Ideias que se transportam: O Rococó, de Portugal ao Brasil e a São Paulo

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Ideas que se transportan: El Rococó, de Portugal a Brasil y a São Paulo

Mateus Rosada / Maria Ângela Pereira de Castro e Silva Bortolucci Instituto de Arquitetura e Urbanismo / Universidade de São Paulo (IAU/USP) [email protected] / [email protected]

Resumen El artículo se ocupa de la transferencia de Portugal a Brasil de ideas de la arquitectura religiosa en el siglo XVIII, especialmente de corrientes que llegaran al estado brasileño de São Paulo. Percibe que el contacto más o menos intenso con Lisboa u Oporto/Braga difundió diferentes estilos de ornamentación en los centros urbanos de Brasil, con influencia más fuerte del pombalino en las ciudades costeras y del rococó en los centros del interior. El rococó, remodelado y adaptado a las posibilidades brasileñas locales, se convirtió en el estilo que superó a los anteriores en varias regiones, a ejemplo de Sao Paulo. Así, es hoy la corriente estilística que representa, al lado de todas las corrientes del período colonial, casi la mitad de todas las iglesias de São Paulo y un porcentaje importante de toda la arquitectura brasileña de ese periodo.

Palabras-Clave: 1. Rococó. 2. Barroco. 3. Arquitectura. 4. Brasil. 5. São Paulo (Estado). 6. Portugal.

Keywords: 1. Rococo. 2. Barroco. 3. Architecture. 4. Brazil. 5. São Paulo (State). 6. Portugal.

Este artigo trata de um dos desdobramentos da pesquisa de doutorado intitulada Arquitetura Religiosa no estado de São Paulo (1500-1889): o advento do rococó e sua assimilação no Brasil e, em especial, no Estado de São Paulo. Abordar qualquer temática sobre o rococó e sua relação com o barroco é tarefa complexa, uma vez que há teóricos que consideram o rococó como uma última manifestação do movimento, um tardo-barroco, e outros, como um estilo autônomo, independente deste último. A literatura mais recente tende a entendê-lo dessa forma: como um movimento renovador, e não uma progressão do anterior1. De fato, barroco e rococó possuem diferenças de concepção já em suas origens. O primeiro iniciou-se na Itália em fins do século XVI, como um estilo eminentemente retórico e engajado, resultado da Contra Reforma, com forte intuito de educação do povo, conversão e convencimento dos fiéis católicos, que se daria pela efusão dos elementos e pelas composições dramáticas e gloriosas dos santos e mártires. Já o segundo nasceu na segunda metade da centúria seguinte, na França, como um movimento estritamente civil, embrionado na coorte, e de intenção leve e frugal, a celebrar os prazeres terrenos, inicialmente sem qualquer comprometimento com a religião. Assim, em suas origens, o barroco e o rococó são antagônicos, uma vez que um possui um forte viés de doutrinação e de negação dos prazeres terrenos (o prazer está apenas no céu, na vida eterna), enquanto que o outro celebra as possibilidades e as alegrias da vida mundana.

O pombalino Em Portugal e, por conseguinte, no Brasil, tanto o barroco como o rococó coexistiram na segunda metade do século XVIII. Na metrópole, desenvolveu-se uma forma particular de barroco tardio, nomeada pombalino, denominação que faz referência à figura do Marquês de Pombal, poderoso Secretário de Estado português no durante todo o reinado de D. José I (1750-1777). O movimento se embrionou por conta das ações do monarca anterior, D. João V, grande incentivador e propulsor de intercâmbios culturais

1

Oliveira, Myriam Andrade Ribeiro de. O Rococó Religioso no Brasil e seus antecedentes europeus. São Paulo, Cosac & Naify, 2003. págs. 17-21.

