Identidade e política internacional: o caso da Política Comum de Segurança e Defesa da União Europeia

July 17, 2017 | Autor: Rodrigo Albuquerque | Categoria: European Union, Common Security and Defence Policy
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E D I T O R A DA U N I V E R S I DA D E F E D E R A L D O A M A PÁ | E D I T O R A AU T O G RAF IA M AC A PÁ | R I O D E JA N E I RO, 2 0 1 5

© Copyright 2015, Daniel Chaves, Erica Winand, Lucas Pinheiro Reitora: Prof.ª Dr.ª Eliane Superti Vice-Reitora: Prof.ª Dr.ª Adelma das Neves Nunes Barros Mendes Pró-Reitor de Administração: Esp. Wilma Gomes Silva Monteiro Pró-Reitor de Planejamento: Prof. Msc. Allan Jasper Rocha Mendes Pró-Reitor de Gestão de Pessoas: Dorivaldo Carvalho dos Santos Pró-Reitor de Ensino de Graduação: Prof.ª Ms. Daize Fernanda Wagner Pró-Reitor de Pesquisa e Pós-Graduação: Prof.ª Dr.ª Helena Cristina Guimarães Queiroz Simões Pró-Reitor de Extensão e Ações Comunitárias: Prof. Dr. Rafael Pontes Lima Pró-Reitor de Cooperação e Relações Interinstitucionais: Prof. Dr. Paulo Gustavo Pellegrino Correa Diretor da Editora da Universidade Federal do Amapá Prof. Dr. Daniel Chaves Editor-chefe da Editora da Universidade Federal do Amapá Fernando Castro Amoras Conselho Editorial Daniel Chaves Antônio Carlos Sardinha Giovani José da Silva Alan Cavalcanti Cunha Fernanda Michalski Romualdo Rodrigues Palhano Eldo Santos da Silva Eloane de Jesus Ramos Cantuária Julio Cezar Costa Furtado Lylian Caroline Maciel Rodrigues Marcio Aldo Lobato Bahia Mauricio Remigio Viana Robert Ronald Maguiña Zamora Romualdo Rodrigues Palhano Rosinaldo Silva de Sousa Capa e editoração eletrônica: Guilherme Peres Revisão: Lis Barreto e Matheus de Oliveira Pereira Perspectivas e debates em segurança, defesa e relações internacionais 1a edição, 2015 - Daniel Chaves, Erica Winand e Lucas Pinheiro (orgs.) ISBN: 978-85-5526-005-6

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Perspectivas e debates em segurança, defesa e relações internacionais / Daniel Chaves, Erica Winand, Lucas Pinheiro, organizadores. – Macapá: EdUNIFAP; Rio de Janeiro: Autografia, 2015. 354 p. ISBN 978-85-5526-005-6 1. Segurança pública. 2. Relações internacionais. I. Título CDD 341

Todos os textos publicados neste livro foram reproduzidos de cópias fornecidas pelos autores. O conteúdo dos mesmos é de exclusiva responsabilidade de seus autores.

SUMÁRIO

POR UMA RENOVAÇÃO CONSTANTE NO DEBATE ESTRATÉGICO . . . . . . . . . . . . . . .9 Francisco Carlos Teixeira Da Silva (UFRJ/UCAM/ECEME)

INTRODUÇÃO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 13 APONTAMENTOS PARA SE PENSAR A SEGURANÇA NA AMÉRICA DO SUL DO SÉCULO 21 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .19 Alexandre Fuccille (UNESP)

A TEORIA DOS COMPLEXOS REGIONAIS DE SEGURANÇA NO ESTUDO DA AMÉRICA DO SUL: LIMITES TEÓRICOS E PERSPECTIVAS ALTERNATIVAS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 31 Augusto Wagner Menezes Teixeira Júnior (DRI/UFPB) Antonio Henrique Lucena Silva (Faculdade Damas/INEST-UFF)

LA DEFENSA Y LA SEGURIDAD ESTRATÉGICA REGIONALES COMO POLÍTICAS DE COOPERACIÓN DE UNASUR. ¿HACIA UN PROCESO PROGRESIVO DE DEFENSA INTEGRAL EN SURAMÉRICA? . . . . . . . . . . 55 Ana De Maio (UNSAM / UBA)

A GEOPOLÍTICA DA AMÉRICA DO SUL - O PAPEL DETERMINANTE DA DEFESA NA INTEGRAÇÃO DO SETOR ELÉTRICO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 71 Francisco Nixon Lopes Frota (ECEME) Nivalde J. de Castro (UFRJ)

DOS MOMENTOS EN LA ACTIVIDAD POLÍTICA INTERNACIONAL DE LAS FUERZAS ARMADAS REVOLUCIONARIAS DE COLOMBIA - EJÉRCITO DEL PUEBLO (FARC-EP). UN ANÁLISIS DESDE LA CATEGORÍA DE ACTOR NO ESTATAL. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 85 Luis Fernando Trejos Rosero (Universidad del Norte)

11-09-2001: UM DEBATE SOBRE TERRORISMO E POLÍTICA NORTE-AMERICANA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .110 Igor Lapsky (CECIERJ/SEEDUC-RJ)

BREVE ANÁLISE HISTÓRICO-FILOSÓFICA SOBRE OS PRIMÓRDIOS JURÍDICOS DOS DIREITOS HUMANOS E DE SEU CONTEÚDO CONCEITUAL . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 124 Flávia de Ávila (DRI/UFS)

O FENÔMENO RELIGIOSO E AS RELAÇÕES INTERNACIONAIS: PERSPECTIVAS ANALÍTICAS AS NOVAS AGENDAS DE PESQUISA NO BRASIL . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 154 Marcos Alan Shaikhzadeh Vahdat Ferreira (DRI/UFPB)

RELAÇÕES INTERNACIONAIS E DEMOCRACIA: UMA PALAVRA SOBRE O BRASIL . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .174 Israel Roberto Barnabé (DRI/UFS)

FORÇAS ARMADAS E GOVERNABILIDADE NA DEMOCRACIA BRASILEIRA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 189 Eduardo Mei (FCHS/UNESP) Suzeley Kalil Mathias (FCHS/UNESP)

A INDÚSTRIA DA DEFESA NACIONAL: DAS CINZAS AO HORIZONTE DAS PARCERIAS ESTRATÉGICAS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 211 Edson Tomaz de Aquino

OS PARLAMENTARES DE RORAIMA E QUESTÕES DE SEGURANÇA E DEFESA: AGENDA E POSIÇÕES POLÍTICAS . . . . . . . . . . . . . . . . 228 Leonardo Ulian Dall Evedove (UFRR) Cleber Batalha Franklin (UFRR)

O CONSELHO DE SEGURANÇA DAS NAÇÕES UNIDAS: POSSIBILIDADES DE REFORMA? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 244 Matheus de Oliveira Pereira (Programa de Pós-Graduação San Tiago Dantas) Flora Carvalho de Oliveira e Freitas Fônseca (UFS)

IDENTIDADE E POLÍTICA INTERNACIONAL: O CASO DA POLÍTICA COMUM DE SEGURANÇA E DEFESA DA UNIÃO EUROPEIA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 261 Rodrigo Barros de Albuquerque (DRI/UFS ) Marcelo de Almeida Medeiros (UFPE)

