Identidade e conflito em Lavoura arcaica de Raduan Nassar

June 7, 2017 | Autor: Evanir Pavloski | Categoria: Identidade, Raduan Nassar, Lavoura arcaica
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IDENTIDADE E CONFLITO EM LAVOURA ARCAICA DE RADUAN NASSAR


Evanir Pavloski (mestre) - UEPG


Publicado em 1975, o romance Lavoura arcaica foi reconhecido ao longo
das décadas seguintes como um espaço ficcional profícuo para as mais
variadas discussões de ordem estética, psicológica e sociológica.
Indubitavelmente, o caráter intimista da obra e a dicção poética de Raduan
Nassar permitem abordagens analíticas que privilegiam ou problematizam
aspectos fundamentais da experiência humana, seja em coletividade ou
restrita ao limites de sua própria subjetividade.
Não obstante, o presente trabalho tem como objetivo estender uma
reflexão sobre uma esfera que, influenciando diretamente tanto o perfil
psicológico quanto social das personagens, caracteriza o topos central da
narrativa, ou seja, o núcleo familiar. Neste meio, são deflagrados os
conflitos que não apenas impulsionam o desenvolvimento do enredo, mas
também ilustram eixos paradigmáticos de identificação e comportamento
inerentes às sociedades modernas. Como já afirmava Jean-Jacques Rousseau em
Do contrato social, "a mais antiga de todas as sociedades e a única natural
é a da família [...] Portanto, a família é, se quiserem, o primeiro modelo
das sociedades políticas" (ROUSSEAU, 2010, p. 24).
Assim, a figuração do convívio familiar evidencia as relações de
poder, os processos de normalização individual e as transgressões, muitas
vezes, tidas como necessárias para a afirmação identitária do sujeito
diante dos outros e de si mesmo. Diante disso, um princípio nos parece
essencial para a formação da identidade do protagonista André e sua
conseqüente trajetória contestadora: a tradição.
É pacífico afirmar que a família é o ethos primário da interação
humana e que, além de sua natureza protetora, a educação de seus membros é
uma de suas principais atribuições. Ainda que tal função não fosse assumida
pelos pais até o século XVIII, o caráter instrutivo da esfera familiar se
tornou inegável na modernidade. Em sua obra O mal-estar na pós-modernidade,
publicada em 1997, Zygmunt Bauman salienta os desdobramentos desse processo
de transformação do universo doméstico:

Quanto mais tempo durasse o fechamento das crianças nesse ambiente
especial, melhor: juntamente com a idéia positiva do amadurecimento,
uma idéia negativa da "criança precoce" apareceu, trazendo um aroma
decididamente patológico. A criança era considerada um ser frágil, que
requer estreita e constante vigilância e interferência; um ser
inocente, mas que, pela própria razão da sua inocência, vivia sob uma
constante ameaça de ser "estragada", incapaz de evitar e combater os
perigos por sua conta. O que para os adultos era um desafio a combater
ou arrostar, para a frágil criança era um engodo a que ela não podia
resistir ou uma armadilha em que ela só podia cair. A criança
precisava da orientação e do controle do adulto: uma supervisão
refletida e cuidadosamente planejada, calculada para desenvolver a
razão da criança como uma espécie de fortificação deixada pelo mundo
adulto dentro da personalidade da criança (BAUMAN, 1998, p. 178).

Parece-nos que o processo de formação individual descrito por Bauman
se ramifica em duas instâncias. A primeira delas se refere à preparação dos
filhos para os parâmetros de conduta e de convivência nos modelos sociais
específicos em que eles estão inseridos, o que constitui, portanto, uma
aprendizagem de ordem ética. Já a segunda se distingue pela transmissão de
valores e ideais que nem sempre estão em conformidade com os paradigmas
externos. Neste caso, a educação parece atender mais especificamente a
princípios morais que foram erigidos ao longo de décadas ou mesmo séculos
de experiência e exortação. É justamente nesse horizonte de representação
ideológica que a força da tradição se manifesta em sua totalidade.
Ao comparar os espaços da physis (natureza) e do ethos (núcleos
sociais), Henrique Lima Vaz salienta a importância da tradição como
elemento que atribui às relações humanas a sua dimensão histórica e
preserva a integridade dos sistemas de significação reconhecidos. O
filósofo afirma que

Elevando-se sobre a physis, o ethos recria, de alguma maneira, na sua
ordem própria, a continuidade e a constância que se observam nos
fenômenos naturais. Na physis, estamos diante de uma necessidade dada,
no ethos tem lugar uma necessidade instituída, e é justamente a
tradição que suporta e garante a permanência dessa instituição e se
torna, assim, a estrutura fundamental do ethos na sua dimensão
histórica. Entre a necessidade natural e a pura contingência do
arbítrio, a necessidade instituída da tradição mostra-se como o corpo
histórico no qual o ethos alcança sua realidade objetiva como obra de
cultura (VAZ, 1999, p. 17).

