Iconografia do Corpo nas Janelas Manuelinas do Hospital Velho do Funchal

June 5, 2017 | Autor: Higino Faria | Categoria: Iconology, Arquitetura, Iconografia, Teologia biblica, Artes Decorativas, Estudos Regionais e Locais
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Centro de Estudos de História do Atlântico 2015

Iconografia do Corpo nas Janelas do Hospital Velho do Funchal: Imagens da Escatologia Cristã Body Iconography on Funchal’s Old Hospital Windows: Images of Christian Escatology

Higino Faria

Anuário do Centro de Estudos de História do Atlântico 2015, N.º 7 ISSN: 1647-3949 Funchal – Madeira

pp. 95 - 117

Região Autónoma da Madeira

Anuário do CEHA 2015, N.º 7

Iconografia do Corpo nas Janelas do Hospital Velho do Funchal: Imagens da Escatologia Cristã Body Iconography on Funchal’s Old Hospital Windows: Images of Christian Escatology

Higino Faria

Mestre em História da Arte, Património e Turismo Cultural pela Universidade de Coimbra, Faculdade de Letras. Cumpriu a licenciatura em História da Arte pela Universidade de Lisboa, Faculdade de Letras. Como bolseiro Leonardo da Vinci desempenhou, no estrangeiro, tarefas de secretariado de apoio à investigação e investigação na Universidade de Santiago de Compostela, Departamento de História da Arte da Faculdade de Geografia e História, ao abrigo do respetivo programa de mobilidade no espaço europeu. Tem desenvolvido investigação na área da história da arte e do património regional e é autor, entre alguns artigos de opinião, publicados na imprensa regional; dos seguintes trabalhos científicos: 2012, «Acerca do Conjunto de Escultura Pétrea Integrada da Igreja de São Bento da Ribeira Brava», in Islenha, n.º 50, pp. 33-60; 2014, «A Função das Artes Decorativas na Construção do Barroco da Capela da Lombada dos Esmeraldos: Esplendor e Fé», in Islenha, n.º 54; pp. 55-88; 2016, Escultura Arquitetónica na Sé do Funchal: das Formas e dos Temas do Gótico Tardio Internacional à Simbólica Manuelina do Poder (dissertação de mestrado, publicação em curso, ed. DRAC, revista e ampliada); 2015, «Henrique Alemão ou Ladislau III, “O Varnense”? Entre a Lenda, a História e a Arte», in Islenha, n.º 56, pp. 23-36. Encontra-se atualmente a desempenhar funções técnicas de investigação em história, arte e património, como técnico superior estagiário, na Câmara Municipal da Ponta do Sol, onde desenvolve, em coordenação com o respetivo gabinete de arquitetura, O Inventário do Património Imóvel da Ponta do Sol.

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RESUMO A escultura pétrea aqui elencada trata-se de marginalia, mas diz respeito às iconografias normativas, enquadradas na teologia e numa tradição muito forte da arte simbólica. Não sendo, pois, imagens devocionais propriamente ditas, mas sim alegorias da “história sagrada”, as “micro-iconografias” esculpidas nos parapeitos das janelas do Hospital Velho do Funchal, situado outrora na freguesia de Santa Maria, podem ser analisadas como testemunho, lato sensu, do imaginário das “tentações da carne e do pecado” no baixar do pano da época medieval. É objetivo desta curta dissertação tratá-las como evidências concretas de uma “escatologia do coletivo”, isto é, da relação coeva, ao nível das ideologias imagéticas, do madeirense com o corpo enquanto “coisa pública” ou como assunto da própria comunidade cristã no espaço mitográfico a que o indivíduo e o coletivo se reportavam de modo ideal: a Madeira, “vergel fértil” e puro como um Novo Jardim do Éden. Palavras-chave: Corpo; Iconografia; Hospital Velho do Funchal; Escatologia Cristã; Cultura Observante.

ABSTRACT The stone carving referred in this project is marginalia, but are mentioned in regards to the normative iconographies, framed in theology and in a strong tradition of the symbolic art. Not being, therefore, devotional images per say, but rather allegories of sacred history; these “micro-iconographies” carved on the windows parapets of Funchal’s Old Hospital may be analysed as a testimony, latu sensu, to the “temptations of the flesh and sin” heavily imprinted in local culture towards the end of medieval times. The aim of this short dissertation is to treat these stone depictions as concrete evidence of a “collective eschatology”, i.e. the coeval ideological and imagistic relation of the Madeiran people with the human body as public property or as subject of the Christian community in the mythological plane where the individual and the collective reported themselves in an idealized way: Madeira, a fertilis viridarium or fertile and pure orchard, as a New Garden of Eden. Keywords: Body; Iconography; Funchal’s Old Hospital; Christian Eschatology; Pious Culture.

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Iconografia e Iconologia nas Janelas do Hospital Velho

A

propósito de uma antropologia da arte do final da Idade Média, Foucault terá dito que, «[...] o mundo do similar não pode deixar de ser um mundo marcado»1: um mundo de normas imagéticas e desvios intencionais, em que cada espaço cultural assume o seu léxico próprio quer pela reprodução ou cultivo dos signos permitidos quer pela recombinação, inovadora, destes. Nas iconografias heterodoxas das janelas manuelinas do verdejante e exótico Parque Arqueológico da Quinta das Cruzes veremos retratadas, como temáticas centrais, ainda que articuladas com outras categorias representativas; o «corpo que peca e transgride», o «corpo que vigia e combate» e o «corpo que celebra, festeja e reproduz», respetivamente, não sem antes passarmos em revista aquilo que outros autores já escreveram sobre a mesmas e sobre o edifício de onde estas proveem (Figs. 1 e 2). Figuras n.os 1 e 2: Janela maior do Hospital Velho do Funchal e Janela menor do Hospital Velho do Funchal, c. 1515-1519, Quinta das Cruzes

© DRAC, Roberto Pereira 1

FOUCAULT, 1998, As Palavras e As Coisas [...], p. 73.