A SECURITIZAÇÃO DA MIGRAÇÃO NA UNIÃO EUROPEIA E SEUS EFEITOS EM PORTUGAL . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 299 Ana Cristina Pansera de Araújo (RI/UFRGS) Júlio C. Rodriguez (DRI/UFS) Carlos S. Arturi (DCP/UFRGS)

AS RESOLUÇÕES SOBRE MULHERES, PAZ E SEGURANÇA: COMO AS PALAVRAS SE CONECTAM? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 325 Tamya Rocha Rebelo (Centro Universitário Belas Artes de São Paulo)

AUTORAS E AUTORES . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 344 ORGANIZADORES . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 352

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IDENTIDADE E POLÍTICA INTERNACIONAL: O CASO DA POLÍTICA COMUM DE SEGURANÇA E DEFESA DA UNIÃO EUROPEIA 1 Rodrigo Barros de Al buquerque 2 ( DRI/UFS ) Marce lo de Almeida Me deiros 3 ( UFPE )

“Vivemos em um mundo que dança ao som de armas. A humanidade está se armando por todos os lados e chegará a uma situação que será incapaz e impotente para controlar a própria força” (Heinz Guderian, 1937) 4.

Introdução

Q

UA L A I M P O R TÂ N C I A DA S I D E N T I DA D E S PA R A A C O M P R E E N S ÃO DA

política internacional contemporânea? Este capítulo busca trazer luz a esta questão a partir do debate sobre o que significa a identidade, suas múltiplas formas de constituição e como ela interfere em processos internacionais. O estudo de caso selecionado para este trabalho foi

1. Os autores agradecem a Juliana Vitorino (Estácio/FIR) pelos comentários a versões preliminares deste texto. 2. Doutor em Ciência Política pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), é Professor do Departamento Relações Internacionais da Universidade Federal de Sergipe (DRI/UFS). E-mail: [email protected] 3. Doutor em Ciência Política pelo Institut d’Études Politiques de Grenoble e Livre-docente em Ciência Política pelo Institut d’Études Politiques de Paris, é Professor Associado de Ciência Política da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e Pesquisador PQ-1D do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). E-mail: [email protected]. 4. Um dos pioneiros no estudo do emprego de carros de combate e precursor da Blitzkrieg, Heinz Guderian escreveu “Achtung, Panzer!” em 1937, pouco antes da eclosão da 2ª Guerra Mundial. Cf. Guderian (1999: 28). 261

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a formulação de uma política de segurança e defesa no âmbito da União Europeia (UE), composta de países nos quais questões associadas à identidade, como é o caso do nacionalismo, são elementos preponderantes. A proposta considera a identidade enquanto uma variável interveniente na construção da Política Comum de Segurança e Defesa (PCSD). Como se argumenta ao longo do texto, a identidade europeia não foi uma condição necessária para a elaboração da PCSD, contudo, sua presença e fortalecimento potencializaram a sua aceitação e consolidação entre as populações dos países membros da União Europeia. Além disso, as ações da PCSD no exterior impulsionaram a consolidação de uma imagem internacional, alimentando as características que definem uma identidade europeia enquanto agente internacional de segurança. Ainda que esta identidade seja eminentemente uma projeção para o exterior, é possível perceber o surgimento incipiente de laços que aproximam os cidadãos também no interior da UE, tornando possível afirmar que, neste sentido, a PCSD é um catalisador importante no que se refere à internalização de uma identidade comum aos cidadãos europeus. A Política Externa e de Segurança Comum (PESC), na qual se insere e da qual depende a PCSD, não é objeto de análise deste artigo devido a uma característica singular da política analisada: a PCSD opera no âmbito intergovernamental e, portanto, o seu representante máximo – que também é o representante máximo da PESC – não toma decisões sob um amplo mandato, mas por meio de negociação, caso a caso, com cada um dos Estados membros da UE, buscando uma solução negociada e aceita por todos. Ademais, os recursos investidos por cada Estado membro em cada operação da PCSD são, à parte o orçamento compulsório destinado à PCSD, estritamente voluntários. Desse modo, um alto grau de concordância e aproximação de vontades entre os Estados membros é condição sine qua non para a implementação da PCSD, ampliando a identificação entre estes membros ao convergirem em seus interesses e objetivos. A fim de demonstrar este argumento, o capítulo foi estruturado da seguinte forma: na primeira seção, trata-se da definição de identidade e da sua proximidade das abordagens construtivistas das Relações Internacionais; a seção subsequente envereda pela discussão do caso em análise, a formação de uma identidade associada à União Europeia; por 262

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fim, segue-se para o exame da formação de uma identidade de agente internacional de segurança a partir da consolidação da Política Comum de Segurança e Defesa.

Identidade e política internacional: a questão construtivista Nas teorias contemporâneas mais atuais sobre as relações internacionais, podemos verificar a coexistência de três programas de pesquisa5 centrais: realismo, liberalismo e construtivismo. Destes, os dois primeiros estão associados à perspectiva racionalista, empregando uma abordagem científica, fundamentada em um processo lógico-racional de inferências causais que busca explicar eventos das relações internacionais através de suas premissas essenciais e, não raro, métodos quantitativos. Tradicionalmente estes dois programas de pesquisa se baseiam em verdades fundamentais sobre o sistema internacional, a exemplo da presunção de anarquia como sistema de ordenamento da política internacional e a percepção de que os Estados são os atores centrais do sistema internacional, os quais perseguem, continuamente, o incremento da sua influência sobre os demais atores, dos seus recursos de poder e de sua riqueza. Colocados estes dois últimos elementos em primeiro plano, poder e riqueza, frequentemente são postos de lado elementos sociológicos importantes para a compreensão dos processos internacionais, entre os quais está a identidade, considerada a partir dos seus elementos culturais, nacionais e interpessoais. O terceiro programa de pesquisa é o que mais interessa a este trabalho justamente por buscar inserir na sua análise da política internacional o elemento cultural através da abordagem sobre a questão da identidade. Um dos seus expoentes mais eminentes, Alexander Wendt (1999),

5. Incorretamente definidos por muitos estudiosos da área como paradigmas, as diferenças internas em cada um destes programas de pesquisa são tão grandes que é difícil não considerar que apenas alguns elementos internos são, de fato, paradigmáticos. Estes assim chamados paradigmas estão muito mais próximos da concepção lakatosiana de programas de pesquisa, compostas de um núcleo duro e premissas auxiliares do que efetivamente de paradigmas kuhnianos. Eis a razão pela qual este trabalho irá se referir não a paradigmas, mas a programas de pesquisa no campo das Relações Internacionais. Para mais detalhes, ver Kuhn (2005) e Lakatos (1970). 263

