IDENTIDADE DE GÊNERO PLENA: UMA PROPOSTA DE RESSIGNIFICAÇÃO DO CONCEITO DE MULHER PARA O DIREITO

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IDENTIDADE DE GÊNERO PLENA: UMA PROPOSTA DE RESSIGNIFICAÇÃO DO CONCEITO DE MULHER PARA O DIREITO André Porto1 Andrea dos Santos Nascimento2 Jorge Luis Windler3 Júlio César Pompeu4 Raphael de Angelo Jogaib Bomfim5

Fecha de publicación: 01/07/2015

SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. Violência, violência doméstica e familiar contra a mulher e violência de gênero. 3. Qual mulher sou eu? Qual mulher é você? Quais mulheres somos nós? 4. O reconhecimento brasileiro dos direitos de todos e todas à igualdade, independentemente de sua orientação sexual e identidade de gênero. 5. O compromisso brasileiro de combater a violência contra a mulher. 6. O Direito, suas significações e a

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Aluno de graduação do curso de Direito da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). [email protected]

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Doutora em Psicologia pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Professora Substituta do Departamento de Psicologia Social e Desenvolvimento da UFES. Professora da Faculdade Multivix. [email protected]

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Aluno de graduação do curso de Direito da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). [email protected]

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Doutor em Psicologia pela Universidade Federal do Espírito Santo. Professor de Ética e Teoria do Estado do Departamento de Direito da Universidade Federal do Espírito Santo. [email protected]

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Aluno de graduação do curso de Direito da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). [email protected]

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jurisprudência bibliográficas.

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Considerações

finais

8.

Referências

RESUMO: O Brasil é signatário de todos os acordos internacionais que asseguram de forma direta ou indireta os direitos humanos das mulheres bem como a eliminação de todas as formas de discriminação e violência baseadas no gênero. Além disso, tem contribuído para o reconhecimento internacional dos direitos de todos e todas à igualdade, independentemente de sua orientação sexual e identidade de gênero. Dissonante a essas afirmações, encontra-se a realidade de milhares de mulheres biológicas, travestis e transexuais que sofrem, diariamente, algum tipo de violência, seja a doméstica e familiar, seja a negação estatal de exercício pleno de suas identidades de gênero, como ocorrido na cidade de Vitória/ES, onde uma mulher transexual, ao procurar atendimento em uma Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher, teve seu acolhimento negado. Se há um descompasso entre as demandas sociais e as legislações, pois essas estão relativamente “obsoletas” em relação ao dinamismo das sociedades, promover uma revisão de conceitos apresenta-se como uma possível alternativa em estabelecer um equilíbrio entre o “dever-ser” (Direito) e o “ser” (realidade social), a exemplo das diversas mudanças nas significações do instituto “família” ocorridas no direito brasileiro. A partir de um importante diálogo entre o Direito, suas leis, pesquisadores e jurisprudência, e a Psicologia no seu saber sobre violência, sexo, gênero e sexualidade (desejo), discute-se, sem a pretensão de encerrar o assunto, mas sim para introduzi-lo, o conceito de mulher e sua possível ressignificação no Direito, acreditando-se na possibilidade de promoção de uma verdadeira justiça social. Palavras-chave: Violência. Identidade de gênero. Direitos humanos. Lei Maria da Penha.

COMPLETE GENDER IDENTITY: A RESSIGNIFICATION PROPOSAL ABOUT THE CONCEPT OF WOMAN IN LAW

ABSTRACT Brazil is signer to all international agreements that provide directly or indirectly human rights to women and the foreclosure of all sorts of discrimination and violence based on gender. Moreover, Brazil has contributed to the international recognition www.derechoycambiosocial.com



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of the rights of all people to equality, regardless of their sexual orientation and gender identity. Dissonant to these assertions lies the reality of thousands of biological women, transvestites and transsexuals who suffer daily many sorts of violence in their house, families or by the state denial of full exercise of their gender identities, as occurred in Vitória/ES, where a transgender woman, seeking care in a specialized Police Service to Women, had her order denied. If there is a mismatch between social demands and the law, because there are relatively "outdated" compared to social, to foster a review of concepts is itself a possible alternative to equalize the balance between "should be" (law) and "being" (social reality), such as the various changes in the meanings of the institute "family" occurred in Brazilian law. From an important dialogue between law, jurisprudence and researchers, and psychology in their knowledge about violence, sex, gender and sexuality (desire), it is argued, without intending to finish this debate, but to introducing it, the concept of a woman and her possible ressignification by the law, believing in the possibility to foster a true social justice. Key words: Violence. Gender identity. Human Rights. Law Maria da Penha.

