IDENTIDADE E EDUCAÇÃO NÃO-FORMAL: TECENDO APROXIMAÇÕES AO TRABALHO DE EDUCADORES CULTURAIS (Anais do XXII Encontro Estadual de História da ANPUH-SP)

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IDENTIDADE

E

EDUCAÇÃO

NÃO-FORMAL:

TECENDO

APROXIMAÇÕES

AO

TRABALHO DE EDUCADORES SOCIAIS NITIREN QUEIROZ CASTRO*

INTRODUÇÃO As oficinas de breaking, dança ligada à cultura hip-hop, iniciaram na Fundação CASA, segundo relatório não publicado da Cia Ballet Stagiun, em 19991 com uma equipe de quatro educadores, coordenados pela referida companhia em uma parceria com a antiga FEBEM, que na época tinha um programa de oficinas de arte e cultura chamado FEBEM Arte. Desde então, a receptividade dos adolescentes atendidos tem sido grande, considerando que em grande parte das Unidades de Internação e Internação Provisória são ministradas essas oficinas. Segundo o “Caderno de Referências, Educação Com Arte: Oficinas Culturais”, publicado pelo Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária (CENPEC: 2010) – organização que coordena atualmente parte das oficinas culturais realizadas na Fundação CASA, são as oficinas com maior adesão dos adolescentes, precedidas apenas pelas oficinas de capoeira. As propostas de oficinas de arte e cultura na Fundação CASA fazem parte de um conjunto de políticas públicas promovidas pelo Estado na tentativa de adequar-se às diretrizes estabelecidas no Estatuto da Criança e Adolescente, que estabelece a obrigatoriedade das atividades pedagógicas, incluindo “atividades culturais, esportivas e de lazer” (BRASIL, 1990), conforme apontado por Teixeira (2008). Segundo a autora, mesmo com constantes reformas, pouco se tem mudado no *Mestrando do Programa de Pós-Graduação stricto sensu em Psicologia Educacional do Centro Universitário FIEO – UNIFIEO, Osasco, SP, Brasil. Bolsista pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES.

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Nesse relatório a denominação é de oficinas de “Dança de Rua”, uma vez que desde o início das atividades e até hoje as oficinas são assim denominadas na Fundação CASA. A opção pelos termos hiphop e breaking são usados neste trabalho como referência à cultura e modalidade da dança como chamadas por seus praticantes, como apontado em Castro (2013).

caráter punitivo das políticas públicas em relação ao adolescente em conflito com a lei. Esta afirmação pode ser corroborada por Castro (2013) durante dez anos de atuação como arte-educador de Dança de Rua em unidades da Fundação CASA, entre 2001 e 2011, onde se pôde constatar que, mesmo com a inclusão das atividades culturais na rotina dos internos, a instituição em questão não perdera seu caráter punitivo e cerceador. Fica aqui evidenciado um processo de transição institucional aonde o conflito entre a visão socioeducativa, que vem sendo consolidada em um processo de debates voltados para a promoção de diretrizes legais no atendimento de adolescentes em conflito com a lei e a visão punitiva advinda de uma prática vinculada à situação irregular de uma instituição – a antiga FEBEM – que insistia em dirigir suas ações em conformidade com o extinto Código de Menores, anterior ao ECA (BRASIL, 1990). As atividades educacionais de arte e cultura são realizadas por organizações nãogovernamentais (ONGs) conveniadas a partir de edital de concorrência publicado em Diário Oficial. Atualmente, segundo publicado no site da Fundação CASA, são cinco entidades: Ação Educativa, Assessoria, Pesquisa e Informação (Ação Educativa) e Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária (CENPEC) que atuam na região metropolitana de São Paulo; Grupo de amparo aos Doentes de Aids (GADA) no interior do Estado; Centro de Educação e Assessoria Popular (CEDAP) no interior e no litoral e o Projeto Guri, projeto específico da área de música que atua em todo o Estado. As atividades de arte e cultura acontecem nos formatos de oficinas, workshops e apresentações (FUNDAÇÃO CASA, 2010). As oficinas são ministradas junto a turmas de no mínimo dez e no máximo quinze adolescentes, em aulas de uma hora e meia de duração que acontecem duas vezes por semana, por oficineiros contratados pelas ONGs que coordenam o trabalho destes educadores, além de auxiliá-los no planejamento e realizarem a formação continuada destes profissionais. De acordo com a Fundação CASA (2010), os coordenadores dos centros solicitam as oficinas à Gerência de Arte e Cultura da Fundação depois de uma avaliação acerca da demanda dos adolescentes e a estrutura da unidade, sendo depois articulada a implantação junto com a ONG que atenderá o centro. O controle de presença dos educadores das oficinas de arte e cultura é realizado também pelo coordenador pedagógico da unidade, que designa um agente educacional para acompanhar o educador nas atividades. Não se pode esquecer que as oficinas de arte e cultura estão situadas em um contexto nacional mais amplo do ensino não formal e a ação dos Projetos Sociais e Organizações Não Governamentais (ONGs), que têm tido um papel importante no país nas últimas décadas.