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desenvolve o argumento de que as relações entre os Estados e outros agentes6 da política internacional não são predefinidas através de verdades fundamentais sobre o sistema internacional porque estas relações são construídas a partir das interações recorrentes entre os mesmos agentes. Sua crítica à visão estática promovida pelas abordagens racionalistas oferece uma abordagem mais dinâmica da política internacional ao considerar que as relações entre os agentes internacionais não apenas se modificam com o passar do tempo, como podem acontecer simultaneamente sob culturas anárquicas distintas. Desse modo, é possível compreender porque alguns Estados estão engajados em dinâmicas competitivas, conflitivas e cooperativas,7 frequentemente todas ao mesmo tempo, em consequência das relações intersubjetivas construídas entre eles. Esta concepção de relações intersubjetivas é estrutural no pensamento de Wendt, sendo parâmetro central para captar o modo como são constituídas as relações entre os agentes. Através destas relações estabelecidas entre eles, o autor percebe a formação de múltiplas identidades, especificamente estabelecidas para cada relação entre cada dupla ou grupo de agentes, de modo que um mesmo Estado pode possuir mais de uma identidade por meio de dinâmicas distintas de relacionamento. Portanto, se a identidade é uma característica definidora da personalidade de um indivíduo ou agente internacional, convém discutir o que se deve entender por identidade. Stuart Hall (2000) classifica os conceitos de identidade em três grandes grupos: aquele no qual o indivíduo é racional, oriundo do Iluminismo, ciente de si, cuja identidade possui elementos fixos, imutáveis, ainda que haja progresso e desenvolvimento; um segundo grupo, de raiz sociológica, que interpreta a formação da identidade dos indivíduos como reflexo

6. Não se devem confundir os atores referidos no parágrafo anterior com os agentes deste parágrafo. Embora se refiram às mesmas entidades, as abordagens racionalistas aludem ao teatro como metáfora para explicar as relações internacionais, por entenderem que as relações internacionais funcionam sob lógica semelhante: há roteiros predefinidos que estabelecem cenários e papeis a serem desempenhados por atores que não podem fugir desses roteiros. Wendt concebe estas entidades como agentes, capazes de efetivamente transformar as relações internacionais por meio das suas ações e da construção de relações intersubjetivas. 7. Referidas por Wendt (1999), respectivamente, como lógicas ou culturas anárquicas lockeana, hobbesiana e kantiana. 264

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da interação entre seu eu interior e a sociedade exterior, de modo que sua identidade é uma representação social, vinculada ao meio no qual ele interage com outros indivíduos; e, por fim, um terceiro grupo que fundamenta a formação da identidade na sociedade pós-moderna, concebendo a ideia de que é possível a um indivíduo possuir múltiplas identidades, devido a ele estar imerso em uma sociedade complexa e sujeito a um volume crescente de informações e interações que lhe permite desenvolver processos simultâneos de identificação com vários grupos sociais. O primeiro grupo concebia o ser humano como um sujeito pensante, racional, único responsável pela produção do conhecimento e, portanto, seu centro. Este indivíduo soberano era a única fonte da razão e o único alvo das ações práticas decorrentes do seu exercício. Resultante do colapso das estruturas medievais, a emergência desta condição de individualidade prevaleceu durante certo tempo, mas era incapaz de dar conta de novos fenômenos, a exemplo do surgimento do Estado-nação e da participação dos indivíduos em suas estruturas sociais e burocrático-administrativas. Este limite só é superado com a revisão da individualidade humana para perceber o indivíduo não como elemento isolado de um todo, mas como parte e reflexo dele. Isto é, a partir deste momento, que coincide com o nascimento das ciências sociais na era moderna, o indivíduo passa a ser entendido como parte da sociedade na qual se encontra e com a qual interage, de modo que sua identidade é formada a partir da interação entre os meios interior – o eu – e o exterior – a sociedade. O indivíduo não se define mais como sujeito isolado do restante da humanidade, mas como parte de um grupo maior com o qual estabelece processos de identificação. A compreensão da formação da identidade como resultante da interação interior-exterior que dá vazão ao interacionismo simbólico de George Mead (1934) e ao estruturalismo funcionalista de Talcott Parsons (1937) permite compreender como o indivíduo passa a integrar uma sociedade. Sua internalização do exterior, colocando os elementos mais fundamentais de sua personalidade em diálogo constante com aquilo que lhe é apresentado externamente pela sociedade é o que dá forma à sua identidade social; seus princípios e valores, em constante mudança, se conformam com os princípios e valores de uma sociedade, levando o indivíduo a um sentimento de pertencimento a ela. Quando não há compatibilidade entre os 265

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valores individuais e os valores de uma sociedade, ocorre o inverso: o indivíduo desenvolve uma sensação de estranhamento e coloca-se na posição de estrangeiro, ao não reconhecer os valores daquela sociedade como seus, falhando, conscientemente ou não, em internalizá-los. A virada pós-moderna de filósofos como Michel Foucault (2005), no entanto, levou a concepções menos centradas dos indivíduos, agora não mais vistos como os seres racionais e plenamente conscientes de si do período Iluminista. Os processos de significação são múltiplos e estão presentes nos idiomas, nas estruturas de poder e nas relações sociais. Tais processos adquirem novo significado com o aprofundamento e expansão da globalização nos primeiros anos da década de 1990, ampliando a interatividade entre os indivíduos e catalisando mudanças cada vez mais rápidas e fundamentais nos processos de formação de identidades dos indivíduos. Como consequência, o sujeito pós-moderno é possuidor de identidades que são provisórias e variáveis, que se adequam a cada momento vivido pelo indivíduo e estas múltiplas identidades coexistem e se manifestam quando necessárias a uma interação específica do sujeito com outros indivíduos. Uma das principais fontes de identidades sociais reside no Estadonação, estabelecendo os parâmetros de uma identidade nacional. No entanto, como explica Anderson (2008), nações são comunidades imaginadas, compostas de instituições culturais, símbolos e representações, um discurso construído por meio de uma narrativa que estabelece os mitos fundacionais, narra histórias de origem, inventa tradições e produz sentidos com os quais os indivíduos podem se identificar, formando, assim, identidades nacionais. Isto é problemático ao se considerar o estado do mundo ocidental, cujas nações, em sua maioria, são resultantes de unificações forçadas de culturas diferentes por processos sucessivos de conquista violenta e delimitação forçada de limites fronteiriços, ou são produtos da homogeneização cultural imposta por potências coloniais a Estados colônias. Neste sentido, Stuart Hall é contundente ao afirmar que a Europa, em seu hemisfério ocidental, “não tem qualquer nação que seja composta de apenas um único povo, uma única cultura ou etnia. As nações modernas são, todas, híbridos culturais” (HALL, 2000: 62, grifos no original). 266

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Se não há identidades unificadas no sentido de nação que se atribui habitualmente ao termo, há, porém, um problema epistemológico no que concerne às teorias sobre as relações internacionais. Enquanto estas, em suas vertentes clássicas, tratam os Estados como atores unitários, cujo comportamento é previsível e gira em torno de verdades fundamentais sobre o sistema internacional, visões críticas do final do século XX atestam a inexistência dessa unidade interna do ator, além de reconhecerem o problema metodológico de tratar o ator como uma unidade íntegra e unitária, sem constrangimentos internos que condicionam o seu comportamento nas relações internacionais. Este problema é ainda mais grave ao se perceber que o ator ao qual normalmente se refere como uma nação nobre, justa, defensora dos direitos humanos, é pouco ou nada homogênea na distribuição desses valores e no suporte a políticas desenvolvidas pelo Estado, interna ou externamente. A impossibilidade de considerar o Estado enquanto ator unitário torna-se ainda mais emblemática no estudo de comunidades imaginadas em outro nível de abstração; se as comunidades imaginadas de Anderson (2008) referem-se a Estados-nação, como idealizar estas comunidades no âmbito das relações internacionais? Em outras palavras, como os Estados, com identidades próprias e reduzidas a uma identidade única em cada país, decidem unir-se em prol de um objetivo comum e fundar uma organização internacional para administrar estes interesses sobre os quais convergem suas expectativas? Será que é possível falar em comunidades imaginadas internacionais?