com Roma. O monarca português enviou arquitetos, pintores, escultores e músicos ao Lácio e, da mesma forma, trouxe para Portugal profissionais italianos ou que lá aprenderam o ofício. O resultado foi o desenvolvimento, já em fins de seu reinado, de um tardo-barroco adaptado à realidade lusa e aos materiais existentes com, como era de se esperar, uma hibridização com elementos da arquitetura joanina. As obras por eles realizadas seriam um tanto diversas do barroco português, de linhas mais simples e comportadas, aspecto muito próprio do barroco italiano, que sempre foi mais próximo da tradição clássica renascentista, menos afeito aos arroubos formais e à subversão da estrutura arquitetônica nos elementos decorativos. A sucessão do trono, com a ascensão de D. José I (e do Marquês de Pombal como Secretário de Estado), não alterou o direcionamento estatal pelo uso do padrão pombalino. Soma-se a isso o fato de, em 1755, Lisboa ser devastada por um terremoto de grandes proporções, o que trouxe a imperiosa necessidade de reconstruir rapidamente a cidade contribuiu para a difusão do pombalino, padrão adotado pela coroa nas obras da reedificação olisiponense. O estilo então se expandiu por Portugal a partir da capital, fruto de clara escolha pelo governo, recebendo mais resistência no norte do país. O padrão de Lisboa ganhou adeptos nos domínios americanos, mas conheceu poucos exemplares na arquitetura religiosa, concentrando-se nos municípios da costa. Na colônia brasileira, o pombalino atingiu em primeiro lugar as cidades portuárias, que já tinham sedimentado anteriormente o hábito de importar de Lisboa complementos ornamentais em pedra de lioz para os edifícios mais importantes2. No entanto, esse gosto pouco adentrou ao interior do continente, restringindo-se aos maiores centros voltados para o mar, a exemplo de Salvador, Recife, Rio de Janeiro e São Luís do Maranhão. Nas duas primeiras cidades, a assimilação do estilo se deu pela utilização de alguns elementos pombalinos, como frontões borromínico (com arco contracurvado), por exemplo, hibridizados aos componentes já tradicionalmente utilizados nas fachadas então joaninas3 da colônia. 2 3

Oliveira, Myriam Andrade Ribeiro de. O Rococó Religioso no Brasil... pág. 128.

A historiografia considera que o barroco luso-brasileiro possui duas grandes fases: o nacional português e o joanino.

A identificação mais próxima com o estilo, verificou-se, como seria de esperar, nas duas cidades capitais que por injunções políticas estiveram, na segunda metade do século XVIII, mais diretamente relacionadas com Lisboa: o rio de Janeiro, capital dos vice-reis desde 1763 e Belém, capital da capitania do Grão-Pará e Maranhão, governada, a partir de 1751, por um irmão do próprio Marquês de Pombal4.

Fig.01: As Igrejas de fachada pombalina do Carmo, no Rio de Janeiro (à esquerda), e de São Domingos, em Lisboa (à direita). Os templos brasileiros não prescindiram das torres, enquanto que os portugueses seguiam mais fielmente um padrão italiano, sem torres.

De fato, as igrejas cariocas são as mais lisboetas que se encontram no território brasileiro nesse período, enquanto que as belenenses são muito mais próximas do padrão original, italiano, devido ao extenso período de residência do arquiteto bolonhês Antônio José Landi (1713-1791) no Pará. Ocorreu ainda no Brasil, à exceção de Belém, que as igrejas de exterior pombalino receberam decoração rococó em seus interiores: a tendência dos arquitetos de acompanhar o gosto da coorte da metrópole pouco sensibilizou os entalhadores.

4

Oliveira, Myriam Andrade Ribeiro de. O Rococó Religioso no Brasil... pág. 128.

O rococó Em Portugal, em meados do século XVIII, paralelamente à importação de profissionais italianos pela coorte olisiponense, o país tomava contato com a estética rococó, graças à profusão de imagens do estilo rocaille oriundas de Augsburgo. O estilo decorativo, nascido na França, foi muito divulgado em toda a Europa através de gravuras produzidas na cidade bávara, que nesse período era um grande centro de produção de material impresso. Tais estampas eram: ...portadoras de reportório temático e formal internacionalizado que tocou toda a Europa e as colónias americanas dos países Ibéricos. Em grande parte de origem francesa, encontraram em Jeremias Wolff um dos principais editores dessas formas, que seduziam pela plasticidade e que vinham afinal ao encontro do gosto de encomendadores e artistas do Noroeste. Os conventos da região, como o de Tibães, conservavam nas suas bibliotecas colecções dessas edições que, juntamente com os Registos dos Santos, vendidos em festas e romarias, constituirão factores de divulgação das formas rocaille5.

5

Pereira, José Fernandes. Arquitectura Barroca no Brasil... págs. 137-8.

