Identidade e fronteiras religiosas no Alto Império Romano

June 3, 2017 | Autor: Gilvan Ventura | Categoria: Identities, Early Roman Empire, Religious borders
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Identidade e fronteiras religiosas no Al to Alto Império Romano

Coleção

Rumos da História

Gilvan Ventura da Silva Belchior Monteiro de Lima Neto Organizadores

Identidade e fronteiras religiosas no Al to Alto Império Romano

Coleção

Rumos da História

2011

 2011 NPIH Publicações Todos os direitos reservados. A reprodução de qualquer parte da obra, por qualquer meio, sem autorização da editora constitui violação da LDA 9610/98

Editor Gilvan Ventura da Silva Conselho Editorial Adriana Pereira Campos (Ufes) Antônia de Lourdes Colbari (Ufes) João Fragoso (UFRJ) Keila Grinberg (UNIRIO) Lucia Maria Paschoal Guimarães (UERJ) Manolo Garcia Florentino (UFRJ) Margarida Maria de Carvalho (UNESP/Franca) Norma Musco Mendes (UFRJ) Surama Conde Sá Pinto (UFFRJ) Wilberth Clayton F. Salgueiro (Ufes) Projeto gráfico Edivaldo Aragão Jr. Capa e editoração João Carlos Furlani

Identidade e fronteiras religiosas no Alto Império Romano / Gilvan Ventura da Silva; Belchior Monteiro de Lima Neto, organizadores. – Vitória: NPIH Publicações, 2011. 88 p. ; 20 cm. (Coleção Rumos da História) ISBN 978-85-98698-09-0 1. Identidade. 2. Fronteira. 3. Cultura. 4. Roma. I. Título.

A coleção Rumos da História é uma publicação do Programa de Pós-Graduação em História Social das Relações Políticas e do Núcleo de Pesquisa e Informação Histórica da Universidade Federal do Espírito Santo.

SUMÁRIO Apresentação Gilvan Ventura da Silva

7 O cristianismo para além das fronteiras da Palestina: a atuação de Paulo como “Apóstolo dos gentios”, em Corinto Simone Rezende Mendes

9 Civitates e hinterland no norte da África romano: o testemunho de Apuleio nas Metamorphoses Belchior Monteiro Lima Neto

21 A romanização e a absorção dos cultos orientais no Principado: expandindo as fronteiras do paganismo Hariadne da Penha Soares

39 Unidade na diversidade: diálogos e estranhamentos nos cristianismos do Oriente e do Ocidente (séc. II d. C.) Ludimila Caliman Campos

57 A defesa da identidade grecorromana com base na obra Alethes Logos, de Celso Carolline da Silva Soares

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APRESENTAÇÃO

A concepção segundo a qual o Império Romano deve ser apreendido como uma entidade suprarregional que, em virtude da atuação excepcional de uma cidade – no caso, Roma –, tenderia paulatinamente à homogeneidade mediante a difusão da cultura grecolatina, sofisticada o suficiente para impor a sua dinâmica e ritmo próprios às províncias, vem sendo, nos últimos anos, cada vez mais contestada, tanto em termos teóricos quanto em termos empíricos, jazendo agora no mais absoluto descrédito. De fato, para os pesquisadores do século XXI o caráter multifacetado, plural, heterogêneo do Império se afirma como uma realidade capaz de estimular projetos de investigação empenhados em compreender como, a partir das investidas de uma potência conquistadora que, num espaço de algumas gerações, consegue submeter um vasto conjunto de territórios bastante díspares entre si e, o que é mais surpreendente, conservá-lo unido por cerca de quinhentos anos, as identidades locais foram se adaptando e se reformulando a partir dos influxos provenientes dos núcleos de predomínio do grego e do latim. Ocorre, no entanto, que a ênfase na pluralidade e na heterogeneidade próprias da fase imperial traz consigo um desdobramento importante quando pensamos, não nos termos de uma sociedade romana, no singular, mas na diversidade dos grupos sociais disseminados pelas zonas urbanas e rurais do Império. Nesse sentido, é preciso considerar que, muito embora as autoridades romanas tenham sido hábeis o suficiente para manter o orbis romanorum coeso

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por muito tempo, amortecendo assim, na medida do possível, os pontos de atrito que uma realidade plural não poderia deixar de produzir e garantindo a perpetuação do próprio Império, isso não equivale a supor que o conflito tenha sido sempre contornado, controlado, administrado. Muito pelo contrário, o que observamos desde a formação do Império Romano, num momento em que, segundo certa corrente historiográfica, institui-se a Pax Romana, é a geração contínua de novos conflitos e/ou o agravamento de conflitos anteriores, de maneira que, para além de uma visão estática de um Império que se mantém uniforme no espaço circunscrito pelo limes, o que se consolida hoje é a visão de um Império marcado pela dinâmica das suas fronteiras socioculturais, um Império que se recria dentro de um jogo permanente de negociação identitária que encontra nas localidades provinciais o seu principal cenário. Dentre as circunstâncias que favoreceram a emergência do confronto entre os grupos sociais, podemos citar a concorrência de credos religiosos de orientação politeísta e monoteísta e o choque entre as populações “romanizadas” e aquelas tidas como avessas aos influxos da humanitas grecolatina, como os “ bárbaros” e os bandidos. Ambos os aspectos são enfocados pelos autores neste livro como uma contribuição ao debate acerca dos alcances e limites da assim denominada “romanização”. Gilvan Ventura da Silva

O CRISTIANISMO PARA ALÉM DAS FRONTEIRAS DA PALESTINA: A ATUAÇÃO DE PAULO COMO “APÓSTOLO DOS GENTIOS”, EM CORINTO Simone Rezende da Penha Mendes*

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cristianismo surge como mais uma dentre as várias tendências interpretativas da tradição judaica e, por isso, nesta primeira fase, deve ser entendido como mais uma seita ou ramificação do judaísmo, a exemplo dos judaísmos farisaico, saduceu e essênio. Desta forma, as palavras cristão e cristianismo poderiam ser tranquilamente substituídas por judeu-cristão e judaísmo cristão (Crossan, 2004, p. 38). No primeiro século de sua expansão, as terras que circundavam o Mediterrâneo, organizadas em províncias, estavam sob o domínio de Roma, que evitava a supressão das instituições locais existentes, preservando-se os costumes, as línguas e as religiões (Walker, 1983, p. 16-17). É nesse contexto de ampla diversidade cultural que o cristianismo se desenvolveu envolto em três ambientes religiosos fundamentais: o do judaísmo palestinense, o do judaísmo da Diáspora e o do paganismo greco-romano (Gomes, 1997, p. 141). Apesar das lacunas deixadas pelas fontes bíblicas em relação ao cristianismo da era apostólica (30-70) logo após a morte de Jesus, principalmente no que se refere à década de 30, é possível admitir a

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existência de algumas tendências distintas em seu próprio seio. A concepção cristã predominante no primeiro século pode ter sido a do “judeu-cristianismo moderado”, que dividiu espaço com a do “judeucristianismo rigorista” (Gomes, 1997, p. 153). Entretanto, nos interessa tratar aqui de uma concepção cristã específica: a do cristianismo paulino. Paulo, enquanto “Apóstolo dos Gentios”, é retratado por meio das fontes unilaterais cristãs como o grande responsável pela propagação do cristianismo além das fronteiras da Palestina, não somente no que concerne ao ponto de vista geográfico (por ter fundado e visitado igrejas ao longo do Oriente helenístico e do Ocidente Romano), mas também do ponto de vista étnico, por inaugurar a pregação, aos pagãos ou gentios, de um judeu-cristianismo desobrigado das observâncias rituais da Lei judaica. A pergunta que se impõe é como se deu de fato a implantação do cristianismo paulino em alguns pequenos centros ao redor do Mediterrâneo, caracterizados por um ambiente étnico e religioso tão diversificado? Na busca de uma resposta satisfatória à questão citada, poderíamos elaborar um estudo exaustivo e comparativo das comunidades que compõem o movimento paulino espalhadas pelas províncias da Galácia, Ásia, Macedônia e Acaia. De fato, nem todas as missões que sofreram influência direta da atividade missionária de Paulo foram fundadas por ele, algumas foram apenas assistidas, como é o caso de Roma. Dentre essas, poderíamos selecionar as de Tessalônica, Filipos, Roma e Corinto, por se tratarem de missões cujos relatos provêm de epístolas que não levantam maiores problemas quanto à sua autenticidade. Contudo, por hora, a åêêëÞäßá de Corinto constituirá nosso enfoque central devido à presença de conflitos suscitados, em grande parte, pelas diferenças étnicas e sociais sobre os quais Paulo dispensa maior atenção. Dessa forma, o objetivo deste ensaio é abordar a introdução do cristianismo paulino na comunidade greco-romana de Corinto, localizada na província da Acaia; como também, realizar uma breve análise da atuação de Paulo dentro dessa comunidade tão turbulenta na condição de apóstolo. A princípio é necessário definir quem era Paulo. De origem judaica, Paulo nasceu na cidade de Tarso, na Cilícia, provavelmente nos primeiros anos do século I. Seu nome hebraico era Saul e recebeu o cognome “Paulo” de seu pai, um cidadão romano (Simon; Benoit, 1987, p. 101). Tarso era uma cidade helênica da diáspora judaica,

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caracterizada por sua “filosofia e todos os ramos da formação universal”; nela, estava localizada a célebre escola estóica (Mannes, 2009). Quando adolescente, Paulo foi para Jerusalém frequentar um curso na expectativa de se tornar um rabino fariseu aos cuidados de Gamaliel, um ilustre doutor rabínico. Severo observante da lei mosaica, tornou-se um implacável perseguidor da seita cristã. Numa missão anticristã oficial, a caminho de Damasco – segundo conta o relato de Atos 9 –, Paulo teve uma visão de Cristo que o deixou cego, apenas até o momento em que o profeta Ananias lhe impôs as mãos, orando e consagrando a sua vida como um cristão. Posteriormente, Paulo se encontrou com os discípulos e empreendeu uma série de viagens missionárias. Ao que parece, segundo os relatos cristãos, ao pregar um cristianismo desapegado das observâncias rituais judaicas, enfrentou a animosidade de judeus e de setores pagãos. Visitou comunidades da Ásia, Frígia, Galácia, Macedônia e Grécia, reivindicando para si o título de “Apóstolo dos Gentios” (Simon; Benoit, 1987, p. 101-102; 105). A cronologia mais difundida acerca da chegada de Paulo na cidade de Corinto data por volta de 50, mas, segundo Tenney (2008, p. 299), a mais aceita seria no outono de 51. Em Corinto, Paulo fez contato com um casal de judeus cristãos – Priscila e Áquila – que havia sido expulso recentemente de Roma pelo decreto de Cláudio (49) e que, segundo o relato de Atos (18:1-3), acolheu a Paulo e trabalharam juntos no mesmo comércio de confecções de tendas. Para Hale (1986, p. 224), que embasa sua teoria a partir da narrativa de Atos 18, a menção de Gálio é um dos poucos itens históricos contidos no Novo Testamento capaz de assegurar um grau de certeza quanto à fixação da permanência de Paulo em Corinto nos anos 4951. Paulo teria ministrado por dezoito meses, juntamente com Silas e Timóteo, quando judeus descrentes aproveitaram a chegada do novo procônsul, Gálio, para levarem acusações contra Paulo. De fato, Gálio tornou-se procônsul da Acaia durante a vigésima sexta aclamação de Cláudio em 51. Se o relato de Lucas está correto ao afirmar que Paulo trabalhou em Corinto dezoito meses antes da vinda de Gálio e que – tendo Gálio rejeitado as acusações contra Paulo - ali permaneceu ainda por muitos dias (Atos 18:14-18), provavelmente sua partida teria ocorrido na primavera de 52. em viagem à Síria, na companhia de Priscila e Áquila até Éfeso. Durante sua estada em Éfeso, Paulo manteve relações por meio de cartas com as igrejas que fundara na

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Acaia, inclusive a de Corinto. A condição da missão cristã em Corinto no primeiro século só pode ser conhecida por intermédio das epístolas de Paulo endereçadas àquela comunidade, que correspondem a 1 e 2 Coríntios canônicas, inseridas no Novo Testamento. Seu manuscrito mais antigo existente emprega a língua grega conhecida como koinê. Foi escrita entre o período da expansão cristã – 30 a 60. (Tenney, 2008, p. 144). Não há outra fonte documental contemporânea ao relato paulino que mencione algo acerca dessa missão cristã e de seus conflitos. As cartas funcionavam como estratégias de influência dos apóstolos e seus colaboradores sobre as igrejas que implantavam durante a sua ausência. Durante o início do desenvolvimento de organização da igreja, a carta apostólica passa a substituir as discussões face a face, quando a viagem ou o encontro não são possíveis. O curioso é que essas correspondências se tornam verdadeiros “instrumentos usados intencionalmente para exercer a autoridade” dentro das ekklésias (Meeks, 1992, p. 175; 180). Os conflitos são de natureza diversa, mas em sua maioria parecem estar ligados diretamente a problemas sobre “autoridade” (Meeks, 1992, p. 180). As palavras autoridade e poder – e seus derivados – aparecem por inúmeras vezes nessas cartas. A exemplo, um dos meios de se obter poder na igreja de Corinto diz respeito à liderança das possíveis células. Os grupos paulinos se reuniam em casas particulares: em 1 Cor 1:16, Paulo recomenda a casa (oikia) de Estéfanas como as “primícias da Acaia”, onde os membros “se dedicaram ao serviço dos santos” (Meeks, 1009, p. 121). Em Atos, são mencionadas por várias vezes a conversão de alguém “com (toda) a sua casa”, como é o caso de Lídia (At 16,15), o carcereiro filipense (At 16:31-34) e Crispo, o chefe da sinagoga de Corinto (At 18:8). A adaptação desses grupos cristãos às residências particulares e sua relação com a igreja local parecem ter acarretado fortes tensões para líderes como Paulo, uma vez que a igreja estava dividida internamente por facções (1 Cor 1:10-16). Mas nosso intuito, nesse capítulo, é concentrar nossa análise apenas nos conflitos suscitados por problemas de natureza étnica, cultural e religiosa. Para compreendermos melhor os conflitos que motivaram o apóstolo a escrever as cartas com teor tão moralista e disciplinar, é necessário traçarmos um breve quadro do ambiente social da Corinto romana do primeiro século. Embora as narrativas bíblicas como Atos

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e as epístolas paulinas possam nos fornecer algumas pistas, outras fontes históricas nos darão uma visão mais completa sobre a fundação e a estrutura social dessa cidade. A antiga cidade grega de Corinto, situada entre um istmo estreito que liga o Peloponeso à Grécia continental, se caracterizava como uma cidade portuária de grande importância comercial devido à sua localização, o que lhe permitia controlar dois portos: o de Lecaion, no golfo de Corinto, e Cencreia, no golfo Saroniano. A Corinto grega foi destruída em 146 a.C. pelas tropas do general romano Lúcio Múmio, durante a campanha de Roma contra a Liga da Acaia (Meeks, 1992, p.80). A Corinto romana – da qual tratamos aqui – foi refundada por Júlio César como uma colônia romana convencional por volta de 44 a.C., transformando-se na capital política da província senatorial da Acaia (Walters, 2005, p. 401). A nova cidade foi reconstruída no mesmo sítio da cidade antiga outrora destruída, reutilizando-se algumas estruturas que se mantiveram intactas – como, por exemplo, o teatro, os Santuários de Démeter, Poseidon e Afrodite. É provável que a Colonia Laus Julia Corinthiensis tenha sido colonizada por 12.000 a 16.000 colonos, sendo parte destes, provenientes de outras cidades do Oriente grego – alguns detinham a cidadania romana, outros não (Walters, 2005, p. 402-403). Já entre os colonos enviados por César, além de veteranos do exército, havia um grande número de pobres urbanos de Roma, metade deles na condição de escravos libertos (Horsley, 2004, p. 238). Por sua localização geográfica, o comércio também atraiu marinheiros, comerciantes, banqueiros e povos de todo Mediterrâneo (Tenney, 2008, p. 298). A diversidade étnica e cultural da cidade pode auxiliar na identificação da composição social dos membros e no porquê de seus conflitos internos. Walters (2005, p. 399; 416) sugere que uma ambiguidade na identidade religiosa da cidade, provocada pela presença de decuriões e magistrados de origem grega com menos probabilidade de policiar as associações religiosas privadas deixou os indivíduos e grupos mais livres para definirem suas próprias identidades religiosas. Com isso, os cristãos coríntios se sentiram muito à vontade para frequentar as ekklésiae e, ao mesmo tempo, os jantares pagãos, onde lhes era servida a carne consagrada aos ídolos. Se tivessem entendido que sua conversão ao cristianismo implicaria um

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fim a esses convites suscitados por seu status e pela rede de relações sociais que os ligavam aos estratos pagãos, certamente o resultado seria uma comunidade cristã menos diversificada; isso ajuda a compreender por que pessoas de diferentes estratos sociais, diferentes níveis de compromisso e variados tipos de fidelidade – somado, ainda, à desobrigação das observâncias da Lei judaica defendida por Paulo – identificaram-se, em certa medida, com aquela igreja. A falta de conflitos externos entre a comunidade cristã em Corinto e as autoridades responsáveis por fiscalizar as associações religiosas privadas pode ter resultado numa fraca identidade grupal cristã. A missão paulina em Corinto pode ser caracterizada como um grupo de fronteiras instáveis, uma vez que não havia pressão externa suficiente para reforçá-las. O próprio apóstolo Paulo relata, em sua carta aos Tessalonicenses, as perseguições sofridas pelos cristãos (Ts 3:2-5), enquanto na carta aos Coríntios não faz menção sequer a nenhum tipo de conflito externo (Walter, 2005, p. 399; 416). É importante observar que a composição da comunidade cristã coríntia agregava convertidos de procedência judaica, grega e muito provavelmente romana. De acordo com a narrativa de Atos 18: 8, Crispo (chefe da sinagoga) se converteu juntamente com toda sua “casa”, e também muitos dos “coríntios”, ouvindo a Paulo, creram e foram batizados. Segundo o relato paulino da primeira carta, a igreja estava dividida internamente em facções (1 Cor 1:10-16), e outros pregadores, com concepções cristãs diferentes das de Paulo, (2 Cor 11:4-6; 12-15), lograram entrar na comunidade, reforçando a divisão entre os membros. Paulo não “denuncia nominalmente” os iniciadores deste movimento de divisão (Simon; Benoit, 1987, p. 106). No entanto, dentre os grupos prescritos na carta, os quais aparecem incitando uma oposição à autoridade de Paulo como apóstolo, figuram judeus (2 Cor 11:21-23) e gregos (1 Cor 1:22) convertidos. Seria um erro considerar Paulo como o único expoente da primeira expansão cristã e que a igreja dos gentios tenha sido moldada inteiramente à sua imagem, bem como admitir que não existiram outras interpretações do cristianismo distintas da visão deste apóstolo (Simon & Benoit, 1987, p. 101). De fato, em meio a diversas culturas, o cristianismo – ainda na categoria de seita judaica - surge atrelado a um intenso processo de mudanças sociais: a conversão representava a necessidade de alterar as atitudes em relação ao próprio indivíduo, à natureza e a