O caso da União Europeia A trajetória da União Europeia levou a organização de arranjos político-econômicos iniciais no pós II Guerra Mundial a um corpo político integrado, forte, assemelhando-se simultaneamente a uma organização internacional e, em alguns aspectos, a um país sob um sistema federativo. Este fato levou muitos analistas a evitarem definir o que é a União Europeia, limitando-se a se referirem a ela como uma entidade sui generis nas relações internacionais (TSEBELIS, 2002) ou, como o fez Jacques Delors, Presidente da Comissão Europeia durante dez anos (1985-1994), como um 267

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OPNI: Objeto Político Não Identificado.8 Este trabalho adotou a percepção de que a União Europeia é uma organização internacional, ainda que de aspecto peculiar, diferente das demais organizações internacionais em atividade, visto que em alguns setores – o comercial e o monetário, por exemplo – ela reflete, como já acima apontado, características próximas às de um Estado federal. A Política Comum de Segurança e Defesa, todavia, situa-se em setor eminentemente intergovernamental. É certo que a os pilares que encerram os setores constitutivos da UE não são hermeticamente isolados, eles formam, na verdade, um todo que interage entre si. Ignorando questões terminológicas e o fato de que, em momentos iniciais da formação da União Europeia esta foi nomeada Comunidades Econômicas Europeias, no plural, esta organização representa um caso simbólico na construção de identidades pela reunião, no seu bojo, de países com fortes sentimentos nacionalistas, em uma instituição atualmente cinquentenária. A Europa dos 28, como também é conhecida, reúne em 2014 países de cultura tão diferentes quanto o Reino Unido e a França, a Alemanha e a Itália, a Romênia e a Croácia, a Lituânia e Portugal. A organização configura-se em uma das tentativas mais bem sucedidas de criar uma comunidade transnacional (VUJADINOVIC, 2011), ao tentar construir uma identidade política, constituída de uma ordem social legalmente institucionalizada – dimensão objetiva –, de um contexto subjetivo de ligações individuais e coletivas à comunidade política e das interpretações e significados dados por esta comunidade política – dimensão subjetiva. No caso da União Europeia, a dimensão objetiva é bastante aparente no intrincado conjunto de normas que compõem o chamado direito comunitário da organização, abrangendo toda sorte de temas que são objeto da integração entre os países membros da organização. A dimensão subjetiva, contudo, não se mostra tão aparente, embora esteja presente e manifesta historicamente no forte papel atribuído ao cristianismo na história das nações ocidentais europeias, na difusão de valores democráticos oriundos da Grécia Antiga e em estruturas hierárquicas históricas associadas ao período feudal, presentes ainda em vários países, com seus 8. Cf. Intervention de Jacques Delors (Luxembourg, 9 septembre 1985). Disponível em: http:// www.cvce. eu/content/publication/2001/10/19/423d6913-b4e2-4395-9157-fe70b3ca8521/publishable _fr.pdf. Acesso em 18/08/2014. 268

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ducados, baronatos e demais títulos nobiliárquicos. No mesmo sentido, as ondas de modernização pelas revoluções políticas e industriais ocorridas ao longo do século XVIII e XIX evidenciam ainda mais as raízes culturais comuns de, pelo menos, alguns dos países do ocidente europeu, como o Reino Unido, a França e a Espanha. Em um aporte mais prático, a cooperação em prol de um objetivo comum, que era institucionalizar sob uma autoridade supranacional o mercado comum do carvão e o aço para impedir uma nova guerra mundial em solo europeu pelo controle das suas matérias primas, destaca-se entre as ações coletivas que podem sugerir a existência de elementos comuns que compõem uma identidade. A intersubjetividade, entretanto, é bem mais difícil de captar do que pelo simples apontamento de ações coletivas desempenhadas com o objetivo de suprir uma demanda comum. Na história da União Europeia, possivelmente o fator de maior impacto sobre a construção de uma identidade europeia foi a criação da cidadania comum para os europeus, facilitando a livre circulação no continente. A criação desta cidadania europeia, cristalizada no artigo 8 do Tratado de Maastricht, em 1992,9 garantindo formalmente os mesmos direitos para os indivíduos provenientes de qualquer Estado membro da organização no território de todos os membros, foi um passo significativo na direção do fortalecimento de um senso de comunidade. Não obstante a importância de se construir a narrativa de uma cidadania europeia, é relevante considerar que a cidadania não se constitui apenas pela atribuição formal do status de cidadão a indivíduos que reúnem qualidades específicas. O sentimento de pertença, o sentir-se cidadão, no plano subjetivo, é consideravelmente mais importante do que um documento formal que ateste a cidadania de um indivíduo, ainda que este documento seja fundamental para garantir o exercício de direitos em territórios nos quais o indivíduo é considerado cidadão. Há inúmeros mecanismos através dos quais é possível aprofundar este senso de comunidade nas amplas esferas de atuação da organização, seja no âmbito social, econômico ou político. As possibilidades de interação entre os indivíduos em vários níveis de socialização, de formação de grupos de interesses, 9. Disponível na Internet em http://eur-lex.europa.eu/legal-content/EN/TXT/ PDF/?uri=OJ:C:1992:191:FULL&fr om=EN. Acesso em 20 de agosto de 2014. 269

