IDENTIDADE, CULTURA, RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS E REPRESENTAÇÕES NO PARANÁ

Share Embed


Descrição do Produto

1

IDENTIDADE, CULTURA, RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS E REPRESENTAÇÕES NO PARANÁ Ana Maria Rufino Gillies Curso de História (Universidade Estadual do CentroOeste, UNICENTRO) Palavras-Chaves: identidade, cultura, Paraná.

O que este texto problematiza é, acima de tudo, o processo de invenção e construção de identidades, culturais, assim definidas por Stuart Hall, por tratar “aqueles aspectos de nossas identidades que surgem de nosso “pertencimento” a culturas étnicas, raciais, linguísticas, religiosas e, acima de tudo, nacionais (HALL, 2006, p. 8). No caso do presente ensaio, abordamos a questão das identidades paranaense, regional, racial e étnica, particularizando o centro-oeste do Paraná. A discussão foi suscitada pelo recorrente interesse demonstrado pelos alunos em realizar pesquisas para “resgatar” e “preservar” a memória e a cultura de determinadas parcelas da população local. Contudo, não demonstravam qualquer compreensão de que a memória é feita de seleções, revisões, re-construções e que dela participam muitos construtores; igualmente grave é o fato de que a cultura que busca/vam seria algo estática, congelada no tempo, no passado, uma cultura pura, sem levar em conta o quanto ela é dinâmica, híbrida, e que de sua constituição participam muitas outras. Dessas memórias alguns foram e continuam sendo excluídos, ainda que pelo silêncio sobre eles; são mantidos como permanentes outsiders, pelo apagamento, esquecimento e através de estratégias semelhantes àquelas utilizadas pelos grupos de moradores da Winston Parva estudados por Norbert Elias (2000), ou seja, atribuindo-lhes atributos que não corresponderiam aos valores e condutas considerados adequados para sua inclusão, estigmatizando-os. Podese ainda acrescentar que o Paraná e, em muitas ocasiões, o sul, consideram-se diferentes do restante do país, sendo mesmo de conhecimento geral o desejo que ocasionalmente a região manifesta em separar-se do Brasil. No senso comum, é opinião de algumas parcelas da população a noção de que é o sul que trabalha e produz, enquanto outras

2

regiões, notadamente o nordeste, apenas se favorece de políticas públicas. A diferença que essas noções expressam, revelando um desconhecimento da história e uma incompreensão das complexidades econômica, política, social e cultural nacionais, procuram ressaltar uma superioridade do sul, cujos valores, condutas, história e cultura seriam os melhores em relação aos outros. Trata-se, enfim, de uma questão de afirmação de identidades em permanente (re) construção. “A questão da identidade está sendo extensamente discutida na teoria social”, assim Stuart Hall inicia seu famoso texto de 1992, explicando que as velhas identidades, estáveis por muito tempo, estavam em declínio, fazendo surgir novas identidades e fragmentando o indivíduo moderno. Era a “crise de identidade”, fruto dos abalos sofridos pelo declínio dos quadros de referências tradicionais (HALL, 2006, p. 7). Assim também se expressa o sociólogo francês Jean-Claude Kaufmann (2005, p. 15-). Ele explica que o conceito de identidade nada tem de novo, apesar de sua explosão há algumas décadas, embora hoje seja mais acentuada a interrogação, do ponto de vista do indivíduo, ou do grupo, sobre sua definição. Entre outros autores, ele traz à discussão George Herbert Mead (MEAD 1963, p. 15 apud KAUFMANN, 2005, p. 30), o qual por sua vez destaca a historicidade do conceito e do sujeito, explicando tratar-se de um processo, ou seja, “o indivíduo é um vasto sistema de interações internas em ação sobre um ambiente social, ele próprio profundamente marcado por um contexto histórico preciso”. Isto implica entender que a identidade é dinâmica, e múltipla. Stuart Hall (2006, p. 18-22) conta uma história que bem exemplifica a pluralização das identidades, que pode acontecer de forma inesperada. Em 1991, o então presidente George Bush indicou para a Suprema Corte um juiz negro de visões políticas conservadoras. Os eleitores brancos, que podiam ter preconceitos em relação a um juiz negro, apoiaram a indicação porque ele era conservador; e os eleitores negros, embora liberais, apoiaram a indicação porque o juiz era negro. Eventualmente o juiz foi acusado de assédio sexual por uma mulher negra. Apesar do escândalo que isto causou, alguns negros apoiaram o juiz porque ele era negro; outros se opuseram tendo como critério a questão sexual. As mulheres negras ficaram divididas entre sua identidade negra e sua identidade como mulher; os homens