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1. INTRODUÇÃO A luta por direitos perpassa praticamente toda a história da humanidade. Esses direitos variam de acordo com as sociedades em que se encontram, sendo o resultado de suas transformações, de novas necessidades sociais, declínio e ascensão de paradigmas, como também de uma releitura de seus princípios e seus valores morais. No entanto, excetuando-se as situações de revolução, há certo atraso entre as demandas sociais e as legislações, geralmente atrasadas em relação ao dinamismo das sociedades porque apesar da diversidade de interesses e valores característicos de qualquer sociedade complexa, tanto a produção legislativa quanto a jurisprudência encontram-se nas mãos de grupos sociais específicos cujos valores e interesses nem sempre coincidem com os dos demais segmentos dessa mesma sociedade. No caso brasileiro, o ordenamento jurídico é falho ao defender os direitos daqueles considerados hipossuficientes nas relações jurídicas, em prover tutela abrangendo a diversidade de identidades que compõe grande parte das sociedades contemporâneas. Entre as alterações ocorridas no ordenamento jurídico brasileiro, ao longo de sua história, buscando uma adequação da lei à realidade social, está a progressiva conquista de direitos pela mulher. A luta histórica pela plena emancipação e plena igualdade social da mulher tem como objetivo eliminar do imaginário social representações machistas, impeditivo simbólico da assunção pelas mulheres do papel de protagonistas de sua própria vida. Essa luta causou significativas mudanças no direito brasileiro como a consolidação do direito ao voto sem restrições em 1934 (Pereira; Daniel, 2009); em 1962, a sanção da lei 4.121, conhecida como o Estatuto da Mulher Casada que garantia, entre outros direitos, que a mulher não precisaria mais pedir autorização ao marido para poder trabalhar, receber herança e no caso de separação poderia solicitar a guarda dos filhos (Miranda, 2013); tendo como o ápice dessas conquistas a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 que em seu artigo 5º, inciso I, proclamou a total igualdade de gênero no ordenamento jurídico brasileiro, tornando não recepcionadas pela nova ordem constitucional todas as normas que estabeleciam diferenças de direitos entre homens e mulheres ao

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afirmar que “homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações” (Brasil, 1998, sp). Porém, se por um lado houve profundas mudanças formais no mundo do “dever-ser”, a realidade social da mulher no Brasil ainda está muito longe de ser aquela descrita na Carta Magna nacional, principalmente quando se verificam os números de mulheres que sofrem algum tipo de violência relacionada ao gênero. Conforme apresentado no relatório da pesquisa do Instituto Avon/Data Popular – “Percepções dos homens sobre a violência doméstica contra a mulher” (2013), a cada quatro minutos uma mulher é vítima de agressão no Brasil e a cada uma hora e meia ocorre um feminicídio, morte de mulher por conflito de gênero. Na tentativa de uma maior proteção à mulher e combater esse tipo de violência destacam-se duas ações vigentes: a primeira foi a instituição das Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher (DEAM), sendo que no Espírito Santo ocorreu por meio do Decreto nº 2.170-N, de 24 de outubro de 1985. De acordo com o Portal do Governo do Espírito Santo 6, “o ato de criação da DEAM 7 , no ES, foi baseado na preocupação do governo Estadual em oferecer atendimento específico à classe feminina vítima de violência, que em muitas oportunidades não procurava uma unidade de polícia judiciária para denunciar seus agressores por se sentirem constrangidas”. A segunda foi a criação, em 2006, da lei federal nº 11.340, conhecida como lei Maria da Penha – LMP – reconhecida pela Organização das Nações Unidas (ONU) como uma das três melhores legislações do mundo no enfrentamento à violência contra as mulheres 8. Essa lei foi editada com o objetivo expresso de criar mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher, definindo conceitos importantes como as modalidades de violência e gerando uma sistematização dos mecanismos de prevenção e punição da violência no ambiente familiar ou em qualquer relação íntima de afeto 6

Disponível em: . Acesso em: 21 jul. 2014. 7

De acordo com a Lei Complementar n° 756 de 27 de dezembro de 2013 da Assembleia Legislativa do estado do ES que “dispõe sobre a divisão das circunscrições da Polícia Civil do Estado do Espírito Santo e dá outras providências”, fazem parte da estrutura da referida polícia: as Delegacias Especializadas de Homicídio Contra a Mulher, os Distritos Policiais de Atendimento à Mulher, os Plantões Especiais da Mulher, e as Delegacias de Polícia de Atendimento à Mulher. 8

Sítio Compromisso e Atitude. Disponível em: . Acesso em: 24 jul. 2014. www.derechoycambiosocial.com



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contra a mulher, baseado na igualdade material preconizada pela Constituição. O texto do Decreto nº 2.170-N e a redação da LMP são claros no sujeito tutelado, ou seja, a mulher, ainda que o Art. 44 da Lei inclua os parágrafos 9° e 11° ao Art. 129 do Código Penal, agravando as penas para crimes de lesão corporal não somente contra a mulher, mas a todos aqueles que se valem de relações domésticas ou da convivência para praticá-la. No entanto, surgem dúvidas quanto aos casos concretos que são apresentados na realidade social cotidiana, considerando-se, para fins desse trabalho, como principal pergunta a ser respondida qual o conceito de mulher a que se referem aquelas legislações, pois não há a definição expressa em seus dispositivos legais. Tal indagação, motivação principal deste trabalho, surgiu a partir do caso concreto de uma mulher transexual que teve atendimento negado em uma Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher (DEAM) na cidade de Vitória, ES, pelo fato de seu registro civil ainda constar o seu sexo biológico masculino, embora já tivesse realizado a cirurgia de transgenitalização. Como consequência desse questionamento, outros surgem. As mulheres transexuais e as mulheres travestis podem ser protegidas pelas mesmas ações que as mulheres biológicas ao se encontrarem em situações de violência de gênero? Essa tutela estaria condicionada à cirurgia de redesignação genital? A formalidade documental pode ser mitigada em face da dignidade da pessoa humana? 2. VIOLÊNCIA, VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER E VIOLÊNCIA DE GÊNERO O conceito de violência pode ser definido, segundo Strey (2004, p.14) como sendo “qualquer comportamento que vise a satisfação própria em detrimento de outra pessoa”. Isto é, qualquer comportamento que intente em satisfazer a vontade própria contrariamente a vontade alheia é considerado violência. Essa característica, conforme Souza (2004, p.58), representa o caráter anti-humano da violência, pois não é aquela exercida contra a natureza (caráter humano da violência), mas “se dirige contra outros homens, não contra seus corpos apenas, mas contra o seu existir social”.