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Deus, conferindo um novo sentido de obrigação social e política (Siqueira, 2003). Um dos principais problemas que preocupavam Paulo era o modo como os pagãos convertidos ao novo Israel de Deus levariam suas vidas durante o período indefinido que antecederia a parousia (a vinda de Cristo). Estes gentios convertidos deveriam diferir de seus vizinhos em seu modo de vida no que diz respeito às práticas religiosas, sexuais e, também, às questões morais. Numa cidade portuária grega como a de Corinto, com gritantes diferenças entre ricos e pobres, senhores e escravos, homens e mulheres, os conflitos da comunidade haviam eclodido sob a forma de antagonismos, uma vez que as fronteiras de identidade grupal cristã se encontravam instáveis. Como acentua Peter Brown (1990, p. 54): “a igreja em Corinto era uma “mixórdia sociológica”. Como resultado, observa-se, então, que o choque de elementos institucionais e hábitos já consolidados entre as culturas de origem – sobretudo judaica e greco-romana – que conviviam na ekklçsia era inevitável. Os comportamentos decorrentes deste choque podem ser verificados, por exemplo, nos casos em que Paulo admoesta as mulheres a usarem o véu durante as cerimônias e as solteiras a manterem-se castas, a fim de que não sejam confundidas com as mulheres pagãs. A recusa por parte de algumas mulheres em usar o véu durante as sessões solenes em que profetas e “profetisas” oravam e se dirigiam aos fiéis aparece como um problema em relação à conduta cristã feminina no discurso paulino. O importante era não serem confundidas com as sacerdotisas de Afrodite, que, com um penteado de tranças ou a cabeça raspada, ofereciam seu sacrifício à deusa se prostituindo no templo (Hale, 1986, p. 230). Ao que tudo indica, algumas dessas mulheres se converteram ao cristianismo e insistiam em frequentar as sessões cristãs com esses penteados ou com os cabelos curtos, os quais denunciavam que aquela mulher já havia servido no templo de Afrodite. Para Paulo era fundamental não ser confundido com pagãos por meio das práticas sexuais, pelos banquetes realizados com carnes sacrificiais, pela procura de tribunal pagão para resolver questões entre os próprios crentes e, sobretudo, no que tange às práticas ou rituais do culto pagão (Silva, 2009). E é justamente em meio a essa preocupação em definir os limites da identidade cristã, que Paulo lança mão de uma representação cristã, ou seja, acaba criando ou reforçando um estereótipo para o cristão coríntio. Percebe-se que Pau-

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lo desempenha um papel capital na definição de uma identidade cristã, ao prescrever em seu discurso aos coríntios os limites comportamentais de seus prosélitos. O que podemos extrair quanto a essa preocupação de Paulo em definir, nas cartas aos coríntios, os limites comportamentais dos cristãos em relação aos pagãos, nos remete a pensar como são criadas as representações sociais segundo a concepção de Chartier (1998, p. 23). Num ambiente caracterizado por fronteiras étnicas, sociais e religiosas que, para a consolidação de um grupo cuja identidade (cristã) precisava ser configurada – ou reconfigurada – na visão do apóstolo, a realidade passa a ser construída ou modelada pelos diferentes grupos sociais por meio do trabalho de classificações e delimitações de identidades a eles pertinentes. Isto implica outra questão: a existência do grupo, da classe ou da comunidade como identidades são legitimadas e perpetuadas pelas formas institucionalizadas de representantes – “instâncias coletivas ou pessoas singulares” (Chartier, 1988, p. 23). Não podemos analisar essas comunidades cristãs sem avaliarmos a condição de Paulo enquanto apóstolo em meio a um grupo religioso cujas bases institucionais ainda não estão bem definidas. É bem verdade que, se tratando de uma relação de forças linguísticas – como é caso desta análise –, o peso dos diferentes agentes não depende apenas de suas competências lingüísticas, mas sim de seu capital simbólico, ou seja, do reconhecimento, institucionalizado ou não, que recebem de um grupo; entretanto, quando falamos da eficácia de atos de instituição ou atos autorizados devemos admitir que tal eficácia é “inseparável da existência de uma instituição capaz de definir as condições (em matéria de agente, de lugar ou de momento etc.) a serem cumpridas para que a magia das palavras possa operar” (Bourdieu, 2008, p. 59-60). A nosso ver, Paulo se apresenta aos coríntios como apóstolo: a palavra de origem grega que transliteramos como “apóstolo” significava inicialmente agente ou enviado, uma espécie de embaixador ou delegado que surge após a morte de Jesus como uma figura de grande autoridade, se não a maior dentro do cristianismo primitivo. Juntamente com os Doze (aqueles que foram discípulos de Jesus e andaram com ele ainda em vida), o apóstolo já é papel institucionalizado nesta fase inicial da religião cristã (Meeks, 1992, p. 199; 206). Um discurso enquanto ato de instituição não pode existir independente da

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instituição a qual lhe confere a razão de ser. Uma ordem ou uma palavra só pode operar quando detém a seu favor a ordem das coisas, a sua realização deriva de todas as relações de ordem que dão sentido a uma ordem social. No mais, para que a linguagem de um agente seja recebida da forma como ele a reivindica, é necessário que as condições sociais também lhe sejam favoráveis (Bourdieu, 2008, p. 60). Nas correspondências de Corinto, Paulo empreende um grande esforço para defender e justificar seu ministério por intermédio de um rebuscado discurso; certamente, determinados grupos questionavam sua autoridade enquanto apóstolo. Conclui-se disto, certamente, que os membros coríntios não a interpretavam como tal e isto gerava um desconforto para Paulo enquanto “fundador” da igreja, outro termo que também é bastante enfatizado por ele na primeira carta. John Schutz concebe que a autoridade é a interpretação do poder (Meeks, 1992, p. 187): Paulo tinha a sua interpretação de poder, se considerava um apóstolo. Mas será que os cristãos coríntios compartilhavam da mesma interpretação? O que propiciou as disputas de poder e a rejeição – por parte de alguns – à autoridade paulina? É admissível que numa comunidade cristã formada por prosélitos judeus, gregos e romanos, as diferenças sócio-culturais dos membros coríntios tenham resultado num choque entre elementos institucionais e hábitos já consolidados em virtude das suas culturas de origem. Em resposta a uma carta dos próprios coríntios, Paulo é solicitado a esclarecer sobre os limites do comportamento cristão (1 Cor 1:11). Por outro lado, um grau de institucionalização incipiente pode ter tornado o clima propício à eclosão de conflitos por poder e autoridade, como vemos no caso de Paulo que, ao intervir na comunidade de Corinto valendo-se da função social de apóstolo de Cristo, tem sua autoridade contestada por alguns membros da ekklésia. O livro de Atos e as epístolas do corpus paulino revelam o papel capital de Paulo na expansão do cristianismo no mundo mediterrâneo e não é nossa intenção minimizar este papel. Mas é preciso ter muita cautela ao interpretar as narrativas bíblicas como fontes históricas no exercício de reconstrução do cristianismo em sua fase primitiva. A transformação de Paulo, por parte da escola paulina, na figura de um apóstolo universal legitimada pela Grande Igreja na época subapostólica pode funcionar como uma armadilha, impedindo que se o enxergue tão somente como um “fundador de algumas igrejas

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locais” naquele momento (Gomes, 1997, p. 154). Da mesma forma, seria um tanto imprudente atribuirmos ao Paulo do I século a mesma importância teológica ou histórica que lhe foi atribuída no século XVI. Como bem coloca Crossan (2004, p. 28): “essa importância mais tardia muitas vezes bloqueia nossa capacidade de avaliar seu significado original”. Nossa intenção foi apresentar o cristianismo paulino por meio de uma perspectiva apostólica (30-70), ou seja, como Paulo era visto dentro de seu tempo. Sobretudo, quisemos retratar o ambiente social e os tipos de conflitos que caracterizam o cristianismo paulino em Corinto, uma cidade grega que, naquele período, obedecia ao modelo de uma típica colônia romana com toda diversidade étnica, cultural e religiosa que uma cidade cosmopolita às margens do Mediterrâneo poderia reunir. Referências Documentação primária impressa A BÍBLIA DE JERUSALÉM. São Paulo: Paulus, 2006. Obras de apoio BOURDIEU, P. A economia das trocas lingüísticas: o que falar quer dizer. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2008. BROWN, P. Corpo e sociedade: o homem, a mulher e a renúncia sexual no início do cristianismo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1990. CHARTIER, R. A história cultural: entre práticas e representações. Rio de Janeiro: Ed. Bertrand Brasil, 1988. CROSSAN, J. D. O nascimento do cristianismo: o que aconteceu nos anos que se seguiram à execução de Jesus. São Paulo: Paulinas, 2004. GOMES, F. J. S. As comunidades cristãs da época apostólica. Phoînix, Rio de Janeiro, n. 3, p. 139-156, 1997. HALE, B. D. Introdução ao estudo do Novo Testamento. Rio de

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Notas * Graduada em História e mestranda pelo PPGHis/Ufes sob orientação do prof. Dr. Gilvan Ventura da Silva.

CIVITATES E HINTERLAND NO NORTE DA ÁFRICA ROMANO: O TESTEMUNHO DE APULEIO NAS METAMORPHOSES Belchior Monteiro Lima Neto*

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ste capítulo tem como intuito principal analisar a configuração espacial do norte da África romano, observando o modo como se deu o domínio geográfico na região. Aqui, tentaremos demonstrar uma realidade de oposição entre dois ambientes bastante diversos: de um lado, o das diversas civitates enriquecidas com o comércio de cereais, vinho e azeite e dominadas por uma elite citadina que comungava dos valores da humanitas; do outro, o de uma hinterland ocupada por diversas tribos autóctones semi-nômades expulsas pelos conquistadores para desertos, estepes e montanhas e que, em grande medida, escapava ao domínio administrativo e militar romanos.1 A partir destas constatações, poderemos fazer certas conjecturas fundamentais para o prosseguimento de nossa pesquisa.2 A primeira delas é a da relação entre estas regiões ermas e externas ao jugo romano – incluindo-se aí a própria população que as habita – e a proliferação dos bandos de salteadores. Outra questão levantada por nós é a da validade das noções historiograficamente consagradas de pax romana e de onipotência do Estado romano no interior do limes imperial, que serão aqui relativizadas e postas em xeque.3

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O início da dominação romana no norte da África remonta ao II século a.C., mais precisamente ao ano de 146 a.C., data reconhecida como do término da Terceira Guerra Púnica.4 Como resultado deste conflito, é organizada por Roma a chamada provincia Africa, que também fora designada pelo epíteto de Proconsularis, já que sua administração ficava a cargo de um procônsul diretamente subordinado ao Senado romano.5 Posteriormente, já no século I a.C., Caio Júlio César criaria a Africa Nova, após sua campanha contra os pompeanos e os norte-africanos liderados pelo rei númida Juba I. A partir desta época, a Africa Proconsularis ficaria dividida em Africa Vetus – formada pelo antigo território conquistado aos cartagineses – e Africa Nova – cujas terras incluíam grande parte do antigo reino da Numídia (Raven, 1993, p. 54).6 Para melhor administrar e controlar as terras conquistadas aos númidas, o imperador Calígula (37-41), por volta do ano 39, efetuou uma importante reorganização político-militar na Africa Proconsularis. Criou-se, desta forma, o território militar da Numídia – posteriormente elevado à condição de província entre os anos de 198 e 199 –, que ficaria sob a autoridade do legado encarregado pelo comando da III Legião Augusta.7 Podemos, tomando como base autores como Susan Raven (1993), A. Mahjoubi (1985) e Antonio Chausa (1994), interpretar tais medidas como uma consequência das dificuldades de se assegurar a paz e a ordem pública na região, o que a revolta de Tacfarinas, ocorrida durante os anos de 17 a 25, nos demonstra bastante claramente.8 Dando continuidade à sua expansão em terras norte-africanas, o Império Romano inicia uma escalada rumo aos territórios a oeste da Africa Proconsular, sobre a região conhecida como Mauritânia. Até por volta do ano de 40, o reino da Mauritânia existira sob uma espécie de protetorado, no qual seus reis eram elevados ao poder sob a concordância e a anuência dos imperadores romanos.9 As razões para a ocorrência deste fato nos são desconhecidas, mas poderíamos supor, em consonância com Mahjoubi (1985), que a administração direta das terras mauritanas fosse ainda prematura devido ao seu nível insignificante de urbanização e de romanização, tornando-se ainda necessária a intervenção de chefes locais.10 Doravante, em 42, o imperador Cláudio (41-54) decidiu criar as duas províncias da Mauritânia, a Cesariana a leste, e a Tingitana a oeste. Como a Numídia, as duas novas províncias ficariam sob a autoridade direta de legados

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imperiais, na maioria das vezes procuradores equestres, um residindo em Iol-Cesaréia e o outro em Volubilis, de onde comandavam as tropas auxiliares e exerciam poderes civis e militares. Ao crermos nos acontecimentos narrados no parágrafo anterior, podemos conjecturar, como feito acima em relação à Numídia, que o fato de as duas províncias mauritanas serem governadas por legados imperiais no comando de tropas auxiliares nos indica que esta região era acossada por constante instabilidade, estando a ordem pública romana em ininterrupta ameaça. Se tomarmos como referência o artigo de Enrique Gozalves Gravioto (2002), Tumultos y resistencia indígena en Mauretania Tingitana, podemos observar uma realidade de distúrbios entre uma população romana e/ou romanizada e as diversas tribos semi-nômades que habitavam o interior da província.11 Com a anexação das duas Mauritânias sob a administração direta de Roma, o domínio imperial no norte da África se estabeleceria de forma definitiva, e as fronteiras a oeste e ao sul da Africa Proconsularis não mais sofreriam mudanças radicais. A região, desta forma, fora dividida no período do Principado em quatro províncias, como demonstrado no mapa abaixo: a África proconsular – subdividia em Africa Vetus e Nova –, a Numídia, a Mauritânia Cesariana e a Mauritânia Tingitana.

Figura 1 – Mapa das províncias romanas no Norte da África no final do II século (Mahjoubi, 1985, p. 474).

Como podemos observar no mapa acima, os domínios romanos no continente africano – fora o Egito12 e a Cirenaica13, que constituíam casos à parte – se limitavam a uma estreita faixa ao norte, entre o litoral do Mar Mediterrâneo e o deserto do Saara. Próximo às franjas do deserto, onde a agricultura era quase impraticável, se lo-

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calizava o limes norte-africano, designado pela historiografia especializada de fossatum africae. Tal fronteira, na realidade, não era uma linha ininterrupta de separação e defesa entre o mundo romano e o “bárbaro” exterior, mas, ao invés disso, se caracterizava como uma região de contato entre diferentes culturas.14 De fato, o fossatum africae era formado por uma linha descontínua de fortes, estradas, valas, trincheiras e muros, que dificilmente se poderia interpretar como um limes de separação e defesa contra as ameaças externas.15 Poderíamos concebê-lo, de acordo com David Cherry (2005), como uma rede complexa de controle, administração e taxação dos movimentos das tribos semi-nômades que habitavam a região meridional das províncias romanas no norte da África e que sazonalmente atravessavam a fronteira à procura de pastos que fossem suficientemente abundantes aos seus rebanhos. O domínio romano sobre o norte da África, como regra geral para a maioria das regiões do orbis romanorum, se baseava num bem consolidado relacionamento entre o governo central, com sede em Roma, e as diversas elites citadinas locais. O grande pilar de sustentação do imperium romanum se constituía a partir de uma intrincada rede de alianças entre um centro acumulador de riquezas e de poder e uma aristocracia municipal periférica enriquecida e bem consolidada em seus privilégios e status por meio das benesses imperiais.16 Tal característica é a que explica a importância das civitates no interior do Império Romano, e nos demonstra a relevância de se analisar as diversas cidades norte-africanas no período alto-imperial. As civitates do norte da África, grosso modo, compunham um emaranhado de cidades de origens diversas. Algumas delas reportavam a sua fundação ao passado púnico, principalmente aquelas localizadas na costa mediterrânea, tais como Cartago e Leptis Magna, as duas maiores cidades da região. Outras, como Volubilis, Siga, Iol Caesarea, Cirta, Dougga e Zama, eram antigas capitais tribais, posteriormente romanizadas e incorporadas ao Império. Havia ainda as diversas colônias romanas, a maioria delas contando com veteranos do exército e imigrantes italianos, como foi o caso de Madaura, Diana Veteranorum e Timgad.17 Por fim, temos que ressaltar também as numerosas pequenas cidades que se disseminavam pelo interior norte-africano, muitas delas formadas a partir de vilas e aldeias cuja prosperidade dos mercados locais permitiu a sua elevação ao status de civitas (Raven, 1993, p. 100-101).

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A maioria das cidades norte-africanas era de porte médio ou pequeno e possuía uma população bastante reduzida e escassa, que em sua grande parte não ultrapassava a casa das 20 mil pessoas. Provavelmente, somente Cartago possuísse mais do que 100 mil habitantes, e Leptis Magna, a segunda maior aglomeração urbana provincial, chegara no máximo a 80 mil pessoas no tempo da dominação romana. Em Iol Cesareia, na Mauritânia Cesareana, podemos estipular, com dados referentes à capacidade de seu aqueduto principal, um número próximo a 40 mil residentes. Calcula-se, a partir do tamanho da área ocupada pelas civitates, que pelo menos mais uma dúzia de cidades teria entre 30 e 40 mil habitantes, sendo incluída nesta lista Hadrumentum, Útica e Hippo Regius na Africa Proconsularis, Volubilis na Mauritânia Tingitana e Cirta na Numídia (Raven, 1993, p. 103). Esta ampla gama de civitates fora, ademais, interligada por uma rede concatenada de estradas que cortavam o norte da África no sentido norte/sul e leste/oeste. Em grande medida, estas vias tinham propósitos militares bastante claros, possibilitando ao exército se locomover no interior das províncias norte-africanas e fazer uma ligação entre os diversos postos militares espalhados pela região. Havia, por exemplo, uma rede de estradas que saía de Theveste, onde a III Legião Augusta estivera aquartelada no I século, e que se conectava com as cidades de Cartago, Capsa e Hippo Regius na costa mediterrânea, seguindo em direção oeste até os postos militares localizados nas províncias mauritanas (Raven, 1993, p. 68).

Figura 2a – Principais civitates norte-africanas no período de Augusto (Macmullen, 2000, p. 32-33).

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Figura 2b – Principais civitates norte-africanas no período de Augusto (Macmullen, 2000, p. 32-33).

