seria da ordem da experiência primeira, isto é,
daquela vivência singular, não refletida, impensada, fugaz, inalcançável na
prática: a primeireza.
George H. Mead fala da diferença entre o mim e o eu mais ou menos no
mesmo diapasão, isto é, da relação entre um eu e sua imagem percebida, o
mim.

É apenas o "mim" -- o self empírico – que pode ser focado pela
atenção – que pode ser percebido. O "eu" jaz para além da faixa da
experiência imediata. Em termos de conduta social isso equivale a
dizer que podemos perceber nossas respostas apenas quando elas
aparecem como imagens da experiência passada mesclando-se com a
estimulação sensorial.[6]

O eu é uma sensação de mim. O mim é o símbolo indicial do eu e
constitui aquele conjunto de experiências passadas que está no lugar de um
eu inefável e apenas vislumbrável através dos mins históricos. Em outras
palavras, o eu se manifesta por vias do mim, sua imagem, entidade visível,
símbolo indicial e, muitas vezes, também icônico.
É curioso pensar que, na linguagem, esse eu semiótico é o mim,
entidade categórica objetiva que, ao assumir o lugar de sujeito, assume
junto o nome-fantasia eu. Falo de qualquer frase banal, um "Eu já vi esse
filme", por exemplo, em que o sujeito linguístico, o eu, refere-se a um
lugar ocupado semioticamente (no sentido pragmático do termo), por um mim.
Num certo sentido, o eu é uma ilusão do mim. A idéia que temos da sensação
nos é dada por algo já sabido, já parte de nosso repertório, de nosso
conjunto de categorias experienciadas do mundo e compartilhadas
interobjetivamente com outros mins.
No cinema, é possível identificar fenômeno análogo. Assim é que o
conjunto simbólico associado com as idéias de vampiro reunidas no romance
Dracula, de Bram Stoker, de 1897, encontra sua primeira indicialização e
iconização no Nosferatu, de Murnau (1922). Como é sabido, essa primeira
visualização cinematográfica de um vampiro imaginado assumiu os contornos
ditados pela estética do Expressionismo Alemão. Assim é que, no jogo do
chiaroscuro, na utilização da backlight, na produção de sombras (que acaba
por ser um grande auxiliar cênico na falta dos efeitos especiais
contemporâneos), produziu-se um terror incitado pelo teatro de sombras. O
primeiro Nosferatu se torna ameaçador não por sua figura esguia, pálida e
sem pelos, mas por sua sombra, que projeta as garras alongadas com que
avança para a mocinha já enlanguescida por sua inelutável e diabólica
sedução.
(O vampiro sobe as escadas na direção do quarto de sua presa que, seduzida,
abriu-lhe as portas em convite – Nosferatu, 1922)

O poder de permanência dessa imagem é surpreendente. Tanto é que, 70
anos depois, o cineasta Francis Ford Coppola repete o jogo de sombras em
seu Dracula de Bram Stoker (1992), que, mesmo na saturação das cores, no
evidente neo-barroquismo de seus cenários, na profusão de detalhes e nos
eficientes efeitos especiais, não consegue deixar de reiterar a antiga cena
de sedução e o vagar das garras do vampiro de 1922 pelo corpo de sua
mesmerizada presa de 1992.
Fazendo um exercício de pensar essa situação na contemporaneidade,
especialmente no contexto de nossa relação com as neotecnologias de
comunicação, somos levados a reconhecer que, não mais tão intersubjetivas,
nossas relações se fazem interobjetivamente, em especial nos espaços
urbanos, como faz notar Muniz Sodré (2002). Isso implica que estamos nos
movendo para fora do simbolismo da subjetividade tradicional para
assumirmos um olhar mais semiótico, "mais compatível com uma ontologia dos
processos relacionais" (Sodré, 2002, 159). Mesmo sem levar adiante idéia
tão instigante, fica bem fácil presumir que o que presenciamos é um
comércio de sentidos distribuídos socialmente por dispositivos midiáticos
que, conquanto tendo sempre existido, adquirem agora um peso que cresce
exponencialmente e quase que oblitera a espontaneidade do psiquismo
intersubjetivo para carregar nas tintas de uma interobjetividade simbólica.