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A violência doméstica e familiar contra a mulher pode ser entendida, conforme o artigo 5º da LMP qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial no âmbito da unidade doméstica, no âmbito da família ou em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação. Essa lei, também determina em seu artigo 7º que são formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, entre outras a violência física, a violência psicológica, a violência sexual, a violência patrimonial e a violência moral. Sobre violência de gênero Strey (2004, p.13) afirma que “incide, abrange e acontece sobre/com as pessoas em função do gênero ao qual pertencem. Isto é, a violência acontece porque alguém é homem ou mulher”. Contudo, o conceito de violência de gênero a ser adotado nesse trabalho é o apresentado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), sendo a violência sofrida pelo fato de se ser mulher, sem distinção de raça, classe social, religião, idade ou qualquer outra condição, produto de um sistema social que subordina o sexo feminino9. 3. QUAL MULHER SOU EU? QUAL MULHER É VOCÊ? QUAIS MULHERES SOMOS NÓS? Vaitsman afirma que “A crise da família e do casamento modernos foi provocada pelo abalo de seus fundamentos: a divisão sexual do trabalho e a dicotomia entre público e privado atribuída segundo o gênero” (Vaitsman, 2001, p.16), onde o espaço público era ocupado pelos homens e o privado, restrito ao seio familiar, ocupado pelas mulheres. Com o avançar das sociedades, e a busca de direitos para as mulheres, a igualdade sexual fez despontar as fragilidades da antiga configuração familiar. O matrimônio alicerçado no amor singular do outrora romantismo burguês cede lugar ao dinamismo das relações da sociedade contemporânea. Com isso, a tradicional formatação de família e sua imobilidade ou falta dela foi levada para um novo patamar em que não mais se enfrenta um casamento para a “vida toda”, um relacionamento baseado apenas no amor romântico à moda moderna (Vaitsman, 2001).

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Formas de violência contra a mulher. Disponível em: < http://www.cnj.jus.br/programas-de-aa-z/pj-lei-maria-da-penha/formas-de-violencia>. Acesso em: 22 jul. 2014. www.derechoycambiosocial.com



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Todo esse dinamismo social resultou em uma crise do papel masculino na sociedade, em que um homem oitocentista comedido nas suas emoções, viril, forte, másculo, dá lugar a um homem mais dinâmico, que também possui características outrora somente femininas, saindo de um caráter mais rígido para uma definição mais ampla do que é ser homem e como ser homem. Segundo Silva, A crise da masculinidade contemporânea se configura a partir de um conflito identitário vivido pelo homem. No nosso entender, esse conflito se constitui a partir de dois momentos distintos: primeiro, a partir da tentativa de se manter um modelo de identidade de gênero hegemônico e, ao mesmo tempo, pluralista, ora baseado em modelos tradicionais ora em modelos modernos de masculinidade, e segundo, a partir da impossibilidade de sustentar essa hegemonia no que se refere às subjetividades da maioria dos homens (Silva, 2006, p.121).

Ainda segundo o autor, esse novo homem estaria pautado na possibilidade de demonstrar seus sentimentos, de expressar-se emocionalmente sem se constranger, de realizar tarefas domésticas, de participar da educação dos filhos, de assumir posições que pertenciam somente às mulheres numa sociedade moderna burguesa. Dentro dessa crise, libertam-se das amarras aquelas pessoas que não se identificam com o binarismo homem/mulher, masculino/feminino. Não supre mais, para a nossa sociedade contemporânea, apenas um parâmetro biológico e anatômico para definir a identidade de uma pessoa – se nasceu com pênis é homem, se não, é mulher. Não existe mais uma definição estática, mas dinâmica de acordo com as necessidades e anseios sociais atuais. Consequentemente, se anteriormente havia uma suposta ordem compulsória natural entre sexo, gênero e sexualidade (desejo), atualmente pode-se afirmar que não há. Jesus afirma que o sexo é biológico, gênero é social, construído pelas diferentes culturas. E o gênero vai além do sexo: o que importa, na definição do que é ser homem ou mulher, não são os cromossomos ou a conformação genital, mas a autopercepção e a forma como a pessoa se expressa socialmente. Se adotamos ou não determinados modelos e papeis de gênero, isso pode independer

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de nossos órgãos genitais, dos cromossomos ou de alguns níveis hormonais (Jesus , 2012, p.8).

Butler aponta seus estudos na mesma direção de forma a defender que a distinção entre sexo e gênero atende à tese de que, por mais que o sexo pareça intratável em termos biológicos, o gênero é culturalmente construído: consequentemente, não é nem o resultado causal do sexo, nem tampouco tão aparentemente fixo quanto ao sexo (Butler, 2003, p.24).