Podemos observar, ao tomarmos em conta os dados apresentados pelo mapa acima, a existência de uma ampla rede urbana no norte da África. Susan Raven (1993) e A. Mahjoubi (1985) nos falam num número de aproximadamente seiscentas civitates para a região, quantidade significativa mesmo se levarmos em conta que a grande maioria delas era de pequeno porte. Das províncias norteafricanas romanas, a mais fortemente urbanizada era, sem dúvida, a Africa Proconsularis, que provavelmente teria chegado a uma densidade populacional de cerca de 100 habitantes por quilômetro quadrado, fato que certamente contrastava com a ocorrência de regiões ainda muito pouco urbanizadas, como as províncias da Mauritânia Cesariana e Tingitana (Mahjoubi, 1985, p. 490). A cidade antiga, contudo, não era, como as suas homônimas modernas, apenas aglomerações de casas num perímetro urbano, mas

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constituía-se também de uma área rural que lhe completava.18 Poderíamos conceber a civitas – o que comumente traduzimos por cidade – como uma comunidade assentada num espaço urbano (urbs) e rural (chora), a qual é independente e soberana em relação aos seus bens e indivíduos e cimentada na religião e nas leis (Mendes, 2001, p. 29). A civitas, enquanto o conjunto dos cidadãos, pode muitas vezes ser traduzida por civis, entendida como cidadania, cidade, Estado (Funari, 2003, p. 43). O núcleo urbano das civitates norte-africanas, propriamente dito, era habitado, em sua grande parte, por aqueles que podiam se dar o luxo de viver longe de um solo cultivável, isto é, por uma elite que, por intermédio de sua riqueza, poderia usufruir de todas as comodidades citadinas, tais como teatros, anfiteatros, bibliotecas e termas (Duncan-Jones, 1963, p. 85). No norte da África ao tempo da dominação romana, a maioria da população vivia da exploração da terra, ocupando a chamada chora citadina. Alguns deles possuíam um pequeno lote para cultivar, mas a maioria trabalhava nas terras de grandes ou médios proprietários rurais, geralmente membros da aristocracia municipal. Habitavam aldeias formadas por cabanas de palha – denominadas de mapalia – e não possuíam a cidadania das cidades às quais estavam atrelados (Raven, 1993, p. 82). Além das terras pertencentes ao território municipal, cuja posse garantia o enriquecimento e a manutenção do status das elites locais, existiam também outras formas de propriedade fundiária no norte da África. A historiografia (Mahjoubi, 1985; Raven, 1993; Garnsey, 2006; Bustamante, 2002) comumente as designa como saltus e latifundia, ou seja, grandes propriedades rurais fora da chora citadina pertencentes a membros proeminentes da ordem senatorial e equestre em Roma.19 A diferença entre as duas residia no fato de a primeira ter como dono o próprio imperador e a segunda pertencer à elite da Capital imperial. Ambas, entretanto, são provenientes de um processo de expropriação de terras – principalmente dos membros das diversas tribos que habitavam o interior norte-africano – proporcionado pela própria expansão do domínio romano na região. Vista em seu conjunto, a expansão romana no Norte da África teve algumas consequências paradoxais para os habitantes locais. Se por um lado, as elites das cidades já existentes ou daquelas criadas pelos conquistadores se beneficiavam com as suas alianças políticomilitares com o centro dominante, por outro, toda uma população semi-

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nômade que possuía como modo de vida o pastoreio se viu privada, na maioria dos casos, de suas terras.20 As diversas tribos foram expulsas para as regiões estépicas, montanhosas ou confinadas em pequenos territórios – geralmente denominados de reservas indígenas – municiados por colônias de veteranos (Chausa, 1994).21 A região, grosso modo, poderia ser dividida espacialmente em duas realidades bastante contrastantes: uma citadina, vivenciada por uma aristocracia municipal enriquecida com as suas relações privilegiadas com o centro do poder; e outra relacionada a uma hinterland na qual os seus habitantes tiveram perdas irreparáveis com o advento do predomínio romano, oferecendo, por conta disto, uma resistência constante a este jugo. Vários autores confirmam estas nossas afirmações com observações bastante enfáticas em relação a esta dicotomia civitas/ hinterland no norte da África. David Cherry (2005), Susan Raven (1993), A. Mahjoubi (1985), Antonio Chausa (1994) e Corassim (1985) são unânimes em nos mostrar a existência de duas Áfricas: a dos romanos – isto é, das elites romanas ou romanizadas – e a das tribos autóctones pouco ou não tocadas pela romanização.22

Figura 3 – Divisão espacial das principais tribos norte-africanas (Raven, 1993, p. xxxix).

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Ao analisarmos o mapa acima em contraponto com a figura 2, podemos inferir algumas interpretações acerca do modo como se configurava esta dicotomia civitas/hinterland. Podemos observar a existência de ilhas de romanidade, representadas pelos diversos núcleos urbanos locais, rodeadas por uma vasta região interior habitada por diversas tribos seminômades. Na realidade, fora do mundo das cidades, que compreendia o território diretamente controlado pelo imperium romanum, havia localidades que estavam quase que completamente fora do alcance do poderio romano.23 Todo esse território extra-citadino formava o que podemos designar como hinterland norte-africana. Para entendermos como se caracterizava a lógica territorial do domínio romano sobre o norte da África, e quiçá sobre as outras regiões de abrangência de seu Império, apropriamo-nos do conceito de territorium cunhado por Vincent Clément (apud Mendes, 2004, p. 261). A partir dele, podemos pensar o Império romano como um espaço delimitado sobre o qual se exerce o poder de uma entidade política, administrativa e judiciária, isto é, como o espaço geográfico subjugado à dominação e à autoridade de Roma. Se conceituarmos a hinterland norte-africana como uma região avessa ao controle romano, mesmo estando no interior de seu limes, podemos concluir que tal território se encontraria fora da órbita daquilo que se convencionou denominar de imperium romanum. Essas observações nos fazem criticar a própria noção comumente aceita de onipotência romana no interior do limes imperial. Uma miragem de poder sem limites do Estado romano que tem que ser relativizada, já que não correspondia plenamente à realidade. Na verdade, dentro do orbis romanorum muitos territórios escapavam por completo do controle administrativo romano. De fato, sob o imenso pano de fundo da malha urbana imperial, havia localidades que se constituíam como autênticas no man’s lands (Silva, 2002, p. 172). Eram regiões, em muitos casos, de difícil acesso para o Estado, onde a presença das forças estatais era bastante ineficaz, constituindo barreiras naturais para a extensão do poder imperial e correspondendo principalmente aos pântanos, às florestas, aos desertos e às cadeias montanhosas.24 Nesse ponto, podemos incluir na discussão até aqui efetuada sobre a hinterland norte-africana a hipótese de Brent Shaw (1984; 1991) sobre a endemia de banditismo no Império Romano. Para este

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autor, haveria uma relação direta entre a ineficácia do Estado na Antiguidade em estabelecer a sua autoridade em certas regiões ermas e a ocorrência do banditismo nestas mesmas localidades. Seu argumento pode ser resumidamente definido da seguinte forma: onde o Estado não é forte o suficiente para fincar o seu domínio, ele abre espaço para a existência de grupos paramilitares não institucionalizados – comumente denominados bandidos –, que ocupam este vácuo de poder. Aproximando a leitura das Metamorphoses de Apuleio de Madaura – fonte primária de nossa pesquisa de mestrado ora em andamento – ao debate tratado acima, poderemos observar a descrição de um grupo de bandidos errantes habitando uma hinterland sombria e hostil.25 A própria descrição do local de esconderijo dos latrones confirma o que fora dito, pois o nosso autor o descreve como “um monte temeroso, sombrio de folhas silvestres e extremamente alto. Por suas oblíquas ladeiras, por onde era cercado de escabrosíssimos rochedos, era por isso inacessível” (Metamorphoses, IV, VI).26 Os bandidos nas Metamorphoses são representados como indivíduos outsiders às civitates, pertencentes a um interior belicoso e bárbaro.27 Eles são vistos como um perigo constante à ordem pública das cidades, como uma ameaça que a qualquer momento poderia tomar de assalto a tranquilidade citadina. Numa passagem, Lúcio, metamorfoseado em asno, fornece-nos o relato de um ataque de bandidos à casa de um rico cidadão, no qual podemos ver o quão inesperadas e aterrorizantes eram as seus razias: “este bando armado, cercando as casas e discorrendo por toda a parte, resiste aos socorros que chegam de um e de outro lado. Todos providos de espadas e de tochas, iluminam a noite, e o fogo e as espadas brilham como o sol nascendo” (Metamorphoses, III, V). Ao se observar alguns outros excertos da obra de Apuleio, fica patente uma oposição conflituosa bastante clara entre um mundo citadino habitado por uma aristocracia municipal rica e opulenta e uma região extramuros hostil, ao ponto que “de medo de ladrões, nem assentos nem móveis suficientes podemos ter” (Metamorphoses, I, XXIII). O nosso autor nos descreve uma hinterland avessa ao domínio imperial, uma localidade à mercê dos bandos de salteadores e onde a lei e a ordem romanas pouco se manifestam. O perigo de se viajar pelas estradas norte-africanas e de se aventurar num ambiente

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exterior às civitates é uma boa medida disto: “O que? Você não sabe que as estradas estão infestadas com bandidos? Você quer iniciar viagem a esta hora da noite?” (Metamorphoses, I, XV). Se aliarmos a leitura de nossa documentação primária, que é bastante pródiga em relatar casos de ocorrência de banditismo, à tese defendida acima por Brent Shaw e à insistente afirmação de alguns autores especializados no Norte da África romano – tais como David Cherry (2005), Susan Raven (1993), A. Mahjoubi (1985), Antonio Chausa (1994), Corassin (1985), Gozalves Gravioto (2002) – em relação à existência de uma instabilidade crônica na região proporcionada por uma dualidade espacial representada pela tese das duas Áfricas – a romanizada e a não romanizada –, podemos inferir a associação entre o latrocinium e as nossas premissas acerca da hinterland norte-africana. Essa última, por ser um espaço que escapa em grande medida ao domínio mais estrito do Estado romano, poderia ser uma região potencialmente generosa ao aparecimento de bandos de salteadores. Poderíamos nos perguntar também: qual a relação entre o banditismo e as diversas tribos seminômades que habitavam a hinterland norte-africana? Mesmo que uma resposta a esta questão seja difícil de ser oferecida, certos elementos nos levam a crer na existência de uma associação entre ambos. Primeiramente, a historiografia nos fala de uma relação sempre conflituosa entre estas tribos e as civitates romanas, sendo um perigo constante a ocorrência de pilhagens e invasões. Podemos associar também o próprio modo de vida nômade a uma característica bastante destacada dos latrones: a sua mobilidade constante. Neste ponto, não nos pode passar despercebida uma passagem das Metamorphoses (IV, VI) em que o autor de nossa documentação primária relaciona os latrones a um modo de vida pastoril: “eleva-se uma alta torre sobre a caverna, com um forte aprisco de sólidas grades, aposento cômodo das ovelhas. Tendo estes elementos em mente, consideramos bastante plausível a possibilidade de que tais tribos autóctones engrossassem as hordas de bandidos errantes pela hinterland norte-africana.28 Para concluir as nossas conjecturas acerca da hinterland no norte da África, elas nos levam a uma reavaliação de uma das ideias mais comumente aceitas em relação ao Império Romano à época do Principado, ou seja, a de que este representa o período da chamada Pax romana. Se tomarmos como exemplo alguns dos mais

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conhecidos manuais de História de Roma, entre eles os de autores como Michael Grant (1987), Paul Petit (1989), M. Rostovtzeff (1967), Edward Gibbon (1989) e Pierre Grimal (1993), ouviremos em uníssono a afirmação de que o I e o II séculos foram de relativa paz no interior das fronteiras imperiais, uma época de tranquilidade proporcionada pelo domínio e poderio do Estado romano. Esta tese, contudo, vai de encontro ao que foi dito até aqui sobre a hinterland norte-africana, como um lugar avesso ao domínio romano e potencialmente berço de constantes instabilidades, seja por meio das inúmeras revoltas de tribos autóctones verificadas na região, seja pelos muito comuns casos de ataques de bandidos. Ao invés de pensarmos numa pax romana duradoura e estendida a todas as localidades do Império, poderíamos imaginar, pelo menos para o caso do Norte da África, uma realidade instável de conflito e de dicotomia entre as diversas civitates e uma vasta e, em grande parte, hostil hinterland. Referências Documentação primária impressa APULEIUS. Metamorphoses: books I-VI. London: Loeb Classical Library, 1989. ______. Metamorphoses: books VII-XI. London: Loeb Classical Library, 1989. ______. O asno de ouro. Lisboa: Europa-América, 1990. Obras de apoio BECKER, H. Outsiders: estudos de sociologia do desvio. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008. BUSTAMANTE, R. M. da C. Circunceliões: revolta rural na África romana? In: CHEVITARESE, A. L. (Org.). O campesinato na história. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002, p. 39-64. BUSTAMANTE, R. M. da C.; DAVIDSON, J.; MENDES, N. M. A experiência imperialista romana: teorias e práticas. Tempo, Niterói, v. 9, n. 18, p. 17-41, 2005.

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Graduado em História e em Comunicação Social e mestre pelo PPGHis/Ufes sob orientação do Prof. Dr. Gilvan Ventura da Silva. 1 “Humanitas [...] designa os seres humanos que são dignos do nome de homem por não serem bárbaros, nem inumanos, nem incultos. Humanitas significa cultura literária, virtude de humanidade e estado de civilização” (Veyne, 1991, p. 283). 2 Este texto é parte integrante de minha pesquisa no Mestrado em História social das relações políticas, intitulada “Alteridade, estigmatização e identidade nas Metamorphoses de Apuleio de Madaura: bandidos e elites citadinas no norte da África romano no século II d.C.”. Este ensaio é proveniente de uma das seções da dissertação que será por mim apresentada.

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Paul Petit (1989) sugere que a pax romana seria um período de paz iniciado com Augusto, estendendo-se até fins do século II. É uma época de estabilidade em decorrência da instituição do poder pessoal e da centralização política empreendida pelo Princeps, com a implantação de uma máquina político-administrativa para gerenciar o Império e consolidar suas fronteiras. Esse período também se caracteriza por um substancial desenvolvimento do comércio e da produção agrícola, beneficiando Roma e as províncias, principalmente as suas elites. 4 As Guerras Púnicas consistiram numa série de três guerras que colocaram Roma em conflito direto com Cartago, cidade-Estado fenícia que dominava territórios no norte da África, Espanha e Sicília. Entre os anos de 264 a.C. e 146 a.C, as duas potências se enfrentaram no intuito de conseguirem para si uma hegemonia duradoura no Mediterrâneo ocidental. Ao fim das Guerras Púnicas, Cartago capitulou frente às forças romanas e foi totalmente destruída. Como resultado do conflito, Roma pôde se apoderar das regiões antes subjugadas pelo poderio cartaginês, o que incluía o norte da África, primeira província romana fora da Península Itálica (Raven, 1993). 5 “Tratava-se de um funcionário de posição muito elevada, pois era escolhido entre os dois mais antigos ex-cônsules [...]. Além de suas prerrogativas judiciárias, que faziam do procônsul o juiz supremo da província, tanto nas ações criminais quanto nas de natureza civil, ele era investido de poderes administrativos e financeiros: supervisionava a administração e as autoridades municipais, em princípio autônomas, e comunicava-lhes as leis e os regulamentos imperiais [...]; exercia o controle [...] sobre o sistema fiscal, cujos lucros eram destinados ao aerarium saturni” (Mahjoubi, 1985, p. 478). 6 Temos que somar a este território as quatro colônias de Cirta, a oeste da Africa Vetus, que César havia cedido a P. Sittius. Após a morte deste último, as colônias foram prontamente integradas às terras provinciais (Mahjoubi, 1985, p. 478). 7 A III Legião Augusta foi o destacamento do exército romano responsável pela segurança do norte da África. Era uma legião formada por um corpo de aproximadamente 20 a 25 mil soldados e assistida por auxiliares recrutados entre a população local (Raven, 1993, p. 58). 8 A revolta do númida Tacfarinas se prolongou por cerca de oito anos durante o reinado do Imperador Tibério (14-37) e se estendeu por toda a fronteira meridional das possessões norte-africanas romanas. Segundo Mahjoubi (1985, p. 475), o conflito foi o resultado da expansão da conquista romana em direção ao sul da Africa proconsularis, fato que notadamente gerou a expulsão das tribos autóctones de suas terras e uma instabilidade na região. 9 Em 33 a.C., o rei Bocchus, o Jovem, havia legado do Império romano o reino da Mauritânia, selando uma submissão direta frente aos romanos, que, pela mesma época, instalaram no país onze colônias de veteranos. Em 25 a.C., Otávio Augusto oferece a Juba II o reino, e em 23 d.C. seu filho Ptolomeu o sucede no trono, sendo posteriormente assassinado a mando de Calígula. A partir deste momento, que remonta ao ano de 40, o reino da Mauritânia é anexado definitivamente aos domínios imperiais (Mahjoubi, 1985, p. 479). 10 Conceituamos romanização “como um processo de mudança sociocultural, multifacetada em termos de significados e de mecanismos, que teve início com a relação entre os padrões culturais romanos e a diversidade cultural provincial em uma dinâmica de negociação bidirecional” (Bustamante; Davidson; Mendes, 2005, p. 25). 11 Para uma relação completa das diferentes tribos semi-nômades que habitavam as terras da província da Mauritânia Tingitana, ver Gozalbes Gravioto (2002, p. 470471).

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O território do Egito era considerado como propriedade pessoal do Imperador e não fazia parte da provincia Africa. 13 A Cirenaica situava-se na costa norte da África, entre o Egito e a Africa Proconsulares, correspondendo à parte oriental da atual Líbia. Conquistada inicialmente por Alexandre III da Macedônia, passaria depois para o domínio dos Ptolomeus e mais tarde para Roma, que a herdou de Ptolomeu Apion no ano de 96 a.C. Em 67 a.C., a Cirenaica e a ilha de Creta foram unidas para constituir uma única província, fato que permaneceria até a reforma administrativa de Diocleciano no ano de 300. 14 Na realidade, segundo os romanos, a idéia de linha de fronteira como uma separação, uma marca que estabelecia o fim dos domínios do imperium, era totalmente desconhecida. Para eles, o Império romano era senhor de toda a oikouméne, da totalidade do mundo conhecido, mas somente a melhor parte dele era interessante de ser controlado diretamente pelos romanos (Hidalgo de la Vega, 2005). 15 O fossatum africae atravessava os pontos de entrada a sudoeste dos montes Aurès, circundando-os até o extremo leste do monte Hodna e ao longo dos postos avançados de defesa construídos pelo Imperador Adriano em Gemellae (Raven, 1993, p. 76). 16 Em suma, Roma mantinha a cooperação e a lealdade das elites locais por intermédio de concessões de diferentes status de cidadania às civitates e às suas aristocracias citadinas. De acordo com a dinâmica política do sistema imperial, a cidadania foi um instrumento poderoso para contrabalançar e compensar as obrigações deixadas a cargo das elites municipais, responsáveis pela manutenção das cidades – por meio do evergetismo – e pelas prestações dos encargos fiscais devidos ao governo central (Mendes, 2007, p. 37). 17 Muitos autores, tais como Mahjoubi (1985), Raven (1993), Chausa (1994), destacam a importância que estas colônias de veteranos tiveram no intuito de reforçar a vigilância das fronteiras e de controlar as possíveis ações beligerantes das tribos semi-nômades próximas. 18 “Cidade e urbs não foram palavras sinônimas entre os antigos” (Coulanges, 2007, p. 145). 19 Os donos destas grandes propriedades rurais eram, em geral, absenteístas e deixavam a cargo de administradores a gestão de suas terras. 20 O norte da África romano fora caracterizado na Antiguidade como o celeiro de Roma, como a principal região exportadora de cereais, vinho e azeite do Império. Esta denominação, contudo, era o resultado de um processo de expropriação de terras das populações autóctones, principalmente dos tradicionais territórios das diversas tribos semi-nômades que habitavam a hinterland norte-africana (Raven, 1993). 21 Para um sumário completo acerca das diversas reservas indígenas existentes no norte da África no período de supremacia romana na região, ver Chausa (1994, p. 100). 22 Esta dicotomia não pode ser observada como absoluta, pois houve casos de utilização da mão-de-obra dos membros destas tribos autóctones como diaristas em épocas de colheitas nos saltos e nos latifundia, e mesmo o seu recrutamento como tropas auxiliares no contingente da III Legião Augusta (Raven, 1993, p. 88). 23 Havia uma tentativa de controle das diversas tribos autóctones que habitavam a hinterland norte-africana com o advento das reservas indígenas, que na realidade eram territórios em que as tribos eram acantonadas próximas a colônias de veteranos.