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Anuário do CEHA 2015, N.º 7 Tal como já afirmamos noutra ocasião2, não será exagerado voltar a dizer que a mencionada iconografia das ditas janelas merece estudo cabal, específico e devidamente contextualizado, apesar de uma primeira abordagem realizada por João Lizardo em 2007, oportunidade que então agora surge, a título de proposta de entendimento, com este ensaio sobre as linguagens do corpo na arte da escultura arquitetónica do final da Idade Média. O investigador João Lizardo viu nas representações em análise cenas profanas e defendeu que na janela de maior volume, «de melhor traçado», os animais que confrontam as figuras humanas, dois homens, segundo propôs; podem não ser leões, mas sim babuínos, fruto do contacto e consequente fascínio que estes ferozes animais teriam causado nos primeiros exploradores portugueses da costa africana já que outros testemunhos zoológicos, saídos das Descobertas, teriam sido passados à pedra, no Convento de Tomar (Búfalo do Cabo) e na Torre de Belém (um Rinoceronte-indiano ou Ganda)3. O autor pressupôs a aparição exótica dessa espécie na decoração destas extraordinárias peças do gótico tardio português pelo fato dos animais se apresentarem sentados sobre os quadris, pela anormal extensão da pelagem (até às patas dianteiras), bem como pelo fato das caudas serem invulgarmente longas, fundamentando que estas mesmas “aparições” se ficam a dever a um desvio intencional, espontâneo, por parte do artista, ou de uma apropriação marginal deliberada do modelo iconográfico clássico do confronto de leões com homens para um «modelo que conheceria melhor», fora da «normalidade da cultura europeia». Num dos espécimes esculpidos o autor afirma existirem semelhanças com a face de um símio, rematando a sua teoria iconográfica com a hipótese do escultor ter uma diferente origem étnica, isto é, africana, tal como outros escravos a operar nas obras de pedraria da Madeira4. Quanto à janela menor, onde se cruzam temas da animália alegórica com narrativas humanas, João Lizardo menciona a existência de uma dicotomia ambivalente: fertilidade animal/matrimónio humano, patente no jogo simbólico cruzado entre as cenas dos frisos das janelas, na qual se inclui, segundo refere o autor, uma sub-representação de uma cena de dança, suposta prática em torno da qual também especula um cariz etnográfico africano para a mesma, associando-a, numa segunda análise, aos «bauínos – “leões”»5, representados na outra janela. Ora, na cultura medieval europeia o saber bíblico ocupava lugar primacial na formação tanto da alta cultura como da cultura popular. Não havia formulação de conhecimento sobre a realidade que não fosse passível de uma analogia bíblica, pois todo o conhecimento que “bastasse ao mundo” estaria então acumulado no “livro-mor” da cultura judaico-cristã. Das plantas aos animais, passando pela condição humana, poucos eram os que ousavam sair da matriz literária e imagiológica decorrente das Sagradas Escrituras, mesmo no período inicial das Descobertas, em que as terras e todo o tipo de exóticos mirabilia seriam interpretadas a partir das fontes antigas. É com base nesta premissa que desenvolveremos o nosso prisma de análise, bastante distinto daquele que assumiu o autor atrás citado, ressalvando o aspeto proposto por Lizardo das reinterpretações bíblicas naturalistas perante o inaudito e o novo, que o reencontro perante leões, elefantes, e grandes símios proporcionaria, considerações que nos parecem constituir bons contributos para a formulação de uma mais sólida iconologia em torno do imaginário naturalista no contexto do providencialismo imperial manuelino6. O contraditório que aqui se assume passa por alertar que um dos aspetos que mais diferencia a programação iconográfica das janelas expostas no Parque Arqueológico da Quinta das Cruzes, e que pode ter originado incógnitas e alguns equívocos de interpretação, tem que ver com o cruzamento de temas provenientes do ciclo do bestiário medieval com as designadas “apropriações bíblicas”, constituindo esta, em termos de leitura 2 3 4 5 6

FARIA, 2013, Escultura Arquitetónica na Sé do Funchal: [...], Vol. I, p. 38. LIZARDO, 2007, «A propósito de representações ‘exóticas’ na arquitetura manuelina: [...]», pp. 84-88. O termo Ganda, usado pelos portugueses, para denominar o animal, vem do sânscrito. LIZARDO, 2007, «A propósito de representações ‘exóticas’ na arquitetura manuelina: [...]», p. 88. LIZARDO, 2007, «A propósito de representações ‘exóticas’ na arquitetura manuelina: [...]», p. 88. FARIA, 2013, Escultura Arquitetónica na Sé do Funchal: [...], Vol. I, pp. 130-137.

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Anuário do CEHA 2015, N.º 7 global, por outro lado, um perfeito exemplo do complexo jogo de opostos ou de forças que caracterizam as imagens marginais, nas quais é recorrente e sistemático, por outro lado, a sobreposição/síntese de conteúdos e significados. Quer isto dizer que numa cena representada o sentido de uma imagem marginal raramente é um só – um aspeto que é realmente enriquecedor em termos de mecanismos sígnicos, discursivos e semânticos. Com efeito, e sem quase nada adiantar o autor em relação à imagética cristã, consideramos muito improvável que as “feras africanas” – cujas (re)descobertas terão, certamente e de mogo geral, inspirado o imaginário coletivo, causador de um certo regresso ao bestiário na decoração simbólica – esculpidas no parapeito das janelas manuelinas sejam «exóticos babuínos». Apesar das reservas que o autor assumiu nas considerações efetuadas, as insuficiências da identificação começam logo com a descrição anatómica que o mesmo nos dá das feras, análise a partir da qual fundamenta todo o artigo e propõem o “carácter exótico” da iconografia esculpida nas janelas. Numa perceção global não vemos patas de um símio, mas sim garras, basta recordar que um leão ataca com as patas dianteiras, garras aliás semelhantes às garras dos leões que surgem na superfície no friso inferior da outra janela, bem como a farta juba, relevada em forma de “escama”, similar entre as figuras felinas de uma e outra janela. As patas traseiras e os quadris são poderosos e pouco tem que ver com os membros posteriores de um babuíno. As caudas são do mesmo cumprimento dos outros leões encontrados no bestiário pétreo da Madeira, com a diferença de se encontrarem retesadas, na vertical, quando noutros casos se enrolam por entre as pernas dos animais7. Por outro lado, como é sabido, os canteiros manuelinos destes primeiros anos de quinhentos fizeram uso formal e instrutivo das gravuras avulsas que primeiro do centro da Europa (sobretudo as inspiradas na iluminura franco flamenga, Fig. 5). e depois do sul, de Itália, foram sendo trazidas por gravuristas, tipógrafos, pintores, etc.8. Daqui se conclui, de modo preliminar, pois, a fragilidade das conjeturas do estudo de João Lizardo em torno dos prováveis tributos etnográficos e etnológicos da parte de oficiais escravos de origem africana a operar nas obras do Funchal Manuelino, que considera esse autor ver nas figuras das janelas manuelinas. Nos termos como estes assuntos das imagens públicas são abordados na documentação, é possível entrever, sim, em várias situações; um controlo apertado e criterioso dos temas, fosse da parte dos vedores civis do rei, fosse da parte de clérigos, bem cientes dos elementos doutrinários associados às mensagens da arte9. Através do linhagista Henriques de Noronha sabemos, inclusive, que em junho de 1514 D. Manuel incumbiu o recebedor da obra do hospital, Estevam Fernandes, de lhe mandar o «rescunho della em pintura, com todas as medidas do disenho… especificando o referido com tanta muideza, que inculca o grande animo com que a desejava dispor»10. Relativamente ao enquadramento funcional e simbólico das janelas, e para clarificar o contexto iconográfico das mesmas, é relevante traçar os antecedentes históricos do edifício de onde estas mesmas peças são provenientes. O “Hospital Velho” do Funchal, situado na rua da Boa Viagem, foi o primeiro albergue de misericórdia para os necessitados, fundado pelo carpinteiro Álvaro Afonso e Constança Vaz, entre 1477 e 1483, e administrado pela confraria dos mesteres, com a condição de se reservarem seis leitos para os pobres. Para suprir novas necessidades de assistência social, em virtude do alargamento citadino e do crescimento demográfico que se verificava na ilha, o rei D. Manuel ordenou, mediante uma bula do Papa Alexandre VI, a 4 de Maio de 1507, a construção de um novo edifício destinado a acolher o novo hospital e a instituição pia da Santa Casa da Misericórdia da cidade, formada oficialmente a 27 de julho de 150811, ano de elevação do Funchal a cidade, ficando a paredes meias com a Igreja de Nossa Senhora do Calhau – primeira igreja dos funchalenses, fundada por frades franciscanos, e reservada aos moradores da zona antiga da cidade depois de construída a Sé. 7 8 9 10 11