Para essa pesquisadora, supor um binarismo de gênero, masculino e feminino, seria correlacioná-lo, implicitamente ao sexo, não havendo razão para supor que os gêneros também devam permanecer em número de dois. Na legislação brasileira encontra-se definido gênero apenas como masculino e feminino. O direito Alemão, por exemplo, contempla um terceiro gênero (indefinido) para ser utilizado em certos casos previstos em sua legislação e, na Austrália, um caso de uma pessoa que não se identifica com o gênero masculino e feminino, decidindo-se por um gênero neutro, foi reconhecido pela justiça australiana, conforme noticiado pela BBC Brasil em seu sítio eletrônico10. Quanto ao desejo, no exercício da sexualidade, pode ser compreendido como as práticas erótico-sexuais nas quais as pessoas se envolvem, bem como pelo desejo e atração que leva a sua expressão (ou não) através de determinadas práticas. Esse dado também é chamado por alguns/as de “orientação sexual”, e comumente classifica as pessoas em “heterossexuais”, “homossexuais” e “bissexuais” (Musskopf, 2008, sp).

Diante da pluralidade de possibilidades de sujeitos ao se “combinar” sexo, gênero e desejo, faz-se necessária uma identificação do conceito de mulher a ser adotado nesse estudo. É importante esclarecer que a escolha realizada e nomenclatura adotada foram meramente didáticas, a fim de proporcionar um melhor entendimento a respeito dos indivíduos objetos desse trabalho, problematizando-os. Em nenhum momento objetivou-se categorizar os

Alemanha cria “terceiro gênero” para registro de recém-nascidos. Disponível em: . Acesso em: 22 jul. 2014. 10

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tipos de mulher, muito menos sugerir uma qualificação (ou distinção) onde se pudesse deduzir que uma seria melhor (ou “mais” mulher) que a outra. A partir desse corte metodológico tem-se: a mulher como conceito já culturalmente construído a partir da ciência biológica, ou seja, aquela identificada pela genitália de nascimento (vagina) e por seus cromossomos (xx). A mulher travesti, que para fins desta discussão será entendida como aquela que irá alterar (definitivamente ou provisoriamente) o seu corpo, suas vestimentas e seu comportamento social de forma a obter características representadas socialmente como do universo feminino e mesmo ser identificada visualmente como uma mulher. Desta forma a travesti é aquela que promove modificações nas formas de seu corpo visando deixá-lo o mais parecido possível com o das mulheres; vestem-se e vivem cotidianamente como pessoas pertencentes ao gênero feminino sem, no entanto, desejar explicitamente recorrer a cirurgia de transgenitalização para retirar o pênis (Benedetti apud Carrieri, Souza & Aguiar, 2013, p. 81).

Já as mulheres transexuais são aquelas que abandonam o sexo original (pênis) e realizam a cirurgia de transgenitalização, são as que nascem em um sexo, mas que se identificam como membro do sexo oposto, tomam hormônios e submetem-se a intervenções cirúrgicas para remodelar a genitália (Namaste apud Carrieri, Souza & Aguiar, 2013, p. 81). As mulheres transexuais reivindicam a cirurgia de mudança de sexo como condição sine qua non da sua transformação, sem a qual permaneceriam em sofrimento e desajuste subjetivo e social (Benedetti apud Carrieri; Souza; Aguiar, 2013, p. 81).

Outra consideração importante a se fazer é que, nesse trabalho, desconsiderou-se o desejo/sexualidade das mulheres, sejam as biológicas, as travestis ou as transexuais, uma vez que não é objetivo desse estudo relacionar o desejo sexual à questão da mulher. O que está sendo discutido é a LMP e a possibilidade de sua aplicabilidade para os casos de violência doméstica e ou familiar, independente da genitália, tal como se observa no parágrafo único do artigo 5º da LMP, “as relações pessoais enunciadas neste artigo independem de orientação sexual” (Brasil, 1998, sp). A discussão sobre o tema não se pode restringir a conceitos somente, mas principalmente na inclusão desses grupos na sociedade de forma geral, na quebra de preconceitos e na liberdade das pessoas viverem sem anular sua individualidade em favorecimento de uma falsa tranquilidade com o www.derechoycambiosocial.com



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ambiente social a sua volta. O tema só será extinto quando a violência não mais for algo já internalizado e que se perpetua culturalmente através das gerações como a imposição do forte sobre o fraco, do rico sobre o pobre, do homem sobre a mulher, do masculino sobre o feminino e o respeito ao outro for algo “natural”. Por fim, intencionando-se consubstanciar a discussão, transcreve-se o discurso extraído de uma publicação da página de internet “Travesti Reflexiva”11 (2014) onde, a administradora do sítio, ao ser questionada se já havia mudado de sexo, responde: Muita gente me pergunta: "Sofia, você já mudou de sexo?" Pra sanar as dúvidas... Eu já mudei de sexo. Na realidade, terceiros mudaram o meu sexo no dia que eu nasci, eu não fui consultada. Nasci menina, mas me designaram menino. Ocorreu uma série de mudanças de sexo nesse dia, primeiro teve a verbal, o médico comunicou que eu era um menino por causa de um pênis... E com isso, teve a mental, os meus pais construíram uma teia de significados masculinos após essa notícia. Depois teve a escrita, algum funcionário anotou que eu era um menino... Alguns dias depois, teve a institucional, a receita federal me intitulou "Sexo: Masculino" e com tudo isso, eu havia sofrido a minha primeira metamorfose compulsória logo no primeiro mês de vida. Se alguém tivesse esperado pra me perguntar, eu não teria dito "Sou menino". Só eu poderia responder essa pergunta.