Considerando o quadro atual de crescimento na demanda da educação não formal no Brasil, desenvolvida em grande parte pelas ONGs (GOHN, 2010), torna-se evidente a necessidade de refletir acerca destas práticas educacionais e sobre suas contribuições para a formação de adolescentes. EDUCAÇÃO NÃO FORMAL E O EDUCADOR SOCIAL É em Gohn (1998; 2006; 2009; 2010; 2011) que se encontram subsídios para as reflexões sobre a educação não formal, a partir de uma concepção mais ampla de educação, associada ao conceito de cultura. Diferente da educação formal, pautada por conteúdos fixos, desenvolvida em escolas e da educação informal, que é desenvolvida no ambiente familiar e comunitário, de maneira espontânea e sem um planejamento sistemático, a educação não formal acontece usualmente em ambientes variados, onde os conteúdos são estabelecidos no processo de aprendizagem – geralmente a partir de temas geradores – com uma intencionalidade e planejamento. A educação não formal busca preparar os indivíduos para a ação coletiva, para a participação comunitária e social de maneira crítica e consciente, educação voltada para a praxis social. Procurase desenvolver atividades a partir de eixos temáticos como relações étnico-raciais e de gênero, conflitos geracionais, direitos humanos e etc., numa dinâmica conversacional onde o educador procura instigar os educandos para o debate e a reflexão. As atividades de arte e cultura têm tido um papel importante na educação não formal na promoção da autovaloração dos sujeitos envolvidos, no resgate e/ou promoção da cultura popular e na criação de espaços de identidade e cidadania (GOHN, 2006; 2009; 2011). Gadotti (2005) também contribui para o entendimento das especificidades da educação não formal ao discutir a questão da temporalidade desta concepção de educação, cujo foco deixa de estar na progressão para estabelecer uma relação mais flexível com o tempo, respeitando os ritmos dos envolvidos no processo. O educador social atua neste contexto como um mediador, que procura traçar um diagnóstico da realidade da comunidade, para planejar e desenvolver seu trabalho, conhecendo os valores e a cultura local, acionando potencialidades, propondo ressignificações de conceitos e outras formas de percepção. O educador é um “tradutor social e cultural” (GOHN, 2009, p.33), na medida em que busca estabelecer diálogos com setores usualmente excluídos e não visíveis da sociedade. Para Gohn (1998; 2006; 2009), corroborado por Gadotti (2005), não se pode compreender a educação não formal em oposição à educação formal, mas no sentido de complementaridade desta, na medida em que se ocupa de processos de aprendizagem que buscam dar uma identidade política