Fig.02: Ornamento em folha de acanto (à esquerda), típico do barroco, e ornamento de vocabulário rocaille (à direita), característico do rococó.

Interessante é que o rococó surgiu como um estilo estritamente aristocrata e civil, que só em algumas regiões foi incorporado à decoração eclesiástica. Ora, essa assimilação pela Igreja acabava por ser apropriada naquele momento, no Século das Luzes, graças à valorização do homem e do hedonismo que atravessa a centúria, fazendo da busca da felicidade e do prazer uma obsessão constante na vida do homem setecentista6. Aos poucos, a forma de ver e sentir o mundo, que caminhou num crescendo de consenso entre a população europeia, inicialmente na França e depois irradiada pelo continente, associou-se à corrente filosófica que pregava que o correto seguimento dos preceitos divinos faria do homem um ser virtuoso e que, por isso, gozaria de alegria e prazer ainda no plano terrestre. Dessa forma, o estilo rocaille, inicialmente frugal, mas decorativo por natureza, passa a ser aceito na ornamentação dos templos católicos, 6

Ibidem, p. 52.

popularizando-se, em sua vertente agora religiosa, especialmente no sul da atual Alemanha (regiões da Francônia, Suábia e Bavária), República Tcheca (Boêmia), Portugal e Brasil. Viria a ser, no último quartel do século XVIII e no início do seguinte, o estilo dominante nas igrejas que então se construíam ou se reformavam nesses locais. Entre 1750 e 1800, o rococó florescente em Portugal geraria uma talha requintada, sob o reinado de D. José e depois, sob o de D. Maria I, prolongando-se além da permanência do estilo em outros países europeus. A linguagem decorativa do estilo rococó se subordinaria a elementos classicizantes de caráter arquitetônico. Entre as obras mais destacadas está o retábulo-mor da igreja de São Maninho de Tibães, que apresenta elementos identificáveis em gravuras de J. Rumpp, em publicações de Engelbrecht e Stockman, publicadas por Hertel. A presença de elementos ohrmuschelstil (auriculares), denuncia a influência da Baviera, no Sul da Alemanha7.

A talha religiosa de Portugal foi de tal forma modificada no final do setecentos e o rococó tomou uma corrente tão forte no país que, quando se aborda o barroco português, inevitavelmente se trata do rococó luso: A arte portuguesa setecentista diferiu essencialmente da espanhola por ser rococó e usar ornamentação assimétrica; na segunda metade do século, com exceção da arte bracarense, sua tendência era para a elegância, e ela não diferia muito da arte da Suábia e da Francônia8.

E enquanto a sede de governo adotava o pombalino como uma espécie de estilo oficial do Reino, o norte, região com outras relações comerciais e outras influências, com maior contato com comerciantes ingleses e alemães e, além de tudo, alimentando uma rivalidade com a capital, resistiria à adoção do estilo cortesão e continuaria criando variações dentro do vocabulário rococó. A aventura barroca da arquitectura portuense detinha-se assim, para além de inevitáveis anacronismos, cedendo lugar a uma nova estética de uma sociedade em transformação. (...) Mas a vitalidade do barroco continuava actuante no Norte. Trata-se do prolongamento de um estilo, numa situação tardo-barroca que aceita o vocabulário rocaille

7

Bonazzi da Costa, Mozart Alberto. A Talha no Estado de São Paulo: determinações tridentinas na estética quinhentista, suas projeções no Barroco e a fusão com elementos da arte palaciana no Rococó. Tese (Doutorado). Faculdade de Arquitetura e Urbanismo. Universidade de São Paulo. São Paulo, 2014. pág. 87. 8

Ibidem. pág. 214.

em oposição à racionalidade pombalina, erigida então em discurso oficial9.