4. O RECONHECIMENTO BRASILEIRO DOS DIREITOS DE TODOS E TODAS À IGUALDADE, INDEPENDENTEMENTE DE SUA ORIENTAÇÃO SEXUAL E IDENTIDADE DE GÊNERO O Ministro Antonio de Aguiar Patriota, em seu discurso no ano de 2013, durante o lançamento do Sistema Nacional de Promoção de Direitos e Enfrentamento à Violência contra Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transgêneros declarou que “de forma consistente, o Brasil tem contribuído para o reconhecimento internacional dos direitos de todos e todas à igualdade, independentemente de sua orientação sexual e identidade de gênero”, conforme transcrito no sítio do Ministério das Relações Exteriores 12 . No seu pronunciamento, também relacionou diversas ações 11

Disponível em: . Acesso em: 20 jul. 2014.

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Disponível em: . em: 22 jul. 2014. www.derechoycambiosocial.com



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todos os direitos humanos. Princípio 2: Direito à igualdade e a não-discriminação. Todas as pessoas têm o direito de desfrutar de todos os direitos humanos livres de discriminação por sua orientação sexual ou identidade de gênero. Todos e todas têm direito à igualdade perante à lei e à proteção da lei sem qualquer discriminação, seja ou não também afetado o gozo de outro direito humano. A lei deve proibir qualquer dessas discriminações e garantir a todas as pessoas proteção igual e eficaz contra qualquer uma dessas discriminações. A discriminação com base na orientação sexual ou identidade gênero inclui qualquer distinção, exclusão, restrição ou preferência baseada na orientação sexual ou identidade de gênero que tenha o objetivos ou efeito de anular ou prejudicar a igualdade perante à lei ou proteção igual da lei, ou o reconhecimento, gozo ou exercício, em base igualitária, de todos os direitos humanos e das liberdades fundamentais. Princípio 5: Direito à segurança pessoal. Toda pessoa, independente de sua orientação sexual ou identidade de gênero, tem o direito à segurança pessoal e proteção do Estado contra a violência ou dano corporal, infligido por funcionários governamentais ou qualquer indivíduo ou grupo.

A partir dos Princípios de Yogyakarta, o caso concreto, motivador desse estudo, apresenta-se como um verdadeiro fato violador do documento em que o Brasil é signatário. A recusa do atendimento à mulher transexual na DEAM vai de encontro a todos os esforços empenhados na consolidação do direito individual à identidade de gênero, compreendida como a profundamente sentida experiência interna e individual do gênero de cada pessoa, que pode ou não corresponder ao sexo atribuído no nascimento, incluindo o senso pessoal do corpo (que pode envolver, por livre escolha, modificação da aparência ou função corporal por meios médicos, cirúrgicos ou outros) e outras expressões de gênero, inclusive vestimenta, modo de falar e maneirismos (Princípios de Yogyakarta, 2006, p.7).

A mulher transexual que relatou13 sua experiência encontrou-se, no mínimo, em duas situações de violência. A primeira, aquela cujo autor foi seu companheiro – a violência doméstica; a segunda pelo Estado, que por meio de seu agente público, não a reconheceu como mulher e negou-lhe atendimento na Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher.

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Relato realizado durante evento na faculdade MULTIVIX na cidade de Vitória em 2014.

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5. O COMPROMISSO BRASILEIRO VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER

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COMBATER

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Conforme a publicação “Instrumentos Internacionais de Direitos das Mulheres” da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres (2006, p.9), o Brasil é signatário de todos os acordos internacionais que asseguram de forma direta ou indireta os direitos humanos das mulheres bem como a eliminação de todas as formas de discriminação e violência baseadas no gênero. Desses, destacam-se a Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW, 1979), a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (Convenção de Belém do Pará, 1994), a Declaração de Pequim (1995) e a Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento (CIPD), mais conhecida como Conferência do Cairo (1994). Entre as ações governamentais direcionadas a combater a violência contra a mulher, uma das primeiras foi a criação das Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher (DEAM’s), ainda na década de 1980. “Foi criada com o objetivo de assegurar atendimento digno à população feminina, vítima de violência doméstica e familiar. O serviço é oferecido por meio das atividades de investigação, prevenção e repressão aos delitos praticados contra a mulher”, conforme apresentado no sítio Portal do Governo do Estado do Espírito Santo14. Porém, os números da violência, desde o início de suas atividades até a atualidade, demonstram que seu objetivo, até então, não foi alcançado. Em 2006, tem-se outro importante marco brasileiro no combate à violência contra a mulher, a edição da LMP, que cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8o do artigo 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; altera o Código de Processo Penal, o Código Penal e a Lei de Execução Penal; e dá outras providências (Brasil, 2006).

A partir das determinações da LMP, alguns instrumentos foram reestruturados e outros foram criados compondo a Rede de Atendimento às 14

Disponível em: . Acesso em: 21 jul. 2014. www.derechoycambiosocial.com



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Mulheres em Situação de Violência que reúne ações e serviços das áreas da assistência social, justiça, segurança pública e saúde, integrando a Rede de Enfrentamento, ao contemplar o eixo de assistência previsto na Política Nacional de Enfrentamento à Violência Contra as Mulheres. Entre as instituições e serviços cadastrados estão: Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher (DEAMs); Centros de Referência de Atendimento à Mulher (CRAMs); Casas Abrigo; Centros de Referência da Assistência Social (CRAS); Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; Órgãos da Defensoria Pública; Serviços de Saúde Especializados para o Atendimento dos Casos de Violência Contra a Mulher. Dentre aqueles que foram reestruturados, encontram-se as DEAM’S. Conforme apresentado no sítio Compromisso e Atitude, objetivando uma atualização do atendimento nas DEAM’s com o determinado pela LMP, o governo federal revisou, em 2010, a Norma Técnica de Padronização das Delegacias Especializadas de Atendimento às Mulheres (DEAMs)15, reforçando a importância destes equipamentos como espaços públicos para enfrentamento da violência contra a mulher e atualiza o seu funcionamento, conforme determina a referida lei e os tratados e convenções internacionais dos quais o Estado brasileiro é signatário, entre os quais a Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW, 1979) e a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (Convenção de Belém do Pará, 1994).