FARIA, 2013, «Acerca do conjunto de escultura pétrea [...]», pp. 43-45. CÓMEZ, 2003, «Rafael, Los Grabados de Van Meckenem [...]», pp. 32-35. DIAS, 1994, A Arquitetura Gótica Portuguesa, p. 38. NORONHA, 1996, Memórias Seculares e Eclesiásticas [...], p. 311. JARDIM, 1996, A Santa Casa da Misericórdia do Funchal: [...], p. 21.

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Anuário do CEHA 2015, N.º 7 Este espaço destinava-se, pois, a acolher os “novos” miseráveis, convalescentes e necessitados da cidade, então recém-criada: enjeitados, órfãos, presos, indigentes, marinheiros, etc., onde aqueles eram acudidos pelos confrades e irmãos segundo a tradição e os costumes de assistência médica e social da época12. Apesar da provável incorporação do albergue antigo, contíguo a Santa Maria do Calhau, porém virado para a rua da Boa Viagem, no hospital levantado num chão próximo na Rua Nova, doado por Bartolomeu Marchena; durante a regência manuelina e designado «Hospital de Jesus», o certo é que passou a haver uma divisão, pelo menos funcional, entre as antigas instalações, já dedicadas aos miseráveis crónicos e «incuráveis», e as novas, direcionadas para os «doentes efémeros», grávidas (Fig. 3), viajantes, etc13. Figura n.º 3 – Virgem com o Menino, c. 1515-1519, Quinta das Cruzes

© Nuno Rodrigues

Tratando-se do novo hospital de uma casa pia – isto é, uma casa de providência, onde se acabava, afinal, tanto por tratar das penas do corpo como das penas da alma; dedicada a Jesus, Nosso Senhor Salvador, milagreiro e fonte de toda a Misericórdia Divina – torna-se forçoso admitir que a decoração das janelas – reaproveitadas e remontadas num edifício posterior na Rua dos Ferreiros, como se pode ver numa foto do século XIX 12 «A Casa da Misericórdia he de ricas oficinas e de mais ricas esmolas e obras de caridade, que nela se fazem pelos provedores e irmãos, curando muitos enfermos e remediando muitos pobres e necessitados, não somente da mesma ilha, mas que vêem de fora, de diversas partes e navegações, ter a ela, que é rica e abastada, e piedosa escala e refúgio de todos». FRUTUOSO, 2007, As Saudades da Terra, p. 88. 13 SILVA, 1995, A Madeira e a construção do Mundo Atlântico: [...], p. 755.

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Anuário do CEHA 2015, N.º 7 publicada por António Aragão14 – tenha na sua origem orientações iconográficas religiosas e, logo, tratem das narrativas bíblicas onde o Messias figura em carne e osso ou através de alegorias, pese embora o seu aspeto e inserção marginal: parapeitos/frisos das janelas. Deslocadas estas peças para a Quinta das Cruzes15, gastas as esculturas pelo tempo e sem a policromia original – que possivelmente as revestiriam magnificamente (à semelhança dos portais da Sé do Funchal, igreja da Ribeira Brava, etc.16) como se pode ainda ver nos vestígios de policromia na dentadura de um dos lobos de uma das cenas esculpidas – muitos interessados pela arte e até mesmo investigadores inclinaram-se a considerá-las como sendo ou uma enigmática representação duplicada de Daniel na Cova dos Leões, tendo por modelo iconográfico o episódio bíblico homónimo17, ou duas cenas profanas, inspiradas na realidade ultramarina, mas de conteúdo simbólico vago, como fez Lizardo, cujo estudo vimos citando. Seja como for a sua iconografia tem sido mal compreendida, bem como a iconologia das mesmas. Figura n.º 4: Detalhe de pigmento ocre na mandíbula de um lobo, c. 1515-1519, Quinta das Cruzes

© Nuno Rodrigues 14 ARAGÃO, 1987, Para a História do Funchal, p. 181. 15 As janelas foram ali remontadas, às peças, já no século vinte, como indicam os números de remontagem gravados na face interna dos blocos pétreos. As estruturas foram desmontadas pelo “mestre hábil” contratado por Agostinho de Ornelas e Vasconcelos a 5 de Abril de 1872. GOMES, «Agostinho de Ornelas e Vasconcelos: [...]», p. 108. 16 LIZARDO, 2010, «Em torno dos vestígios materiais dos primeiros tempos [...]», p. 21. 17 ARAGÃO, 1970, O Museu da Quinta das Cruzes, p. 136.