No norte português, o rococó seria substituído apenas na virada para o século XIX pelo neoclassicismo, por uma influência de via inglesa (dado o forte comércio portuense com a Grã-Bretanha), sem ter apresentado exemplares significativos de arquitetura pombalina, ao passo que o pombalino da coorte evoluiria para um neoclássico com mais elementos franceses. Mais distante dos grandes centros que ditavam os padrões estéticos de cada época e recebendo essas influências por via da metrópole, o Brasil sempre apresentou um delay na progressão e substituição dos estilos artísticos/arquitetônicos. O que era moda na colônia americana muitas vezes já estava caindo em desuso no Reino. Com a assimilação e o abandono do rococó em terras brasileiras também não foi diferente. Enquanto as primeiras igrejas rococós portuguesas surgem na década de 1750, no Brasil elas começam a apresentar algumas características do novo estilo apenas dez anos depois, em cidades costeiras, sendo assimilado aos poucos em direção aos núcleos do interior. Mas os brasileiros tomaram de tal forma gosto pelo padrão decorativo que o estilo rocaille perdurou, nos exemplares mais tardios, até os últimos anos da década de 1820, quando já havia desaparecido nas novas obras em Portugal, já então dominado pelo neoclássico desde a virada do século. Vale lembrar que o século XVIII marca a descoberta de enormes quantidades de ouro no Brasil e a colônia atingiu um desenvolvimento e um incremento populacional inédito. Ambos fatores contribuíram para a construção de novas igrejas nas tantas vilas que se estabeleciam ou para a reforma e atualização estilística das existentes. Com isso, templos de barroco nacional português ou joanino receberam elegantes ornamentações rocaille, de forma que a parcela mais expressiva dos exemplares que turisticamente chamamos hoje de “barroco brasileiro” ou “barroco mineiro” é, na verdade, rococó. E a pujança dos principais centros portuários e mineradores proporcionou a realização de obras religiosas de grande refinamento, rivalizando com a metrópole, por vezes, a ponto

9

Pereira, José Fernandes. Arquitectura Barroca em Portugal. 2 ed. Maia: Gráfica Maiadouro, 1992. págs. 137-8.

de importantes estudiosos da arte, como Germain Bazin, afirmarem que os melhores exemplos [do rococó de padrão português] estão no Brasil10. Os principais centros/regiões portugueses de onde partiram os artífices que aportavam no Brasil nesse período foram o Porto, Braga e Lisboa. Muitas vezes, é possível identificar

a

região

de

origem

de

determinado entalhador a partir da presença de

alguns

elementos

característico

utilizável apenas em algumas regiões de Portugal. Enquanto a talha capital do Reino se caracterizava por um rococó mais castiço11, os retábulos das duas cidades do norte apresentavam índices de alguma influência germânica, como maior Fig.03: Detalhe de auricular do retábulo-mor da Igreja da Freguesia de Nogueira, em Vila Nova de Cerveira, norte de Portugal.

de

elementos

a profusão

auriculares.

Os

auriculares serão marcantes e encontráveis em inúmeras obras em Minas Gerais e, especialmente, em São Paulo, região de estudo do doutorado que desenvolvemos.

Como ocorreu como pombalino, também o rococó se manifestou primeiramente nas cidades portuárias, e com maior intensidade nos principais centros urbanos, mas, ao contrário do estilo da coorte portuguesa, adentrou para o interior da colônia e chegou aos centros mais pujantes, como é o caso de Vila Rica (Ouro Preto) e até às povoações mais ermas, com manifestações que duraram quase setenta anos. No caso paulista, há duas correntes mais importantes de influências que chegaram à Capitania: uma direta, provavelmente vinda pelo porto de Santos, atingindo em pouco tempo a capital São Paulo, e outra indireta, de artistas que se estabeleceram 10 11

Bazin, Germain. Barroco e Rococó... pág. 214.

Lembremos que essas inferências só são possíveis observando-se igrejas na região próxima a Lisboa, uma vez que os templos da capital foram quase todos reconstruídos em estilo pombalino após o terremoto de 1755.

primeiramente no Rio de Janeiro e depois, já com um certo abrasileiramento de suas formas, avançou para as terras paulistas pelos municípios do Vale do Paraíba. É certo afirmar que o barroco e o rococó brasileiros possuem diferenças em relação ao que se realizava na metrópole, uma vez que mesmo a maioria dos entalhadores era local e mestiça, mas devemos levar em consideração que a influência direta chegou a ser muito grande, como é o caso do Rio de Janeiro, onde o percentual de entalhadores que nasceram e aprenderam o ofício em Portugal ativos naquela cidade oscilou sempre perto de 35% em todo o século XVIII12.