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Nestas reservas existiam os praefecti gentium e o defensor da tribo, cargos integrados à escala militar romana e que eram os responsáveis por fazer a ponte entre os romanos e os membros das tribos autóctones (Chausa, 1994, p. 98-99). 24 Não queremos atribuir às condições geográficas a responsabilidade pela dicotomia observada entre as diversas civitates romanas e a vasta hinterland imperial, porém é certo que tais fronteiras naturais dificultavam bastante o domínio romano e se caracterizavam como obstáculos quase intransponíveis se considerarmos as possibilidades tecnológicas de comunicação e de transporte existentes no Mundo Antigo (Silva, 2002, p. 172). 25 Em nossa pesquisa, propomos a hipótese de que as Metamorphoses de Apuleio de Madaura, mesmo que tenham como cenário de encenação de suas narrativas a Grécia, mais precisamente a Tessália, falem de uma realidade tipicamente norte-africana, de situações vivenciadas por seu autor e pela sociedade à qual pertencia. Acreditamos que a utilização da Grécia como local de realização desta novela latina pode ser entendida como um recurso bastante utilizado por diversos autores no Mundo Antigo, principalmente por aqueles ligados ao movimento denominado de Segunda Sofistica, que preferencialmente ambientavam as suas histórias tendo em vista a Grécia Clássica, considerada o berço da cultura e da civilização greco-romana (Gaisser, 2008, p. 3-4; Silva, 2007). Ademais, as Metamorphoses, como nos informa Ruth Guimarães ([19— ], p. 7) e J. Arthur Hanson (1989, p. xi-xii), são inspiradas em um livro de origem grega, Loukios e onos (Lúcio ou o asno), cuja autoria remonta ao grego Luciano, que, por sua vez, acredita-se ser uma condensação de outra obra helênica, pertencente a Lúcio de Patras. 26 “O termo comum em latim usado para designar um bandido é latro (plural latrones) e para o fenômeno do banditismo, latrocinium” (Shaw, 1984, p. 6). 27 Conceituamos outsiders a partir da definição de Howard Becker (2008, p. 15), que os vê como aqueles que estão à margem das normas estabelecidas. “Regras sociais definem situações e tipos de comportamento a elas apropriados, especificando algumas ações como ‘certas’ e proibindo outras como ‘erradas’. Quando uma regra é imposta, a pessoa que presumivelmente a infringiu pode ser vista como um tipo especial, alguém de quem não se espera viver de acordo com as regras estipuladas pelo grupo. Essa pessoa é encarada como um outsider”. 28 Podemos acrescentar a estes elementos que associam as tribos autóctones norteafricanas ao latrocinium a descrição feita por Macmullen (1996) acerca dos outsiders concebidos como bandidos no mundo romano. Segundo o autor, escravos fugitivos, desertores dos exércitos, possíveis usurpadores da púrpura imperial e membros de tribos semi-nômades poderiam ser denominados latrones na medida em que representavam uma ameaça à ordem pública imperial.

A ROMANIZAÇÃO E A ABSORÇÃO DOS CULTOS ORIENTAIS NO PRINCIPADO: EXPANDINDO AS FRONTEIRAS DO PAGANISMO Hariadne da Penha Soares* Introdução

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Império Romano foi o resultado de um lento processo de conquista militar e centralização política, primeiro da cidade de Roma sobre a Itália, depois da própria Península sobre as demais regiões que margeiam o Mediterrâneo (Guarinello, 2008, p.10). A entidade político-administrativa romana operou, no contexto mediterrâneo, uma integração intensa entre Oriente e Ocidente, favorecendo um sincretismo de valores, costumes e instituições (Silva, 2005, p.195). Visto em seus próprios termos, o Império Romano não circunscrevia uma organização social homogênea e singular, mas agrupava sociedades completamente distintas (Guarinello, 2008, p. 11). A partir do séc. II a.C., observamos a progressiva síntese entre os aspectos culturais advindos do Oriente e o Império Romano, momento em que percebemos a penetração do helenismo de modo evidente em Roma. Nos primeiros séculos da Era Cristã, podemos estabelecer a efetiva orientalização do Império, compreendida como um processo de integração gradual e profunda dos costumes ancestrais romanos com o patrimônio cultural absorvido do Oriente (Silva, 2005,

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p. 207).1 As interações culturais entre o Império Romano e o Mundo Helenístico apresentaram aos romanos uma diversidade cultural e religiosa muito intensa e sensações religiosas diferentes das quais os cidadãos da cidade de Roma estavam acostumados. Deuses orientais com seus séquitos coloridos e estridentes, promessas de superação da morte, ritos de iniciação e contato pessoal com a divindade eram características das religiões que adentravam a Península Itálica. Sendo assim, temos por objetivo neste capítulo analisar a formação de identidades religiosas a partir do fenômeno de absorção dos cultos orientais no Império Romano, visto que as interações culturais entre as tradições romanas e os cultos orientais absorvidos do Oriente proporcionaram, em algumas circunstâncias, a adoção de um discurso depreciativo contra os rivais religiosos, como podemos verificar no caso da oposição entre os devotos de Ísis e Atargátis, sugerindo-nos assim que mesmo entre os pagãos é possível detectarse focos de intolerância e discriminação religiosas. Como documentação primária impressa utilizamos duas fontes significativas: De Dea Syria, de Luciano de Samósata; e Metamorphoses, de Lúcio Apuleio. A obra De Dea Syria, longe de apenas nos informar sobre o culto da Deusa Síria, nos fornece importantes indícios acerca da abordagem de temas relacionados à cultura, identidade e poder no Principado. O tratado intitulado De Dea Syria foi concluído no século II d.C., tendo sido transmitido pela tradição manuscrita juntamente com as outras obras de Luciano de Samósata.2 Nascido em 125, na cidade de Samósata, na província romana da Síria, o apogeu de sua atividade literária transcorreu entre 161 e 180, durante o reinado de Marco Aurélio. A ele foram atribuídas mais de 80 obras, conhecidas em conjunto por corpus lucianeum (“coleção luciânica”), dentre as quais a grande maioria é apócrifa. Morreu pouco depois de 181, talvez em Alexandria, Egito. O opúsculo intitulado De Dea Syria é um texto escrito originalmente em grego, composto de 60 capítulos, no qual o narrador, que afirma ser sírio, descreve a cidade de Hierápolis, bem como seus templos, seus deuses e estátuas e também as lendas referentes à sua construção. O narrador, além disso, revela a ancestralidade dos cultos religiosos na Síria e os templos mais antigos e importantes da região, a saber, o templo de Hércules de Tiro e de Astarte, localizado na Fenícia. No decorrer da narrativa, Luciano nos apresenta o templo de Hierápolis, as lendas acerca de sua fundação e sua consagração à deusa Atargátis, o interior do templo, os diferentes ritos e festas que

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ali são celebradas. Nos últimos capítulos (42-60), o autor se dedica a explicar os diferentes aspectos do culto da Deusa Síria. Enumera os responsáveis pelo culto, as diferentes celebrações organizadas no templo, as manifestações religiosas que têm seu lugar no recinto sagrado e os rituais que peregrinos realizam ao chegar à “cidade sagrada”, Hierápolis. Lúcio Apuleio, autor de Metamorphoses, nasceu em Madaura, cidade próxima a Cartago, no norte da África, entre 114 e 125. Proveniente de uma família muito rica e influente, recebeu boa educação, nos moldes da paideia, da cultura literária. Os anos que passou na Grécia tiveram grande importância na formação da personalidade do madaurense, não só pela iniciação ao conhecimento da filosofia grega platônica; mas também a iniciação em cultos de origem oriental, que estavam em plena expansão no mundo grego. A iniciação nos cultos de mistério deixou profundas marcas em sua obra. A obra Metamorphoses, escrita por volta de 170, pode ser classificada como uma novela, gênero literário que apresenta tendências helenísticas e orientalizantes. O texto possui uma estrutura narrativa bastante peculiar, agrupando em torno de um tema central diversas tramas paralelas que se entrecruzavam num contexto literário no qual predominava o recurso ao fantástico. Tendo alcançado no século II ampla difusão em toda a bacia do Mediterrâneo e em especial no norte da África, a novela se constituiu no principal veículo de propagação dos mistérios isíacos, envolvendo-os numa atmosfera edificante com recurso a narrativas em que o objetivo central era mostrar as qualidades benfeitoras, redentoras e soberanas da divindade egípcia (Hidalgo De La Vega, 1986, p. 95). No que tange ao domínio religioso, a obra de Apuleio não se limita apenas a nos informar sobre algumas características do culto de Ísis e Atargátis, vai mais longe, quando nos revela a polêmica entre os adoradores dos diferentes cultos que são citados, sendo que a forma de tratamento dada pelo autor a cada um deles difere, evidenciando uma postura social frente à caracterização de cada religião de mistério. A romanização: o contato entre o Império Romano e os “outros” Com o alargamento das fronteiras imperiais, a cultura romana

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difundiu-se por todo o mundo mediterrâneo.3 Cada comunidade que entrava em contato com os padrões culturais considerados romanos os interpretou, os modificou e os ressignificou de acordo com os seus interesses e universo cultural. O Império Romano passou a constituir uma entidade unificada politicamente, mas em termos econômicos e culturais podemos observar uma grande diversidade.4 Os nativos tiveram um papel importante nesta dinâmica de apropriação, de ajustamento, de ressignificação e de hibridismo cultural cujo resultado foi a construção de um conjunto de valores e práticas culturais compartilhado. Esse conjunto cultural compartilhado interagiu com os vetores fundamentais do “projeto cultural” romano, estritamente relacionado à idéia da missão de Roma como difusora da civilização (Woolf, 2001, p. 311-322). É bom lembrar que quando Roma civiliza, ela heleniza também. Colocar-se a serviço do Império Romano é colocar-se ao máximo serviço do helenismo (Veyne, 2005, p. 98). O Império Romano, desse modo, representou a interação cultural sobre uma vasta área territorial, simbolizando uma ordem mundial fundamentada em padrões jurídicos, políticos e morais necessárias para se garantir a paz, o que nos remete ao conceito de Romanização. O termo Romanização surgiu na historiografia de fins do século XIX e início do século XX para explicar a forma como a adoção dos padrões culturais romanos foi processada nas províncias e nas regiões de fronteira do Império. Theodor Mommsen (1854) e Francis John Haverfield, em sua obra The Romanization of Roman Britain (1905), construíram uma ideia de que a adoção das práticas culturais romanas pelos provinciais refletia a posição superior e mais avançada de Roma. Ao difundir entre os provinciais a cultura clássica, os romanos criaram o contexto propício para o desenvolvimento da noção de civilizado, responsável pela ligação entre o mundo antigo e o moderno. Esta noção exprimia a ideologia imperialista britânica perante a qual o conceito de progresso estava interligado ao Império Romano. A experiência imperialista romana foi apropriada pelos discursos ideológicos das potências coloniais, que a utilizaram para justificar e legitimar o direito de conquista. O papel das populações nativas foi relegado, assim, à recepção passiva da “civilização”. Para esta corrente historiográfica, a romanização estava baseada em uma definição de oposição binária: provinciais/bárbaros/passivos versus romanos/ civilizados/ativos, processo pelo qual o “não-civilizado” alcançava a

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“civilização” (Bustamante, 2006, p. 110). A partir de meados do século XX, com a profusão dos movimentos de independência nas colônias de África e Ásia, a historiografia desenvolveu novas pesquisas, partindo de uma perspectiva “pós-colonial”. O nascimento da Antropologia Cultural nos Estados Unidos também contribuiu para o questionamento da ideia de uma “evolução cultural” e da elaboração de modelos dicotômicos entre culturas, em que umas eram tidas como superiores e outras como inferiores. A revisão desta posição historiográfica foi muito importante para o estudo do Império Romano, pois os provinciais deixaram o tradicional lugar de passivos a eles legado para se tornarem agentes capazes de refletir e construir diferentes respostas à dominação. No que tange às manifestações religiosas, estas também são resultado da interação cultural entre romanos e provinciais. Os elementos opostos das culturas em contato tendem mais a se interpenetrar, a se conjugar e a se identificar do que a se excluir, possibilitando o surgimento de uma cultura mestiça, nascida da interpenetração dos contrários. A Romanização foi um processo complexo de assimilação e apropriação cujos resultados foram o hibridismo e a construção de novos padrões de culto, simultaneamente locais e greco-romanos. Devemos destacar, nesse contexto, a importância do resgate da pluralidade e do dinamismo dos elementos nativos, demonstrando uma sensibilidade para o singular hibridismo das experiências históricoculturais, afastando-se de uma perspectiva monolítica, estática e autônoma de cultura. O termo Romanização constitui os múltiplos processos de mudanças socioculturais multifacetados em termos de significados e mecanismos que teve início com o relacionamento entre os padrões culturais romanos e a diversidade cultural provincial. A Romanização foi caracterizada por processos desiguais de mudanças socioeconômicas, produto das relações, também desiguais, entre o poder imperial e os diferentes grupos sociais das comunidades submetidas (Mendes, 2007, p. 26). A religião romana como estratégia de romanização A religião romana era associada à política, tornando-se estatal,

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ambígua e integradora. Conforme afirma Bustamante (2006, p. 321351), esta religião cívica congregava publicamente a comunidade, estava subordinada à política: os membros das elites municipais eram revestidos simultaneamente de dignidades sacerdotais e de magistraturas políticas. A religião, desse modo, era um importante aspecto da política cultural do Império. A religião romana fora, em sua origem, uma série de cultos urbanos e demonstrações públicas de respeito e gratidão em relação aos deuses domésticos da cidade-Estado (Johnson, 2001, p. 15).5 Uma das características da religião romana é que esta “teria posto toda a sua ênfase não nos deuses e nos mitos, mas nos rituais e na sua correta execução”. Apresentava um excessivo ritualismo e era dominada por colégios sacerdotais, em que o principal objetivo “seria a fixação e a repetição das ações rituais” (Rosa, 2006, p. 139). Tal procedimento apresentava-se necessário para as negociações entre os homens e os deuses, isto é, para a pax deorum. A religião romana geralmente é apresentada como uma religião altamente ritualizada, com poucas concessões à expressão religiosa. Partindo deste pressuposto, o historiador alemão Theodor Mommsen, em seu livro The History of Rome (1854), afirmava que a religião romana afundou em uma incrível monotonia e aridez e cedo se tornou murcha dentro de uma ansiosa e melancólica ronda de cerimônias. Franz Cumont, em sua obra The Oriental Religions in Romam Paganism (1911), alegava que provavelmente nunca existiu uma religião tão fria e prosaica quanto a religião romana. A historiografia tradicional de meados do século XIX interpretava etnocentricamente a religião romana, reproduzindo as críticas de pensadores cristãos, que, inseridos em um contexto de polêmica contra o politeísmo, acentuavam seu “formalismo” e sua “frieza”, pois suas obrigações eram vazias de sentido e não respondiam às necessidades espirituais dos homens. Esta postura foi revista a partir dos estudos antropológicos e sociológicos sobre os ritos, como podemos observar no artigo de John Scheid e Jean-Louis Durand, Rites et Religion. Remarques sur certains préjugés des historiens de la religion des Grecs et des Romains (1994). Percebeu-se, então, a importância dos rituais para as sociedades que os praticavam, compreendendo-os como um elemento essencial da sua cultura. No que concerne à religiosidade pagã, observando-se a

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importância e o sentido dos rituais para a sociedade romana, podemos afirmar que os antigos romanos referiam-se a duas etimologias diferentes para o termo religio: religare (ligar) e relegere (retomar; controlar). 6 No primeiro caso, evidencia-se a religião como comunidade com os deuses. No segundo termo, o zelo da observância de um sistema de obrigações ritualísticas (Scheid, 1998, p. 4), a religião dos antigos romanos baseava-se em uma ortopráxis (execução correta dos ritos prescritos). A religio não designava o elo sentimental, direto e pessoal do indivíduo com uma divindade, mas um conjunto de regras formais e objetivas, legado pela tradição e que formava uma etiqueta que deveria ser rigorosamente observada para que tivesse eficácia e fosse benéfica para a comunidade. Todo ato religioso possuía um aspecto comunitário. Era, portanto, uma religião social, primeiramente ligada à comunidade e não ao indivíduo. Um dos aspectos cruciais do mos maiorum (costume dos ancestrais) romano era a pietas, abrangendo tanto as relações com os pais, amigos ou concidadãos quanto a atitude correta com os deuses, ou seja, o cumprimento dos deveres dos homens com as divindades. O vocábulo pietas designava, principalmente, o cumprimento dos deveres religiosos, da virtude, da justiça, da lealdade, da fidelidade, do mais profundo sentimento religioso. Além de designar justiça, bondade divina, o termo indicava também o afeto em relação à família, o amor à pátria por meio do justo relacionamento que ligava o homem ao deus, havendo nessa relação uma reciprocidade entre ambos (Scheid, 1998, p. 3). O reconhecimento da reciprocidade estabelecia o paralelo de que entre os homens deve haver justiça. Essa mesma relação deve existir no nível religioso entre os homens e os deuses, sempre reconhecendo os direitos e deveres recíprocos. A pietas exprimia a justiça da parte do homem, ou seja, reconhecimento da potência divina. Os romanos se consideravam detentores do conhecimento e da observância correta dos deveres rituais, cultuais e, também da sabedoria, que consistia no reconhecimento do poder dos deuses, visto que é por meio do poder das divindades que todas as coisas são regidas e governadas (Sanzi, 2006, p. 20). Cabe ressaltar que o contraponto da religio era a superstitio, entendida como as formas exageradas de comportamento e crenças. A superstitio era encarada como o oposto da religião, visto que implicava formas de comportamento e crenças religiosas que não