e comunitária aos saberes advindos da educação escolar em sua relação com a cultura dos educandos. Para Gohn (2006) as principais contribuições da educação não formal se dão no campo do aprendizado das diferenças; o reconhecimento do papel do outro; a construção da identidade de um grupo e a socialização do respeito mútuo. Mas a falta de formação específica dos educadores sociais, de uma definição clara de funções e objetivos da educação não formal, além da falta de instrumentos metodológicos de avaliação e análise do trabalho realizado estão entre os principais desafios à educação não formal segundo a autora (GOHN, 2006). Canastra (2011) problematiza a questão da formação dos educadores sociais, em um contexto português, apontando a necessidade de se traçar um perfil formativo destes profissionais a partir da compreensão das especificidades de seu campo de atuação e da produção teórica da pedagogia social, área do conhecimento pedagógico que têm estudado este fenômeno. Para Gohn (1998; 2011), é nos movimentos sociais que nascem as primeiras experiências de educação não formal com as características apontadas acima, das quais podem se destacar a promoção da cultura popular, a criação de espaços de identidade e cidadania e a formação de sujeitos militantes. Porém, a educação não formal vai se desenvolver também em projetos estatais de inclusão social, em empresas e nas ONGs (GOHN, 1998; 2011). Atualmente existe também a demanda das atividades da educação não formal nas propostas de educação integral (BRASIL, 2009; CENPEC, 2013). Ainda segundo Gohn (1998; 2011) a educação não formal ganha força no Brasil a partir dos anos 1990, como decorrência de uma série de mudanças no cenário político impulsionadas pela economia e pela globalização. O mercado de trabalho caminha neste momento para a informalidade, exigindo um perfil diferenciado de profissional: criativo, que se comunique bem e seja eficiente em equipe. E por outro lado, a mundialização da economia aliada ao fluxo acelerado de informações nos meios de comunicação em rede possibilita a ascensão de uma indústria cultural pasteurizante, que coloca em risco culturas minoritárias ou desprovidas da produção de capital. Isso faz com que as questões da cultura e da identidade sejam colocadas em pauta pelos movimentos sociais e demais formas de associativismo. É neste período que as ONGs ganham força, pautadas pela agenda neoliberal, dependentes do financiamento estatal e/ou privado, modelo cada vez mais distanciado do das ONGs militantes ligadas ao eco ativismo, aos sindicatos e às lutas pela redemocratização do país (GOHN 2011). Esta discussão a respeito da educação não formal e do educador social interessa neste estudo

como base para a compreensão do campo de trabalho, da formação e das atividades do profissional de hip-hop participante da já citada pesquisa. Para tanto, acrescentam-se a essa discussão, questões específicas da cultura hip-hop. CULTURA HIP-HOP E O ATLÂNTICO NEGRO Segundo o documentário “Freshest Kids” (2002), onde foram recolhidos depoimentos das pessoas que iniciaram a cultura hip-hop no início da década de setenta, no Bairro do Bronx, em Nova York (EUA), este fenômeno nasce a partir de festas realizadas nas ruas chamadas de Block Partys ou festas de quarteirão. Quem iniciou estas festas foi o DJ jamaicano Kool Herc, que adaptou a cultura dos Sound Systems de Kingston, ligada ao reaggae music, para o contexto do Bronx, esta prática consistia na realização de festas onde os chamados selectas tocavam músicas instrumentais de reaggae e improvisavam cantando e manipulando os discos. Neste caso, Kool Herc introduziu esta prática em Nova York através dos ritmos do Funk, Soul, e ritmos latinos como o Boogaloo, Salsa entre outros. A partir do canto falado e rimado que o DJ improvisava, surgiu a arte e a figura do MC (Master of Cerimony) ou mestre de cerimônias, já que as performances do DJ foram ficando cada vez mais sofisticadas, exigindo uma técnica mais refinada na manipulação dos toca-discos. A partir deste canto improvisado do MC, de outras manifestações da poesia e da música norte-americana surgiu o que hoje chamamos de Rap Music, Rap é a sigla para Ritin and Poetry, ritmo e poesia. Segundo Contador e Ferreira (1997), Kool Herc tinha um grupo de MC’s – os Herculoids – e um grupo de dançarinos que sempre o acompanhavam, com o objetivo de animar ainda mais as festas que organizava. Estes dançarinos eram chamados de B.Boys ou break boys, pois haviam se especializado em dançar no break beat, ritmo criado por Kool Herc a partir do alongamento do break da música, ou parte da música onde existe uma quebra acentuada na batida através de síncopes, utilizando dois discos iguais. A palavra break também tinha uma conotação ligada ao fazer muito bem alguma coisa. A partir de meados dos anos setenta, com a participação de muitos imigrantes ou filhos de imigrantes advindos de países latino-americanos nas block parties, é criada uma linguagem da dança que passaria a ser chamada de breaking, e b.boy e b.girl passaram a ser as denominações do (a) praticante desta dança. As festas de quarteirão passaram a ser frequentadas também por grafiteiros, o graffiti, é o único elemento da cultura hip-hop que não se desenvolve nestas festas. Mas, a vinda dos grafiteiros para elas fez com que muitos MC’s, DJ’s e b.boys passassem a grafitar, e que os