O Rococó em São Paulo Já a partir da década de 1760, praticamente ao mesmo tempo que os principais centros urbanos brasileiros de então, surgem as primeiras manifestações do Rococó no Estado de São Paulo. A segunda metade do século XVIII foi para Capitania um período de crescimento econômico e acréscimo populacional, com muitas reformas, ampliações e reconstruções de igrejas, tanto na capital como no litoral e em outros centros da então Capitania. Essa mudança de dinâmica, com um grande número de edificações e reedificações, levou à concentração de artífices para dar conta da decoração de mais de uma dezena de igrejas que se refazia na capital13. Nesse momento, pode-se afirmar que houve, com certeza, uma “escola paulista” de profissionais e artistas14: O rococó paulista se autonomiza e passa a apresentar algumas características próprias, como a quase inexistência de figuras humanas (anjos ou cariátides), a simplificação das linhas dos retábulos, que chegam a apresentar fustes lisos, elemento raro em outros lugares, e o uso extensivo de auriculares nas cartelas dos retábulos. Os auriculares, no Estado de São Paulo, vão ainda ter uma característica única: apresentam uma composição de elementos 12

Bonnet, Márcia Crsitina Leão. Entre o Artifício e a Arte: pintores e entalhadores no Rio de Janeiro setecentista. Rio de Janeiro, Secretaria Municipal de Cultura, Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro, 2009. pág. 38. 13

Silva-Nigra, Clemente Maria da. “Sobre as Artes Plásticas na Antiga Capitania de São Vicente”. Ensaios paulistas. São Paulo: Anhambi, 1958. pág.821-837.

14

Araújo, Maria Lucília Viveiros. Mestre-pintor José Patrício da Silva Manso e a pintura paulistana do setecentos. Dissertação (Mestrado). Universidade de São Paulo. Faculdade de Filosofia, Letras e Artes. São Paulo, 1997.

semelhantes a pétalas dispostos de forma bastante regular, em leque, nas partes convexas das volutas, composição esta que não encontramos em outros estados brasileiros. Esse padrão de auricular, utilizado pelo entalhador José de Oliveira Fernandes, foi repetido à exaustão por outros artífices até a década de 1830. (...) Os entalhadores rococós de São Paulo ainda mantiveram o arco joanino, do período anterior, sem muitas variações, e elaboravam seus retábulos com maior limpeza de elementos que em outras regiões; no entanto, ainda eram mais rebuscados que no sul do país15.

Os elementos trazidos por Oliveira Fernandes foram uma novidade na Capitania da São Paulo: era a primeira vez que se utilizavam auriculares e elementos do vocabulário rocaille naquelas terras. Acompanhando alógica de propagação das ideias no Brasil, a obra mais antiga que se conhece dele é o retábulo-mor da igreja do Convento do Carmo de Santos, o principal porto paulista. Em poucos anos, obras de talha com as mesmas características foram realizadas em São Paulo e Itu, espalhando-se depois por outras localidades na década de 1780. Os auriculares, elementos de origem bávara16, marcaram não só a obra do grupo ao qual pertencia José de Oliveira Fernandes17, mas foram também utilizados por outros artistas paulistas de 1760 a 1830, ou seja, durante setenta anos. É interessante que se note que esses elementos são muito comuns no Norte de Portugal, especialmente nas regiões de Braga, Porto e Vila Real. Outros entalhadores que se utilizavam bastante de auriculares no Brasil, são dessa parte de Portugal, caso de Francisco Vieira Servas (1720-1811), atuante em Minas Gerais, mas natural de Guimarães. Seria Oliveira Fernandes português, ou sua família, ou seu mestre? Resta uma pergunta da qual ainda não temos resposta, mas temos apenas um dado que nos causa ainda mais curiosidade: o Dicionário de Artistas e Artífices do Norte de Portugal18 indica a presença em 1758 de um José Fernandes de Oliveira (e Mário de 15

Rosada, Mateus; Bortolucci, Maria Ângela P. C. S. “Afinal, existe um barroco paulista?”. In: 3º Seminário Internacional da Academia de Escolas de Arquitetura e Urbanismo de Língua Portuguesa. Arquiteturas do Mar, da Terra e do ar: arquitetura e urbanismo na geografia e na cultura - arquitetura e Memória. Lisboa: Academia de Escolas de Arquitetura e Urbanismo de Língua Portuguesa, 2014. v. 1. pág. 232-33.

16

Bonazzi da Costa, Mozart Alberto. A Talha no Estado de São Paulo... pág. 87.