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Anuário do CEHA 2015, N.º 7 Os frisos naturalistas passados à pedra dos vãos do Hospital Velho do Funchal, mandado erguer por D. Manuel e concluído por volta de 151918, devem ser vistas como as composições iluminadas dos ricos manuscritos medievais, onde psicomaquias, protagonizadas por cavaleiros, soldados, homens verdes, sagitários e outras bestas multiformes e metamórficas, pululam, por entre elementos da flora, como folhas, galhos e gavinhas, em torno das cenas bíblicas inseridas no espaço das letras capitais ou como composição central de fólio, no espaço reservado ao texto (Figs. 5 e 6)19. Figura n.º 5: Livro de Horas, Simão de Marmion, cenas de pastoreio marginais e lobo com cordeiro por entre os dentes, fl. 86, c. 1475-81

© Victoria & Albert Museum

18 GUERRA, 2010, Funchal 500 anos: [...], p. 140. 19 FARIA, 2013, Escultura Arquitetónica na Sé do Funchal: [...], Vol. I, pp. 174, 178.

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Anuário do CEHA 2015, N.º 7 Figura n.º 6: Livro de Horas da Rainha D. Leonor, Willelm Vrelant, fl. 76v, c. 1450-75, Massacre dos Inocentes, e composições marginais

© Biblioteca Nacional de Portugal

No vão de maior e de traçado mais complexo, onde se incluem dois lumes de recorte mistilíneo terminados em formato canopial e onde amarras imitam a sua função real, atando nos vértices as falsas armações lenhosas torsas, folhas de carvalho (quercus ruber l: «árvore que é Cristo»20 que está por vir?) “esvoaçam” no registo inferior do parapeito, delimitado por galhos podados. No registo superior, historiado, vemos o que parece se tratar de uma sui generis «punição infernal»21, duplicada, possivelmente inspirada numa reinterpretação, veterotestamentária, das Antigas Escrituras (Rom. 6:12-20; Gen. 2: 24)22, ou seguindo fontes gráficas marginais, da suposta narrativa bíblica de Daniel na Cova dos Leões (Figs. 7 e 8).

20 BARREIRA, 1622, Tractado das significacoens das plantas, flores, e fructos [...], pp. 38-45. 21 ANTUNES, 2011, Uma epopeia entre o sagrado e o Profano: [...], p. 152. 22 Bíblia Sagrada, 1988, pp. 20, 1508.

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Anuário do CEHA 2015, N.º 7 Figura n.º 7: Punição Infernal Masculina, c. 1515-1519, Quinta das Cruzes

© Nuno Rodrigues

Figura n.º 8: Punição Infernal Feminina, c. 1515-1519, Quinta das Cruzes

© Nuno Rodrigues

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Anuário do CEHA 2015, N.º 7 Em virtude dos dois combatentes se encontrarem nus e a sofrerem suplícios provocados pelas garras dos «animais ferozes»23 (Gen. 2: 20), a recordar as dilacerações e punições infernais usuais nos capitéis e frisos do românico24, somos levados a propor incluir estas representações na categoria das quedas adâmicas25. Por esta ordem de leitura, considerarmo-las serem, mesmo, homem e mulher, isto é, os arquétipos de Adão e Eva, “criatura” perante a qual o companheiro terá exclamado quando a viu pela primeira vez: «Esta é, realmente, osso dos meus ossos e carne da minha carne. Chamar-se-á mulher, visto ter sido tirada do homem” (Gen. 2: 23), homem e mulher, fruto de “uma só carne» (Gen. 2: 24; Rom. 6:12:20), condenados a sofrerem ambos, por causa do Pecado Original, as desventuras fora do Jardim do Éden (de onde foram expulsos) no habitat do bem e do mal, povoado por serpentes, espinhos e bestas ferozes e ímpias26. Assim analisadas as figuras esculpidas, à luz do devido enquadramento bíblico, a tese de João Lizardo perde fundamento, sustentada, pois, numa fragilidade como o detalhe pouco preciso do «barrete de abas», barrete que apenas a figura menor usa, peça de roupa a partir da qual terá conjeturado serem dois exploradores europeus do sexo masculino27. O autor considera ser esse elemento não só idêntico aquele que usa o homem da outra da janela, que está junto ao altar, como «exclusivo» da indumentária masculina, obstando-se às evidências da fisionomia da silhueta da figura: altura do tronco, largura das ancas e face, quando comparada com a silhueta da cena relativa ao lume esquerdo, em que surge, sem margem para dúvidas, um homem de cabelo comprido e solto, mas sem barrete. A perceção com que se fica das peças de vestuário, que o autor compara, é serem distintas, embora seja tão impreciso identificar na figura feminina um barrete cilíndrico de abas acolchoadas, usado pelos homens, como uma touca de linho com dobras, que as mulheres de classe média e baixa usavam na época, de onde resulta inútil fundamentar uma leitura geral a partir de um detalhe incerto. Salvo casos na iluminura ou na pintura onde certos detalhes, como os tipos e cor do vestuário, podem ser bem analisados, nos casos da escultura arquitetónica, em que as representações perdem forma e cor por degradação da matéria esculpida, a indumentária e os acessórios decorativos constituem aspetos de análise que devem ser analisados com a maior das cautelas, ao que se soma a ambivalência simbólica destes elementos, elementos que embora acessórios prestavam-se às mais diversas analogias e a tantos outros insuspeitos significados, como já vimos ocorrer em representações de cariz sexual patentes na escultura arquitetónica da Sé do Funchal, em particular28. Devemos notar, ainda, a inserção da mulher no lado esquerdo e do homem no lado direito, de acordo com a hierarquia, isto é, com o espaço simbólico, tal e qual o par adâmico vegetalista inserido nos capitéis do Portal Axial da Sé29 (Fig. 9).