Além do mais, forçoso é reconhecer que esse item do nosso álbum de
memória de imagens já convencionais, sempre retroalimentado pelas nossas
relações interobjetivas, espraia-se para além dos limites de uma arte
para se disseminar e alcançar outros domínios da experiência. Tal é o caso
do fotojornalismo. Assim é que, na sua edição de 25 de março de 2006, a
Folha de São Paulo estampa uma foto do então Ministro Antônio Palocci, já
passando pelos estertores de seu mandato. No enquadramento dessa imagem não
podemos deixar de, surpresos, reconhecer traços da estética das sombras
mantidos no repertório do fotógrafo e, além disso, quem sabe perceber um
irônico ou mesmo maledicente comentário sobre a demoníaca presença do todo-
poderoso vampiro de nossos impostos.[7]



Antônio Palocci, pouco antes de deixar o Ministério da Fazenda. (Folha de
São Paulo, 25 de março de 2006)

Talvez valha dizer, de passagem, que, mesmo que o gesto fotográfico
não tivesse tal intenção, e mesmo que a foto resultasse de algum insight
momentâneo em que o significado das sombras fosse outro, registro aqui a
possibilidade de tal relação interartística. Fica claro que o domínio das
interpretações não parece depender das intenções de quem produz o texto,
mas das intenções que o leitor – em sentido amplo – atribui, ou pode
atribuir, ao chamado autor (que, naturalmente, é apenas uma função
textual). Falamos, portanto, não da descoberta de uma imanência, mas de
uma atribuição transcendentalizante do repertório do leitor àquele do
imaginado produtor do texto. De qualquer modo, o gesto fotográfico em
pauta ressalta a idéia de que, como símbolo indicial, essa imagem destrói
um possível projeto de iconicidade cabal que a fotografia documental
poderia se atribuir, desmontando a noção simplista de reprodução do real.
Muniz Sodré reforça essa suposição, ao discutir a idéia de vinculação
como função da conectividade, ou estrutura técnica de relacionamento
(relatedness), idéia preponderante em nossa midiática cultura. Diz ele que
"o que define um ato psíquico não é ... o pressuposto de uma subjetividade,
mas o de uma representação. Quanto ao objeto, pouco importa se existe ou
não: a presença intencional prescinde de juízos de existência." Se é assim,
continua ele, o que importa é a conexão. O indivíduo passa a ser pensado
como o alvo dessa conexão, mas um alvo "concebido como um lugar de
interseção nas conexões que constituem as redes sociais, ... alguém
sistematicamente fora de si mesmo" (Sodré, 2002, 159). Somos, nessa
perspectiva, constituídos de símbolos, de sentidos construídos fora de nós
e por nós aproveitados, mins sem eus.
Seja como for, e voltando ao poema de cummings, em que o simbólico é
malbaratado momentaneamente para depois reassumir triunfantemente sua
configuração original e autoritária, fica difícil não ver essa presença do
símbolo nas nossas imagens, sejam elas do cotidiano ou não. Parece-me
eloqüente o exemplo acima, o de uma imagem que parece se perder no
labirinto e na profusão caótica de todas as visualizações do cotidiano
para, a um pequeno esforço simbólico, retomar sua condição de imagem-
determinante, de texto sobredeterminado que, tal qual a palavra gafanhoto
do poema, acaba por garantir aquilo que poderíamos rotular como
inteligibilidade. Além do mais, ficamos quase obrigados a concluir que o
inteligível se confunde com o reconhecível. Por isso mesmo, Peirce nos
lembra, com sua Logic of Vagueness, que o sentido sempre se produz na
tensão (tanto in- quanto ex- ) entre o imediatamente reconhecível e o
quase irreconhecível. Essa tensão é dinâmica, fluida e, no todo,
dependente dos contextos e das situações.
Difícil, portanto, distinguir entre as categorias ou, pelo menos,
pôr, entre elas, divisórias claramente definidas. Entretanto, é com isso
que nos deparamos em nossos exercícios cognitivos do dia a dia num ambiente
em que impera o relacional. Por outro lado, esse esquema de trânsito
categórico que acabamos de demonstrar não seria possível se, tal como
imaginam muitos quartéis de estudo da semiótica de Peirce, houvesse
categorias estanques de modo que as imagens pudessem realmente ser
classificadas em nichos fixos.
Seja como for, nos domínios da semiose poética, o que temos não é a
ilusão especular, nem a mera presentação de que nos falam os arautos da
morte da representação. O que temos é a consciência de signos que simulam
a significação interpretada de outros signos, tal como fez e. e. cummings
em seu gafanhoto.
Explico-me: em certo conceito de mímese, uma estrutura é apresentada
em lugar de outra, essa outra entendida como aquele estado de coisas a que
se costuma denominar realidade. O objeto representado é referência
constante e o processo referencial consiste em apresentar algo como se
fosse aquilo que é. Nessa mímese simples, quase simplória, o poético seria
a tentativa de alcançar um é por meio da estratégia de chamar de é um mero
como se, desprezando o veículo, o signo como se, em favor daquilo que o
como se representa. Por outro lado, o poema de cummings – e, de resto,
muito da prática do grupo Noigandres – revela o embuste. O símbolo, a
palavra, tem como efeito o distanciamento da coisa, já que promove o dizer
sobre ela. Ao emergir novamente, o símbolo revela que tudo não passa de
jogo de espelhos, de como se's, e o projeto mimético essencial se
estilhaça, frustrando o objetivo de se atingir a coisa para além da
palavra, e, portanto, realçando a poeticidade da coisa tornada objeto.
Sabemos, sem sombra de dúvida, que o projeto da verbivocovisualidade
brasileira (e também portuguesa – e aqui ressalto a figura de Melo e
Castro, iniciador dessa poesia em Portugal e iniciador da videopoesia no
mundo lusófono) não é o da iconicidade de uma mímese essencialista,
reprodutora e especular, embora muitos praticantes menores da tendência
tenham se excedido na demanda pouco esclarecedora da transformação da
palavra em imagem por meio de iconizações óbvias, banais brincadeiras
infantis de quem começa a perceber os tortuosos caminhos da linguagem.
Sabemos, ao contrário, que por trás de um discurso semiótico sofisticado,
há uma praxis igualmente refinada de manipulação dos símbolos de modo a
torná-los simulacros de ícones, que é o que se pode esperar, de qualquer
maneira, de um projeto poético sólido e consolidado, que sabe que no lugar
do eu, há os vários mins, esses como se 's que tão mal representam um eu
inefável.