grafiteiros passassem a se envolver com os demais elementos. Na verdade, no início da difusão da cultura hip-hop, era muito comum que uma pessoa dominasse mais de uma, ou às vezes estas quatro linguagens. Neste sentido, as linguagens do DJ, MC, breaking e graffiti se consolidaram como os quatro elementos do hip-hop. Os adeptos da Cultura Hip-Hop se organizam em crews (CONTADOR e FERREIRA, 1997 e CASTRO, 2007; 2013), coletivos onde os novatos são iniciados nas linguagens, no ethos do hip-hop e também passarão a ter um forte vínculo com os veteranos, com quem irão se reunir para atuar. O hip-hop nasce em um contexto onde as gangues eram uma realidade muito presente, as pessoas que frequentavam as block parties ou faziam parte ou conheciam os membros delas. Com o surgimento da Cultura, as pessoas utilizaram elementos de um ambiente violento para criar arte, neste sentido, as “famílias de rua” passaram, gradualmente, a ser formadas para dançar, pintar, cantar e tocar; os conflitos por território se tornaram batalhas de arte, e os valentões se tornaram personagens em rodas de dança. Muitos outros DJ’s seguiram Kool Herc na organização de festas de rua, e dentre estes destaca-se África Bambaataa, que teria sido membro de uma das gangues mais temidas do Bronx, os Black Spades. Bambaataa é considerado o pai espiritual da Cultura Hip-Hop, atributo que se concretizou na fundação da ONG Zulu Nation (CASTRO, 2007; 2013). Esta instituição, com adeptos de vários países – inclusive do Brasil – tem o objetivo de desenvolver e divulgar uma cultura de paz, baseados no diálogo intercultural e religioso. Para a Zulu Nation, o conhecimento é a chave para esta cultura de paz, por isso, África Bambaataa incentiva os adeptos da instituição ao estudo e diálogo. Bambaataa sintetizou o ethos do hip-hop nas palavras paz, amor, união e diversão, e também n positivo sobre o negativo. O fundador da Zulu Nation se tornou muito conhecido como criador do ritmo Electro Funk, o que fez dele um grande divulgador da cultura hip-hop. Nos seus primeiros dez anos de existência (CASTRO, 2007), o hip-hop era praticamente uma manifestação cultural dos jovens dos guetos de Nova York, mas a partir do início dos anos oitenta, com os primeiros discos de rap, o acesso de artistas do Graffiti às galerias de arte, videoclipes e aparições na TV o hip-hop se espalha pelos Estados Unidos, e com o lançamento de filmes como “Wild Style”, “Beat Street”, “Delivery Boys” e “Breaking” I e II torna-se um fenômeno mundial. É desta maneira que, entre 1983 e 1984 o hip-hop chega ao Brasil. De acordo com depoimentos de alguns dos primeiros hip-hopers brasileiros no documentário “Nos Tempos da São Bento” (2011), a cultura hip-hop e o breaking chegam ao Brasil através de videoclipes e dos já referidos filmes de cinema. Algumas outras modalidades de danças

urbanas chegaram no país na mesma época, e nos mesmos filmes, e por isso se pensava tratar-se de uma mesma dança, o break dance. Segundo o mesmos depoimentos, os bailes organizados pelas equipes de som como a Chic Show, Black Mad e Hot Gang também contribuíram bastante para a divulgação das músicas, além de serem um local para as pessoas praticarem a dança. Mas foi no largo da Estação São Bento do Metrô – ainda segundo o documentário “Nos Tempos da São Bento” – que o a cultura hip-hop pôde florescer com mais força, tornando-se um importante ponto de encontro para MCs, DJs, b.boys/b.girls e grafiteiros em São Paulo. Para Moassab (2011), o hip-hop brasileiro estabeleceu uma importante relação com movimentos sociais – principalmente o movimento negro – contribuindo para a valorização da população negra e dos habitantes das periferias das grandes cidades. Ainda segundo a autora, o hiphop no Brasil é um importante meio de comunicação contra-hegemônica, na medida em que sua produção simbólica vai na contramão da mídia oficial, que geralmente propaga representações estereotipadas e tendenciosas da população das periferias. Além de ter se tornado uma grande referência cultural principalmente nos bairros das periferias das grandes cidades, o hip-hop conquistou espaços em todas as camadas sociais tendo artistas do rap, breaking e graffiti com trabalho reconhecido dentro e fora do país. Eventos de breaking, principalmente competitivos, são muito comuns em todo o país e chegam a reunir milhares de pessoas para apreciar ou praticar a dança. Em São Paulo, é com o rap que a cultura hip-hop adentra os espaços educacionais, na gestão da prefeita Luíza Erundina (de 1989 a 1993), na implantação dos programas Rap nas Escolas e Rapensando a Educação (MOASSAB, 2011), que tinham como foco de atuação as escolas dos bairros de periferia de São Paulo. O breaking começa a ser utilizado como atividade educacional principalmente na Casa do Hip-Hop, em Diadema, por volta de 1998; e na Fundação CASA, sob coordenação da bailarina Marika Gidali, diretora do Ballet Stagiun, em 1999 com uma equipe de quatro educadores (CASTRO, 2013). Como já fora discutido em outros trabalhos (CASTRO: 2007; 2012; 2013), muitos jovens têm crescido em contato com esta manifestação cultural, que exerce um importante papel na sua construção identitária. Na verdade, ao se ater à história do hip-hop, desde seu surgimento nos guetos do Bronx, no início dos anos setenta do século passado em Nova York, até sua chegada e desenvolvimento no Brasil (CASTRO, 2007), percebe-se que ele tem promovido diálogos e reflexões sobre a vida e as expectativas de futuro de jovens segregados pela pobreza e/ou pelo racismo.