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de estabelecimento de parcerias comerciais são virtualmente inesgotáveis, espalhadas entre os quinze domínios de intervenção da União Europeia10. A proposta de uma identidade europeia é uma evolução do conceito tradicional de identidade associado a uma nação, sugerindo a possibilidade de ir além das identidades nacionais para configurar uma identidade através de outros laços, eminentemente culturais (FIGUEIREDO; NORONHA, 2010). Enquanto a identidade nacional compreende três critérios – associação histórica com um Estado existente ou de passado recente, mas durável, existência de uma elite cultural bem estabelecida e uma capacidade comprovada de conquista (HOBSBAWM, 1998: 49) – e seria movida pela necessidade de reconhecimento interno e externo à nação da sua qualidade de nacional daquele Estado; a identidade cultural não está apoiada em laços nacionais, mas no pertencimento a lastros culturais comuns. A projeção de uma identidade europeia, apesar de coexistir com as identidades nacionais antecedentes de cada novo cidadão europeu, será uma segunda identidade e em sentido complementar, pois não tem o objetivo de suprimir a identidade original, nacional de cada um destes cidadãos. Esta discussão, contudo, não esgota o tema, fazendo-se necessário o uso de ferramentas que possam capturar a presença desta dimensão subjetiva na formação de uma identidade europeia entre os nacionais de países membros da organização. O melhor caminho para cumprir este objetivo é por meio do exame de políticas específicas e seus impactos sociais na construção identitária, partindo da hipótese de que a formulação e implementação de políticas no seio da União Europeia tendem a institucionalizar-se não pela imposição legal, mas pela aceitação da população e esta 10. Os domínios de intervenção da União Europeia cobrem as áreas de atuação da organização. Eles são: a) agricultura, pescas e produtos alimentares; b) alargamento e assuntos externos; c) ambiente e energia; d) assuntos aduaneiros e fiscais; e) ciência e tecnologia; f) cultura e educação; g) desenvolvimento e ajuda humanitária; h) economia e finanças; i) emprego e assuntos sociais; j) empresas; l) instituições da União Europeia; m) justiça e direitos dos cidadãos; n) regiões e desenvolvimento local; o) saúde; p) transportes e viagens. Mais informações conferir o Tratado de Lisboa em, especificamente no artigo 2º, seção B, destinada às alterações específicas, cujo Título I dispõe sobre as competências da União Europeia. Disponível na Internet em http://bookshop.europa.eu/pt/jornal-oficial-da-uni-o-europeia-c-306-17.12.2007-pbFXAC07306/downloads/FX-AC07-306-PT-C/FXAC07306PTC_002.pdf?FileName=FXAC07306PTC_002.pdf&SKU=FXAC07306PTC_ PDF&CatalogueNumber=FX-AC-07-306-PT-C. Acesso em 20 de Agosto de 2014. 270

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aceitação decorre, essencialmente, da constituição de uma identidade europeia. Com esta finalidade, segue-se a análise da relação entre a Política Comum de Segurança e Defesa na União Europeia, sua recepção pela população e seu impacto sobre o sentimento de cidadania.

A Política Comum de Segurança e Defesa A relação estabelecida nesta seção entre a formação de uma identidade europeia e a Política Comum de Segurança e Defesa (PCSD) da UE tem um fundamento institucional: em 1994, as mudanças sentidas pela UE no continente europeu após o final da Guerra Fria deram causa a preocupações com o papel da UE frente a conflitos armados. A organização percebia que precisava contribuir mais e que a influência exercida pela ação conjunta da Europa dos Doze, de então, poderia facilitar processos e assegurar um ambiente internacional mais seguro. Estas preocupações se cristalizaram na Identidade Europeia de Segurança e Defesa (IESD), fincada na estrutura da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) e devotada à reestruturação militar no seio da UE de forma que esta pudesse exercer uma influência maior nas decisões da Aliança Atlântica (DUKE, 2000; NUGENT, 2006). Na realidade, a IESD propunha, de forma bastante diferente da anterior Política Europeia de Segurança e Defesa,11 um

11. A Política Europeia de Segurança e Defesa, formada ao final da década de 1990, decorre de uma revisão do Tratado de Maastricht, de 1992, pelo Tratado de Amsterdã, de 1997 e da Declaração de Saint Malo, em 1998. Em sua revisão, uma das principais alterações promovidas por Amsterdã diz respeito à PESC, mantendo os objetivos estabelecidos em Maastricht, mas determinando que a definição dos princípios e orientações gerais da PESC, as estratégias comuns e a cooperação reforçada entre os Estados membros permaneceriam políticas intergovernamentais (KEUKELEIRE; MACNAUGHTAN, 2008). No tratador revisor, além da criação do cargo de Alto Representante da Política Externa e de Segurança Comum, foram reforçados os laços com a União da Europa Ocidental (UEO) ao incorporar no tratado a Agenda de Petersberg, oriunda de uma conferência daquela organização na cidade de mesmo nome, na Alemanha, em 1992, quando a organização iniciava os primeiros planos para desenvolver as capacidades militares da União Europeia. Esta conferência resultou em três objetivos, que correspondiam a três níveis de intensidade de combates: resgate e proteção humanitária, manutenção de paz e pacificação em gerenciamento de crises, aquelas que seriam as principais inquietações no desenvolvimento da Política Europeia de Segurança e Defesa e foi o primeiro passo na incorporação da UEO à estrutura da União Europeia (NUGENT, 2006; HOWORTH, 2007). Na Declaração de Saint Malo, decorrente da crise no Kosovo, a França e o Reino Unido afirmaram que a União Europeia deveria ter a 27 1

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mecanismo por meio do qual a UE emprestaria recursos da OTAN para a realização de ações relacionadas à segurança europeia. A PCSD, por outro lado, é um mecanismo diferente, voltado para a autonomia da UE enquanto agente securitário (HOWORTH, 2009), ainda que se conforme à dimensão objetiva de uma identidade europeia. A prática da UE enquanto agente internacional de segurança traça o seu próprio caminho com a PCSD. Afastando-se das críticas mais severas à atuação da UE como poder militar, a PCSD é estritamente limitada à Agenda de Petersberg: ações humanitárias e de resgate, de manutenção de paz, de forças de combate em gerenciamento de crises. Reservando as ações tradicionais de defesa à ação da OTAN e das Forças Armadas dos seus Estados membros, a PCSD não é, portanto, um exército no sentido clássico atribuído às Forças Armadas de Estados, mas algo novo, vinculado a um novo paradigma de intervenções para a solução de crises internacionais. O foco em missões pontuais para o gerenciamento de crises, mirando na implantação do princípio do primado da lei, no monitoramento de eleições e de fronteiras, por exemplo, logo se tornaram um elemento distintivo das operações da PCSD (HOWORTH, 2009). Este entrave quanto à formação de Forças Armadas da União Europeia é reforçado pela estrutura decisória da PCSD: enquanto política intergovernamental, os Estados membros decidem se, como, quando e com quanto contribuir para a composição das tropas de choque, não sendo obrigados, embora sejam encorajados, a empregar esforços para a execução das ações da PCSD. Na mesma linha de afirmação de uma identidade própria, a relação estratégica com a OTAN ainda é de grande importância para a UE, sobretudo pela enorme coincidência de membros entre ambas as organizações.12 capacidade de ação autônoma, reforçada por forças militares em prontidão e meios para decidir utilizá-las, tornando a UE capaz de responder a crises internacionais. No ano seguinte, o Conselho Europeu de Cologne, na Alemanha, repetiu parte considerável do texto da Declaração, adotando como objetivo estabelecer uma política europeia de segurança e defesa, culminando na absorção gradual das instalações e recursos da União da Europa Ocidental pela UE, com significativa participação da OTAN: o Acordo Berlim Mais, assinado entre a OTAN e a UE, deu à UE acesso às estruturas de planejamento e comando e aos recursos e capacidades da OTAN, mas isto só aconteceu porque a negociação já havia sido iniciada entre a UEO e OTAN em 1996; com a absorção da UEO pela UE, os acordos foram concluídos entre a UE e a OTAN. 12. Ambas as organizações possuem, em meados de 2014, 28 membros, dos quais 23 são comuns. Destes, as únicas diferenças são, na OTAN, a presença dos Estados Unidos, do Canadá, 272