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podiam ser controladas e monitoradas. A devoção excessiva aos deuses e aos rituais era interpretada como motivada por um desejo inapropriado de aprofundar o conhecimento que fugiria ao controle do Estado, sendo condenada como fraudulenta e como uma ameaça à estabilidade da religião do Estado. Os antigos romanos abominavam a superstitio, pois o supersticioso pensava que os deuses eram maus, ciumentos e tirânicos, e, por isto, se angustiavam (Beard; North; Price, 2004, p. 216). É o medo que constitui a base deste relacionamento e não o correto culto aos deuses que inspira estes indivíduos, mas o temor de ter danos. Tais indivíduos, para o homem romano, cumprem os atos religiosos porque são medrosos e desejam obter favores para si ou para os próprios filhos (Sanzi, 2006, p. 21). Ao contrário, a boa atitude religiosa era pensar que os deuses eram bons e respeitavam as regras do código social da cidade: contanto que não fossem ofendidos gravemente, as instituições cívicas funcionavam; os deuses não eram levados pela vingança nem pela opressão aos humanos, se estes cumprissem suas obrigações ritualísticas. A religião, para os romanos, definia uma atitude humana de atenção aos preceitos divinos, procurando adaptar tudo aquilo que pudesse considerar como manifestação da vontade das forças superiores e a prudência em relação à realização das ações sagradas que estabeleciam o relacionamento com o divino. Scheid (1998) demonstra que o princípio que regia a religião romana era a racionalidade da cidade, garantindo a ordem estabelecida e excluindo todo o poder fundamentado no medo, pois o relacionamento com os deuses era feito de forma racional. A religião era um componente importante da vida cívica, pois o culto aos deuses sedimentava a solidariedade entre a comunidade. Uma forma de expressão da fidelidade a Roma era a observância das práticas religiosas, que faziam parte integrante da sociedade romana. A constituição de um culto, que tinha a tutela do Estado, estreitou os laços entre Estado e comunidade, criando uma identidade comum aos indivíduos e consolidando os laços que, por sua vez, uniam os indivíduos a Roma. Era uma religião social, pois era praticada pelo homem enquanto membro de uma comunidade e não somente como individuo subjetivo (Bustamante, 1999, p. 327). Aos poucos a religião romana foi se constituindo numa construção que mesclou a tradição romana com a capacidade de acolher a força divina dos “outros”, quer dizer, das comunidades

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conquistadas; e com o estreitamento das relações políticas e comerciais entre Roma e as outras províncias, chegaram à Península Itálica inúmeros devotos, trazendo consigo deuses estrangeiros e misteriosos aos olhos dos romanos. Os cultos orientais que foram introduzidos na Península possuíam seus mistérios, isto é, cerimônias que se realizavam independentemente do culto público, cerimônias que eram realizadas em segredo, com a presença apenas do iniciado, no interior do santuário (Alvar, 1995, p. 438).7 A iniciação que os mistérios comportavam era um verdadeiro drama místico no qual a divindade estava presente na pessoa de seus sacerdotes. Após a união mística com a divindade e estando plenamente convencido daquilo que lhe era ensinado pelos sacerdotes, o fiel voltava a si, sendo exposto à admiração pública como alguém que teve contato pessoal com os favores da divindade. Os mistérios constituem uma forma de religião pessoal, que depende de uma decisão privada e aspira a alguma forma de salvação a partir da proximidade com o divino. Os cultos que foram introduzidos no Império Romano possuíam seus mistérios, isto é, cerimônias que eram celebradas em segredo, no interior do santuário, com a presença apenas dos iniciados (Burkert, 1992, p. 25). As religiões orientais se apresentavam como religiões universais e de salvação. Universais visto que sua mensagem ultrapassava as barreiras fundamentadas pelos cultos cívicos, dirigindo-se a qualquer pessoa, idade, sexo ou posição social. Os cultos orientais estavam abertos a todos e qualquer um podia ocupar um cargo dentro da hierarquia sacerdotal. De acordo com Sarah Pomeroy, em seu livro Diosas, rameras, esposas e esclavas (1987), de vinte e seis indivíduos nomeados sacerdotes de Ísis em inscrições encontradas na Península Itálica, seis eram mulheres, incluindo uma de categoria senatorial e uma filha de libertos, a despeito de a religião isíaca contar com um grêmio formado apenas por homens, o collegium dos pastóforos. 8 Os mistérios orientais são caracterizados como religiões de salvação, devido à própria história da divindade, que em geral estava associada a um drama de morte e ressurreição. E como a deidade havia superado a morte, o fiel acreditava que o mesmo poderia ocorrer a ele. Desse modo, os mistérios respondiam a necessidades práticas, mesmo em suas promessas de uma vida após a morte (Burkert, 1992, p. 36). Assim, a existência além-túmulo não aparecia mais ao homem

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como uma continuação menos brilhante da vida terrestre, mas sim como um momento máximo de redenção de todos os infortúnios aos quais poderia estar submetido (Silva, 2005). Desse modo, o cidadão romano, ao integrar um culto, estava assimilando uma resposta à necessidade de sobrepujar a angústia diante da morte. Os cultos de mistério não contaram de pronto com a aprovação de toda a sociedade romana. Pelo contrário, organizandose à margem da religião oficial, as manifestações mágico-religiosas provenientes do Oriente estiveram sempre sujeitas ao controle estatal (Silva, 2005, p. 205). Para os romanos, os cultos orientais ameaçavam a integridade religiosa da Urbs (Turcan, 1997; Araújo, 2007). O contraste entre o formalismo da religião oficial romana e os cultos orientais era evidente: estes ofereciam sensações e emoções fortes, provocadas tanto pelos ritmos selvagens e frenéticos das danças egípcias, ou os sons roucos dos sacerdotes da Deusa Síria, a um mundo exaurido (Araújo, 2007). Identificamos, então, ações perpetradas contra a orientalização do Império com objetivo de defender a todo custo a tradição, o mos maiorum. A devoção à deusa Ísis é um exemplo desse tipo de comportamento, primeiramente por parte do Senado romano, e mais tarde pelo imperador. O culto isíaco penetrou em Roma por volta do ano 100 a.C., com a fundação do colégio dos pastóforos na época de Sila. Posteriormente, por volta de 59 a.C., o Senado efetivou o primeiro golpe repressivo contra os cultos egípcios de Serápis, Harpócrates e Anúbis, que foram proibidos no Capitólio. Durante a época imperial, os deuses nilóticos foram alvo de novas perseguições, sobretudo no período de Augusto e Tibério. As perseguições contra as religiões orientais indicam uma tentativa de se preservar a comunidade cívica romana contra a ameaça orientalizante (Hidalgo de La Vega, 1986, p. 94-95). O culto de Atargátis também é um exemplo dos aspectos culturais oriundos do Oriente, visto que seu culto é originário da cidade de Hierápolis, situada entre Antioquia e o Eufrates. Segundo as narrativas mitológicas acerca do nascimento da deusa, esta teria surgido de um ovo posto por um peixe nas margens do Eufrates e chocado por pombos, razão pela qual se atribuía a ela o domínio sobre a água e a fertilidade propiciada pela umidade (Silva, 2001, p. 30). Seu templo em Hierápolis era cercado de um extremo fausto e prestígio

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e para lá afluíam peregrinos de todo o Império, desejosos de assistir os ritos fantásticos realizados pelos sacerdotes da deusa, os quais, imersos em transe, permaneciam em algumas ocasiões sete noites sem dormir. Mais de trezentos sacerdotes eram responsáveis pelo serviço da deusa e seu paredro, Hadad (Turcan, 1997, p. 136). Por volta do século II a.C., mercadores hierapolitanos fazem edificar, na ilha de Delos, um templo em homenagem aos seus deuses pátrios. Delos era um grande centro de comércio de escravos e muitos comerciantes importavam escravos sírios para a região. Já em 118117 a.C., uma estátua de Atargátis assimilada a Afrodite é consagrada na ilha, pelo bem do povo ateniense e do povo romano, recebendo o culto de cidadãos romanos, em sua maior parte libertos e itálicos que frequentemente transitavam por Delos devido ao comércio que mantinham com o Oriente. A partir da ilha de Delos, o culto a Atargátis se expande pelo Egeu e pela Ásia Menor, penetrando na Península itálica, Dácia, Macedônia, Panônia, Bretanha e Gália, embora nesta última região sua presença tenha sido bastante modesta. Com Nero, começa a ganhar terreno, em Roma, o culto da deusa Síria, até então restrito primordialmente aos escravos e libertos de ascendência síria, contando-se muito provavelmente o imperador entre os seus adeptos mais ilustres (Turcan, 1997; Silva, 2005).9 Não obstante, Atargátis permaneceu durante muito tempo sem um templo próprio na cidade. Dentre os adoradores de Atargátis contavam-se, em sua maioria, escravos, comerciantes e trabalhadores rurais (Cumont, 1911, p. 107).10 Além de sírios que, em passagem pelas cidades romanas, difundiam seu culto. No que tange às relações entre a religiosidade romana e as religiões orientais, observamos um discurso em favor da tolerância religiosa no seio da sociedade pagã alto-imperial, destacando-se que o próprio Império não dificultou a existência dos novos cultos. Antes, mostrava-se disposto a favorecer a difusão do misticismo oriental. Walter Burkert (1992) afirma que: Enquanto nessas religiões há uma ênfase deliberada sobre suas respectivas definições e recíprocas demarcações, na época pré-cristã as várias formas de culto, inclusive novas divindades estrangeiras em geral e a instituição dos mistérios em particular, nunca são excludentes; aparecem como formas, correntes ou opções variáveis dentro do mesmo conjunto, heterogêneo, mas contínuo, da religião antiga.

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Todavia, em Roma, uma das principais expressões de tolerância dizia respeito ao universo das crenças religiosas. Em seu conjunto, apesar de a atitude do Estado romano em relação aos cultos e práticas religiosas que não pertenciam à comunidade pagã clássica ser caracterizado como tolerante, não podemos, num contexto permeado por distintas culturas e práticas religiosas, lugar em que reina a heterogeneidade, afirmar que as exclusões e demarcações tendem a ser apagadas em prol de um substrato cultural comum: a religião pagã (Silva, 2008). Cumpre notar que mesmo nas situações em que se reconhece o pluralismo como valor fundamental para a manutenção das relações sociais, a tolerância não é exercida de modo absoluto. Parece-nos que os romanos toleravam o que não afrontava a autoridade imperial e o corpo cívico (Rosa, 2006, p. 151). É nesse contexto de profusão de diversos cultos orientais somados à religião tradicional romana que percebemos as distinções sociais que eram efetivadas a partir da estigmatização do outro. Tal tendência à estigmatização pode ser verificada no tocante aos cultos religiosos. Vemos em Metamorphoses como Apuleio caracteriza a oposição entre os cultos às deusas Ísis e Atargátis. À primeira, o autor confere características de normalidade, ordem e equilíbrio, qualidades distintivas da elite municipal alto-imperial, valorizando, assim, uma religião que, embora de origem estrangeira, adquirira status de cidadania e aceitação no mundo greco-romano. Sem alarde as partes iniciais do cortejo começam a se colocar em marcha. A escolha dos trajes deixava transparecer uma variedade plena de encanto. Em meio aos agradáveis mascarados que aqui e ali enchiam as ruas, a pompa especial da deusa protetora se punha a caminho [...] Mulheres em suas vestes brancas coroadas de guirlandas primaveris e tendo todas, um ar alegre, espalhavam pequenas flores pelo caminho no qual avançavam o cortejo sagrado (Met. XI, 9).

À segunda, vista como uma divindade também de origem estrangeira, são agregados valores de exotismo, anormalidade e desordem, que se coadunam com um culto errante e nômade, como o efetuado pelos sacerdotes da deusa Síria, que representariam, por esse motivo, um paradigma de comportamento religioso desviante, pois na medida em que se deslocavam, portavam consigo o estigma do eterno estrangeiro.

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Eles saíram, a cabeça coberta de pequenas mitras e vestidos de tecido de linho fino e de seda na cor amarela. Alguns portavam túnicas brancas ornadas com debruns de púrpura apertada na cintura [...] eles me deram para carregar a deusa, envolvida num véu do mais fino tecido. Depois, arregaçando as mangas até o ombro, levantavam enormes facas e machados e pulavam como possessos, pois o som da flauta excitava ainda mais seu frenesi e sua marcha tripudiante. De quando em quando eles mordiam a si mesmos e com uma faca de dois gumes infligiam corte nos braços. Do fundo do peito vinha-les a cada instante arquejos, para dar impressão de que estavam sendo tomados pela divindade: como se a presença dos deuses tivesse o costume, não de tornar os mortais melhores, mas de lhes ttrazer a doença e a fraqueza (Met. VIII, 27).

No entanto, como podemos observar na obra De Dea Syria de Luciano de Samósata, este empreende uma verdadeira defesa da deusa Atargátis, representação de forma helenizada, em que deusas gregas como Hera, Atena e Afrodite são identificadas a ela. A partir da aproximação dos mitos e dos símbolos sírios aos de origem grega e à ideia romana de cidade, podemos verificar a tentativa de criação de uma identidade cultural comum romano-síria, mais próxima do ideal de civilização dos romanos. O autor também demonstra, em seu tratado sobre a Deusa Síria, enfática necessidade de transformar os cultos, templos e símbolos sagrados de sua cidade mais palatáveis ao crivo critico dos romanos. Em primeiro lugar, quando tece observações acerca do templo de Atargátis: Na Síria, uma cidade não muito longe do rio Eufrates: é chamada “cidade sagrada”, e é sagrada para a Hera Assíria. No entanto, eu julgo que o nome não foi conferido a cidade quando foi pela primeira vez povoada, mas originalmente era adotado outro nome. No curso do tempo muitos sacrifícios foram oferecidos a ela, e o nome da cidade foi alterado. Eu vou falar sobre a cidade e sobre o que ela contém (De Dea Syria, I).

Luciano de Samósata, quando descreve o templo da Deusa Síria, em Hierápolis, afirma ser este o maior, o mais importante e antigo da região próxima à Síria: “Mas de todos eles, acredito que nenhum é maior do que a Cidade Santa, nem qualquer outro templo mais abençoado” (De Dea Syria, X). Em seguida, ele faz observações acerca do que se encontra no templo, os diferentes ritos e representações dos deuses:

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Mas quando você olha Hera (Atargátis), ela apresenta uma grande diversidade de informações, apesar de tudo podia ser considerada verdadeiramente Hera (Atargátis), ainda assim ela contém algo de Athena, Afrodite, Selena, Rhea (Kybele), Artemis, Fortuna (Nemesis) e Parcae (De Dea Syria, XXXII).

Percebemos então que enquanto Apuleio considera Atargátis uma deusa estrangeira e atribui a seus adoradores rótulos pejorativos, qualificando-os como “escória da humanidade” (Met. VIII, 24), Luciano de Samósata representa Atargátis como uma importantes deusa do panteão greco-romano. Parecem-nos, então, que as manifestações religiosas são resultado das interações religiosas entre romanos e nativos, interações estas marcadas pela complexidade envolvendo conflito, negociação e acomodação. A obra de Apuleio nos informa as características do culto de Ísis e nos revela a polêmica religiosa entre os adoradores da deidade egípcia e os devotos da deusa Atargátis. A polarização entre os devotos das divindades mencionadas é um testemunho importante do conflito existente entre os diferentes cultos no contexto do Alto Império. Na tentativa de afirmar a superioridade de uma divindade, no caso a deusa Ísis, acabava-se por produzir a depreciação do outro, a deusa Atargátis, representação esta por nós contrabalançada graças à análise do opúsculo de Luciano de Samósata, evidenciando o processo de formação de identidades e alteridades. Procuramos apresentar, então, uma apreciação diferenciada da problemática acerca dos conflitos religiosos na sociedade pagã alto-imperial. O fato de os mais diversos cultos orientais conviverem no Alto-Império, sem que o Estado adote uma repressão eficaz contra eles, não implica coexistência pacífica. Percebemos que as distinções, mesmo não efetivadas pelo poder do Estado, ocorriam dentro da própria comunidade cívica, quando na tentativa de afirmar a superioridade de uma divindade, acabava-se por produzir a depreciação do outro, dentro de um processo de formação de identidades e alteridades (Silva, 2001, p. 35). Sentido diferente do exposto pela historiografia tradicional, atentando para o fato de que os indivíduos imersos em suas crenças pagãs foram capazes de produzir, em determinadas situações, exclusões, demarcações e estigmas.

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Graduada em História e mestra pelo PPGHis/Ufes sob orientação do Prof. Dr. Gilvan Ventura da Silva. 1 Todas as datas deste trabalho são d.C., salvo quando expresso em contrário. 2 Algumas das obras atribuídas ao autor são: De dea Syria, Uma história verdadeira, O amigo da mentira, Leilão de vidas, O burro Lúcio, Hermotismo e a Passagem de Peregrino. 3 A expansão territorial romana é envolta por várias características próprias que a diferenciam dos processos de expansão dos outros povos da antiguidade. Foi um fenômeno de longa duração, com ritmos de intensidade variados que se estendeu do V a.C. ao II d.C., com as campanhas militares do imperador Trajano. Com este imperador Roma atingiu sua extensão máxima. 4 “Um Império tem como características definidoras a existência de um sistema administrativo para explorar a diversidade, seja econômica, política, religiosa ou

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étnica; estabelecimento de um sistema de transporte destinado a servir ao centro imperial militar e economicamente; criação de um sofisticado sistema de comunicação que permitia administrar diretamente do centro todas as áreas submetidas; manutenção do monopólio de força dentro do território imperial e sua projeção frente às regiões externas; construção de um “projeto imperial” que impõem certa unidade através do império” (Bartfield, 2001, p.10-41). 5 Segundo Rostovzeff (1983, p. 217), “a cidade tornou-se a base da vida social e econômica em todas as partes do império”. 6 O termo pagão/pagã ao qual nos referimos (do latim paganus = homem da aldeia) passou a ser utilizado a partir do século IV por cristãos para designar não-cristãos, sempre agregado de afirmações pejorativas, indicando os moradores do campo em oposição aos moradores da cidade (Beard; North; Price, 1998, p.302). Com o decorrer dos séculos, o vocabulário passou a designar as crenças nos falsos deuses, com seu séquito de ritos, práticas, costumes, usos negativos e condenáveis. Evita-se na medida do possível utilizar o termo. 7 Nas línguas modernas a palavra mistério esta relacionada ao sentido da palavra secreto, sentido que remonta ao Novo Testamento. O caráter secreto constituía um atributo interessante dos mistérios antigos, manifestando-se sob a forma da cysta mystica, uma cesta de madeira fechada por uma tampa. Mas essa definição não é suficiente para esclarecer o termo culto de mistério. Nem todos os cultos secretos são mistérios; o termo não se aplica à magia privada nem às complexas hierarquias sacerdotais com acesso restrito aos locais ou objetos sagrados. Os mistérios são cerimônias de iniciação, cultos onde a admissão e a participação dependem de algum ritual pessoal, a ser executado sobre o iniciante. Esse caráter de exclusividade é acompanhado pelo segredo e, na maioria dos casos, por um cenário noturno (Burkert, 1992, p.19-20). 8 O colégio dos pastóforos correspondia a um agrupamento sacerdotal encarregado ao culto dos deuses egípcios em Roma. 9 Em A vida dos doze Césares, Suetônio nos informa sobre a religiosidade de Nero: “Desprezava todos os cultos, exceto um: o da deusa Síria. Sem demora, porém, abominou-o, a ponto de poluir a deusa com sua urina” (Nero, 56). 10 Assim Apuleio, nas Metamorphoses, nivela a deusa Síria a Cibele, bem como a deuses cultuados por escravos, como Sabázio e Belona: “Alto lá cadáver surdo e mudo, pregoeiro que só sabe delirar! Que a deusa Síria, a toda poderosa, Mãe Universal, e o Santo Sabázio, e Belona, e a Mãe Idéia com seu Átis, Vênus soberana com seu Adônis, te tornem cego a ti, que me provocas há uma hora com tuas grosserias” (Met, X, 25).