Gilroy (2012) propõe uma alternativa frente a abordagens da cultura popular negra baseadas no centralismo nacional e étnico com a concepção de Atlântico negro, unidade de análise de manifestações culturais diásporicas e sincréticas. Para o autor (GILROY, 2012), no enfrentamento da desterritorialização e violência promovida pelo terror racial, a população negra cria mecanismos culturais de reinvenção de suas tradições, apropriando-se de elementos da cultura ocidental e criando redes de solidariedade baseadas na consolação e celebração. Percebe-se que esta abordagem distancia-se de olhares essencialistas, evidenciando o caráter híbrido das tradições do Atlântico negro. Esta contracultura do Atlântico negro emerge como uma contra-narrativa do iluminismo, que não separa a vida da arte, a ética da estética, em arranjos culturais que se orientam em políticas de transubstanciação, isto é, que buscam a experiência do sublime e a utopia da libertação. A desconfiança para com o projeto moderno, que pregava a razão e a justiça e, por outro lado promovia o terror racial da plantation e depois a raciologia, faz com que as subjetividades se desenvolvam em um movimento de dupla consciência (GILROY, 2012), ou seja, uma relação ambivalente para com o projeto moderno. Também para Gilroy a música tem um papel fundamental nas tradições negras da diáspora, onde seus rituais propiciam experiências que contribuem para a construção de uma identidade, esta, entendida pelo autor como um sentido experiencial coerente – o que não quer dizer estável – do eu. Neste sentido, a identidade se dá a partir da atividade prática como a linguagem, gesto, significações corporais e desejos, estes mecanismos produzem um efeito imaginário de núcleo ou essência racial, ao agir sobre o corpo através de processos de identificação e reconhecimento. O hip-hop, para Gilroy (2012) surge a partir do encontro de culturas vernaculares afroamericanas e caribenhas, onde o breaking e técnicas musicais de sampling digital tiveram um papel importante no desenvolvimento de uma dialética de resgate e recombinação criadora de experiências estéticas especiais. Mesmo reconhecendo as contribuições do hip-hop para a autovaloração da comunidade negra da diáspora e na criação de redes de alteridade e solidariedade, o autor (GILROY, 2007) não deixa de criticar sua inserção em um mercado prapagador de esteriótipos de marginalidade e negritude, e seu conservadorismo misógino revolucionário, que passam muitas vezes desapercebidos por pesquisadores acadêmicos, apressados em mistificar e celebrar o suposto caráter revolucionário do hip-hop. Adiante, apresenta-se a concepção de identidade cultural segundo proposto por Stuart