23 Bíblia Sagrada, 1988, p. 18. 24 Emerge-nos da memória o extraordinário friso românico da Catedral de Lincoln, em Inglaterra, com vários trechos das punições infernais onde homens e mulheres decaídas sofrem as piores agonias às mãos de terríveis bestas. 25 BRAGA, 1997, Os Cadeirais de Coro na Idade Média em Portugal [...], p. 11. ANTUNES, 2011, Uma epopeia entre o sagrado e o Profano: [...], p. 152. 26 Bíblia Sagrada, 1988, pp. 20-22. 27 LIZARDO, 2007, «A propósito de representações ‘exóticas’ na arquitetura manuelina: [...]», p. 87. 28 Ao nível da simbologia da indumentária e no que diz respeito aos chapéus e peças de usar para cobrir a cabeça, como elemento iconográfico, o barrete cónico é dos atributos principais dos judeus, já as vistosas coifas identificam, em certos casos dos exempla, a vaidade e a luxúria feminina. Até o uso de uma simples violeta presa no cabelo pode fazer a diferença entre conotar uma mulher com a castidade ou com a devassidão. ANTUNES, 2011, Uma epopeia entre o sagrado e o Profano: [...], p. 149; FARIA, 2013, Escultura Arquitetónica na Sé do Funchal: [...], Vol. I, p. 118, Vol. II, Anexo II, pp. 215, 220, 136, 150. 29 FARIA, 2013, Escultura Arquitetónica na Sé do Funchal: [...], Vol. I, p. 111.

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Anuário do CEHA 2015, N.º 7 Figura n.º 9: Queda Adâmica, busto vegetalista feminino, capitel da metade direita do Portal Axial da Sé, c. 1500-1508, Quinta das Cruzes

© Higino Faria

Na janela de composição esquartelada, mais “leve” ao nível da decoração dos lumes e das formas, surge no parapeito um “quebra-cabeças” iconográfico, um “estranho” emaranhado de alegorias que mistura representações do Bestiário e das Sagradas Escrituras. A escultura decorativa em análise é tão pouco canônica quanto desafiante e complexa. A questão das heterodoxias exemplares das figuras da marginalia – que constitui a principal “barreira” à interpretação destes parapeitos historiados – está aqui tão bem exposta como as subliminaridades (os exempla) que elas encerram, estando estes motivos muito mais além do domínio do decorativo e tendo apenas como paralelo material e iconográfico, na região, as representações marginais análogas da Igreja da Ribeira Brava e Sé do Funchal30. Como reparou João Lizardo, a uma cena animal corresponde uma cena humana, seja na horizontal, seja na vertical, donde se depreende, portanto, a existência de um programa narrativo-alegórico31, que como veremos adiante se apresenta como que “emaranhado”, ou destituído de uma ordem de leitura linear; que traduz um complexo combate metafórico protagonizado por homens e animais, em que as qualidades morais e teologais 30 Como já tivemos oportunidade de demonstrar noutros estudos dedicados à Madeira do Povoamento, que aqui escusamos de citar por figurarem na lista de bibliografia consultada, a arte exótica, mas pedagógica, isto é, as fantasias simbólicas em torno do corpo, enquanto exempla, tiveram sólida expressão, tendo o estaleiro da Sé e a iconografia que o regulamentou um papel decisivo na sua difusão e aceitação. 31 LIZARDO, 2007, «A propósito de representações ‘exóticas’ na arquitetura manuelina: [...]», p. 86.

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Anuário do CEHA 2015, N.º 7 dos animais se confundem com as dos homens e vice-versa, tal como nas lições do fabulário clássico, às quais a cultural religiosa e artística medieval ia buscar exemplos e inspiração32. Na primeira cena a contar da esquerda para a direita, num quadro à parte, uma mulher, de cabelo longo e solto, carrega no regaço um bebé, será a Virgem com o Menino (Fig. 10)? Recorde-se a denominação do Hospital Velho, «Hospital de Jesus», como atrás já propusemos. No mesmo painel, mas no registo maior, um casal (a ter em conta que a figura do lado esquerdo usa, na cabeça uma boina ou capirote, um gibão abotoado, apertado por um cinto, e um codpiece ou braguilha estofada (Fig. 11), e a figura do lado direito uma peça única que parece um vestido e uma rede ou toca alta) está junto a uma Árvore: homem e mulher, um de cada lado, puxando frutos muito parecidos com peras, – frutos que só simbolizam o Amor de Cristo pela Humanidade quando dissociados do elemento Árvore33. Figura n.º 10: Virgem como o Menino (?), c. 1515-1519, Quinta das Cruzes

© Nuno Rodrigues

32 VASCONCELOS, 1918, O Livro de Esopo [...]. 33 Nas representações arbóreas o fruto ocorre na Árvore do Conhecimento e nestes casos este elemento vegetal pode estar relacionado com o Antigo Testamento, pelo facto do mesmo estar conotado com a ira e a indignação divinas que Deus terá sentido ao infligir uma derrota aos Filisteus no Alto das Pereiras, em auxílio do Rei David. FARIA, 2013, Escultura Arquitetónica na Sé do Funchal: [...], Vol. I, p. 104.

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Anuário do CEHA 2015, N.º 7 Figura n.º 11: Figura Masculina colhendo os Frutos do Espírito Santo (?), c. 1515-1519, Quinta das Cruzes

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Porque os Profetas do Antigo Testamento aludem para a «videira que não dará fruto» (Is. 5: 1-30; Jer. 8, 13-17), porque Daniel, no Antigo Testamento, terá profetizado o fim da árvore que representava o Rei Nabucodonosor (Dan. 4: 7-9)34 e porque Cristo fala na «Figueira Estéril» (Mc. 11: 12-25; Mt 21: 18-19; Lc. 13: 6-9), onde não se achavam já frutos; vamos tomar esta representação num sentido aberto, até porque acresce a dificuldade de precisarmos a espécie da árvore pelo fruto ou pelas folhas. Pode se tratar da árvore amaldiçoada, embora nos inclinemos para considera-la como a árvore nova, na Nova Jerusalém, que dá os “frutos” do Espírito Santo (Fig. 12), isto é, os frutos que cada cristão deve colher, 34 Bíblia Sagrada, 1988, pp. 1667, 1682, 1194.

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Anuário do CEHA 2015, N.º 7 de acordo com o sentido teológico que lhe terá dado São Paulo na Carta aos Romanos: «Quando éreis escravos do pecado, estáveis livre quanto à justiça. Qual foi o fruto dessas coisas de que agora vos envergonhais? De facto, o seu termo é a morte. Agora, porém, livres do pecado e feitos servos de Deus, tendes por fruto a santificação e por fim a vida eterna. Porque o salário do pecado é a morte, ao passo que o dom gratuito de Deus é a vida eterna em Nosso Senhor Jesus Cristo.» Figura n.º 12: Árvore da Vida Eterna (?), c. 1515-1519, Quinta das Cruzes

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No painel abaixo dois leões parecem iniciar um combate, sem se notar, contudo, nenhum contato físico. Como se pode ver pelo pormenor das caudas metidas entre pernas, não é muito credível que os animais se preparem para copular e se tratem, portanto, de um casal. A conotação dos animais nesta janela é, desta vez, positiva e no jogo de forças representadas inserem-se no pólo do bem, tratando-se já de criaturas cristológicas, pacificadas pela luz da Revelação, com a Vinda do Messias à Terra, e não de bestas impiedosas, como na janela relativa à Expulsão do Paraíso. A que surge por detrás, em situação de domínio, face à qual o primeiro se adianta, pode se tratar de uma alegoria cristológica, isto é, pode ser o Leão de Judá a que o Apóstolo João se refere no Livro do Apocalipse (Ap. 5: 5)35: «Não chores! Eis que o Leão da Tribo de Judá, A Vergôntea de David, saiu vencedor. Por isso abrirá o Livro dos Sete Selos» (Fig. 13).