U NIDADE

NA DIVERSIDADE : DIÁLOGOS E ESTRANHAMENTOS NOS CRISTIANISMOS DO ORIENTE E DO OCIDENTE (SÉC. II D.C.) Ludimila Caliman Campos* Introdução

A

s fontes não deixam dúvida quanto ao fato de que houve alguma variedade no cristianismo primitivo. Todavia, as divergências nem sempre levaram as comunidades a um distanciamento. Muito pelo contrário, sabe-se que havia uma profícua comunicação entre elas, apesar de algumas limitações comuns, próprias do período da Antiguidade (Ascough, 1997). De fato, essa era a ambiguidade vivida pelos cristãos primitivos: superar as diferenças e as distâncias em nome da unidade. A proposta deste capítulo é discutir as inter-relações estabelecidas entre as comunidades cristãs que permaneceram conectadas ao longo do século II. Para tal fim, procurou-se analisar a “controvérsia quartodecimana”, apresentada na obra História eclesiástica, especificamente o livro V, de Eusébio de Cesareia, de modo a compreender a interação entre as comunidades do Ocidente e do Oriente, com destaque para as ecclesiae da Ásia Menor e de Roma, e, ainda, identificar a ampliação do poder das lideranças locais. A linguagem, a alimentação, o vestuário e as leis são algumas

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das várias características utilizadas por grupos sociais a fim de se distinguirem dos outsiders. Neste estudo de caso, as assembleias cristãs entraram em choque por não compartilharem um importante elemento cultural: o calendário. Para a regulação da vida social entre as comunidades, era fundamental a adesão a um único calendário, pois se ambicionava, numa busca por identidade, que elas tivessem uma religião. Assim ocorreu com a ecclesia cristã do II século, que almejava estabelecer-se como uma instituição coesa e uniforme. Muitos teóricos vêm se destacando em analisar a formação de grupos sociais. Tais estudiosos têm observado que as similitudes de um grupo não são suficientes para o desenvolvimento de uma consciência comum, como foi o caso da ecclesia cristã. Daí a contribuição de Mary Douglas (1998), que pretendeu, por meio das concepções de Émile Durkheim e Ludwik Fleck, entender de que modo as instituições “pensam”. Adotando o conceito de solidariedade orgânica de Durkheim, a autora afirma que a verdadeira solidariedade nos grupos ou instituições só é possível se os indivíduos partilharem das mesmas categorias do pensamento. Sendo assim, a ecclesia do século II tende a se constituir como uma instituição, pois os bispos do Ocidente buscavam estabelecer uma unidade de normas, regras e preceitos. Outra ideia chave apresentada por Douglas é o modelo ancestral formulado por Ludwik Fleck, pelo qual as ações de um antepassado poderoso geram legitimidade ao poder e forjam o processo social no presente. É importante frisar que, tanto para Fleck quanto para Durkheim, as instituições bem alicerçadas controlam e dirigem a memória, a fim de obterem uma maior lealdade entre seus pares. Deste modo, quando a memória era perpetuada, tornava-se tradição, que, por sua vez, era responsável por selar a associação entre as comunidades. Todavia, quando a tradição não compartilhava uma memória comum, as controvérsias surgiam, como no caso da questão quartodecimana. A controvérsia quartodecimana Em 311, sob o governo de Galério, o bispo Eusébio de Cesareia voltou à Palestina, possivelmente sua localidade de origem, onde acabou de redigir os oito primeiros livros da sua História eclesiástica. Tal obra é considerada a “obra-prima” do autor e um registro de cunho

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histórico (Maier, 2007). Os propósitos da obra História eclesiástica são muito claros. Apesar de se classificar a obra como integrando o gênero histórico, seus fins são apologéticos. Até o ano 300, quando Eusébio publicou o livro VII, ele não poderia imaginar que rumo tomaria a história da ecclesia. De perseguida à triunfante, eis a ideia que Eusébio quis transmitir. Dada a oportunidade, durante o reinado de Constantino, a obra foi publicada na sua completude, tendo por objetivo a apologia à fé cristã e aos seus “feitos” desde a Encarnação. Assim, tal obra foi designada, sobretudo, a explicar e a validar o fenômeno do cristianismo aos céticos dos dias de Eusébio, de modo a revelar a historicidade do movimento que era composto por um povo predestinado por Deus (Minton, 2002). Especificamente pelo livro V, percebe-se que Eusébio está preocupado em explicitar algo muito precioso: os principais acontecimentos do século II. O livro em questão revela a dinâmica do poder e da sociabilidade entre os bispos, abordando a vida das principais personagens eclesiásticas daquele período, dentre elas, as que participaram da questão quartodecimana. 1 No século II, em especial na sua segunda metade, os conflitos internos e externos na ecclesia eram constantes por diversos fatores, podendo-se destacar as “indefinições” no que concerne às hierarquias dentro das comunidades e, principalmente, as divergências de costumes que cada comunidade se dedicava a preservar. As diferenças não estavam necessariamente atreladas ao campo doutrinário em si, mesmo porque grande parte dos cristãos cria que Jesus era o cumprimento da promessa messiânica judaica do Cristo, o Salvador. Jesus era considerado pelas comunidades uma pessoa digna de adoração, sendo esta praticada por meio da eucaristia, do ágape, dos hinos e dos resumos teológicos advindos dos apóstolos e das escrituras (Bock, 2006). Na realidade, as maiores divergências se estabeleceram no campo do pluralismo cultural, ou seja, no âmbito das tradições e dos costumes locais. Nesse sentido, no século I, por meio dos escritos dos apóstolos, em especial os de Paulo, observa-se um não comprometimento em instituir regras de caráter cultual nas comunidades, mas somente em relação ao que eles denominavam “doutrina de Cristo”. O próprio apóstolo Paulo chega a afirmar que não se deveria seguir qualquer doutrina além daquela instituída pela

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ecclesia, pois isso seria algo vão. Veja-se no trecho a seguir: Portanto, assim como recebestes Cristo Jesus o Senhor, assim nele andai, arraigados nele, nele edificado, e apoiados na fé, como apreendestes, e transbordando em ações de graças. Tomai cuidado para que ninguém vós escravize por vãs e enganosas especulações da ‘filosofia’, segundo a tradição dos homens, segundo os elementos do mundo, e não segundo Cristo (Col 2, 6-8).

Ele ainda declara, na mesma carta, o seguinte: “Portanto, ninguém vos julgue pelo comer, ou pelo beber, ou por causa dos dias de festa, ou da lua nova, ou dos sábados” (Col 2:16). Assim, percebe-se que os apóstolos estavam interessados em estabelecer uma doutrina denominada “doutrina dos apóstolos” ou “sã doutrina” (At 2:42; 1 Tm 1:10; 2 Tm 4:3; Tt 2:1; Tt 1:9) nas comunidades, e não buscavam constituir normas culturais, mesmo porque as assembleias locais se diferenciavam em suas práticas litúrgicas, muito mais identificadas com os costumes regionais, étnicos e do missionário fundador da comunidade do que com uma assembleia geral. Deve-se destacar, entretanto, que Paulo e outros apóstolos procuravam ativamente estabelecer, em cada comunidade visitada, a noção de “povo universal de Deus”, sendo esta a única reivindicação de universalização da ecclesia no século I, bem diferente daquela apregoada nos séculos posteriores (Buell, 2002). No século II, contudo, algumas mudanças foram se delineando. Diferentemente do século I, as comunidades cristãs ortodoxas começaram a se deparar com perseguições locais e imperiais mais frequentes e heresias que proliferavam. Dadas essas circunstâncias, com o tempo, foi verificando-se que o “pluralismo cultural” era nocivo à “tão necessária” unidade, institucionalização e formação de identidade da ecclesia. Sobrevirá, desse modo, um litígio envolvendo as comunidades ortodoxas que vai perdurar por todo o século II. Ele se inicia num desacordo sobre a data da comemoração da Páscoa, pois as comunidades cristãs do Oriente, de tradição joanina, celebravam-na no décimo quarto dia da lua do mês de Nisã, no sábado, segundo o costume judaico; mas os cristãos do Ocidente festejavam-na no domingo após o décimo quarto dia da lua. As comunidades do Oriente compartilhavam uma mesma tradi-

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ção advinda do judaísmo. A Pessach (Páscoa judaica) era celebrada na tarde do dia 14 do mês de Nisã, um dia antes da festa dos Pães Ázimos que começava no dia 15 de Nisã e que continuava por mais sete dias (Êx 12; Lv. 23:5-6). Nos tempos de Jesus, ambas as festas já eram tratadas como sendo uma somente (Lc 22:1), a celebração do fim do cativeiro do Egito (Êx 12:1-28). Apesar de a comemoração quartodecimana estar, obviamente, baseada nas festas judaicas, havia uma mudança tipológica, pois o cordeiro que era morto na comemoração da Pessach era substituído, nas comunidades cristãs da Ásia, pelo memorial do pão e do vinho, representantes do Cristo crucificado. O fato é que a questão surgiu quando as comunidades da Ásia e de Roma se perceberam desunidas por datarem um evento tão importante em dias tão diferentes. Assim, na primeira metade do II século, o bispo Policarpo foi a Roma a fim de entrar em comum acordo sobre o assunto com o bispo Aniceto.2 Este não conseguiu convencer Policarpo io Romano as comunidades. eria que Roma exercesse dominio episcopal na a não observar aquilo que sempre praticara com João e com outros apóstolos que com ele conviveram; nem aquele convenceu Aniceto, que aprendera o seu costume com os presbíteros precedentes da comunidade de Roma. Mesmo mantida a questão controversa, Aniceto cedeu a Policarpo, provavelmente por respeito à sua idade já avançada. Entretanto, apesar de se separarem em paz, a questão renasceu em muitas ocasiões, envolvendo diversas congregações como, por exemplo: as comunidades da Palestina e de Alexandria, que entraram em concordância sobre o assunto; a comunidade de Sardes, sob liderança de Melitão, seu bispo, que escreveu sobre a questão da Páscoa em Laodiceia; entre outras. Agora, uma questão basilar é o porquê de se buscar uma data única especificamente para a Páscoa? O período de Páscoa era um momento singular no cotidiano das comunidades, pois era durante essa data que se celebrava a eucharisto (“dar graças”). Vale destacar que a eucaristia não era celebrada somente na Páscoa, mas era nessa ocasião que se comemorava, em caráter especial e solene, a última ceia de Jesus. Drummond (1897) enfatiza que a Páscoa era uma comemoração anual da última ceia, portanto, seu clímax era a eucaristia (Story, 1989). A refeição da Páscoa era o momento mais aguar-

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dado. Esta simbolizava, por meio dos elementos eucarísticos, a aliança estabelecida por Jesus com seus discípulos e a redenção conquistado por estes (Mc Clendon, 2002). Então, assim como na Pessach se comemorava a libertação do povo do Egito, fazendo-se a imolação de um cordeiro; a Páscoa cristã tinha a eucaristia como o ápice, por excelência, pois festejava a paixão, a ressurreição e o advento do cordeiro de Deus (Ricardson, 1940). No início do século II, Inácio de Antioquia, um dos mestres de Policarpo, preocupou-se em abordar o cerimonial eucarístico em suas cartas.3 Segundo ele, o bispo era o chefe dos rituais religiosos, e isso incluía a eucaristia. O “zelo” do líder preservaria a integridade e a unidade da comunidade (Filomano, 1997). Inácio vê o consumo dos elementos eucarísticos como um evento participativo, entendendo que, segundo Schoedel (apud Foster, 2006, p. 8), “o rito eucarístico era o centro da adoração”. Na defesa da unidade, a prática da eucaristia, para o bispo de Antioquia, terá um papel singular, como um elemento formativo e central da ecclesia, manifestação do amor incorporado até a imortalidade e, ao mesmo tempo, arma segura e contínua na derrota do diabo. Deste modo, se Inácio de Antioquia, um representante do pensamento dos líderes do II século, identificava o herético como alguém que estava em completa oposição ao que participava da ceia, e, se a eucaristia era uma celebração da unidade da ecclesia, como as comunidades cristãs poderiam comemorar a sua ocasião mais solene em datas tão distintas e, ainda, remontando tradições tão diferentes? Foi este um dos questionamentos dos líderes eclesiásticos de meados do século II. Na segunda metade do século II, Policarpo já havia morrido, e vários sínodos já haviam sido feitos para discutir novamente o tema, sendo decidido que adotariam a tradição do Ocidente e não a do Oriente de origem judaica. Contudo, os bispos da Ásia, sob a liderança de Polícrates, bispo de Éfeso, não aceitaram a decisão mais uma vez. Contrariado, por volta do ano 190, Polícrates enviou uma carta ao bispo de Roma, o norte-africano Vítor, discutindo o assunto e argumentando que havia sido na Ásia que “se repousou os grandes astros, que hão de ressuscitar no dia da parousia do Senhor” (Hist. Ecles. V, 24, 2), entre eles Filipe, com suas quatro filhas profetisas, o apóstolo João e outros importantes personagens do início do século II, como Policarpo de Esmirna e Melitão de Sardes.

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Em um importante trecho, Polícrades chega a afirmar: Todos eles observaram a Páscoa no décimo quarto dia, segundo o evangelho, sem nenhuma transgressão, mas conformando-se a regra da fé. Também eu, o menor de todos vós, Polícrades, segundo a tradição dos meus, sigo alguns deles. Sete de meus parentes foram bispos e eu sou o oitavo. Sempre meus parentes guardaram o dia em que o povo se abstinha de pão fermentado. Quanto a mim, irmãos, tenho sessenta e cinco anos no Senhor. Tenho relações com os irmãos do mundo inteiro. Percorri toda a Sagrada Escritura. Não me assustam os que procuraram me abalar, pois os meus maiores disseram: “É preciso obedecer antes a Deus que aos homens” (Hist. Ecles. V, 24, 67).

Escrita na presença dos bispos da Ásia Menor (Hist. Ecles. V, 24, 8), a carta de Polícrades esclarece as razões pelas quais os bispos asiáticos preferiam continuar mantendo o costume da Páscoa quartodecimana. O argumento de Polícrates buscou legitimar a conduta dos bispos da Ásia por meio de sua própria autoridade como presbítero (ancião) proveniente da sucessão de bispos, validada a partir da autoridade da antiga tradição apostólica instituída pelos apóstolos João e Filipe. Pelo estilo de defesa encontrado na epístola, especialmente com a utilização da máxima “É preciso obedecer antes a Deus do que aos homens” (At 5:29), pode-se conjecturar que o bispo de Roma tê-la-ia considerado uma carta arrogante, ameaçadora e prepotente. Buscando obliterar as diferenças, Vítor decretou a ruptura da ecclesia romana com as comunidades da Ásia Menor e suas vizinhas, considerando-as heterodoxas. Além do dia da Páscoa, havia outras disparidades em questão, dentre elas o modo de jejuar, o que tornou o problema ainda mais pujante. A decisão extrema do bispo Vítor não aprouve a todos os bispos, inclusive Ireneu de Lião que, controversamente, em sua obra Contra as heresias, por muitas vezes, defendeu a comunidade de Roma. 4 Ireneu escreveu ao bispo Vítor para que este preservasse a paz e a unidade com as comunidades da Ásia. Ele admitiu que a Páscoa só deveria ser celebrada no dia do Senhor (domingo), mas advertiu Vítor a não execrar as comunidades somente por observarem tal costume de modo diferente. Os bispos da Ásia, no entanto, mantiveram sua posição.

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O bispo Vítor e a comunidade de Roma A fim de compreender a atitude extrema de Vítor, é necessário entender um pouco da história da comunidade de Roma e da própria trajetória de vida do bispo. Sob o aspecto filosófico-religioso, a cidade de Roma, nos dois primeiros séculos, convivia com antigas tradições religiosas em meio à proliferação dos cultos orientais (entre eles o cristianismo), a um forte influxo de escolas e de centros filosóficos (muitas vezes rivais) e a numerosas sinagogas, compartilhando as mais variadas tradições judaicas (Vinzent, 2006). É provável que o apóstolo Paulo tenha sido um dos primeiros missionários em Roma junto a Priscila e Áquila. A comunidade cristã em Roma institui-se com um caráter fortemente gentílico, sendo que Brown e Meier (1983) vão além, ao afirmarem que a comunidade romana, além de gentílica, tinha grande aversão ao judaísmo pelo fato de ter sido formada aos moldes da doutrina paulina. Por esse motivo, no século II, a ecclesia de Roma vai gerar figuras como Marcião, fruto do antijudaismo local, e o próprio bispo Vítor que, apesar de não ter nascido em Roma, foi criado em uma cultura fortemente latinizada.5 Todavia, ao longo do segundo século, a comunidade de Roma passou por uma longa crise de identidade. Muitas heresias se formaram; algumas advindas da própria ecclesia. Das mais de quinze heresias citadas pelo bispo Ireneu de Lião na obra Contra as heresias, a maior parte delas nasceu no Oriente do Império, sendo que, no mínimo, cinco se organizaram em Roma, e seus chefes ali se estabeleceram como, por exemplo, Valentino, Marcião, Cerdão, Carpócrates e Simão. Assim, na carência de coesão sobrevieram à comunidade figuras como o bispo Vítor, levantando-se com voz de comando, a fim de fortalecer a unidade e de garantir a sobrevivência da assembleia. Vítor era um nativo da África romana. Segundo Souvay (1929), o bispo era um homem culto, criado em uma cultura tipicamente latina, ligada à lei, à administração, à exaltação da ordem e da autoridade central. Ainda segundo o mesmo autor, no discurso de Vítor transparece algo comum entre os latinos: a aversão ao intelectualismo e ao orgulho oriental. Ele não só foi contra a anarquia de comunidades locais como tentou impor uma regra disciplinar, fazendo valer os direitos de uma hierarquia sacerdotal. De fato, a atitude de Vítor está em consonância com a ideia de que o serviço sacerdotal empreendi-

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do pelos bispos era um serviço pela unidade da comunidade. Ou seja: como representante da assembleia romana, o bispo valeu-se do direito de interpretar a tradição cristã, em nome da unidade e à luz das práticas, das necessidades e das circunstâncias das comunidades cristãs locais (La Piana, 1925). O africano buscava, acima de tudo, uma única disciplina na ecclesia e uma uniformidade litúrgica, mesmo que isso ferisse os episcopados regionais, pois ele sabia, por sua própria experiência em Roma, quão danosas eram as divisões para as comunidades (Souvay, 1929). É importante ressaltar que a atitude de Vítor ultrapassa aquilo que sua própria autoridade como bispo local permitia. Por esse motivo, houve tantas discordâncias quanto à sua decisão de excomungar as comunidades asiáticas. De fato, a posição de Vítor aponta para um episcopado monárquico em que todo e qualquer ato de autoridade poderá ser considerado legítimo, pois o cargo que o agente ocupa, no caso o de epískopos, possui um banco de capital simbólico no qual qualquer ação, por mais arbitrária que seja, deve ser vista como legítima e autorizada. Identifica-se, assim, o bispo de Roma investindo a si mesmo da autoridade de um bispo monárquico em franca ascensão. Não mais uma teoria do episcopado monárquico estava sendo apregoada, como foi por Inácio de Antioquia no início do século II; mas, na práxis religiosa, o episcopado monárquico estava lançando suas bases, a partir de uma disputa de poder pelo monopólio do sagrado. A forma de episcopado monárquico adotada por Vítor é a expressão clara de uma tentativa vigorosa de superação das resistências locais, a fim de valer-se do princípio de unidade de costumes em nome de uma ecclesia forte nos moldes da cultura romana. Assim, segundo o bispo de Roma, era necessário, a qualquer custo, que os agregados locais perdessem suas especificidades em nome de uma Igreja “universal” (católica) com uma única autoridade centrada no bispo de Roma. Roma versus Ásia Menor É fato que as comunidades locais tinham relações translocais embasadas em cooperação mútua e hospitalidade, mas a base principal para as associações cristãs foi de âmbito local (Ascough, 1997).