3

ficaram divididos dependendo de qual parcela de sua identidade ficava acentuada, seu sexismo ou seu liberalismo; bem como os homens brancos que, além desses ainda tinham o critério racismo. Mulheres conservadoras, não tendo como critério sua identidade feminina, apoiaram o juiz levando em conta sua identidade política; já para as feministas brancas, a identidade racial era menos importante que a identidade de gênero. E assim vai. A história acima é útil para iluminar inúmeras outras questões e verificar quantas identidades se expressam digamos, de ambos os lados. Wilson Martins conta alguns casos pouco lisonjeiros sobre os poloneses, e também sobre os russos no século XIX e início do XX. Se não tomarmos cuidado, aquelas histórias ficarão impressas como identidade de toda uma etnia. Assim também com relação aos negros no Brasil, ou em qualquer outra parte do mundo. Nada é homogêneo, nem nossas identidades individuais nem as identidades dos muitos grupos aos quais pertencemos. É ainda Stuart Hall quem comenta que “estamos observando nos últimos anos uma verdadeira explosão discursiva em torno do conceito de identidade”, o qual vem também sendo submetido a uma severa crítica. Um de seus capítulos ele denomina “quem precisa de identidade” e explica que precisamos vincular as discussões sobre identidade a todos aqueles processos e práticas que tem perturbado o caráter relativamente “estabelecido” de muitas populações e culturas: os processos de globalização, os quais, ... coincidem com a modernidade (HALL, 1996 apud HALL, 2011, p. 108), e os processos de migração forçada (ou “livre”) que tem se tornado um fenômeno global do assim chamado mundo póscolonial. As identidades parecem invocar uma origem que residiria em um passado histórico com o qual elas continuariam a manter uma certa correspondência. Elas têm a ver, entretanto, com a questão da utilização dos recursos da história, da linguagem e da cultura para a produção não daquilo que nós somos, mas daquilo no qual nos tornamos. Tem a ver não tanto com as questões “quem nós somos” ou “de onde nós viemos”, mas muito mais com as questões “quem nós podemos nos tornar” e “como nós temos

sido representados” e “como esta representação afeta a forma como nós podemos representar a nós próprios”. Elas têm a ver tanto com a invenção da tradição quanto com a própria tradição, a qual elas nos obrigam a ler não como uma incessante reiteração, mas como “o mesmo que se transforma (GILROY, 1994 apud HALL, 2011, p. 109): não o assim chamado “retorno às raízes, mas uma negociação com nossas “rotas”.

4

O antropólogo britânico e professor honorário na Universidade de Edinburgh, Anthony P. Cohen, autor de obras sobre mito, construção simbólica de comunidades, antropologia da identidade e estudos dos símbolos e fronteiras numa comunidade rural, entre outros, faz uma crítica do uso abusado e descuidado que o discurso leigo vem crescentemente fazendo, apropriando-se dos termos ‘cultura’ e ‘identidade’. Ele define identidade como sendo a forma como uma pessoa é, ou deseja ser, conhecida pelos outros. “Cultura como identidade”, título de um de seus artigos, conforme o qual orientamos a presente discussão, refere-se a uma tentativa de representar a pessoa ou grupo em termos de uma cultura reificada e/ou emblematizada. É um exercício político, manifestado naqueles processos que frequentemente descrevemos como étnicos, e cujos componentes são tomados como símbolos. Professor Cohen explica que, em antropologia, cultura passou por uma sucessão de mudanças de paradigmas – no passado afirmava-se que o comportamento de um indivíduo era totalmente determinado pela cultura dentro da qual ele era educado; em seguida, considerava-se a cultura como o elemento que integrava todos os aspectos da vida social dentro de uma única lógica, dentro de cujo sistema as pessoas eram meramente réplicas em miniatura de uma entidade social e cultural mais ampla. A tendência hoje, explica o autor, é tratar a cultura mais livremente, como aquilo que agrega pessoas e processos, em vez de integrá-las, o que implica uma importante distinção, ou seja, diferença e não semelhança entre as pessoas. Assim sendo, falar sobre a cultura não significa postular um grande número de pessoas, todas as quais seriam meramente clones uns dos outros e de algum principio organizador. Ele chama a atenção para este princípio, pois, na linguagem comum, a palavra ainda é usada para significar isto. Ressalta também que a cultura passou a ser percebida como o resultado e o produto da interação social, isto é, as pessoas são elementos ativos na criação de cultura, e não consumidores passivos dela, podendo, portanto, moldá-la de acordo com suas vontades, dependendo de quão engenhosos e poderosos possam ser. E isto, no caso de politização de identidades culturais, é uma característica muito importante. É a cultura o meio pelo qual significamos e tornamos o mundo significativo para nós. Seu veículo são os símbolos; símbolos são os portadores dos significados e,