Complementarmente, em sua discussão sobre o ponto de vista moral da
literatura, Maria Herrera Lima salienta a íntima relação entre as práticas
morais legitimadas pela tradição e o seu espelhamento nas diversas
comunidades compartilhadas pelos indivíduos:

(...) a idéia da comunidade como suporte de uma tradição, quer dizer,
de uma estrutura de crenças, valores e práticas coerente e
relativamente constante, serve não apenas de condição de
inteligibilidade das crenças e práticas morais, mas também se faz
presente na continuidade mesma de sua existência, em sua capacidade de
permanecer no tempo, na vitalidade e produtividade de suas crenças (em
sua força motivadora) como uma prova de seu valor intrínseco (LIMA In:
LÓPES DE LA VIEJA, 1994, p. 48).


Em Lavoura arcaica, a tessitura narrativa caracteristicamente
intertextual, sobretudo com a Bíblia Sagrada e o Alcorão, enfatiza a
secularidade e o poder regulador da tradição no núcleo familiar. Tais
referências servem de base para a construção do elemento que, de forma mais
contundente, representa a importância atribuída aos valores a serem
transmitidos: o aparato discursivo de Iohána. E é justamente contra o
caráter prescritivo e arbitrário dos conceitos presentes nessas pregações
patriarcais que a revolta do protagonista-narrador irrompe. Em outras
palavras, André busca afirmar a sua individualidade em um ethos regulado
por um discurso unívoco apoiado na tradição, que apresenta como diretriz de
comportamento a supressão dos interesses particulares em prol da comunidade
em questão, no caso a família. A personagem, na tentativa de encontrar
meios para que sua identidade seja reconhecida e a sua voz seja ouvida,
desconstrói a ética que rigidamente molda as ações dos indivíduos ao
inverter os princípios da tradição que a sustenta.
Os discursos de Iohána são compostos por conceitos, como por exemplo,
a paciência, a temperança, a virtude e o desprendimento, ideais que
constituem o próprio âmago dos costumes a serem valorizados e transmitidos.
A personagem concentra em torno de si a força construída pelo tempo e a
sabedoria alcançada pela virtude. "Que rostos mais coalhados, nossos rostos
adolescentes em volta daquela mesa: o pai à cabeceira, o relógio de parede
às suas costas, cada palavra sua ponderada pelo pêndulo, e nada naqueles
tempos nos distraindo tanto como os sinos graves marcando as horas"
(NASSAR, 2001, p. 53).
O tempo que poderoso se revela às costas do pai, encarnando nele o
poder oriundo da sucessão de gerações, cadencia as palavras de Iohána e
enfatiza a importância do ethos na sua dimensão histórica transposta para o
ambiente da família. Entretanto, percebemos na inquietação revelada pelos
semblantes dos ouvintes um primeiro indício de um desejo latente de
contestar os princípios transmitidos pela voz patriarcal. Obviamente, o
narrador não constitui fonte confiável de informação quanto aos sentimentos
de seus familiares, porém, as palavras de André deixam clara a sua própria
insatisfação ao referir-se a esses fatos e a interpretação que sua
consciência atribui a eles. Como salienta Aristóteles, "é difícil receber
desde a juventude um adestramento correto para a virtude quando não nos
criamos debaixo das leis apropriadas; pois levar uma vida temperante e
esforçada não seduz a maioria das pessoas, especialmente os jovens"
(ARISTÓTELES, 1987, p. 193).
Ao longo da obra, fica evidente a importância que a reunião da
família em torno dessa mesa ancestral tem como ritual de passagem e
reafirmação dos princípios que ordenam a esfera ética e como representação
do desvio que permeia a união do grupo e caracteriza os atos do
protagonista. A mesa da família é o próprio ethos em Lavoura arcaica e
guarda em si a semente da rebeldia.
Em primeiro lugar, notamos a função educadora presente nesse ritual
discursivo diário, a qual deriva da reafirmação dos hábitos no
fortalecimento da tradição.