35 Bíblia Sagrada, 1988, p. 1615.

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Anuário do CEHA 2015, N.º 7 Figura n.º 13: Triunfo do Leão da Tribo de Judá (?), c. 1515-1519, Quinta das Cruzes

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Além disto, e reforçando o sentido de apropriação bíblica do motivo decorativo, o leão é o primeiro da lista do bestiário e rei da animalia, segundo a fabularia clássica36, mas não só, pois assume noutras casos de criação literária ou artística, significado cristológico, já que representa igualmente a crença na ressurreição, surgindo muitíssimas vezes na tumulária. Uma dessas “situações” trata-se de uma analogia medieval que faz do leão, essencialmente, um animal de nobreza cristológica. As crias dos leões saem mortas do ventre da progenitora, mas, segundo um atributo mágico, a progenitora ressuscita-as ao terceiro dia. Três dias foi o tempo que decorreu entre o momento em que Jesus foi deposto no ventre da terra e o momento que o Pai o ressuscitou com o rugido divino. Se estabelecermos uma leitura for cruzada, num sentido diagonal, o contra ponto do excerto alegórico, atrás interpretado, está na cena animal, com a qual esta tem correspondência, por antinomia, em que as forças negativas estão em foco (Figs. 4 e 14). Dois lobos (principal animal no fabulário português), criaturas do mal37, assediam um cordeiro, não só o cordeiro da Fábula de Esopo38, como o «cordeiro pascal» (Ex. 12:1-14) das Antigas Escrituras e o «Cordeiro Imaculado» (Ped. 1: 18-19) ou o «Cordeiro de Deus» (Jo. 1: 36-37), do Novo Testamento, «entregue a Satanás para morte da Carne» (I Cor. 5: 4), como ovelha que «…foi levada ao matadouro» (Act. 8: 32,35)39.

36 VASCONCELOS, 1918, O Livro de Esopo [...], p. 29. 37 FARIA, 2012, «Acerca do conjunto de escultura pétrea [...]», pp. 45-46. FARIA, Higino, 2013, Escultura Arquitetónica na Sé do Funchal: [...], Vol. I, pp. 119, 120. 38 VASCONCELOS, O Livro de Esopo [...]», pp. 165-166. 39 São várias as passagens bíblicas que tratam do tema: Ex. 12: 1-14, 27, 13, 8; Jer. 11:19; Is. 53: 7-12; Jo. 1: 36-37; 19: 14, 31-42; I Cor. 5: 4, 6, 8; I Ped 1: 18-19; Act. 8: 32, 35; Ap. 5: 6-13; 7, 2-17; 19: 1-9. Bíblia Sagrada, 1988, pp. 1318, 1646.

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Anuário do CEHA 2015, N.º 7 Figura n.º 14: Cordeiros entre os Lobos, c. 1515-1519, Quinta das Cruzes

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No registo inferior, do lado direito, a corresponder, por antinomia, com o painel da Virgem com o Menino está igualmente um painel pequeno ocupado por uma figura masculina que traja gibão “grosseiro”, com gola, calções e usa algo na cabeça, parecido a um capacete, redondo. A figura torce o tronco como se estivesse em movimento e empunha por cima da cabeça dois objetos muitos semelhantes a adagas ou espadas curtas (Fig. 15). Este excerto do parapeito historiado deve representar o Martírio dos Inocentes (Mat. 2: 16-18)40.

40 Bíblia Sagrada, 1988, p. 1290.

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Anuário do CEHA 2015, N.º 7 Figura n.º 15: Martírio dos Inocentes (?), c. 1515-1519, Quinta das Cruzes

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Ainda no mesmo registo, mas no painel maior, está retratado um ritual, possivelmente um matrimónio, pois mulher e homem protagonizam a «imposição das mãos» sobre um altar cerimonial. A mulher tem posse matriarcal e coloca a mão sobre o ventre que se avoluma abaixo do cinto elevado, num gesto de sua fertilidade41, escondendo o cabelo por dentro de uma toca baixa e redonda. Entre os antebraços dos dois está uma pedra angular (Fig. 16). Trata-se da consagração do matrimónio judaico-cristão, como um sacramento, uno e indissolúvel, como se pode ler em várias passagens dos Evangelhos42. Cristo é a «pedra angular» no meio das duas figuras, sobre o «altar de Deus», que significa a construção do evangelho: imagem da igreja, e vítima do sacrifício mnemónico com o qual os visados se identificam através das mãos43.

41 Esta postura, comum nas representações conjugais deste período, como no célebre quadro de Jan Van Eyck, «O Casal Arnolfini», de 1435, ficou conhecida como pregnancy look. As mulheres chegavam a usar um tipo específico de almofada por baixo das túnicas ou vestidos para simularem a gravidez. 42 Bíblia Sagrada, 1988, pp. 1318, 1662. 43 Sobre a teologia cristã do altar, da “pedra angular” e da “imposição das mãos” veja-se o índice bíblico-pastoral da versão bíblica consultada. Bíblia Sagrada, 1988, pp. 1646,1655-1656.