5

conforme Professor Cohen, para serem efetivos, eles precisam ser imprecisos, a fim de que um grande número de pessoas possam moldá-los às suas necessidades; eles são dispositivos pragmáticos, recursos poderosos nas arenas de política e identidade. Finalmente, ele trata da etnicidade, que considera uma das mais difíceis palavras pois parece significar uma coisa, mas, na prática significa tudo ou nada. E exemplifica que quando um político do Partido Trabalhista ou um policial de Birmingham diz ‘étnico’, eles querem dizer ‘negros’; quando a Associação de Trabalhadores Indianos ou o Comitê Carnavalesco de Notting Hill diz ‘étnico’, eles querem dizer ‘minorias’, geralmente “minoria desfavorecida ou discriminada”; quando o teórico racial diz ‘étnico’, ele refere-se à relação de sangue e descendência. Mas, se for para a palavra ser útil antropologicamente, os usos acima são insuficientes pois, etnicidade tornou-se um modo de ação e representação, e refere-se a uma decisão que as pessoas fazem de definir-se ou apresentar-se, ou aos outros, simbolicamente, como os portadores de uma certa identidade cultural. Os símbolos usados para este propósito são invariavelmente mundanos, tomados do cotidiano. Etnicidade, diz ele, tornou-se a politização da cultura, de uma cultura em particular, e tomadas de posição desse tipo não são neutras. Identidade cultural é uma identidade cultural politizada, o que implica indagar: em que tipos de circunstâncias a cultura torna-se politizada, intencionalmente colocada a serviço da identidade? A essa pergunta por ele mesmo posta, o autor sugere que isto acontece quando as pessoas reconhecem que o desconhecimento de sua cultura pelos outros atua em seu detrimento; quando eles sentem que sua cultura está marginalizada e sentem-se impotentes em relação aos marginalizadores. É contra essa desvantagem que a questão da cultura, ou da identidade cultural emerge, juntamente com o interesse no patrimônio e numa história já existente, ou no reconhecimento de que é preciso criar uma. Tratando o tema como “explosões identitárias”, Kaufmann (2005, p. 181), destaca que a “criatividade identitária está diretamente ligada ao nível e diversidade de recursos de que dispõe um indivíduo”, ou grupo, acrescentamos. Os recursos econômicos oferecem a quem os possui um acesso fácil a todos os tipos de espaços, de bens e de serviços, portadores de uma reformulação confortável de si mesmo[s], obtida

6

quase sem esforço, assim como os recursos sociais, isto é, uma rede de relações geograficamente mais extensa, e os recursos culturais, alimento favorito da reinvenção de si mesmo, uma vez que, pelo imaginário ou pela reflexividade, eles abrem para novos horizontes infinitos. Isto pode ser utilizado como critério para entendermos as posições ocupadas pelos, e atribuídas aos, diversos agrupamentos (étnicos, raciais, de gênero) que compõem, no caso do presente estudo, a sociedade paranaense, ou, mais especificamente, as comunidades menores, das pequenas cidades. O interesse em proporcionar uma identidade, idealizada, para o Paraná teria sido expressa já com a emancipação da quinta comarca de São Paulo, em 1853, uma vez que fazia parte das funções de Zacarias de Goes e Vasconcelos ocupar-se do aumento da população livre do território de 200 mil quilômetros quadrados. Em 1854, a sociedade local era formada por 60.625 habitantes, havendo uma discrepância quanto à percentagem racial, sendo que alguns autores apontam 57,2% de brancos e 42,9% de negros, mulatos e pardos; e outros mencionam apenas um sexto do segundo contingente. A Lei Eusébio de Queiros de 1850 que suspendeu o tráfico, somada às campanhas abolicionistas, fugas e outras estratégias em luta pela liberdade dos escravos foram razões apresentadas para a implementação da política imigratória que atraiu milhares de imigrantes europeus para o Paraná, entre outras localidades. Longos debates foram travados em diversas esferas públicas, como no parlamento e na imprensa e não foi incomum o entusiasmo e a esperança de que logo não houvesse mais nenhum traço etiópico na população brasileira, conforme afirmou, por exemplo, o tenente-coronel Henrique de Beaurepaire Rohan, um dos homens do imperador, que compôs a equipe vinda com Zacarias e que, em 1855, foi vice-presidente da província do Paraná (GILLIES, 2002). Alguns dos principais objetivos do governo imperial, conforme instruções dadas a Zacarias de Goes e Vasconcelos, eram aumentar a população livre para que ocupasse as áreas de fronteira com a América Espanhola, além de formarem núcleos de colonização estrangeira, trabalharem na construção de caminhos para o litoral e para os interiores. Uma outra questão importante era o controle das populações indígenas.