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Desse modo, é possível descobrir o porquê de as congregações da Ásia não entrarem em comum acordo com Roma, pois, apesar de haver comunicação entre elas, não havia vínculos fortes o bastante para a criação de uma solidariedade bem estabelecida. No século II, Roma buscou a unidade por meio da superação de todos os tipos de divisões, em especial, divergências de doutrinas e de práticas. Não o fez mais por intermédio de debates teológicos e filosóficos, mas por meio de medidas disciplinares, a fim de que a comunidade aumentasse seu poder organizacional e hierárquico e fosse conduzida a eliminar todos os grupos e as tendências que não poderiam ser conquistados ou equiparados (La Piana, 1925). Sendo assim, a relação entre as comunidades da Ásia e de Roma passou, figurativamente, de um estado simbiótico para um osmótico, quer dizer, de uma relação de associação para um estágio gradual de assimilação mútua (Brown; Meier, 1983). No momento da controvérsia quartodecimana, Roma era uma comunidade de prestígio entre os cristãos de outras comunidades, apesar de não gozar de um status de poderio sênior como sua atitude supunha (Fox, 1986). Isto é: apesar da indiscutível importância de Roma, ela não exercia, no século II, um controle eclesiástico sobre as demais comunidades; no máximo, ela o queria. As comunidades cristãs, nesse período, estavam dispersas em várias comunidades pelo Império, sendo que todas pleiteavam representar a tradição original (Pagels, 2006). O caso da Ásia Menor revela que, se comparado a Roma, o Oriente conseguiu estruturar-se mais rapidamente. Isso porque os bispos obtiveram a centralização do poder desde cedo. Já no Ocidente, sob a liderança de Roma, percebe-se que tal processo se deu mais lentamente, ao passo que os problemas com as heresias eram maiores, apesar de se observar uma imposição mais intensa da autoridade do bispo de Roma sobre as demais comunidades. Uma das grandes diferenças entre as comunidades da Ásia Menor e de Roma está no fato de que esta foi governada por um comitê durante muito tempo, ao passo que aquela já tinha um governo com um único bispo (Kaufman, 1996). Partindo-se de tais discussões, tem-se a ideia de que havia dois cristianismos: um que se identificava como uma continuidade do judaísmo, preservando a liturgia e os rituais tradicionais judaicos (Rouwhorst, 1997); outro que pregava a destruição do judaísmo e a

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ascensão de um modus vivendi comunitário e gentílico (Renan, 1929). Sendo assim, a primeira corrente almejava que cada bispo dominasse sua própria comunidade nos moldes de um bispo-profeta; enquanto a segunda ambicionava que Roma, sob a liderança de um único bispo, exercesse o domínio sobre todas as comunidades cristãs do Império Romano na figura de um bispo-apóstolo. Conclusão Rituais costumam estar atrelados a tradições. As pessoas que participam de cerimônias ritualísticas tendem a remontar ao passado em que foram instituídas por alguma autoridade. Esse foi o caso da Páscoa das comunidades da Ásia, mas não o da comunidade de Roma. Enquanto os asiáticos buscavam legitimar sua Páscoa por meio da tradição dos apóstolos; Roma argumentava em favor de sua própria autoridade episcopal. E será nesse momento que a figura do bispo vai elevar-se ao topo da hierarquia, distinguindo-se como protagonista dos cultos, instituindo cargos e normas, enfim, tornandose uma peça fundamental na institucionalização da própria Igreja. Entende-se que a Igreja precisava se formar como um movimento social, porém ela só conseguiria ascender como instituição social, se houvesse uma identidade compartilhada, uma liderança potencial e uma organização no grupo, a fim de adquirir capacidade de atuar coletivamente. E, sob esse aspecto, Roma saiu na frente, ao travar uma batalha pela unidade e contra simbolismos judaicos nas comunidades. Deve-se destacar que uma das maiores controvérsias do cristianismo primitivo foi exatamente a tentativa de tirar o calendário eclesiástico “das garras” do calendário judaico (Zerubavel, 1982). Todo o empreendimento se deu, primeiramente, por ser necessário que o cristianismo criasse uma identidade própria desvinculada do judaísmo, e, ainda, por ser sabido que a preservação de uma tradição uniforme era o único modo pelo qual a associação entre as comunidades seria possível. A questão quartodecimana foi fundamental para a formação da instituição cristã, pois, ao se estipular um calendário único, acabou-se por solidificar a solidariedade de um grupo. As ideias (tradição) e a pessoa para a qual apontam (Jesus Cristo) eram o fator de

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união das diversas comunidades (Bock, 2006). Todavia, os costumes adotados em cada uma delas, muitos não explicitados na doutrina, geravam diversas contendas como a questão quartodecimana. A controvérsia foi um reflexo simbólico dos contrastes sociais e da necessidade de se instituir um grupo coeso sob a liderança de uma única voz. Desse modo, o calendário funciona como uma trama no tecido social no qual se preserva a estrutura entre os homens e as coisas ao que se chama de instituição. Para o bispo de Roma, a ecclesia cristã só sobreviveria se esta se organizasse como uma instituição forte, com uma identidade própria e constituída em torno de uma figura com poder agregador, no caso, o bispo. Apesar da postura radical adotada por Vítor, as congregações da Ásia não mudarão em seus costumes, mas continuarão observando-os até o tempo de Constantino, quando essa questão será levantada novamente no Concílio de Niceia, e todas as congregações serão obrigadas a adotar a decisão aí tomada (Drummond, 1897). Embora a questão quartodecimana só tenha sido resolvida no século IV, o episcopado monárquico, já no final do século II, revela-se uma forte e promissora tendência dentro de toda a ecclesia. Referências Documentação primária impressa BÍBLIA. Bíblia de Jerusalém revista e ampliada. São Paulo: Paulus, 2006. CESÁREA, Eusébio de. História eclesiástica. Madrid: BAC, 1997. HARVEY, William W. Sancti Irenaei (episcopi lugdunensis) – Libros quinque adversus haereses: tomos I e II. Cantabrigiae: Typis Academicis, 1867. HOLMES, Michel W. The apostolic fathers: greek texts and english translations. Michingan: Baker, 1999. Obras de apoio ASCOUGH S. Richard. Translocal relationship among voluntary

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Graduada em História e mestra pelo PPGHis/Ufes sob orientação do Prof. Dr. Gilvan Ventura da Silva. 1 Tendo por base as fontes originais encontradas na Biblioteca de Cesareia, os documentos utilizados por Eusébio, para abordar a controvérsia analisada, podem ser divididos, segundo o próprio autor, em: 1) cartas dos bispos da Palestina, sob a presidência de Teófilo de Cesaréia e Narciso de Jerusalém; 2) uma carta acerca de uma reunião de bispos em Roma, na qual se observa que Vítor era o bispo local; 3) uma carta dos bispos da Península do Ponto, sob a presidência de Palmas; 4) uma carta das

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comunidades da Gália, onde Ireneu era bispo; 5) uma carta de Osroena e seus bispos; 6) uma carta pessoal de Baquilo, bispo de Corinto; 7) e muitas outras (Hist. Ecles. V, 23, 3,4). Pode-se incluir, ainda, nessa listagem a carta de Polícrades de Éfeso ao bispo de Roma, que ilustra a posição quartodecimana (Carriker, 2003). 2 Policarpo foi um famoso bispo de Esmirna, que viveu entre a segunda metade do século I e a primeira metade do século II e morreu martirizado no ano de 156 (Frangiotti, 1995). 3 Integrante do heterogêneo grupo denominado Padres Apostólicos, Inácio, bispo de Antioquia na Síria, escreveu um dos mais intrigantes documentos da história da Igreja. Durante as poucas semanas que esteve rumo ao martírio em Roma, que ocorreu por volta do ano 110, Inácio confeccionou, aos moldes de um testamento, sete cartas que iriam mudar a história das ecclesiae de seu tempo e influenciar toda uma reflexão teológica posterior. 4 Ireneu, bispo de Lião, antiga Lugdunum, na Gália, compôs um dos mais importantes trabalhos teológicos do segundo século, Refutação da falsa gnose, ou, como comumente é chamada, Contra as heresias. Com muita lucidez, mas sem o estilo de escrita brilhante de um filósofo erudito, Ireneu fez a exposição das ideias centrais da fé cristã em um momento no qual a ecclesia passava por profundas e significativas transformações das quais ele mesmo participou ativamente. 5 Marcião era filho do bispo de Sinope no Ponto, nascido por volta do ano 110, Epifânio (Heres, XLII, 2) diz que Marcião, em sua juventude, decidiu viver em castidade e ascetismo, mas acabou se envolvendo com uma jovem. Em consequência disso, seu pai o expulsou da comunidade cristã. Não sendo capaz de suportar o desprezo de seus conterrâneos, deixou Sinope, viajou a Roma e lá se estabeleceu. Alguns alegam que ele tenha se separado de seu pai por questões doutrinárias, mas não se sabe ao certo. Marcião é considerado um teólogo bíblico e tinha como principal tese a negação do Deus Jeová do Antigo Testamento ser o mesmo do Novo Testamento. Sob a visão dualista de Marcião, o Deus dos judeus seria um Deus mau, enquanto aquele que havia enviado Jesus era um Deus bom. Para o teólogo, deveriam ser considerados como textos sagrados somente os escritos de Paulo. Marcião teve muitos seguidores e idealizou uma seita, denominada marcionista, que se manteve por alguns séculos (O’Connor, 2003).

A DEFESA DA IDENTIDADE GRECORROMANA COM BASE NA OBRA ALETHÈS LOGOS, DE CELSO Carolline da Silva Soares*

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presente texto tem a intenção de discutir as acusações e críticas do filósofo pagão Celso ao judaísmo e, sobretudo, ao cristianismo, presentes em sua obra Alethès Logos. E, por meio desta, analisar as palavras de Celso como um mecanismo de defesa da sua identidade, ou seja, da identidade greco-romana e de seus valores e costumes, em sua concepção, ameaçados por uma nova crença que se alastrava pelo Império Romano, o cristianismo. A αληθησ λογοσ de Celso, traduzida como Palavra Verdadeira ou, ainda, Doutrina Verdadeira, nos é conhecida hoje por meio da obra Contra Celso, de Orígenes. Nesta, o presbítero cristão refuta as acusações contra o cristianismo, transcrevendo proposição por proposição, sentença por sentença, os argumentos de Celso. Com isso, reconstitui, praticamente, toda a obra de Celso. O Contra Celso é de grande importância na história da luta intelectual entre o paganismo e o cristianismo, comparável apenas à Cidade de Deus, de Agostinho de Hipona (Chadwick, 1953). Em suas acusações contra o cristianismo, Celso se vale de um

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discurso elevadíssimo, levando em consideração autores que igualmente atacaram a fé cristã e escreveram antes dele. Não é um mero escarnecedor, como o satírico Luciano de Samósata ou Marco Cornélio Fronto. Apesar do trabalho de Celso reunir muitas das críticas e acusações feitas aos cristãos que pululavam no século II, o fato é que ele utilizou-se de argumentos mais sólidos para fundamentá-las, ao contrário de apenas reproduzi-las. Ele se mostra um leitor dos livros sagrados do judaísmo e do cristianismo – do Talmude e do Antigo e do Novo Testamentos; grande conhecedor da mitologia greco-romana, como era de praxe para um indivíduo da elite imperial; de histórias do folclore e da religião dos egípcios, persas, indianos, e tantos outros povos (Benko, 1985). Celso é herdeiro da cultura grega, homem com um grande conhecimento, viajado e lido, interessado em astronomia, música, história natural, tradição antiga e contemporânea. Mais que isso, ele é o primeiro não-cristão de seu tempo a ter um saber competente e alargado em relação à doutrina cristã (Whale, 1930). Não é de se estranhar que sua obra seja considerada, atualmente, a primeira e a maior dos textos anti-cristãos (Spinelli, 2002). O método utilizado por Celso em sua obra para atacar o cristianismo e o judaísmo possui um estilo polêmico. É uma mistura heterogênea de fatos, com uma riqueza de informações provenientes de várias áreas do conhecimento. Celso cita vários poetas, historiadores e filósofos, sobretudo Platão, mas não meros resumos, e sim longas passagens transcritas deste filósofo e de sua Academia. Faz também a aplicação de vários elementos emprestados de diversas fontes da história religiosa, da literatura, das instituições e da vida social. Podemos ver em sua obra as exclamações, perguntas e dilemas do seu cotidiano e a formulação de argumentos dirigidos contra todos os cristãos. O trabalho de Celso pertence a uma tradição de mobilização a tudo aquilo que se mostrava estranho e esquisito aos olhos de um pagão e, nesse caso, foi representado pelo movimento cristão. Celso admite que seu método para expor as origens do cristianismo é descrever tudo o que os seus adeptos exaltam: sua doutrina, seu culto e sua história. Examinando o que eles sabem ou o que eles ignoram, não poupa nem as crenças e costumes cristãos, nem mesmo as personagens e comunidades judaico-cristãs (Borret, 1976). Ademais, faz uso de um método comparativo para restaurar

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os dogmas cristãos e classificá-los como antigas ficções e lendas ultrapassadas (Labriolle, 1935). Os escritores cristãos de finais do segundo e inícios do terceiro século, entretanto, não comentam acerca da obra de Celso. Ela foi reproduzida por Orígenes, em parte, apenas por conta do pedido de seu amigo e patrono Ambrósio, que solicitou que ela fosse refutada. É possível que após a resposta de Orígenes o trabalho de Celso tenha sido destruído ou se perdido, pois em 325, com Constantino, no Concílio de Niceia, e, um século mais tarde, com os imperadores cristãos Teodósio II e Valentiniano III, os quais prescreveram a destruição de todos os escritos suscetíveis de excitar a cólera divina, o livro de Celso não foi mencionado ao lado dos livros de Porfírio e de Ário (Rougier, 1925). Celso escreveu, provavelmente, no período entre 177 e 180, após as perseguições na Gália e no Oriente, em finais do período de governo de Marco Aurélio.1 Em fins do segundo século abundaram os panfletos cristãos endereçados aos imperadores. Tais escritos em sua maioria eram apologias, isto é, escritos em que os adeptos do cristianismo, versados na educação greco-romana, objetivavam explanar acerca da crença cristã, ao mesmo tempo em que rogavam a benevolência dos imperadores e pediam o fim das perseguições.2 Os problemas do reinado de Marco Aurélio foram vistos como manifestação da cólera divina atribuída pelos cristãos à impiedade dos pagãos idólatras, e pelos pagãos ao ateísmo dos cristãos. Celso atacou o cristianismo por todos os lados: primeiro transcreveu as críticas judaicas contra o cristianismo, depois criticou ele próprio os judeus e os cristãos, procurando mostrar o absurdo da história bíblica, da encarnação de Deus e da divindade de Jesus Cristo na vida cristã, da ressurreição futura, acumulando provas e argumentos, depois tantas vezes repetidos no decurso dos séculos. Porém, como conclusão, Celso promete a tolerância imperial aos cristãos em troca de sua ajuda ao Império que periclitava. As perseguições que os cristãos sofreram em finais do governo de Marco Aurélio foram, provavelmente, como acredita Celso, merecidas, pois estes abjuraram aos deuses do Império e, por conseguinte, sofreram a conseqüência de sua vingança. Era preciso que os cristãos fossem reprimidos energicamente, pensava a população pagã, para que se evitassem as catástrofes naturais, as guerras e as

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pestes, tidas como sinais de represália dos deuses. Além das honras e oferendas aos deuses era, igualmente, fundamental as conceder ao numen imperial, ou seja, ao genius do imperador, tido como o protetor da humanidade. Acerca disso, Celso argumenta: “Mesmo que te ordenem jurar por um imperador entre os homens, nada há a temer. Pois as coisas da terra lhe foram entregues e tudo que recebemos nesta vida recebemos dele” (Con.Cels. VIII, 67).3 O pão que se comia, o vinho agradável, os frutos, tudo existia graças à benevolência do genius deste imperador, responsável pela boa ordem, pela harmonia do mundo. Como Pontifex Maximus, isto é, chefe supremo da religião romana, o imperador era a ponte, a ligação entre os deuses e os homens. Ele era na terra o instrumento da bondade divina. De tal modo, foi esta concepção que os cristãos rejeitaram e, assim, transformaram-se em traidores, desleais, ateus e sacrílegos perante os olhos dos pagãos. Diferentemente da religião greco-romana, o judaísmo e o cristianismo não toleravam a prática de um segundo culto. No entanto, o judaísmo, do ponto de vista oficial, pelo menos até o governo de Justiniano, foi considerado uma religio licita e o Estado romano permaneceu tolerante em relação ao judaísmo, apesar de seu monoteísmo rigoroso (Silva, 2006). Os judeus possuíam certos direitos dentro da sociedade romana, como o fato de não cultuarem o imperador em razão do seu monoteísmo, o que era permitido em razão de mostrarem seu respeito ao Estado romano por meio de ofertas e de sacrifícios em nome do imperador. Nessa conjuntura, os cristãos se recusavam a adorar o imperador, acreditando que era insulto ao seu Deus único. Mas o culto imperial era um símbolo de fidelidade a Roma, e a recusa dos cristãos de se “integrarem ao Império” gerava desconfiança nos governantes. Foram também acusados de cultivarem uma indiferença cívica e taxados de antipatriotas, pois rejeitaram os deveres de um cidadão ideal, como participar de cargos públicos ou servir no exército. Para os cristãos, isto era incompatível com sua crença monoteísta, já que os cidadãos que ocupassem tais postos deveriam jurar fidelidade aos deuses pagãos e ao imperador, como de praxe, mas os cristãos recusavam-se a este juramento. A atitude cristã de desprezo a tudo aquilo que era visto como essencial e primordial à cultura helenística