17

Encontramos muitas semelhanças entre os retábulos paulistas, classificando-os em grupos, que foram associados aos respectivos entalhadores dos quais encontramos registro em uma ou mais obras dentro daquele agrupamento. 18

Ferreira-Alves, Natália Marinho (org.). Dicionário de Artistas e Artífices do Norte de Portugal. Porto: CEPESE, 2008. pág. 243.

Andrade19, analisando os livros do Carmo de São Paulo, o encontra com os sobrenomes nessa ordem), entalhador, na freguesia de Campanhã, região do Porto. O grupo de entalhadores ao qual pertenceu José de Oliveira Fernandes (ou Fernandes de Oliveira?) foi responsável pela talha de nada menos que quinze igrejas no Estado de São Paulo, em doze cidades na faixa que vai de Sorocaba a Aparecida, passando

pela

capital

e

incluindo também Santos. E, para nossa surpresa, o retábulomor da Igreja Matriz de Nossa Senhora Fig.04: Retábulo-mor da Igreja da Ordem Terceira de São Francisco, em São Paulo, entalhado por José de Oliveira Fernandes em 1791. Ao lado, detalhe do auricular de Oliveira Fernandes.

da

Conceição

de

Viamão, cidade que era destino de tropas paulistas, também é idêntico a peças paulistas desse grupo. Essa semelhança da talha já havia sido observada

por Márcia Bonnet20; é bastante possível que um entalhador paulista tenha realizado trabalho em Viamão e voltado depois para São Paulo. Em Atibaia a tradição popular conta que o entalhador do altar da Matriz de São João Batista é José Francisco de Oliveira: não seria difícil que fosse José Fernandes de Oliveira ou que fossem parentes, de uma família de artífices, pois os retábulos de São Paulo e Atibaia possuem inúmeras semelhanças. O tema dos auriculares com aquelas mesmas características de Portugal surge ainda nos trabalhos de Guilherme Francisco Vieira, de forma mais simplificada e com menor 19 20

Andrade, Mário de. Padre Jesuíno do Monte Carmelo. São Paulo, Martins, 1963. págs. 105-14.

Bonnet, Márcia. “Formas em trânsito: a talha colonial no antigo Continente de São Pedro”. In: Ribeiro, Marília Andrés; Freire, Luiz Alberto Ribeiro (org.). Anais do XXVII Colóquio do Comitê Brasileiro de História da Arte. Belo Horizonte: C/ Arte, 2008.

qualidade de acabamento. São obras mais recentes, o que pode indicar ter sido discípulo desse mesmo grupo em que atuou Oliveira Fernandes. Outro agrupamento importante é o de entalhes semelhantes ao retábulo da Igreja da Ordem Terceira do Carmo de São Paulo, realizado por Antonio Ludovico (Em 1793, o trono e partes do retábulo foram refeitos por José de Oliveira Fernandes21), que também se utiliza de forma extensiva dos auriculares bávaros. Esse conjunto possui como algumas de suas características a talha protuberante, com grande projeção para fora dos planos em que é aplicada, encontros de volutas com curvas concorrentes, acróteras com partes que se “agarram” às cornijas abaixo de si e lambrequins com pingentes com enrolamentos assimétricos. Há exemplares em São Paulo, Itu e Santos. Documentos comprovam também o avanço do rococó adentrando o século XIX, com as obras características do grupo de João da Cruz. Como ocorre nos demais casos, há apenas um registro confirmando ser dele uma obra: os livros de receita e despesa da Ordem Terceira do Carmo de Mogi das Cruzes acusam pagamento em 1815 pelo retábulo-mor22. As obras desse artífice se caracterizam, em especial, pelas mísulas com enrolamentos bastante protuberantes para os lados, colunas lisas ou com frisos que não percorrem todo o fuste, festões de flores, rocalhas em forma de “l” (lâmbida) sobre arranques de frontões nas laterais, frontão central com resplendor e ladeado por volutas, e por pendentes com flores de lis. Os retábulos desse padrão decoram igrejas desde a cidade de São Paulo até Taubaté e Tremembé, no Vale do Paraíba, concentrando-se os trabalhos em Mogi das Cruzes e Guararema. As igrejas da Capitania de São Paulo ainda receberam muitas influências da arquitetura religiosa rococó do Rio de Janeiro, com entalhadores que realizaram obras especialmente no Vale do Paraíba, em cidades ao longo dos caminhos terrestres que ligavam São Paulo à capital da colônia. Nem algumas igrejas desse caminho, existe