7

Do ponto de vista étnico, Romário Martins (1941), influenciado pelas ideias consideradas científicas em sua época, sobre o meio e a raça, contribuiu para a edificação de uma representação do paranaense como resultante da miscigenação do luso-brasileiro e do índio, mas não do negro. Naquele tempo e ainda por muitas décadas depois, defendeu-se a ideia de que, como no Paraná só desenvolveu-se a pecuária, o braço escravo não foi utilizado como no nordeste, região de produção agrícola, onde ele era considerado mais adequado. Contudo, apesar de o discurso contemplar o indígena, inclusive porque a literatura romântica o consagrou como o bom selvagem, na prática, ao longo do século dezenove, várias ações do império foram postas em ação para solucionar o problema (conforme indica farta documentação disponível inclusive no Arquivo Público do Paraná bem como textos de inúmeros pesquisadores), acabando por dizimar elevados índices de sua população. No século XIX é possível identificar ambiguidades entre os discursos e as aspirações modernizadoras, de um lado, e as práticas arcaicas e conservadoras, de outro. Tomando a Europa como modelo, aspiravase à civilização. Nesse contexto, o negro e o índio não se encaixavam na imagem que partes da elite desejavam construir do país, e também do Paraná. Foi por influência desses anseios que, entre outras possibilidades, optou-se pela política imigratória para atrair europeus, rejeitando-se, na verdade proibindo, a entrada de africanos livres e de chineses como imigrantes. No Paraná, imenso era o desejo de que toda a população de fato correspondesse à descrição que o viajante francês SaintHilaire fez acerca da população que ele viu quando passou por Curitiba em 1820, dizendo que em nenhuma outra parte do Brasil ele havia visto tantos homens verdadeiramente brancos. Difícil definir se, com tal comentário, pode-se depreender que fossem poucos os negros, pardos e mulatos, particularmente quando a pesquisa empreendida pelo professor Carlos Roberto Antunes dos Santos constatou que até a década de 1870 a economia paranaense esteve alicerçada sobre braços escravos, tanto na produção para exportação, como no caso da erva-mate, quanto nas atividades de subsistência (SANTOS apud DYSARZ, 2011, p. 209). Como se sabe, a partir da emancipação, mas principalmente a partir da década de 1860, formaram-se no Paraná colônias agrícolas, por iniciativa de particulares e do