(...) nunca tivemos outro em nossa mesa que não fosse o pão-de-casa, e
era na hora de reparti-lo que concluíamos, três vezes por dia, o nosso
ritual de austeridade, sendo que era também na mesa, mais que em
qualquer outro lugar, onde fazíamos de olhos baixos o nosso
aprendizado da justiça (NASSAR, 2001, p. 78).

A partir do discurso patriarcal, podemos distinguir na estrutura
constitutiva desse núcleo social quatro ideais que lhe servem de base
fundamental: o amor, a união, o trabalho e a temperança. Esses valores se
entrelaçam na formação do código normativo que supostamente estabiliza a
família e, curiosamente, carregam em si mesmos os pilares sobre os quais se
sustenta o comportamento transgressor e subversivo de André.
A noção de amor sustentada por Iohána se realiza dentro da própria
esfera familiar, por meio da doação e do respeito para com os pais e,
talvez até de forma mais explícita, para com os irmãos. Dessa forma, a
família é uma comunidade gerada por laços de afetividade mútua e por eles
deve ser mantida. Entretanto, a incondicionalidade e a livre aceitação não
apenas do amor, mas também do prazer emocional e físico que dele se deriva,
constituem riscos para a manutenção da família como espaço de socialização
harmoniosa. Nesse sentido, amor e austeridade caminham juntos, sendo ambos
inerentes aos princípios familiares e aos mecanismos que protegem o grupo
do desequilíbrio provocado pelas paixões desmedidas.

(...) o mundo das paixões é o mundo do desequilíbrio, é contra ele que
devemos esticar o arame das nossas cercas, e com as farpas de tantas
fiadas tecer um crivo estreito, e sobre este crivo emaranhar uma sebe
viva, cerrada e pujante, que divida e proteja a luz calma e clara da
nossa casa, que cubra e esconda dos nossos olhos as trevas que ardem
do outro lado (...) e quando acontece um dia de um sopro pestilento,
vazando nossos limites tão bem vedados, chegar até as cercanias da
moradia, insinuando-se sorrateiramente pelas frestas de nossas portas
e janelas, alcançando um membro desprevenido da família, mão alguma em
nossa casa há de fechar-se em punho contra o irmão acometido: os olhos
de cada um, mais doces do que alguma vez já foram, serão para o irmão
exasperado, e a mão benigna de cada um será para este irmão que
necessita dela, e o olfato de cada um será para respirar, deste irmão,
seu cheiro virulento, e a brandura do coração de cada um, para ungir
sua ferida, e os lábios pra beijar ternamente seus cabelos
transtornados, que o amor na família é a suprema forma de paciência; o
pai e a mãe, os pais e os filhos, o irmão e a irmã: na união da
família está o acabamento de nossos princípios (NASSAR, 2001, p. 56,
61).


Transcrevemos a longa passagem acima para ilustrar como o amor e a
união familiar se complementam na articulação básica do ethos representado
em Lavoura arcaica, não sendo aparentemente possível separar esses dois
conceitos, a não ser, talvez, na ótica de André.
Além disso, a união da família, pregada e defendida até os últimos
recursos pela voz da tradição, personificada na figura patriarcal, transita
entre dois níveis da escala comportamental virtuosa: o da doação e o do
apagamento das individualidades. O discurso ético proferido nos rituais
diários de reiteração não prescreve apenas o exercício da práxis em favor
do bem estar do grupo, mas também condena a valorização das
idiossincrasias. Dessa forma, as contingências da família em Lavoura
arcaica suplantam as necessidades particulares e forçam um esmagamento das
identidades em prol da estabilidade do espaço compartilhado.

(...) a sabedoria está precisamente em não se fechar nesse mundo
menor: humilde, o homem abandona a sua individualidade para fazer
parte de uma unidade maior, que é de onde retira a sua grandeza; só
através da família é que cada um em casa há de aumentar a sua
existência, é se entregando a ela que cada um em casa há de sossegar
os próprios problemas, é preservando sua união que cada um em casa há
fruir as mais sublimes recompensas (NASSAR, 2001, p. 148).