21

Tirapeli, Percival. Igrejas Paulistas: Barroco e Rococó. São Paulo, Unesp, Imprensa Oficial, 2003. pág. 206. 22

Ordem Terceira do Carmo de Mogi das Cruzes. Livro de Receita e despesa. Mogi das Cruzes: Ordem Terceira do Carmo, 1768-1818. Manuscrito. Folha 88.

menção ao nome do entalhador Pedro dos Santos23. Ele seria o autor dos retábulos da Basílica Velha de Aparecida, posteriormente desmontados, transladados e instalados na Igreja de São Gonçalo da de São Paulo. O grupo de Pedro dos Santos guarda muitas semelhanças com as obras de um dos principais artífices do Rio de Janeiro na segunda metade do século XVIII: Ignacio Ferreira Pinto24. Dentre elas, destacamos as colunas com frisos salientes arrematados no primeiro terço e nas partes superior e inferior do fuste por elementos fitomorfos, e com capitéis com as folhas de acanto estilizadas. Contam também com

a presença de

amorfismos (alterações e esgarçamento das formas das conchas do rococó que resultam em figuras abstratas, que não remetem mais a nenhuma figura natural) nas cartelas e tarjas, e de quartelões no lugar das colunas centrais (nos retábulos laterais). Outra característica tipicamente fluminense é o arremate superior dos arcos-cruzeiros com Fig.05: Retábulo colateral da Igreja de São Gonçalo, em São Paulo.

rocalhas, formando aletas laterais e com cartelas nas faces da parede e do arco25. Há obras nesse padrão em todo o caminho que

liga o Rio a São Paulo: na cidade do Rio de Janeiro, e em Mangaratiba e Parati, do lado fluminense, e em Cunha, Guaratinguetá, Aparecida (hoje na capital), Mogi das Cruzes e Santana de Parnaíba.

23

Tirapeli, Percival. “Retábulos Paulistas”. Atas do IV Congresso Internacional do Barroco IberoAmericano. Ouro Preto, Universidade Federal de Minas Gerias, Universidade Federal de Ouro Preto, Universidade Pablo de Olavide, 2012. pág. 280. 24 Rabelo, Nancy Regina Mathias. A originalidade da obra de Ignacio Ferreira Pinto no contexto da talha carioca na segunda metade do século XVIII. Dissertação (Mestrado em Artes Visuais) – Escola de Belas Artes. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2001. 25

Oliveira, Myriam Andrade Ribeiro de. O Rococó Religioso no Brasil... pág. 183-96.

Conclusões – A circulação das ideias O que se percebe, em todas essas expansões e assimilações de estilos em Portugal e no Brasil, é que, ao contrário de um senso comum, as pessoas se deslocavam em grandes distâncias no século. As dificuldades de locomoção, se comparadas às facilidades que temos atualmente, não impediam aos artífices e demais profissionais de se deslocarem por largos territórios, assim como as novidades de vocabulário que levavam consigo. O Brasil, a despeito de ser uma colônia nessa centúria, estava desde o princípio de sua formação ligado a um comércio mundial, capitaneado e organizado pelo Reino de Portugal, que mantinha comércio e também inevitáveis trocas culturais com Europa, América, África e Ásia. Na segunda metade do século XVIII, a metrópole financiou a implantação de um estilo erudito e iluminista que, adaptado às possibilidades locais resultou no pombalino, um movimento com raízes na Itália e que, passando por Portugal, chegou ao outro lado do Atlântico. Ao mesmo tempo, o rococó, estilo nascido na França, teve caminho ainda mais extenso: expandindo-se para Flandres e chegando à Baviera, ali foi editado, copiado e impresso, chegando a Portugal e cruzando o oceano, atingindo as franjas mais longínquas do domínio português na América. O rococó conquistou o gosto da população, substituiu ornamentações anteriores e, ao fim, e resistiu a novas formas estilísticas, perdurando por muito mais tempo do que em outros lugares do globo, sendo atualmente reconhecido como a expressão mais autêntica do setecentos em Portugal e no Brasil.

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