8

Estado, dentre as quais a colônia do Assunguy onde, além de brasileiros, foi possível identificar mais de 13 nacionalidades (levando-se em conta como elas são descritas em relatórios e correspondências oficiais dos anos 1860-1880s). Como na capital da província também foram formados muitos núcleos de imigrantes, pode-se deduzir que o Paraná da segunda metade do oitocentos constituiu-se como uma verdadeira torre de babel tanto no aspecto visual quanto, e acima de tudo, cultural, aí consideradas todas as diferenças, principalmente nos idiomas e suas implicações (GILLIES,2013). Europeus e brancos, contudo não deixaram de sofrer um certo grau de repressão, fruto da mentalidade escravista das elites da época, que os desejavam sim, como trabalhadores, dedicados apenas ao trabalho para o qual foram atraídos para o Brasil. Certas sociabilidades, incluindo-se o estabelecimento do que eu chamo de relações étnico-raciais entre europeus, índios e negros, passaram por uma verdadeira jornada civilizadora, como destaca Roberto Edgar Lamb (1997), fato convenientemente esquecido ou apagado pela grande maioria daqueles que se ocupam a destacar apenas aquilo que enaltece, porem mencionado por Wilson Martins (1989). Apesar de tecer elogios aos alemães, ele cita que alguns deles gostavam do fandango como o melhor brasileiro, “e o fandango não passa de um grosseiro uso popular em que o moral nada aproveita”. Para ele, essa mistura teria contribuído para o insucesso de algumas colônias e o ideal teria sido que elas, as misturas étnico-culturais, não tivessem ocorrido (MARTINS, 1989, p. 114;117). Em relação aos poloneses, ele afirma que embora superiores numericamente, eles exerceram e ainda exerciam pouca influência de ordem sociológica: viviam enclausurados em suas próprias comunidades, em 1953 praticamente só falavam o polonês (não sendo, portanto, os alemães os inassimiláveis); “por serem procedentes de regiões rurais atrasadíssimas da Polônia, pouco avançavam em idade cultural...”, e, “os poloneses de Curitiba teriam o hábito de despejar o resultado de suas necessidades fisiológicas pelas ruas da cidade, empestandoas...”(MARTINS, 1989, p. 140-143). Os italianos, outrossim, teriam sido “sempre encarados pelos brasileiros como os imigrantes mais convenientes, “pelas afinidades de raça e pela facilidade de assimilação” (MARTINS, 1989, p. 145).

9

A História do Paraná, escrita por Romário Martins e inicialmente publicada em 1899, foi considerada uma das obras fundadoras da historiografia paranaense, tornandose mesmo a obra oficial da historia do Paraná, a ponto de ser reeditada em 1953, ano do centenário da emancipação e adotada nas escolas do Estado. Dois anos mais tarde é publicado o polêmico, contudo muito eficaz discurso ideológico, Um Brasil Diferente, de Wilson Martins, de onde foram extraídos os trechos do parágrafo anterior. Ele é apontado como tendo radicalizado o Paranismo de Romário Martins ao afirmar que, do ponto de vista sociológico, o Paraná era/é um Brasil Diferente, um território que acrescentou ao Brasil uma nova civilização: sem escravidão, sem índios e sem negros e que, por isso, nem era brasileira (MARTINS, 1989, p. 46). Na verdade, ao longo de sua obra, são inúmeras as oportunidades que ele cria para destacar a peculiaridade racial paranaense (MARTINS, 1989, p. 127-128). Trata-se, sem dúvida, da constituição de uma identidade para o Paraná. Segundo Kathryn Woodward (2011), as identidades são fabricadas por meio da marcação da diferença. Ela explica que Essa marcação da diferença ocorre tanto por meio de sistemas simbólicos de representação quanto por meio de formas de exclusão social. A identidade, pois, não é o oposto da diferença: a identidade depende da diferença. Nas relações sociais, essas formas de diferença – a simbólica e a social – são estabelecidas, ao menos em parte, por meio de sistemas classificatórios. Um sistema classificatório aplica um princípio de diferença a uma população de uma forma tal que seja capaz de dividi-la (e a todas as suas características) em ao menos dois grupos opostos – nós/eles (por exemplo, servos e croatas); eu/outro. Na argumentação do sociólogo francês Émile Durkheim, é por meio da organização e ordenação das coisas de acordo com sistemas classificatórios que o significado é produzido. Os sistemas de classificação dão ordem à vida social, sendo afirmados nas falas e nos rituais (WOODWARD, 2011, p. 40-41).

Wilson Martins dedica grande parte de seu volumoso livro aos imigrantes europeus, com destaque aos grupos maiores que acabaram por se estabelecer, deixando descendentes e marcas de suas presenças que se estendem à contemporaneidade por serem preservadas, cultivadas, exaltadas, inclusive pelo poder público quando constrói, em homenagem a esses grupos, parques e praças. São eles os alemães, italianos, poloneses e ucranianos. O trabalho produzido por Martins (1989) é considerado como um dos principais responsáveis pela consolidação da auto-imagem do Paraná como um