Nesse sentido, a revolta de André se constitui também como uma busca
por uma liberdade emocional e discursiva que lhe é negada pelo código moral
vigente. Mas, como veremos, esse desejo por uma liberdade irrestrita se
vincula a um processo de transgressão e de sacrifício que atinge todos os
indivíduos envolvidos.
Trabalho e temperança complementam os quatro pilares que sustentam
esse espaço familiar e que são fortemente abalados pelo comportamento do
protagonista. Esses dois ideais se aliam na construção do ambiente
característico da família, na medida em que os atos construtivos são
moderados pela razão e pelo respeito ao fluxo temporal, assim como às
circunstâncias estabelecidas por ele.

(...) existe tempo nas cadeiras onde nos sentamos, nos outros móveis
da família, nas paredes de nossa casa, na água que bebemos, na terra
que fecunda, na semente que germina, nos frutos que colhemos, no pão
em cima da mesa, na massa fértil de nossos corpos, na luz que nos
ilumina, nas coisas que nos passam pela cabeça, no pó que dissemina,
assim como em tudo que nos rodeia; (...) rico só é o homem que
aprendeu, piedoso e humilde, a conviver com o tempo, aproximando-se
dele com ternura, não contrariando suas disposições, não se rebelando
contra seu curso (...) o equilíbrio da vida depende essencialmente
desse bem supremo, e quem souber com acerto a quantidade de vagar, ou
a de espera, que se deve pôr nas coisas, não corre nunca o risco, ao
buscar por elas, de defrontar-se com o que não é (NASSAR, 2001, p. 55,
57).

É interessante notar que esses ideais prescritivos parecem estar
voltados diretamente para André, numa antecipação dos acontecimentos que
serão em breve deflagrados. O protagonista desafia o fluxo do tempo e dá
vazão às suas paixões de forma desesperada, contrariando tudo que lhe foi
ensinado por Iohána, num movimento que envolve não apenas uma rejeição de
conceitos, mas também uma prática subversiva como tentativa de romper com
as normas predominantes.

(...) por isso, ninguém em nossa casa há de dar nunca o passo mais
largo do que a perna: dar o passo mais largo do que a perna é o mesmo
que suprimir o tempo necessário à nossa iniciativa; e ninguém em nossa
casa irá colocar o carro à frente dos bois: colocar o carro à frente
dos bois é o mesmo que retirar a quantidade que um empreendimento
exige (...) aquele que exorbita no uso do tempo, precipitando-se de
modo afoito, cheio de pressa e ansiedade, não será jamais
recompensado, pois só a justa medida do tempo dá a justa natureza das
coisas, não bebendo do vinho quem esvazia num só gole a taça cheia
(...) ai daquele que se antecipa ao processo das mudanças: terá as
mãos cheias de sangue (NASSAR, 2001, p. 55, 57).

Um aspecto relevante dos paradigmas disseminados pelo patriarca da
família é o profundo impacto que esse discurso provoca em seus ouvintes, em
particular, André e Pedro. Enquanto o primeiro rejeita e desafia a moral
paterna, o segundo não só a aceita, mas também adota como suas as palavras
do pai. Percebemos então que o discurso da tradição amplia a sua força para
além dos limites de um código comportamental. A ética reguladora desse
espaço unifica, planifica e homogeneíza os indivíduos de tal forma que
mesmo a linguagem é condicionada pelos ideais rigidamente sustentados,
fazendo com que cada palavra pronunciada por eles seja também a palavra de
Iohána. Durante a narrativa, especialmente nas conversas entre Pedro e
André, encontramos referências claras a essa disseminação ideológica do
discurso patriarcal.
(...) não se constranja, meu irmão (Pedro), encontre logo a voz solene
que você procura, uma voz potente de reprimenda, pergunte sem demora o
que acontece comigo desde sempre, componha gestos, me desconforme
depressa a cara, me quebre contra os olhos a velha louça lá de casa
(...) a voz do meu irmão, calma e serena como convinha, era uma oração
que ele dizia quando começou a falar (era o meu pai) de cal e das
pedras de nossa catedral (...) fui num passo torto até a mesa trazendo
dali outra garrafa, mas assim que esbocei entornar mais vinho foi a
mão de meu pai que vi levantar-se no seu gesto "eu não bebo mais" ele
disse grave, resoluto estranhamente mudado, "e nem você deve beber
mais, não vem desse vinho a sabedoria das lições do pai" (NASSAR,
2001, p. 17, 18, 40).