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greco-romana fez Celso se preocupar com o futuro do Império, que passava por conjunturas difíceis em fins do século II, de modo que conclui sua alhqhs logos exortando os cristãos a “socorrer o imperador com todas as forças, colaborar com suas justas obras, combater por ele, servir com seus soldados se o exigir, e com seus estrategos” (Con.Cels. VIII, 73) e, ainda, “a participar do governo da pátria se for necessário para a defesa das leis e da piedade” (Con.Cels. VIII, 75). Em sua obra, Celso tentou demonstrar que a doutrina cristã é falsa ao confirmar sua falsidade pelo ataque à sua origem judaica. Segundo ele, tal como o judaísmo, o cristianismo é apenas a perversão de uma doutrina mais antiga, uma doutrina anterior aos ensinamentos de Moisés e que Celso taxava de “Verdadeira”, tendo sido perpetuada pelos povos mais sábios e transmitida ao longo do tempo. Celso, em sua obra, fez uso de termos depreciativos para estigmatizar os cristãos e os judeus, tais como compará-los a pessoas idiotas, bandidos, ignorantes, incultos e a animais asquerosos como morcegos e rãs.4 Para o filósofo pagão, os cristãos colocaram em perigo os valores tradicionais greco-romanos, isto é, a humanitas. Em consonância com os ensinamentos de Elias e Scotson (2000), podemos afirmar que tentando preservar o que julgava ser de alto valor para a humanidade, Celso investiu contra os cristãos com o objetivo de preservar sua identidade grupal, ao mesmo tempo em que afirmava a superioridade da antiga tradição. A repressão romana era praticada contra todos aqueles que colocassem em perigo a segurança do Estado e a estabilidade social do Império. Apesar de Celso atacar também o judaísmo, é contra os adeptos da crença cristã que o pagão investe suas maiores reprovações, pois foram contra eles que se levantaram suspeitas de traição ao se recusar a prestar culto aos deuses e ao imperador, e cumprirem com o papel de um cidadão greco-romano, ocupando cargos públicos, lutando no exército e participando das festas, rituais e banquetes em preces de agradecimento às divindades. No período imperial, o culto ao imperador era prática essencial para a manutenção da pax deorum, apresentava um caráter oficial e de conotação política, além de ser parte importante da vida religiosa de Roma. Os cristãos, ao se negarem a tais deveres, foram perseguidos, torturados, martirizados e mortos, sendo, por conta disso, para os pagãos da época,

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como Celso, considerados um perigo político e social para todo o Império. Acreditamos que é devido às atitudes cristãs consideradas rebeldes que Celso confecciona sua obra de ataque ao cristianismo. Percebemos, diante de alguns trechos da Palavra Verdadeira, que Celso tentou segregar os cristãos como um grupo diferente e inferior aos pagãos. Ao distinguir de tal forma os cristãos, Celso e outros defenderam a crença pagã, o modo de ser e viver da sociedade grecoromana, ou seja, a romanidade. Depois de efetuarmos toda uma leitura acerca das tradições, costumes e hábitos do paganismo greco-romano, bem como da historiografia relativa ao cristianismo primitivo nos dois primeiros séculos do Império, observamos que havia uma considerável distinção entre o paganismo tradicional greco-romano e a crença cristã. O cristianismo carregava conceitos ininteligíveis para os pagãos da época, tais como a noção de pecado, de culpa e o de heresia. A religião pagã possuía uma linha de orientação precedente, seguia a tradição, o mos maiorum, não tinha dogmas e a ideia de Diabo, por exemplo, como no cristianismo. Os pagãos podiam cometer ações menos válidas e empreender erros, mas o pecado e a culpa eram conceitos sem qualquer significado (Jones; Pennick, 1999). O cristianismo baseava sua existência em fatos históricos, e não nos mitos, como o paganismo. Os pagãos honravam e veneravam seus mortos, enquanto os cristãos apenas rezavam por eles. Para a elite pagã, a essência da teologia cristã – a encarnação do Salvador, os seus sofrimentos e a sua ressurreição – era, simplesmente, ininteligível e motivo de escárnio, como demonstrou Celso (Eliade, 1979). A relação entre pagãos e cristãos, por conseguinte, não poderia deixar de ser conflituosa. De um lado, temos um grupo novo se inserindo em uma comunidade tradicional, os cristãos. De outro, temos essa mesma sociedade – romana – se vendo ameaçada pela insurgência do cristianismo. Os cristãos não compartilharam dos hábitos e costumes greco-romanos e, ainda, os criticavam. Fizeram-se portadores da verdadeira crença, diziam-se os portadores da verdadeira mensagem divina, recriminaram as práticas pagãs e julgaram-se como um grupo superior. Na medida em que os cristãos desprezaram e difamaram todo o modo de viver e de ser dos pagãos e, assim, ameaçaram toda

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a tradição greco-romana, Celso os representou e os estigmatizou de modo a depreciá-los. Na luta entre as representações pagãs e cristãs podemos perceber os mecanismos pelos quais os grupos impõem, ou tentam impor, a sua concepção de mundo, seus valores e o seu domínio (Chartier, 1987). Os conflitos entre o paganismo e o cristianismo são perceptíveis por meio das lutas entre representações sociais e graças aos vetores de força, ou seja, às relações de poder existente no seio da sociedade greco-romana. O poder, em consonância com as declarações de Foucault (1979), não é uma coisa que se possua, que esteja à disposição para quem o quiser, é, na verdade, uma relação entre pessoas, entre indivíduos ou grupos, e se caracteriza como uma relação entre comportamentos. Nesta sociedade o grupo pagão se encontrava numa posição superior, pois o paganismo era a religião oficial no Império e, neste contexto, o cristianismo era considerado apenas uma seita clandestina, uma superstitio.5 Com o poder em mãos, os pagãos, doravante, representaram os cristãos de forma depreciativa e forjaram para si uma auto-imagem altiva como parte de um mecanismo de manutenção de um status quo benéfico apenas para eles. Uma vez que o comportamento dos cristãos – recusa em adorar o imperador, cultuar os deuses, participar das festas e do exército e criticar os costumes e hábitos pagãos – gerou descontentamento na sociedade romana, esta respondeu com a estigmatização, segregação, exclusão e perseguições. Podemos dizer que, de certa forma, a intenção dos pagãos era que os cristãos se “colocassem em seu lugar”, assumissem sua função de cidadãos e deixassem de ser uma ameaça ao Império. Acreditamos que no processo de socialização, cada indivíduo aprende a conhecer seu lugar, “cada um aprende o seu lugar, construindo subjetivamente sua própria auto-referência e a referência do outro, como lugar simbólico daquilo que tem que legitimar como igual (ou como diferente) ou excluir, porque [é] inferior e indigno de compartilhar o mesmo espaço” (Novo, 2001). Desse modo, podemos dizer que os pagãos, ao atacarem os cristãos e sua crença, construíram sua auto-referência e a referência do outro – cristãos –, e, por não concordarem com as práticas cristãs, excluíram, segregaram, perseguiram e mataram, pois nas relações sociais e políticas, recorre-se muitas vezes à força para se conseguir

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exercer o poder. Quando um grupo tem o poder de lançar um estigma sobre o outro, este fenômeno é chamado por Elias e Scotson (2000) de sociodinâmica da estigmatização, acontecendo aquilo que Derrida nos fala sobre as oposições binárias, ou seja, que nelas não se expressa simplesmente uma divisão do mundo em duas classes simétricas, mas que numa oposição binária um grupo é sempre privilegiado, recebendo um valor positivo, enquanto o outro recebe uma carga negativa. A capacidade para classificar os que se encontravam em uma posição inferior foi uma importante arma simbólica para os pagãos, que ocupavam uma posição de poder privilegiada. A estigmatização dos outsiders – os cristãos – pelo grupo estabelecido – os pagãos – foi uma estratégia poderosa para que este último preservasse sua identidade e afirmasse sua superioridade, mantendo os outros firmemente em seu lugar. Celso, como representante da sociedade pagã greco-romana, reuniu em sua obra as críticas mais comuns e corriqueiras da época atribuídas aos cristãos. Assim, por meio dos escritos de Celso e da historiografia relativa ao tema percebemos que os cristãos foram rotulados de ateus, antropófagos, inimigos do gênero humano, praticantes de delitos ocultos, tais como incesto, infanticídio e canibalismo ritual, entre outras acusações. Seguindo as declarações de Héritier (2000), para o qual a intolerância “é sempre [...] a expressão de uma vontade de assegurar a coesão daquilo que é considerado como que saído de Si, idêntico a Si, que destrói tudo o que se opõe a essa proeminência absoluta [e que] ela serve aos interesses que se julgam ameaçados”, a intolerância pagã perante os cristãos se manifestou por meio de procedimentos de proibição, de exclusão e, sobretudo, de perseguição (Le Goff, 2000), uma vez que as multidões estavam sempre dispostas a acreditar que catástrofes como dilúvios, más colheitas ou invasões bárbaras equivaliam a um sinal de descontentamento divino, provocado pela negligência atribuída ao ateísmo cristão em relação aos mos maiorum (Chadwick, 1967). Criou-se, portanto, em volta deles todo um estigma proveniente da concepção pagã de mundo. Acreditamos que a estigmatização fez-se necessária, pois a sociedade pagã sentiu-se ameaçada por essa nova crença que se expandia – o cristianismo. Foi para preservar sua identidade que os

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pagãos cultos, como Celso, estigmatizaram os cristãos, atribuindolhes predicados negativos e diferenciando-os como um grupo à parte e inferior. Nos momentos de mudança e/ou de “crise”, como os que acometiam o Império Romano em finais do século II, alguns indivíduos ou grupos são escolhidos como bodes expiatórios, sob o pretexto de que são diferentes e deficientes por não conjugarem da “normalidade” estabelecida. As representações depreciativas que a sociedade pagã fez dos cristãos – por meio de estigmas e preconceitos – foi uma forma de defesa da identidade, sobretudo nesses períodos de crise, que geram muita insegurança (Joffe, 1998). As identidades, assim como as representações sociais, são sistemas simbólicos que criam sentido para uma determinada realidade e, também, estão sujeitas a relações de poder, pois elas são impostas e não são facilmente definidas, não convivem em harmonia nesta sociedade, elas são disputadas. A identidade é fabricada em relação à alteridade e vice-versa, logo elas são mutuamente determinadas. As identidades, desse modo, são construídas por meio da marcação da diferença e depende desta (Woodward, 2000). Podemos afirmar que o grupo de indivíduos que compunha a sociedade pagã se fez portadora de uma identidade “normalizada”, e que a partir dessa identidade dita normalizada é que foram mensuradas as outras identidades – como a cristã –, às quais se atribuiu uma carga de negatividade, convertendo-a em alteridade, em comportamento estranho, exótico, não adaptado (Silva, 2004). Sem a percepção daquilo que lhe é diferente – a alteridade – não é possível produzir os parâmetros que possibilitam ao eu a construção de seu próprio sentido, isto é, não apenas sua existência, mas principalmente sua identidade (Jovchelovitch, 1998). Compartilhamos, assim, da idéia de Elias e Scotson (2000) de que os pagãos – o grupo que detinha o poder – viam-se como pessoas melhores, portadoras de uma espécie de carisma grupal, de uma virtude específica que era compartilhada por todos os seus membros e que faltava aos outros, ou seja, aos cristãos. Os indivíduos que compartilhavam da mesma crença que Celso, ao desprezarem e estigmatizarem os cristãos como pessoas de uma espécie inferior, atribuíram a si mesmos características humanas superiores. Os cristãos foram considerados ignorantes e

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insensíveis frente a todos os problemas pelos quais o Império Romano atravessava, logo, contra eles foi criado todo um mecanismo de intolerância que consistia na convicção de que eles não pensavam, não sentiam, não reagiam como os pagãos, que se consideravam a essência da humanidade e da civilização (Héritier, 2000). Rotular os cristãos com a etiqueta de “valor humano inferior” foi uma das armas utilizadas por Celso e por outros pagãos na disputa de poder, como forma de manter sua superioridade social. Nesse contexto, “o estigma social imposto pelo grupo mais poderoso ao menos poderoso costuma penetrar na auto-imagem deste último e, com isso, enfraquecê-lo e desarmá-lo”. A aptidão para estigmatizar, por outro lado, diminui ou até se inverte, quando este grupo “superior” deixa de manter suas condições de monopólio das principais fontes de poder existentes na sociedade e de excluir os outsiders. Se as desigualdades entre as forças diminuem, os grupos outsiders tendem a retaliar, por sua vez, e apelam para a contra-estigmatização (Elias; Scotson, 2000). Percebemos, assim, a contra-estigmatização dos cristãos em relações aos pagãos desde os seus primórdios, porém essa estigmatização não produziu muitos resultados, uma vez que era o grupo pagão que detinha o poder na sociedade greco-romana nesse período. Vamos ver o mecanismo cristão de exclusão e produção de rótulos estigmatizantes contra os pagãos – e, também, contra os judeus –, começar a gerar frutos apenas com a ascensão de Constantino, em 306, o qual permitiu os cristãos o direito de legislar sobre os seus próprios assuntos e, em 313, juntamente com Licínio, atribuiu um status legal ao cristianismo (Silva, 2006). A título de conclusão, pudemos comprovar que as críticas praticadas por pagãos, como Celso, contra o judaísmo e, sobretudo, contra o cristianismo, objetivaram a defesa da religião tradicional grecoromana, ameaçada pelo advento da crença cristã no Império Romano. Os escritos de Celso, ademais, nos permitem compreender melhor as dificuldades de um pagão da época, sobretudo um membro da elite, a aderir ao cristianismo. Para ele, era até aceitável que um escravo, um artesão ou um homem sem fortes vínculos com a cultura helênica se sentisse animado com os ensinamentos cristãos, mas não se podia dizer o mesmo acerca dos filósofos, herdeiros da antiga tradição. Celso, como filósofo, agiu como responsável por salvar uma civilização que se encontrava incorporada à ordem do mundo (Frangiotti, 2006).

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Por isso, empreendeu toda a sua agressividade contra os adeptos do cristianismo, pois estes, aos seus olhos, comportaram-se contra a ordem divina das coisas, contribuindo, de tal modo, para a degenerescência da civilização. Celso, por esta razão, deve ter sido considerado um dos mais contundentes inimigos da Igreja. Ao investir contra o cristianismo, criticando seus dogmas e suas histórias, contudo, contribuiu para auxiliar os cristãos na resolução de algumas questões próprias de sua teologia. Quando Orígenes compôs sua apologia em meados do século III, vivia um período em que a Igreja ainda não contava com uma ortodoxia estabelecida, ou seja, não era uma organização unificada ideologicamente. Ao refutar as críticas e as acusações de Celso, Orígenes contribuiu para a formação da ortodoxia cristã, ao mesmo tempo em que advertiu os cristãos acerca do perigo das heresias e, sobretudo, acerca do contágio judaico dentro da Igreja, ou seja, os judaizantes. Com tal prática, ele traçou as linhas limítrofes do cristianismo, numa tentativa de cunhar uma identidade cristã distinta. Referências Documentação primária impressa ATENÁGORAS. Petição em favor dos cristãos. In: Padres Apologistas. São Paulo: Paulus, 1995. ORÍGENES. Contra Celso. São Paulo: Paulus, 2004. ORIGEN. Contra Celsum.Cambridge: Cambridge University Press, 1953. Obras de apoio BEARD, M; NORTH, J; PRICE, S. (Orgs.) Religions of Rome. A history. Cambridge University Press, 2004. BENKO, S. Pagan rome and early christians. London: B.T.Batsford, 1985. BORRET, M. Introdução. In. Origène. Contre Celse: tomo 5, Paris: Éditions Du Cerf, 1976.

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Graduada em História e mestra pelo PPGHis/Ufes sob orientação do Prof. Dr. Gilvan Ventura da Silva. 1 Há muita controvérsia entre os estudiosos acerca do período exato em que Celso viveu e confeccionou sua obra. As passagens do Contra Celso significativas para esta questão são duas: 1) VIII, 69, na qual Celso evidencia que os cristãos são perseguidos e passíveis de morte, o que parece apontar para uma época conturbada à qual é atrelada às perseguições nas províncias da Gália em 177, sob o governo de Marco Aurélio, e; 2) VIII, 71, a qual aponta-nos para o fato de que no tempo do escrito de Celso havia mais de um regente no poder, logo este pode se referir ao império conjunto de Marco Aurélio e Lúcio Vero (161 – 169) ou de Marco Aurélio e seu filho Cômodo (177-180). Há, ainda, pesquisadores que datam o trabalho de Celso no reinado de Antonino Pio (138-161). Concordamos, entretanto, com as ponderações de Chadwick (1953) de que é provável que Celso tenha escrito no período entre 177 e 180, após as perseguições na Gália e no Oriente, as mesmas produziram o que a historiografia chama de Mártires de Lyon. 2 Uma dessas apologias foi produzida pelo ateniense Atenágoras em fins do governo de Marco Aurélio e Cômodo, intitulada Petição em favor dos cristãos. Apenas a título de ilustração, a apologia deste pensador se refere aos imperadores sempre com muito respeito e defende os cristãos das acusações de ateísmo, incesto e antropofagia, além de expor algumas crenças cristãs. 3 Segundo as declarações de Mendes e Otero (2005), o numen imperial, ou seja, o genius do imperador “personificava todas as suas virtudes inatas”. As oferendas e o culto ao Gênio “era uma modalidade de culto tradicional, que podia estar ligada às pessoas (paterfamilias), às divindades, aos lugares (Roma) e ao Gênio do povo romano. 4 Celso desaprova a noção judaico-cristã da Revelação, sobretudo a disputa que fazem acerca desta. Na seguinte passagem o filósofo pagão demonstra todo o seu asco em relação a ambos os grupos, comparando “a raça dos judeus e dos cristãos a um bando de morcegos, a formigas que saíram de seus buracos, a rãs reunidas em

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conselho à beira de um brejo, a vermes formando uma assembléia num canto do lamaçal, discutindo para saber quem deles são os maiores pecadores, e dizendo: “Deus nos revela e prediz tudo: deixa de lado o mundo inteiro e o movimento do céu, e sem se preocupar com a vasta terra, governa só para nós, comunica-se apenas conosco por seus mensageiros, que continuamente envia, procurando de que modo nós lhe ficaremos unidos para sempre”, e, taxa-os “como semelhantes a vermes que dizem: “Existem Deus, e, imediatamente depois dele, existimos nós, pois somos criados por ele inteiramente semelhantes a Deus; tudo nos é submetido: a terra, a água, o ar, as estrelas; tudo existe para nós, tudo está ordenado para nosso serviço” [e] “Como existem entre nós aqueles que pecam, Deus virá ou enviará seu Filho, a fim de livrar das chamas os injustos e a nós que restamos nos dar uma vida eterna” (Con.Cels. IV, 23). 5 A superstitio é o contraponto da religio. É entendida como as formas exageradas de comportamento e crenças, que não permitem serem controladas e monitoradas pelo Estado e que são repreendidas como uma ameaça à estabilidade da religião oficial (Beard, 2004).

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