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Esta situação pontuou o processo decisório da PCSD, de modo que esta só pode agir quando a OTAN decide não fazê-lo. A Secretária de Estado norte-americana, em 1998, Madeleine Albright, foi enfática ao se posicionar a favor de uma política europeia de segurança e defesa, três dias após a Declaração de Saint Malo, condicionando esta política ao impedimento dos “Três Ds”: desacoplamento, duplicação e discriminação. Por desacoplamento, entende-se que a OTAN e a UE não devem seguir caminhos decisórios distintos; a duplicação se refere à escassez de recursos e à necessária economia dos mesmos, evitando que membros das duas organizações invistam recursos em dobro para a mesma situação-problema; por fim, a discriminação refere-se a eventuais privilégios que não membros da OTAN poderiam obter por serem membros da UE, discriminando aqueles que são membros de ambas as organizações (ALBRIGHT, 1998). A tradicional cooperação entre a UE e a OTAN neste domínio não desapareceu ou se esvaiu, ao menos não em razão da PCSD que ora se formava. Parte da razão de a União Europeia ter se decidido a enveredar pela integração em matéria de segurança e defesa foi a redução da importância da Europa para a agenda internacional da política externa norte-americana. Consequentemente, a OTAN passou a direcionar a sua atenção, como parte de seu novo conceito estratégico, para outras partes do mundo, majoritariamente a Ásia (KEUKELEIRE; MacNAUGHTAN, 2008; KEUKELEIRE; DELREUX, 2014). A questão em tela é que a União Europeia também seguiu este redirecionamento gradual, movendo-se através de uma política comum para a segurança e defesa rumo à ação internacional enquanto agente securitário. A cooperação entre as duas organizações continua um elemento estratégico importante, sobretudo pela facilidade de comunicação interinstitucional derivada da numerosa coincidência de membros entre as organizações. A PCSD não foi apenas motivada por um desejo de se afirmar como agente internacional de segurança ou como forma de atestar uma identidade europeia. A PCSD foi, sobretudo, o meio encontrado pela União Europeia de não se tornar irrelevante – para a política externa de outras potências – ou insegura, devido à sua falta de engajamento coletivo em da Islândia, da Noruega, da Albânia e da Turquia, e na União Europeia, a presença do Chipre, da Finlândia, da Irlanda, de Malta e da Suécia. 273

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estruturas de segurança e suas débeis capacidades militares enquanto países independentes. Para Howorth (2009), se o contexto da década de 1990, a ausência de uma organização com capacidade efetiva e autoridade política para tomar decisões em matéria de segurança no continente europeu concedia à OTAN a legitimidade e responsabilidade para fazê-lo, e a PCSD redefiniu esse vazio institucional nos primeiros anos do século XXI, ocupando parte do espaço outrora preenchido pela OTAN. A evolução de ambas as organizações após o início das atividades da PCSD alerta para a possibilidade de novos arranjos interinstitucionais, provavelmente realizados setor a setor, como compartilhamento de inteligência e apoio logístico, e não uma parceria estratégica na qual a PCSD mantém permanentemente um papel secundário na segurança europeia. No entanto, esta suposta militarização da União Europeia é vista com inquietação. A organização, de atuação tradicionalmente econômica e social, busca agora desenvolver capacidades militares que a tornem apta a realizar operações armadas de intervenção em países fora da organização – e com grande potencial para fazê-lo, conforme demonstram os dados apresentados, mais à frente, neste capítulo – e projetar a sua política externa pelo mundo, assumindo a posição de potência global por meio do status de agente securitário internacional. A opção da UE pela ruptura com a imagem de uma potência suave, que não recorre ao uso da força, não tem precedente enquanto organização de cooperação e integração de raízes econômicas. Todavia, cumpre verificar que se as decisões se desenrolam estritamente no âmbito intergovernamental, elas não são tomadas sem levar em consideração a opinião pública europeia. O reconhecimento pelos cidadãos europeus de quem tem autoridade para decidir em matéria de defesa oscilou bastante ao longo dos anos. A partir de dados coletados no ano de 2000, pouco depois do surgimento da PESD13 e antes da UE iniciar as suas operações sob o âmbito dela, Philippe Manigart (2001: 11), em entrevistas com cidadãos de países membros da UE (ver Gráfico 1, abaixo), encontrou os seguintes resultados: 43% da população entrevistada acreditava que a União Europeia deveria 13. Nos primeiros anos, a Política Comum de Segurança e Defesa era chamada de Política Europeia de Segurança e Defesa, por isso o acrônimo PESD e não PCSD. 274

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ser responsável por tomar decisões em matéria de defesa, enquanto 17% votaram na OTAN como a detentora dessa responsabilidade. Outros 15% não souberam responder e 24% não confiam nas instituições multilaterais, mas têm opinião formada: para eles, apenas os governos nacionais deveriam ter essa responsabilidade, que não poderia ser confiada à UE ou à OTAN. *U¢ôFR4XHPGHYHGHFLGLUHPPDWªULDGHXPDSRO®WLFDHXURSHLDGHGHIHVD"

Fonte: Manigart, 2001, p. 11, com adaptações.

O fato é que se o aparente otimismo em relação à PCSD com quase 50% dos votantes a favor de que a decisão seja tomada no âmbito da UE indica um processo de reconhecimento da autoridade da UE e, consequentemente, identificação com a mesma, os valores não coincidem com os achados de Manigart em outra pergunta associada à PCSD: na eventualidade de uma intervenção militar, por quem devem ser tomadas as decisões? Das quatro respostas possíveis – “apenas por Estados dispostos a enviar tropas”, “por votação unânime”, “por voto majoritário, sendo facultativo aos Estados membros enviarem tropas” ou “pelo voto majoritário, vinculando todos os Estados membros a enviarem tropas” – prevaleceu a política intergovernamental, tendo os respondentes afirmado, em sua maioria, 275

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que a decisão de intervir e a estrutura de comando devem ser reservadas aos Estados dispostos a contribuir com tropas. Coincidentemente ou não, é o mesmo princípio que orienta a cooperação estruturada permanente definida no Tratado de Lisboa. *U¢ôFRNa eventualidade de uma intervenção militar, SRUTXHPGHYHPVHUWRPDGDVDVGHFLV¶HV"

Fonte: Manigart, 2011, p. 13, com adaptações.

Pode-se concluir dessa análise que, em 2001, quase metade dos europeus reconheciam na União Europeia a autoridade para definir a postura da organização perante a sociedade internacional, mas preferiam que os seus Estados fossem responsáveis por decidir sobre participar ou não de uma intervenção e apenas aqueles que efetivamente fizessem parte das operações pudessem exercer o voto nas decisões necessárias. Para o exercício dessas ações, contudo, a UE precisaria ter forças armadas à sua disposição. Com isso em mente, Manigart formulou a pergunta subsequente, sobre as preferências dos votantes acerca da composição de um eventual exército europeu. Com quatro respostas possíveis, 19% dos respondentes escolheram “um único exército europeu, substituindo os exércitos nacionais”; 37% entenderam que “uma força de resposta rápida permanente à disposição da UE, funcionando paralelamente aos exércitos nacionais” 276

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era a melhor opção; 18% afirmaram que “uma força de resposta a ser disponibilizada apenas quando necessário” era o mais adequado; e 12% responderam “nenhum exército europeu, restando apenas os exércitos nacionais”. Outros 14% não responderam ou ofereceram resposta espontânea não enquadrada na análise. *U¢ôFR&RPRGHYHULDVHUFRPSRVWRXPH[ªUFLWRHXURSHX"

Fonte: Manigart, 2001, p. 15, com adaptações.