Entretanto, esse domínio ético não atinge uma uniformidade absoluta
em todos os membros da comunidade, causando uma cadeia de influências que,
em grande parte, explicam a revolta do protagonista. Como afirmamos
anteriormente, a circularidade do ethos não é estática e, ainda que a
implantação de um novo círculo de caráter individual se caracterize como
fenômeno raro, seria impróprio afirmar que atos particulares não escapam da
função educadora do ethos, constituindo desvios e produzindo conseqüências
para a estabilidade do grupo. Uma vez mais, recorremos à imagem
profundamente representativa da mesa ancestral encabeçada por Iohána para
ilustrar, da mesma forma como o faz André, a cadeia de relações familiares
que geram uma tensão ética, a qual culmina na transgressão, supostamente
libertária, do protagonista.

(...) eram esses nossos lugares à mesa na hora das refeições, ou na
hora dos sermões: o pai à cabeceira; à sua direita, por ordem de
idade, vinha primeiro Pedro, seguido de Rosa, Zuleika e Huda; à sua
esquerda, vinha a mãe, em seguida eu, Ana e Lula, o caçula. O galho da
direita era um desenvolvimento espontâneo do tronco, desde as raízes;
já o da esquerda trazia o estigma de uma cicatriz, como se a mãe, que
era por onde começava o segundo galho, fosse uma anomalia, uma
protuberância mórbida, um enxerto junto ao tronco talvez funesto, pela
carga de afeto; podia-se quem sabe dizer que a distribuição dos
lugares na mesa (eram caprichos do tempo) definia as duas linhas da
família (NASSAR, 2001, p.156-157).

Como percebemos na passagem acima, é o excesso de afeto que, segundo
André, deforma eticamente a linhagem que compõe o lado esquerdo da mesa,
formando uma reação em cadeia que afeta todos os indivíduos e se concentra
na figura do protagonista.
É importante perceber que o conceito de amor presente nos discursos
de Iohána se alia muito mais a um ideal de compreensão e respeito mútuo do
que a demonstrações incondicionais de afeto.
Porém, o amor maternal transborda sobre André e borra os limites que
norteiam esse sentimento. O amor incondicional da mãe do protagonista
representa um contraponto ao discurso austero que regula o ambiente, sendo
que esse comportamento redunda numa autoconsciência crítica que impulsiona
André para a rejeição dos valores pregados por Iohána. Como afirma a
própria personagem, "se o pai no seu gesto austero quis fazer da casa um
templo, a mãe, transbordando no seu afeto, só conseguiu fazer dela uma casa
de perdição" (NASSAR, 2001, p. 136).
Da mistura do amor acolhedor da mãe com o amor austero do pai surge
em André um sentimento disforme e intimamente vinculado aos seus conceitos
geradores, ao mesmo tempo em que, subverte a ambos. As carícias maternas
misturam-se ao discurso paterno e concretizam o incesto, o qual representa
o ápice da busca do protagonista por uma liberdade irrestrita. Em outros
termos, a personagem subverte o amor familiar ao erotizá-lo.

(...) foi um milagre o que aconteceu entre nós, querida irmã, o mesmo
tronco, o mesmo teto, nenhuma traição, nenhuma deslealdade, e a
certeza supérflua e tão fundamental de um contar sempre com o outro no
instante de alegria e nas horas de adversidade [...] foi um milagre
descobrirmos acima de tudo que nos bastamos dentro dos limites de
nossa própria casa, confirmando a palavra do pai de que a felicidade
só pode ser encontrada no seio da família, foi um milagre [...] me
ajude a me perder no amor da família com o teu amor, querida irmã, sou
incapaz de dar um passo nessa escuridão (NASSAR, 2001, p.120, 129).