No Brasil, nos 30 anos decorridos entre 1980 e 2010, foram assassinadas no país acima de 92 mil mulheres, 43,7 mil só na última década (2000-2010). O número de mortes nesse período passou de 1.353 para 4.465, que representa um aumento de 230%, mais que triplicando o quantitativo de mulheres vítimas de assassinato no país, posicionando o Brasil, entre 84 países, em 7º colocado no ranking de feminicídios de acordo com o Mapa da Violência 2012 (Waiselfisz, 2012). O relatório da pesquisa “Instituto Avon/Data Popular – Percepções dos homens sobre a violência doméstica contra a mulher de 2013” aponta que, desde a sanção da LMP, a Central de Atendimento à Mulher atendeu três milhões de denúncias, mas estima-se que mais de 13 milhões e 500 mil brasileiras já sofreram algum tipo de agressão de um homem, sendo que 15

Norma Técnica de Padronização das Delegacias Especializadas de Atendimento às Mulheres. Disponível em: . Acesso em: 22 jul. 2014. www.derechoycambiosocial.com



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31% destas mulheres ainda convivem com o agressor e 14% continuam a sofrer violências. Isso significa que 700 mil brasileiras são alvo de agressões cotidianamente. É importante destacar que esses valores representam a violência sofrida pelas mulheres “biológicas”, não sendo encontradas estatísticas sobre essa forma de agressão contra as mulheres travestis e as mulheres transexuais. Identifica-se, assim, outra violência a que as mulheres travestis e transexuais são submetidas, negando-lhes, inclusive, a visibilidade necessária para que medidas específicas e efetivas sejam tomadas para promover a sua proteção. Uma vez que o Brasil promove, até internacionalmente, o reconhecimento da identidade de gênero, deve garantir, prioritariamente, que suas instituições e seus agentes públicos sejam ativos promotores, na realidade social, desse preceito, sendo contraditória e violadora de direitos qualquer recusa de tutela, que normalmente é concedida às mulheres biológicas, às mulheres travestis e transexuais, seja o atendimento nas DEAM’s, nos Centros de Referência de Atendimento à Mulher, o amparo pela LMP, a possibilidade de acolhimento nas Casas Abrigo ou qualquer outro mecanismos de proteção existente. A realização plena do direito à identidade de gênero pressupõe o exercício de todos os direitos e deveres relacionados não apenas ao indivíduo, mas também ao gênero que se identifica. Sempre que houver no ordenamento jurídico especificidades relacionadas ao gênero, essas devem alcançar todos e todas que se sentem pertencentes aquele gênero. 6. O DIREITO, SUAS SIGNIFICAÇÕES E A JURISPRUDÊNCIA Em uma leitura da Constituição da República Federativa do Brasil, ou de qualquer outro texto legal nacional onde se encontra a palavra “mulher”, será constatado que, em momento algum, será encontrado sua definição/conceito. É certo que, historicamente, foi consolidada a significação da mulher biológica, mas isso não se traduz na certeza que essa seja a única possível ou que atenda, plenamente, às necessidades da sociedade contemporânea nacional. Se, por um lado, o Direito pode ser um instrumento de manutenção do status quo, é urgente que ele, cada vez mais, seja um instrumento de transformação social, de construção da autonomia e cidadania da sociedade como um todo, principalmente, daqueles em situação de vulnerabilidade

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social (Montoro apud Rocha, 2012), promovendo, verdadeiramente, uma justiça social. E, é esse contexto um dos que possibilita sua mudança, seja por meio do processo legislativo (edição e revogação de leis), seja através do poder judiciário (sentenças, acórdãos, súmulas vinculantes, decisões interpretativas, entre outros). Essa expressão do Direito pode ser verificada, entre tantas outras, nas ressignificações ocorridas nos conceitos de família, ao longo da história brasileira, buscando uma adequação do mundo do dever-ser à realidade social. Se família já foi compreendida apenas como o núcleo formado a partir do casamento (em um primeiro momento apenas o religioso, posteriormente aceito o civil) monogâmico entre homem e mulher e seus filhos “legítimos”, a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 trouxe mais dois novos modelos de família: a união estável e a monoparental. Em 2011, o Superior Tribunal Federal, ao reconhecer a união estável homoafetiva nos julgamentos da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4277 e da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 132, introduziu no Direito outro modelo de família, estendendo a essas relações a mesma proteção destinada à união estável prevista no artigo 226, §3º da Constituição da República Federativa do Brasil, e no artigo 1723 do Código Civil (Miranda, 2011), sendo uma das sustentações do Ministro Ricardo Lewandowski em seu voto que “a união homoafetiva estável no tempo e pública é hoje uma realidade, tanto que, no último senso, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) apurou a existência de 60 mil casais em união homoafetiva no Brasil”, conforme o Supremo Tribunal Federal 16 . O referido argumento baseia-se, inegavelmente, na constante necessidade de atualização do Direito em face às novas demandas sociais. Cabe ressaltar que o exemplo citado não é exceção, essa dinâmica é característica essencial do Direito, possibilitando sua renovação e sua manutenção ao longo do tempo. As referidas decisões, devido à natureza das ações e à competência legal do tribunal que as julgou, foram proferidas com eficácia vinculante à Administração Pública e aos demais órgãos do Poder Judiciário. Decisão semelhante ainda se aguarda do Supremo Tribunal Federal garantindo igualdade de direitos e deveres a todas as mulheres, independente de serem biológicas, mulheres transexuais ou mulheres travestis.