10

local europeizado e branco. Dessa imagem também faz parte o clima, até hoje considerado verdadeiramente europeu. Ainda que os textos mais recentes, como aqueles produzidos pelas pesquisas de alunos de graduação e pós-graduação apontados no resumo deste texto, tratem de destacar grupos étnicos específicos, esses ainda são os alemães, os italianos, os poloneses e os ucranianos. Isto vem sendo considerado um ato de contínuo “branqueamento simbólico” quando não cuida de apontar que nas mesmas regiões onde seus grupos se estabeleceram, negros e indígenas também existiram, trabalharam, produziram, povoaram (muito antes, inclusive, no caso dos indígenas, hoje marginalizados e até mesmo indesejados em muitas localidades do Estado). Apesar de inúmeras pesquisas evidenciarem uma composição étnica bem diversificada no Paraná, incluindo significativa porcentagem de indígenas e afrobrasileiros, muitos estabelecidos, em condições de controle sobre os meios de comunicação e, mais ainda, de influenciar e de selecionar os conteúdos de livros escolares, programas e bibliografias nos âmbitos dos ensinos fundamentais continuam com ações que buscam perpetuar uma certa identidade regional, recusando-se, inclusive, a contemplar estudos sobre as etnias excluídas, em total desconsideração às leis 10.639/2003 e 11.645/2008. Naturalmente, não se pretende com este comentário generalizar. Mas, será que esta conduta de inclusão de uns e exclusão de outros na publicação de uma auto-imagem, baseada numa representação de si cuidadosamente construída e reconstruída, só acontece no Paraná? Quais seriam as razões para que isto ocorra na contemporaneidade, a despeito de esforços para que os estudos e os interesses pelo saber contemplem outros grupos, ampliando o conhecimento sobre a formação econômica, social e cultural do Brasil? Para dar continuidade a esta discussão, cruzei o Atlântico e realizei um breve levantamento da produção de discussões sobre o mesmo tema em língua inglesa, particularizando meu interesse em torno do que se passa na Inglaterra. Essa escolha foi pautada pelo fato de que naquele país constantemente se problematiza o que é ser britânico - baseado em certas tradições, muitas delas inventadas conforme apontou Eric

11

Hobsbawn (1984) -, o que é britanicidade, e o que fazer em relação às inúmeras etnias que compõem a população daquela sociedade, com elevada porcentagem de indivíduos portadores da cidadania britânica por serem oriundos de ex-colônias, mas que, em muitos de seus aspectos, na pronuncia do seu inglês, na comida que comem, nas crenças que professam, nas suas tradições e costumes, em nada correspondem ao estereotipo de ingleses. Talvez essa multietnicidade tenha contribuído para a emergência, na Inglaterra, do famoso Centre for Contemporary Cultural Studies na Universidade de Birmingham, tendo como um de seus fundadores a importante figura de Stuart Hall. Ele destaca que no mundo moderno, as culturas nacionais em que nascemos se constituem em uma das principais fontes de identidade cultural (2006, p. 47). Contudo, embora nos apresentemos como portadores de uma certa nacionalidade, como se essas nos definissem, elas não fazem parte de nossa natureza essencial, não são coisas com as quais nascemos. “Nós só sabemos o que significa ser “inglês” devido ao modo como a “inglesidade” (Englishness) veio a ser representada como um conjunto de significados – pela cultura nacional inglesa” (HALL, 2006, p. 48-49). Mas a cultura nacional é um discurso, que constrói sentidos, contidos em estórias e memórias que conectam o presente com o passado; que influencia e organiza tanto nossas ações quanto a concepção que temos de nós mesmos. A cultura, assim, “atua como uma fonte de significados culturais, um foco de identificação e um sistema de representação” (HALL, 2006, p. 57-58). Stuart Hall problematiza também o local e o étnico e, procurando verificar como se articulavam face ao processo de globalização, ele observou um fortalecimento de identidades locais na reação dos grupos étnicos que se sentiam ameaçados pela presença de outras culturas. Conforme o autor, No Reino Unido, por exemplo, a atitude defensiva produziu uma “inglesidade” (Englisheness) reformada, um “inglesismo” mesquinho e agressivo e um recuo ao absolutismo étnico, numa tentativa de escorar a nação e reconstruir “uma identidade que seja una, unificada, e que filtre as ameaças da experiência social” (SENNET, 1971, p. 15 apud HALL, 2006, p. 85). ... Algumas vezes isso encontra uma correspondência num recuo, entre as próprias comunidades comunitárias, a identidades mais defensivas, em resposta à experiência de racismo cultural e de exclusão. Tais estratégias incluem a re-

12 identificação com as culturas de origem ... [e] a construção de fortes contra-etnias ... (HALL, 2006, p. 85)... Existem também fortes tentativas para se reconstruírem identidades purificadas, para se restaurar a coesão, o “fechamento” e a Tradição, frente ao hibridismo e à diversidade (HALL, 2006, p. 92).