Contudo, o protagonista não consegue construir suas ações
externamente ao sistema de valores do qual ele tenta escapar. A personagem
desconstrói o discurso patriarcal, adapta-o aos seus interesses e remonta o
processo de apagamento das individualidades praticado por Iohána. André
nega a singularidade dos indivíduos e instrumentaliza seus corpos como meio
de convulsionar os princípios reguladores do espaço familiar: "preciso
estar certo de poder apaziguar a minha fome neste pasto exótico, preciso do
teu amor, querida irmã, e sei que não exorbito, é justo o que te peço, é a
parte que me compete, o quinhão que me cabe, a ração a que tenho direito"
(NASSAR, 2001, p.125-126). Percebemos que o protagonista consegue por meio
da liberalização de seu corpo nada mais do que remontar de maneira radical
a arbitrariedade da qual ele tenta se afastar. Isso decorre do fato de que
André também é uma construção da moral paterna e que seu discurso é um
espelhamento distorcido dos ensinamentos aprendidos.
Se nos sermões patriarcais amor e união são exaltados como forças
complementares, na trajetória contestatória do protagonista tal pressuposto
também se deforma. André utiliza o ideal da união familiar como argumento
em sua tentativa de convencer o espírito e subjugar o corpo da irmã. A
destruição de toda a família é apontada pela personagem como conseqüência
certa caso seu amor não seja correspondido por Ana, o que constitui uma
imposição similar àquela encontrada na prática discursiva de Iohána. Nas
palavras de André a união e o amor também são complementares, uma vez que
um elemento é ameaçado pela negação do outro. Porém, o incesto e a
erotização dos corpos substituem os valores defendidos pela norma familiar,
de forma que a complementaridade dessas forças rearticuladas pelo
protagonista torna-se um aspecto desestabilizador do espaço socializado.

(...) e eu, que desde o início vinha armando a minha tempestade, caí
por um momento numa surda cólera cinzenta: "estou banhado em fel, Ana,
mas sei como enfrentar tua rejeição, já carrego no vento do temporal
uma raiva perpétua [...] vou cultivar o meu olhar, plantar nele uma
semente que não germina, será uma terra que não fecunda, um chão capaz
de necrosar como a geada as folhas das árvores [...] vou dar de ombros
se um dia a casa tomba: não tive meu contento, o mundo não terá de mim
misericórdia" (NASSAR, 2001, p.138).

É importante considerar que o trabalho é, visivelmente, o primeiro
dos princípios familiares a ser rejeitado pelo protagonista de Lavoura
arcaica. Enquanto Iohána e seus outros filhos retiram, com muito suor, o
sustento da terra, André se entrega ao ócio e limita seus afazeres às
constantes descobertas dos prazeres proporcionados pelo seu próprio corpo.
O dever laborioso para com a família ao qual, segundo os sermões diários,
nenhum indivíduo deveria furtar-se, é deixado de lado pelo protagonista que
encontra em sua individualidade solitária uma forma particular de caminhar
através das horas.

(...) na modorra das tardes vazias da fazenda, era num sítio lá do
bosque que eu escapava aos olhos apreensivos da família; amainava a
febre dos meus pés na terra úmida, cobria meu corpo de folhas e,
deitado à sombra, eu dormia na postura quieta de uma planta enferma
vergada ao peso de um botão vermelho [...] que urnas tão antigas eram
essas liberando as vozes protetoras que me chamavam da varanda?
(NASSAR, 2001, p.13, 14).

Somente quando o protagonista tenta convencer Ana a aceitar o seu amor
é que ele admite a idéia de juntar-se aos irmãos no trabalho árduo de cada
dia e, dessa forma, participar do ritual diário de austeridade com as mãos
calejadas e o rosto queimado pelo sol. Contudo, essa instrumentalização
argumentativa do ideal do trabalho constitui também uma subversão
discursiva, à medida que o objetivo de André é simplesmente subjugar a
vontade da irmã e não, como afirma ele, aceitar a homogeneização construída
a partir do trabalho em família.

(...) as coisas vão mudar daqui pra frente, vou madrugar com nossos
irmãos, seguir o pai para o trabalho, arar a terra e semear,
acompanhar a brotação e o crescimento [...] vou fazer como diz o pai
que cada palmo de chão aqui produza [...] e a cada tarde, depois de um
trabalho de sol a sol, voltarei para casa, lavarei o santo suor do
corpo, vestirei roupa grossa e limpa, e, na hora do jantar, quando
todos estiverem reunidos, o pão assado sobre a toalha, vou participar
do sentimento de sublime de que ajudei também com minhas próprias mãos
a prover a mesa da família (NASSAR, 2001, p.120, 121, 125).