Os europeus, assim, demonstravam que entendiam ser a UE a organização mais apropriada para decidir sobre ações da PESD e, para isto, deveria ter uma força de resposta rápida à sua disposição em caráter permanente, porém, a decisão sobre a composição destas forças ainda caberia aos Estados membros, reforçando o caráter intergovernamental do processo integrativo. Somando as três primeiras colunas à esquerda, 74% dos respondentes acreditam que deve haver alguma forma de manifestação de Forças Armadas sob a estrutura da PCSD. Em pesquisas posteriores do Eurobarômetro (2013a), nos anos de 2003, 2004 e 2005, uma pergunta similar apresentou índices mais satisfatórios. No lugar de questionar qual a entidade responsável por tomar decisões em matéria de defesa, a arguição enfatizava o caráter multilateral das decisões sobre esta questão ao perguntar se “Os Estados membros 277

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deveriam adotar uma posição comum em relação a crises internacionais”. O termo “posição comum” está associado à política comunitária, em consonância com o jargão da UE, significando uma posição da organização e não de outro organismo internacional, situação na qual se utilizaria o termo “multilateral”. A pergunta, portanto, se refere à transferência da responsabilidade pela decisão em crises internacionais à União Europeia e as respostas são interessantes. *U¢ôFROs Estados membros deveriam adotar uma SRVL¨¤RFRPXPHPUHOD¨¤RDFULVHVLQWHUQDFLRQDLV"

Fonte: Eurobarômetro, 2003a, com adaptações.

Pesquisas posteriores do Eurobarômetro (2013b) indicam mudanças nesta perspectiva. A pergunta partia do pressuposto do estabelecimento da Política Externa e de Segurança Comum (PESC)14 e da PESD e os indivíduos deveriam responder se concordavam ou não com a seguinte assertiva: “A União Europeia 14. A Política Externa e de Segurança Comum foi estabelecida em 1992 com o Tratado de Maastricht, indicando o terceiro pilar de atuação da União Europeia, projetando-se como ator internacional. Neste pilar, seriam abordadas a atuação externa da UE e políticas em matéria de segurança e defesa. Foi sob sua égide que, posteriormente, desenvolveram-se a Política Europeia de Segurança e Defesa e sua evolução para a Política Comum de Segurança e Defesa. 278

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deve ter uma força de reação rápida para enviá-la prontamente a locais estratégicos em crises internacionais?”. Os dados se apresentam aproximadamente nos mesmos valores durante os três anos pesquisados (ver Gráfico 5, abaixo). Dos 75% que em 2001 entendiam ser necessária algum tipo de força armada na estrutura da PCSD, nos três anos seguintes a concordância chegou a 68%, índice ainda alto, mas em declínio no período mais recente. *U¢ôFR$8QL¤R(XURSHLDGHYHWHUXPDIRU¨DGHUHD¨¤RU¢SLGDSDUD HQYL¢ODSURQWDPHQWHDORFDLVHVWUDWªJLFRVHPFULVHVLQWHUQDFLRQDLV"

Fonte: Eurobarômetro, 2013b, com adaptações.

Atrelado a isto, pode-se observar as respostas à última pergunta de Manigart (2001) se referindo à decisão da UE em estabelecer uma PCSD e criar um exército europeu (Gráfico 6). Quais deveriam ser as funções de um exército europeu? A função mais celebrada pelos respondentes, uma extensão da função típica dos exércitos nacionais para a UE, foi a de defesa do território da organização, incluindo o território do país de nacionalidade do respondente, com 71% de marcações. Embora não desejassem que os exércitos dos seus países de origem fossem substituídos por um exército da União Europeia, o alto índice sugere que na eventualidade 279

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da criação de um exército europeu, este deveria ser utilizado em defesa do território da organização, aproximando-a da concepção de um Estado. A segunda opção mais votada, com 63%, associa o exército à função policial, garantindo a paz interna na UE e a terceira, 58%, de intervenções em caso de desastres naturais no continente europeu, relaciona outra função comum nos exércitos nacionais em períodos de paz. Apenas 4% insistiram que não deveria haver um exército europeu. *U¢ôFR4XDLVGHYHULDPVHUDVIXQ¨¶HVGHXPH[ªUFLWRHXURSHX"

Fonte: Manigart, 2011, p. 18, com adaptações.

As perguntas de número 4 (51%), 5 (48%), 6 (44%), 7 (41%), 8 (37%), 9 (34%) e 12 (18%) representam projeções da política externa da União Europeia nos limites do que é previsto nos tratados comunitários, enquanto outras três perguntas chamam a atenção pelos índices e pelo exercício de funções não previstas no direito comunitário: perguntados sobre a função do exército enquanto símbolo de uma identidade europeia, 19% dos respondentes concordaram com esta representação; sobre o dever do exército de defender os interesses econômicos da UE, 23%; e sobre agir em operações de paz em outras partes do mundo sem o consentimento da ONU, 15%. 280

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Pesquisas do Eurobarômetro realizadas de 2003 a 2007 (2013c, Gráfico 7) indagando aos europeus se a União Europeia deveria ter um ministro de relações exteriores próprio, dedicado a ser a voz da UE no exterior, reforçam a construção da dimensão subjetiva de uma identidade europeia, com quase 70% de respostas afirmativas. A percepção da necessidade de um ministro de relações exteriores próprio da UE aumentou de 62,6% em 2003 para 69% em 2007. Vale mencionar que é nesse período que se dá a tentativa de firmar o Tratado Constitucional, que previa o cargo de Ministro da União para os Negócios Estrangeiros e Política de Segurança, posteriormente transformado no Alto Representante da União para Negócios Estrangeiros e Política de Segurança (ARUNEPS) para o Tratado de Lisboa, em 2007, cargo que também acumula a vice-presidência da Comissão Europeia entre as suas funções. Certamente os debates acerca da representação externa da União Europeia contribuíram para o incremento, na população europeia, da necessidade de um funcionário que exercesse este cargo na UE. A discordância não se modifica muito: no período inicial de entrevistas, seu índice é de 18,4%, atingindo o pico de 21% em 2005 e 2006, mas caindo abaixo do nível inicial em 2007, para 18%. O nível de ignorância sobre a matéria também cai: se era 19% em 2003, ele não ultrapassa 13% em 2007. *U¢ôFRA UE deveria ter o seu próprio Ministro de Relações ([WHULRUHVSDUDVHURSRUWDYR]FRPXPGDRUJDQL]D¨¤R"

Fonte: Eurobarômetro, 2013c, com adaptações. 281

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A pergunta seguinte, no mesmo relatório do Eurobarômetro é ainda mais significativa. Questionados se os respondentes se sentem, além de nacionais dos seus próprios Estados, nacionais da Europa, as respostas surpreendem: embora a resposta “frequentemente” oscile muito pouco, indo de 15% a 16%, registrando um pico de 17%, a resposta “nunca” segue em franco decréscimo, dos 51% iniciais para 43%. Se “frequentemente” não aumenta com o decréscimo do “nunca”, a resposta intermediária, “algumas vezes”, sobe de 30% em 1991 para 38% em 2006 (ver Gráfico 8, abaixo). *U¢ôFRVocê se imagina, em algum momento, não apenas QDFLRQDOGHVHXSD®VPDVWDPEªPHXURSHX"

Fonte: Eurobarômetro, 2013c, 2014, com adaptações.