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Anuário do CEHA 2015, N.º 7 Figura n.º 16: Matrimónio Cristão, c. 1515-1519, Quinta das Cruzes

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Apesar do programa ser um emaranhado de alegorias bíblicas, de difícil leitura, e ainda que as cenas da outra janela, já analisada, radiquem nas imagens proféticas dos proto-evangelhos, é seguro afirmar, como vimos, que o contexto teológico a que as imagens desta se reportam é o do Novo Testamento: o conjunto dos textos da Revelação. Assim, como já acima referimos, se a leitura dos painéis for cruzada é possível propor uma ordem, uma narrativa, de acontecimentos: Nascimento do Messias (Virgem com o Menino) → ameaça à sua Missão (Massacre dos Inocentes); colheita dos frutos para a Nova Queda e ou Redenção do Novo Adão e da Nova Eva (Árvore do Conhecimento/e ou da Vida Eterna) → Ministério dos Sacramentos (Matrimónio Cristão); Paixão de Cristo (Imolação do Cordeiro pelos Lobos) → Triunfo de Cristo como Rei-Messias (Leão da Tribo de Judá). Para concluir a análise dos temas, confirmada a ligação iconográfica entre as figuras das duas janelas (Figs. 1 e 2), fica visto, portanto, como o corpo onde habita a verdadeira fé e o espírito cristão toda a virtude e incorruptibilidade pode e alcança, pois o triunfo do Leão de Judá é o triunfo da Lei de Cristo sobre a Morte, condição inferior que antes, no início da Criação, o próprio rei da animália na forma e no comportamento de fera encarnou, representado no Combate Escatológico do «Mistério Pascal», ou da missão divina da «Descida aos Infernos»44, para resgate da humanidade adâmica do pecado original, do homem antigo, com vista à edificação do novo homem, do homem cristão. 44 A “Descida aos Infernos” é uma imagem bíblica da Paixão e Sepultamento de Cristo, da transição da morada agonizante dos homens para o abismo, morada dos mortos. Bíblia Sagrada, p. 1657.

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Anuário do CEHA 2015, N.º 7 Imagens da Escatologia Cristã Os parapeitos historiados das janelas do hospital velho do Funchal constituem, portanto, bons exemplos da cultura proverbial e das “apropriações bíblicas”, assim chamadas tais representações pouco canônicas, mas devidamente inspiradas nas passagens da Bíblia, em que o corpo é retratado com alguma licença e cujas alegorias encerram as suas normativas, expostas nas doutrinas da fé45, decorrendo destes fenómenos de apropriação, espontânea, mas erudita, de várias iconografias, ensinamentos figurados com valor catequético concreto, designados exempla ou imagens exemplares, onde o corpo humano fosse em contexto eclesiástico ou secular desempenhava um papel educativo central. Uma das principais formas de expressão das heterodoxias marginais, além da incidência nos temas mundanos, prosaicos ou moralizantes, (tais como os do Fábulário de Esopo) passava pela subversão, subliminar, mas recorrente das hierarquias iconográficas: hagiográficas, heráldicas, etc, resultando numa lexicologia muito característica da episteme do tão invocado, mas ainda mal compreendido, “estilo manuelino”. Neste caso traduz-se na disposição, aparentemente arbitrária, de homens e animais num espaço comum, embora dividido, ou em “pé de igualdade simbólica”: fenómeno representativo que se nos afigura, hoje, perdidos os referentes teológicos, numa primeira leitura, como sendo um mero “reino de corpos humanos e de bestas”, onde se invocam, todavia, dos mais importantes episódios da história sagrada com os fundamentos da doutrina e da escatologia cristã, propalada sob os signos do providencialismo manuelino46. Como é sabido, o corpo assumiu um lugar central na escatologia medieval e surge na arte do tempo como símbolo e léxico, lugar mitográfico: o campo de batalha da alma pela salvação, onde só triunfa, só ressurge e se metamorfoseia, como Cristo, o «Profeta Escatológico»47, o Novo Adão, aquele que tiver o domínio do corpo racional sobre a carne, matéria fraca que perece, onde se encerra a natureza animal e frágil, que conduziu o homem à queda e à solidão. Pese embora o fato desta dualidade ter sido filosoficamente cultivada com a cultura helenística, através das dicotomias corpo vs alma, animália vs civilitas, mantida no período medieval, por via, respetivamente, da filosofia platónica, com Santo Agostinho e socrática, com São Tomás de Aquino, respetivamente, a antropologia cristã andou sempre muito ligada à mística do corpo, do corpo como uma fortaleza da fé, do corpo santo, onde habitam as melhores centelhas da luz divina. O mistério teologal da Crença na Ressurreição do Corpo, fundamento de toda a fé cristã, obrigou o homem cristão a evitar uma bipolarização, descrente, entre corpo que vive e o espírito, alheio aquele, e incentivou, na teoria, a uma vigilância apertada e premente do cristão sobre o seu próprio corpo: ornamento e espelho de todo seu comportamento interior, porque na sua substância corpórea ele voltaria a habitar se o tivesse mantido, incorrupto, uno, de acordo com a conceção escolástica da criação como realidade viva, algo intrínseco à própria arquitetura gótica, que os seus edifícios nas suas formas e mímesis procurava recriar48. No princípio de penitência da carne estava subjacente um sentido intrínseco para a existência última do corpo. Refletir sobre a natureza, como se esta fosse um espelho, concedido por graça divina; meditar sobre o comportamento das suas criaturas, com as quais o homem partilhava o ar, a água, a luz, a própria terra, ajudava a domesticar os instintos e a aproximar o corpo humano da natureza forte e virtuosa da santidade, da natureza superior e divina. Garantir a Salvação, um lugar no Reino Celeste, tratava-se de uma questão de bravura e honra, qualidades reencarnadas no Leão pacífico, mas bravo e nobre, que foi Cristo. Podemos mesmo dizer que nesta “arqueologia de significados marginais” sobre o corpo, aliás abundantes na decoração icónica da arquitetura manuelina da ilha da Madeira (nalguns casos “endémicos” até49); está enraizada uma certa espiritualidade franciscana, ligada, pela filosofia humanista, ao misticismo e ao natura45 ANTUNES, 2011, Joana, Uma epopeia entre o sagrado e o Profano: [...], p. 145. 46 FARIA, 2013, Escultura Arquitetónica na Sé do Funchal: […], Vol. I, p. 181. 47 Bíblia Sagrada, 1988, p. 1657. Jo. 6, 14: 7, 40; Act. 3, 22-23, Bíblia Sagrada, 1988, p. 1646. 48 BRANDÃO, 1991, A Formação do Homem Moderno vista através da Arquitetura, [...], p. 48. 49 FARIA, 2013, «Acerca do conjunto de escultura pétrea [...]», p. 57.