O último dos preceitos reguladores desse espaço ficcional – a
temperança – acentua o grau de ligação e complementaridade dos conceitos
transmitidos por Iohána. Comedimento e paciência não são apenas virtudes
exaltadas pela tradição familiar, mas também agentes diretos no
desenvolvimento e prática dos outros princípios. Em Lavoura arcaica, todas
as ações devem ser medidas e as mudanças devem ser almejadas para o momento
correto. Ao subverter os outros valores, André potencializa ao máximo os
seus desejos, entregando-se ao descontrole dos sentimentos individualistas
e desrespeitando a autoridade do fluxo temporal. Assim, o protagonista
deliberadamente transforma a sua inquietude em um processo destrutivo de
contestação subversiva.

(...) eu disse cegado por tanta luz tenho dezessete anos e minha saúde
é perfeita e sobre esta pedra fundarei a minha igreja particular, a
igreja para meu uso, a igreja que freqüentarei de pés descalços e
corpo desnudo, despido como vim ao mundo [...] eu tinha simplesmente
forjado o punho, erguido a mão e decretado a hora: a impaciência
também tem os seus direitos (NASSAR, 2001, p.89, 90).

Contudo, ao retornar para a casa da família após seu breve exílio
voluntário, o protagonista não consegue afirmar e mesmo impor
discursivamente a liberdade individual que tanto almeja. Ainda que
inicialmente resoluto em desafiar a os preceitos da tradição familiar,
André sucumbe diante da autoridade patriarcal e da angústia silenciosa
materna. Em certo sentido, o mesmo afeto irrestrito que abrira os olhos do
protagonista faz com que ele se cale ao final da narrativa.

(...) senti num momento a presença de minha mãe às minhas costas,
trazida à porta da cozinha pelo discurso exasperado ali na copa,
tentando com certeza interferir em meu favor; mesmo sem voltar, pude
ler com clareza a angústia no rosto dela, implorando com os olhos
aflitos para o meu pai: "Chega Iohána! Poupe nosso filho!" [...] Estou
cansado, pai, me perdoe [...] daqui pra frente quero ser como meus
irmãos [...] vou contribuir para preservar nossa união, quero merecer
de coração sincero, pai, todo o teu amor (NASSAR, 2001, p.170).

Dessa forma, André aceita a supressão de sua individualidade, atitude
necessária para a manutenção do bem-estar coletivo, e reassume o seu lugar
silencioso à mesa da família. Porém, esse aparente processo de readaptação
se mostra efetivo apenas superficialmente, uma vez que André decide manter-
se sob o jugo do código ético-moral da família, mas de forma alguma
abandona o desejo por construir a sua própria identidade. Quando o
protagonista seduz Lula, o irmão mais novo, ele refaz a mesma prática
erotizante e subjugadora anteriormente utilizada com Ana. Mais uma vez,
André tenta encontrar sua liberdade no seio da família.

(...) mas não foi para fechar seus olhos que estendi o braço, correndo
logo a mão no seu peito liso: encontrei ali uma pele branda, morna,
tinha a textura de um lírio [...] Minha festa seria no dia seguinte,
e, depois eu tinha transferido só para a aurora o meu discernimento,
sem contar que a madrugada haveria também de derramar o orvalho frio
sobre os belos cabelos de Lula, quando ele percorresse o caminho que
levava da casa para a capela (NASSAR, 2001, p.181, 182).

À guisa de conclusão, o protagonista de Lavoura arcaica promove uma
revolta construída a partir da negação e da subversão individualista dos
princípios reguladores do espaço familiar, tendo como objetivo a
consolidação de sua liberdade. A personagem se rebela contra o discurso
unívoco e homogeneizador do pai como forma de alcançar a sua própria
identidade enquanto sujeito. Tal processo, entretanto, apenas reconstrói os
meios utilizados por Iohána na imposição dos conceitos reafirmados pela
tradição. Ao reconstruir de maneira disforme os elementos principais do
discurso paterno, André refaz o processo de negação das identidades do qual
ele mesmo tentava escapar.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. In: Aristóteles. São Paulo: Nova Cultural,
1987.

BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar na pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 1998.

LÓPES DE LA VIEJA, María Teresa. Figuras del logos. Entre la Filosofia y la
Literatura. México: Fondo de Cultura Económica, 1994.

NASSAR, Raduan. Lavoura arcaica. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social. Porto Alegre: LP&M, 2010.
VAZ, Henrique Cláudio de Lima. Escritos de Filosofia II: Introdução à ética
filosófica. São Paulo: Loyola, 1999.
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