Referências
CAMPOS, A. , CUMMINGS, E.E. 40 poem(a)s. São Paulo: Brasiliense, 1986.
COPPOLA, F. F. (produção e direção), Dracula de Bram Stoker, EUA, 1992.
Folha de São Paulo, 25 – 03-2006.
MEAD, G. H. The mechanism of social consciousness. In: MENAND, L. (org.).
Pragmatism: a reader. New York: Vintage Books, Random House, 1997, p.
288 – 294.
MURNAU, F. W. Nosferatu, eine Symphonie des Grauens, adaptação
cinematográfica da novela Dracula, de Bram Stoker, 1922.
PEIRCE, C. S. Collected Papers. Org. John Deely. Versão eletrônica.
Bloomington: Past Masters, 1995.
PINTO, J. 1, 2, 3 da semiótica. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1995.
PINTO, J. The reading of time. Berlin: Mouton de Gruyter, 1989.
SODRÉ, Muniz. Antropológica do espelho. Petrópolis, RJ: Vozes, 2002.

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[1] Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social, PUC Minas.
[2] Cummings, Campos (1986). Reprodução imperfeita da rigorosa disposição
gráfica exigida do transcriador pelo autor.
[3] Estranhamento - uso a palavra em justa lembrança dos formalistas
russos. Cf. comentário em Pinto, 1989.
[4] CP 2.276 (de acordo com a forma de citação tradicional em estudos
peirceanos, com a sigla CP – relativa a Collected Papers, seguida do número
do volume e do parágrafo).
[5] Pinto, 1989, 1995.
[6] Mead, 1912, p. 288. Minha tradução do texto original: It is only the
"me" – the empirical self – that can be brought into the focus of attention
– that can be perceived. The "I" lies beyond the range of immediate
experience. In terms of social conduct this is tantamount to saying that we
can perceive our responses only as they appear as images from past
experience, merging with the sensuous stimulation. "

[7] Devo, aqui, registrar meu agradecimento aos ex-orientandos Nathalia
Turchetti, Gustavo Pedrosa, Aline Couto e Thiago Ventura que chamaram minha
atenção para essa imagem que, sendo fotojornalística e cumprindo função
documental, funciona também como charge e comentário político.
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