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Anuário do CEHA 2015, N.º 7 lismo aristotélico tomista e marcada por um fervoroso culto à Virgem Maria (fenómeno do qual perpassam já preceitos de dignificação da mulher50) Mãe de Deus: pai da própria humanidade e dos seres da natureza, dos quais Francisco de Assis foi um dos primeiros grandes defensores e padroeiros, uma espiritualidade, afinal, tão de acordo com a envolvência geográfica e histórica da ilha na época: vergel puro e fértil, abundante em águas e florestas, um éden que foi o ponto de partida da epopeia lusa e da própria modernidade universal51. Esta cultura piedosa e observante, além das observâncias da vida pastoral diária, ajuda a explicar, assim, as origens de um repertório diversificado de imagens, ligadas, pois, à condição do corpo original: do corpo adâmico, que depois de pecar e sofrer no Jardim do Éden, teve por missão escatológica se redimir fora dele, procurando criar um Novo Éden, mas sofrendo, ainda, por ele. A este “experimentalismo naturalista” franciscano, que na Madeira – ilha tão dura quanto feérica e bela cuja própria ocupação, estratégica, se revelou um feito – foi muito bem distribuído por entre o espaço rural e o espaço urbano; e a todo o legado prático e de saber da regra dos observantes, muito ativos na assistência social, deve muito a arte regional, enquanto elemento eficaz de coerção individual e de pedagogia pública, e a própria antropologia cultural madeirense, fortemente marcada por uma mundividência de progresso moral de matriz cristã, assim como por uma singular tradição messiânica52.

Bibliografia ANTUNES, Joana, 2011, Uma epopeia entre o sagrado e o Profano: o Cadeiral de Coro do Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra, Coimbra (Dissertação de Mestrado em História da Arte apresentada à Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra). ARAGÃO, António, 1970, O Museu da Quinta das Cruzes, Funchal, ed. Junta Geral. ARAGÃO, António, 1987, Para a História do Funchal (2.ª edição, revista e aumentada), Funchal, ed. DRAC. AZAMBUJA, Sónia, 2009, A Linguagem Simbólica da Natureza: A Flora e Fauna na Pintura Seiscentista Portuguesa, Lisboa, ed. Nova Vega. Bíblia Sagrada, 1988, Lisboa, ed. Difusora Bíblica (Missionários Capuchinhos). BRANDÃO, Carlos, 1991, A Formação do Homem Moderno vista através da Arquitetura, Belo Horizonte, ed. UFMG, (disponível em https://books.google.pt/books, acedido a 23/06/2015). CAILLOIS, Roger, 1979, O Homem e o Sagrado (trad. Germiniano Cascais Franco), Lisboa, ed. Edições 70. CÓMEZ, Rafael, 2003, «Los Grabados de Van Meckenem en la Catedral de Funchal», in Monumentos, n.º 19, Lisboa, ed. DGMN, pp. 32-35. DIAS, Pedro, 1994, A Arquitetura Gótica Portuguesa, Lisboa, ed. Estampa. FARIA, Higino, 2012, «Acerca do conjunto de escultura pétrea da Igreja de São Bento da Ribeira Brava», in Islenha, n.º 50 (Jan.-Jun.), Funchal, ed. DRAC, pp. 33-60. FARIA, Higino, 2013, Escultura Arquitetónica na Sé do Funchal: das formas e dos temas do Gótico Tardio Internacional à Simbólica Manuelina do Poder, Vol. I-II, Coimbra, (Dissertação de mestrado, Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra). FOUCAULT, Michele, 1998, As Palavras e As Coisas. Uma Arqueologia das Ciências Humanas, Porto, ed. 50 GOMES, 2014, As “Missas do Parto” [...], pp. 49-51. 51 Sobre a “Madeira e a utopia universalista da modernidade” na mitografia portuguesa veja-se o seguinte artigo: FRANCO, 2008, «Madeira, Mito da Ilha Jardim: [...]». 52 Não terá sido por acaso que Zarco admitiu excluir das primeiras levas de povoadores «culpados por causa de fee, ou treição, ou por ladrão», numa tentativa de “depuração social”, como que antecipando, o descobridor, a mentalidade utópica e reformista que varreria a Europa com os escritos de Thomas More, Martinho Lutero e outros. SILVA, 1995, A Madeira e a construção [...], pp. 136 e 223.

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Anuário do CEHA 2015, N.º 7 Edições 70. FRANCO, José Eduardo, 2008, «Madeira, Mito da Ilha Jardim: Cultura da regionalidade ou da nacionalidade imperfeita», in Jardins do Mundo: Discursos e Práticas, Lisboa, ed. Gradiva, pp. 37-68. FRUTUOSO, Gaspar, AZEVEDO, Álvaro (notas), 1873, As Saudades da Terra, Funchal, ed. Funchal 500 Anos. GOMES, Fátima Freitas, 1997, «Agostinho de Ornelas e Vasconcelos: o morgado liberal e a decisão criativa», in Islenha, n.º 21 (Jul-Dez.), Funchal, ed. DRAC, pp. 79-109. GOMES, Libânia Arminda, 2014, As “Missas do Parto” na Ilha da Madeira. Uma Tradição a Preservar, Funchal, ed. DRAC. GUERRA, Jorge Valdemar, 2010, Funchal 500 anos: Momentos e Documentos da Nossa Cidade), Funchal, ed. DRAC. JARDIM, Maria, 1996, A Santa Casa da Misericórdia do Funchal: Século XVIII, Coimbra, Funchal, ed. CEHA. LIZARDO, João, 2007, «A propósito de representações ‘exóticas’ na arquitetura manuelina. As figuras das Janelas do Museu da Quinta das Cruzes», in Islenha, n.º 41 (Jul-Dez.), Funchal, ed. DRAC, pp. 82-90. LIZARDO, João, 2010, «Em torno dos vestígios materiais dos primeiros tempos do povoamento – 7. O colorido da Pia Batismal da Igreja Matriz da Ribeira Brava e a urgente necessidade de uma “arqueologia da cor”», in ILHARQ, n.º 9, Funchal, ed. ARCHAIS, pp. 20-25. NORONHA, Henrique Henriques, 1996, Memórias Seculares e Eclesiásticas para a Composição da História da Diocese da Sé do Funchal Na Ilha da Madeira, Funchal, ed. CEHA. SILVA, José Manuel Azevedo, 1995, A Madeira e a construção do Mundo Atlântico: séculos XV-XVIII, Vol. II, Funchal, ed. CEHA. VASCONCELOS, Joaquim Leite (transc. e pub.), 1918, O Livro de Esopo, (disponível em http://pt.wikisource. org/wiki/Galeria:O_livro_de_Esopo_fabulario_portugu%C3%AAs_medieval.pdf, acedido a 19/06/2014).

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