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Ministro Ricardo Lewandowski inclui união homoafetiva no conceito de família. Disponível em: . Acesso em: 23 jul. 2014. www.derechoycambiosocial.com



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Entretanto, uma jurisprudência começa a se formar, mesmo que de forma modesta, como se pode constatar no julgamento do processo nº 201103873908, da 1ª Vara Criminal da Comarca de Anápolis, Tribunal de Justiça do Estado de Goiás, onde a juíza Ana Cláudia Veloso Magalhães, em 2011, proferiu favorável a aplicação da LMP no caso de Alexandre Roberto Kley vítima de violência doméstica, que embora fizera a cirurgia de mudança de sexo há mais de 17 anos, ainda mantinha seu nome de nascimento. Segundo a juíza, tal condição não a excluiria da proteção decorrente da LMP. Durante toda a sentença a juíza enfatizou o fato de a vítima ser reconhecida perante a sociedade como mulher, e se sentir como tal. Conclui afirmando: A mulher Alexandre Roberto Kley, independentemente de sua classe social, de sua raça, de sua orientação sexual, renda, cultura, nível educacional, idade e religião, goza dos direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sendo-lhe asseguradas as oportunidades e facilidades para viver sem violência, preservar sua saúde física e mental e seu aperfeiçoamento moral, intelectual e social17 (Magalhães, 2011, p.10).

Identifica-se uma grande semelhança entre esse caso e o ocorrido na cidade de Vitória (ES), mas com resultados completamente diferentes. Em ambos, embora as mulheres agredidas tivessem realizado a “mudança de sexo”, ainda constavam no documento civil o nome e o sexo registrados no nascimento. No fato julgado em Anápolis, devido a sua profunda percepção sobre a atual realidade social e os fins a que se destina o Direito, a juíza foi capaz de tomar medidas efetivas que contemplassem tanto o reconhecimento da identidade de gênero quanto a proteção à mulher agredida. Em Vitória (ES), ao negar atendimento à mulher transexual na DEAM o agente público foi, em realidade, autor de nova violência àquela cidadã. Recentemente, em 2013, com base no entendimento que [...] a identificação sexual é um estado mental que preexiste à nova forma física resultante da cirurgia. Não permitir a mudança registral de sexo com base em uma condicionante meramente cirúrgica equivale a prender a liberdade desejada pelo transexual às amarras de uma lógica formal que não permite a realização

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Decisão do processo nº 201103873908. 1ª Vara Criminal da Comarca de Anápolis. Tribunal de Justiça do Estado de Goiás. Disponível em: . Acesso em: 24 jul. 2014. www.derechoycambiosocial.com



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daquele como ser humano [...]18 (17ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, 2013, p.10),

a 17ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro reformou a sentença do juízo de primeiro grau e, por unanimidade, deu provimento ao recurso da autora que requeria autorização para alterar seu nome civil e adotar o sexo feminino, independentemente de realização de cirurgia de transgenitalização uma vez que optou por não realizá-la devido os riscos envolvidos no procedimento. Segundo o relator do acórdão, Desembargador Edson Aguiar de Vasconcelos, não permitir a mudança de sexo no registro civil com base em condicionante meramente cirúrgica equivale a prender nas amarras de uma lógica formal a liberdade que clama o transexual de ser e de realizar-se como ser humano, constituindo mais um obstáculo a que o indivíduo venha a ser o que sempre foi, sendo ainda uma resistência ao convite ético feito pelo poeta grego Píndaro: “torna-te o que já és, aprendendo com a experiência da vida” 19 (17ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, 2013, p.1).

Também sobre a temática, tramita no Superior Tribunal de Justiça a Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4275 ajuizada pela Procuradoria Geral da República em 2009 visando a que seja proferida decisão de interpretação conforme a Constituição do art. 58 da Lei 6.015/7320, na redação que lhe foi conferida pela Lei 9.708/98, reconhecendo o direito dos transexuais, que assim o desejarem, à substituição de prenome e sexo no registro civil, independentemente da cirurgia de transgenitalização21.

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Acórdão da Apelação Cível nº 0013986-23.2013.8.19.0208. Décima Sétima Câmara Cível. Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Disponível em: . Acesso em: 24 jul. 2014. 19

Acórdão da Apelação Cível nº 0013986-23.2013.8.19.0208. Décima Sétima Câmara Cível. Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Disponível em: . Acesso em: 24 jul. 2014. 20

Dispõe sobre os registros públicos, e dá outras providências.

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ADI 4275. Disponível em: . Acesso em: 24 jul. 2014.