Hall (2003; 2011), e suas contribuições para o entendimento da atuação de profissionais que transitam nos universos dos movimentos sociais, organizações não-governamentais e instituições socioeducativas de privação de liberdade. A CONCEPÇÃO DE IDENTIDADE EM HALL Hall (2011 p.34) enfatiza cinco avanços ocorridos nas ciências sociais e humanas, no período da segunda metade do século XX (definido como modernidade tardia) que contribuíram para o “descentramento final do sujeito cartesiano”, entendido como o sujeito moderno essencializado e racional. A saber: as tradições do pensamento marxista e especificamente as contribuições dadas a esta tradição por Louis Althusser; a descoberta do inconsciente por Freud e seus desdobramentos na teoria de Jacques Lacan; o trabalho do linguista estrutural Ferdinand de Saussure e sua leitura pós-estruturalista proposta por de Jacques Derrida; os estudos sobre a “genealogia do sujeito moderno” realizados por Michel Foucault; e finalmente, o impacto do feminismo, tanto como crítica teórica quanto como movimento social, borrando a separação do público e privado, historicizando e criticando conceitos até então naturalizados como sexo, gênero e família, e colocando na pauta das discussões teórica e política o trabalho doméstico, a divisão sexual do trabalho e a identidade de gênero. Este descentramento epistemológico descrito pelo autor (HALL, 2011) se dá dentro de um processo de globalização que promove a compressão do espaço/tempo, diminuindo as distâncias através de meios de transporte cada vez mais rápidos, o desenvolvimento de tecnologias de informação em rede cada vez mia velozes, o aumento no fluxo migratório e a mundialização da economia. Para Hall (2011; 2003) somente a partir desse descentramento do sujeito, pode-se discutir identidade na modernidade tardia, portanto, identidade é um conceito que funciona “sob rasura”, uma ideia que não pode ser pensada como antes, mas que sem ela, certas questões-chave não podem ser pensadas. Tem-se aqui uma concepção não-essencialista, mas estratégica e posicional, onde as identidades nunca se unificam mas são cada vez mais fragmentadas e fraturadas. As identidades estão sujeitas à historicização radical, em um constante processo de transformação, construídas de múltiplas maneiras através dos discursos, práticas e posições diferentes, cruzadas e/ou antagônicas. A identidade também é um projeto, não somente invoca uma gênese ou passado histórico como também é representação do devir, em um processo ligado à invenção das tradições, como um

mesmo que muda, ou seja, a identidade nasce da “narrativização do eu” (HALL, 2003 p. 17 e 18), na relação dialética de como o sujeito imagina-se no mundo e sua relação material e política com ele. Mas as identidades, em Hall (2003), só podem funcionar como pontos de identificação e adesão devido à sua capacidade de excluir, de produzir o abjeto pois, toda identidade tem uma demarcação, e neste sentido, a constituição de uma identidade é um ato de poder. No entanto, ao produzir a diferença, a identidade constituída é constantemente desestabilizada por ela, produzindo a necessidade de negociação, de posicionamento e estratégia que faz com que a identidade esteja sempre em processo. Aqui os processos simbólicos de subjetivação na relação com o Outro, com os discursos que nomeiam o lugar do sujeito na sociedade e a própria condição de sujeito social propriamente dita são fatores importantes a serem considerados em uma abordagem que não reduza o humano ao simples reflexo direto de suas condições materiais de existência, numa relação mecanicista de causa e efeito que, como já fora dito, anula a própria possibilidade de existência de um sujeito. Ao propor a concepção desta identidade/sutura como “articulação”, o autor evidencia o processo contínuo, dialético da “identificação” (HALL 2003; 2011). Este mesmo fenômeno – esta sutura entre as práticas discursivas de assujeitamento e os processos subjetivos que constituem um sujeito que pode “dizer-se” - que até agora foi pensado em termos de identidade, pode também, ser pensado em termos de identificação, na medida em que se toma como ponto de vista a ação do sujeito. A concepção de identidade encontrada na obra de Stuart Hall possibilita olhar, em um mesmo fenômeno, o processo subjetivo do sujeito e os processos sociais em que este sujeito está inserido. A partir da concepção de identidade de Hall, pretende-se analisar as representações que os educadores de hip-hop têm de si mesmos como profissionais e tecer aproximações aos sentidos subjetivos produzidos por eles sobre sua atuação como profissionais, levando em conta a complexidade de suas relações de trabalho e os conflitos que enfrentam. CONCLUSÃO A concepção não-essencialista, mas estratégica e posicional de identidade, como proposto por Hall (2003; 2011), situa-a como lugar de sutura entre as práticas discursivas de sujeição e os processos subjetivos que constituem um sujeito que pode “dizer-se”. Pode-se propor uma abordagem da identidade dos profissionais da educação não-formal, situando-os nos conflitos entre

a cultura hip-hop que os formaram, a política neoliberal das organizações não-governamentais e – e no caso desta discussão – as instituições socioeducativas de privação de liberdade – incluindo neste contexto os adolescentes institucionalizados atendidos pelos educadores. Além disso, distanciandose de abordagens mecanicistas e/ou essencialistas da identidade, pode-se evidenciar o movimento dos sujeitos em seus processos de subjetivação, suas filiações e representações de si e das coletividades em que se inserem.

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