Embora a cultura, conforme Woodward (2011, p. 19), molde a identidade “ao dar sentido à experiência e ao tornar possível optar, entre as várias identidades possíveis, por um modo específico de subjetividade... somos constrangidos”, diz a autora, “não apenas pela gama de possibilidades que a cultura oferece, isto é, pela variedade de representações simbólicas, mas também pelas relações sociais” que elas ensejam. A questão é, será que podemos pensar estar havendo uma crise de identidade no Paraná, causando nas comunidades, por exemplo da região oeste, uma insegurança sobre quem são e, portanto, levando-as a uma tentativa de reinvenção de si próprios através de um trabalho genealógico que os conduziria a seus ancestrais referenciais? Quem não possui identidade, indivíduo ou grupo social, apaga-se, não possui imagem. Daí o recurso a criar representações de si próprios. A criação de uma identidade, também podendo-se dizer, uma imagem ou representação de si, vale-se do apelo ao imaginário, e até de estereótipos, se lisonjeiros. “Pode-se considerar que a imagem de si mesmo constitui um instrumento central do processo identitário” e, “na maior parte dos casos não há nenhum contrassenso em substituir “identidade” por “imagem” (Kaufmann, 2004, p. 62). De fato, para o autor, “a imagem de si mesmo é a matériaprima da construção identitária”. Portanto, cumpre indagar das razões atuais em resgatar as memórias para salvar do esquecimento as histórias dos antepassados, buscar os fragmentos de cultura, verificar as permanências das práticas e tradições, dos valores, das crenças, dos costumes. Talvez seja apenas um modismo. Ou estaria este movimento sendo suscitado pela obrigatoriedade de se ensinar, nas escolas de ensino básico e nos cursos superiores, as culturas e histórias dos africanos, afro-descendentes e dos indígenas, levando os grupos menores a sentirem-se marginalizados e incitando neles todo o processo de [re]construção de suas identidades culturais, como afirma Anthony Cohen cujas reflexões orientaram grande parte deste trabalho?

13

Referências bibliográficas COHEN, Anthony P. Culture as Identity: Na Anthropologist’s View. Disponível em Xroads.virginia.edu/~drbr/cohan.html. Acesso 02/05/2-15 DYSARZ, Caiubi Martins. Colônia de estrangeiros ocupadas por brasileiros. Disponível em www.cih.uem/anais/2011/trabalho/215.pdf. Acesso 29/07/2011 e 05/05/2015. ELIAS, Norbert. Os estabelecidos e os outsiders: sociologia das relações de poder a partir de uma pequena comunidade. Rio de Janeiro: J. Zahar, 2000. GILLIES, Ana Maria Rufino. Políticas Públicas e utensilagem mental: uma análise das reformas propostas por Henrique de Beaurepaire Rohan em 1856 e 1878. Dissertação de Mestrado. UFPR, Curitiba, 2002. _____________________. Imigração, identidade, língua e diversidade cultural no Paraná. 1860-1890. Texto apresentado no I Congresso Internacional de História UNICENTRO-UEPG. Irati, PR. 2013. Disponível em: www.academia.edu. HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 11.ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2006. ___________. Quem precisa de identidade? In: SILVA, Tadeu da (org.) Identidade e Diferença: uma introdução teórica e conceitual. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011. KAUFMANN, Jean-Claude. A invenção de si: uma teoria da identidade. Lisboa: Instituto Piaget, 2005. LAMB, Roberto Edgar. Uma jornada civilizadora: imigração, conflito social e seguraça pública na Província do Paraná. 1867-1882. Curitiba: Aos Quatro Ventos, 1997. MARTINS, Romário. Quantos somos e quem somos. Curitiba: Empreza Graphica Paranaense, 1941. MARTINS, Wilson. Um Brasil Diferente: ensaio sobre fenômenos de aculturação no Paraná. 2.ed. São Paulo: T.A. Queiroz, 1989. WOODWARD, Kathryn. Identidade e diferença: uma introdução teórica e conceitual. In: SILVA, Tadeu da (org). Identidade e Diferença: a perspectiva dos estudos culturais. 10.ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011.

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.