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Na seara do Direito Penal, o Projeto de Lei do Senado nº 236 de 2012 , que intenciona reformar o Código Penal Brasileiro, prevê a inclusão da identidade de gênero em vários dispositivos, como no artigo 121 que prevê o crime de homicídio, inserindo na forma qualificada (§1º, inciso I) se o crime for cometido por preconceito de identidade de gênero. 22

Embora de forma lenta, mudanças podem ser observadas no Direito. Deve ser recorrente a afirmação que nunca bastará, como direito do indivíduo à identidade de gênero, apenas a alteração de seu registro civil para ser “reconhecida formalmente” como mulher. A diretriz 7, do Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3) 23 estabelece a “Garantia dos Direitos Humanos de forma universal, indivisível e interdependente, assegurando a cidadania plena”. A plena cidadania, princípio fundamental da Carta Magna, das mulheres travestis e das mulheres transexuais somente será realizada quando elas forem reconhecidas, apenas, como mulheres, e puderem assumir todas as obrigações e usufruir todos os direitos que o ordenamento jurídico brasileiro reserva às mulheres. Torna-se imperioso, portanto, diante da ausência de uma restrição literal do texto ao conceito de mulher (visto que em nenhum momento se aborda o aspecto biológico), bem como visando a atender a finalidade social a que o Direito se destina – como assevera Karl Larenz (1997, p.531), a teleologia da lei deve ser considerada em sentido amplo, abarcando os propósitos e as decisões conscientemente tomadas pelo legislador, bem como os fins objetivos do Direito e princípios jurídicos gerais – cabe à comunidade jurídica promover a ressignificação de seus conceitos, em especial o conceito de mulher que se impõe na realidade social contemporânea.

22

Disponível em: . Acesso em 24 jul. 2014. 23

O terceiro Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3) foi instituído pelo Decreto nº 7.037, de 21 de Dezembro de 2009 e Atualizado pelo Decreto nº 7.177, de 12 de maio de 2010. “O PNDH-3 representa um verdadeiro roteiro para seguirmos consolidando os alicerces desse edifício democrático: diálogo permanente entre Estado e sociedade civil; transparência em todas as esferas de governo; primazia dos Direitos Humanos nas políticas internas e nas relações internacionais; caráter laico do Estado; fortalecimento do pacto federativo; universalidade, indivisibilidade e interdependência dos direitos civis, políticos, econômicos, sociais, culturais e ambientais; opção clara pelo desenvolvimento sustentável; respeito à diversidade; combate às desigualdades; erradicação da fome e da extrema pobreza”. Disponível em: < http://portal.mj.gov.br/sedh/pndh3/pndh3.pdf>. Acesso em: 24 jul. 2014. www.derechoycambiosocial.com



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7. CONSIDERAÇÕES FINAIS As sociedades e suas legislações não evoluem na mesma velocidade. O Direito sempre está e (provavelmente) estará atrasado em relação ao dinamismo social como uma consequência dele ser o produto de uma comunidade específica (a dos juristas e daqueles que podem de alguma maneira influenciá-los) e não de toda a sociedade (Bourdieu, 1986). O caso inicialmente relatado, embora viole, entre tantos outros, o princípio basilar constitucional da dignidade da pessoa humana, ainda não pode ser considerado como uma exceção, mas reproduz, essencialmente, o comportamento diário de agentes públicos no atendimento às mulheres que não correspondem ao “modelo padrão biológico”, como também pode ser observado na maioria dos julgados24 relacionados ao tema. Corroborando este fato, o relatório de Santos e Pompeu (2014) baseado em pesquisa etnográfica em delegacias de atendimento à mulher da Grande Vitória aponta que o não atendimento de mulheres que se enquadrem no “padrão biológico” é uma regra nos procedimentos policiais. Ademais, o mesmo relatório aponta que mesmo algumas mulheres que não se enquadram no “perfil” da “boa mãe” ou da “mulher direita” de família também são muitas vezes desestimuladas a noticiar crimes dos quais são vítimas. O presente escrito não pretende esgotar o assunto, mas fomentar a discussão sobre crise das referências tradicionais, no caso desse trabalho, sobre identidade de gênero. Promover o reconhecimento da identidade de gênero, mas negar seu pleno exercício é sujeitar à violência, cotidianamente, não apenas as mulheres travestis e as mulheres transexuais, mas todos aqueles e aquelas que fazem parte do seu convívio. Se, ao longo de sua existência, o Direito não tem se demonstrado propulsor de grandes mudanças sociais, faz-se necessário, atualmente, que seus operadores busquem mecanismos para diminuir a lacuna entre a realidade social apresentada e o direito positivado nos códigos, contribuindo com uma reconstrução da dogmática jurídica e possibilitando o Direito assumir, definitivamente, a sua função de promoção, mais do que A Diretriz 17 – Promoção de sistema de justiça mais acessível, ágil e efetivo, para o conhecimento, a garantia e a defesa dos direitos do Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3), recomenda ao Poder Judiciário, entre outras ações programáticas, “a promoção de cursos regulares de formação dos servidores da Justiça em Direitos Humanos, com recortes de gênero e raça, que contemplem as demandas específicas dos segmentos sociais em situação de vulnerabilidade ou historicamente vulnerabilizados”. Disponível em: < http://portal.mj.gov.br/sedh/pndh3/pndh3.pdf>. Acesso em: 24 jul. 2014. 24

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a de sanção. A interpretação dos dispositivos infraconstitucionais [e inclusive da própria Constituição, pelo STF] “norteada” pelos conteúdos sociais, objetivos, valores e princípios constitucionais faz do Direito um instrumento de verdadeira transformação da realidade social (Radaelli, 2008, p.68).

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