Em 2014 (EUROBARÔMETRO, 2014), estes índices são ainda mais favoráveis à existência de uma identidade europeia: frente à pergunta “Você se sente um cidadão da União Europeia?”, 65% dos respondentes responderam positivamente, sendo 26% deles em “sim, definitivamente”, e apenas 34% responderam negativamente, dos quais somente 13% responderam com “não, definitivamente”. De 2006 a 2014, o percentual de respondentes que se “sentem cidadãos europeus” praticamente dobrou, como demonstra o Gráfico 9, a seguir.

282

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*U¢ôFR9RF«VHVHQWHXPFLGDG¤RGD8QL¤R(XURSHLD"

Fonte: Eurobarômetro, 2014, com adaptações.

Frente a estes dados, em alguns casos contrastantes, é legítimo perguntar: existe algo que possa ser chamado de uma identidade europeia? Gerard Delanty (2003) afirma ser possível reconhecer uma identidade europeia, embora em diferentes níveis. O autor critica o debate difuso sobre a questão por ele normalmente se concentrar em aspectos de identidades nacionais e sua relação com a identidade europeia. Isto é, o debate costuma apontar para a ausência na União Europeia de elementos tipicamente presentes em identidades nacionais, como conjuntos de valores, objetivos, territórios e um povo. A identidade europeia, segundo o autor, é uma identidade coletiva, uma espécie de identidade de natureza cosmopolita, mais próxima de uma concepção de identidade cultural. Delanty explica que para isto ser compreendido, primeiro é necessário entender quatro aspectos da identidade: a) a identidade surge apenas em relação à ação social. Indivíduos e sociedades não surgem com uma identidade plenamente formada e na medida em que ocorrem mudanças sobre os agentes ao longo do tempo, as suas identidades mudam de acordo; b) identidades possuem uma dimensão narrativa que constitui a dimensão pública da identidade, observada pelo conjunto de histórias que dão sentido e continuidade à vida dos indivíduos e sociedades; c) a identidade se refere à 283

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relação entre dois ou mais agentes, que podem ser indivíduos ou grupos e é a partir desta relação que são constituídas as identidades como marcadores da diferença – a diferença, aliás, que é o fundamento central da identidade; d) os indivíduos normalmente possuem múltiplas identidades, percebidas como meios de relacionar-se com diferentes redes sociais. Estas identidades podem ser, por exemplo, de origem étnica, política, religiosa ou nacional. A partir desses aspectos já se torna mais fácil perceber a possibilidade de uma identidade europeia: se os indivíduos adquirem as identidades ao longo do tempo e eles as constroem a partir de um processo relacional, podem sustentá-las ao longo do tempo de forma plural e coexistente. Assim, um indivíduo poderia se considerar, por exemplo, francês e europeu, ou britânico e europeu. Estas identidades ainda existiriam lado a lado com outras formas de identificação social: o francês pode ser de origem libertária e o britânico de religião protestante. Este é um ponto fundamental, já que a identidade europeia não se presume uma identidade para substituir as identidades nacionais de cada um dos seus Estados membros. Isso sequer seria possível, em um contexto no qual parte de suas políticas mais importantes, a exemplo da PCSD, ainda funcionam com base no sistema intergovernamental. Não é possível, portanto, pensar a formação de uma identidade europeia sem partir de um viés construtivista. As identidades não existem previamente às relações sociais, pois são construídas ao longo do tempo e através das relações sociais estabelecidas pelos agentes (RUGGIE, 1998; WENDT, 1999). Independente da natureza da identidade em formação, todas as identidades passam por processos de construção social e no caso de uma identidade coletiva como a da União Europeia, não poderia ser diferente. Neste ponto resta outra distinção, entre identidades pessoais e identidades coletivas. No primeiro caso, trata-se de identidades particulares, de indivíduos; no segundo, de objetos referentes, ideias e interesses compartilhados em um grupo e não se deve confundir uma identidade coletiva como o mero agregado de identidades individuais. Identidades societais, um terceiro tipo, envolvem representações coletivas da sociedade, buscando abranger toda a diversidade de grupos existentes em uma sociedade e estas representações coletivas são determinadas em função de símbolos que as identificam perante outras sociedades (DELANTY, 2003). 284

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No caso europeu, o sistema das liberdades de circulação facilita a miscigenação cultural, aproximando identidades societais díspares e dificultando a separação entre o que é nacional e o que é europeu. As identidades nacionais crescentemente se transformam em representações coletivas e partes de uma identidade maior, societal. Desse modo, não se pode pensar que existam, realmente, tensões entre as identidades nacionais e uma identidade europeia: identidades nacionais, sobretudo em sociedades abertas, estão sempre suscetíveis ao contato com novas culturas e sujeitas a modificações, sendo a identidade europeia um complexo que abrange as identidades nacionais dos países membros da UE, é legítimo pensar que estas identidades nacionais já possuem, em sua essência, elementos da identidade europeia. Não há que se falar em uma identidade europeia moralmente superior, mas em uma identidade europeia que existe dentro e fora das identidades nacionais. Isso é visível em posições tomadas por Estados europeus que buscam reforçar os seus laços com outros países no mesmo continente por reconhecerem uma identidade definida, ao menos, geograficamente. A formação de uma identidade europeia busca complementar as identidades nacionais, reconhecendo-as como parte de um todo maior, que reúne as populações de todos os Estados europeus. Checkel e Katzenstein, em consonância com o pensamento construtivista, argumentam que não é possível delimitar uma única identidade europeia “porque não há uma única Europa” (2009: 213). Como um processo em permanente construção, a identidade europeia é fluida e sujeita a mudanças constantes (BRETHERTON; VOGEL, 2006). Essencialmente, formam-se diferentes identidades em níveis de interação social distintos; enquanto as elites – burocracias e empresários, ou a classe mais rica, de modo geral – estimulam uma concepção de identidade europeia atrelada à visão cosmopolita, o mesmo não acontece com os indivíduos de classes mais baixas porque, para estes, é muito mais difícil ser cosmopolita e europeu quando não se tem recursos para usufruir do sistema das liberdades de circulação da União Europeia – conhecer um segundo idioma, por exemplo, ou possuir recursos financeiros para viajar entre países e vivenciar a cultura dos países vizinhos. Visualizando este contexto, pode-se compreender porque ocorrem tantas revoltas sociais frente à ruína do 285

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Estado de bem estar social e à crise econômica europeia e como isto pode ameaçar a integridade da UE como um todo (MOLE, 2007). Os processos de alargamentos dificultam ainda mais a formação de uma identidade única, ao trazer para o interior da UE países de matrizes culturais, religiosas e nacionais tão díspares entre si. Particularmente nos alargamentos de 2004 e 2007, com a entrada dos países do leste europeu, as diferenças foram ainda mais evidenciadas, pondo em cheque a possibilidade de construção de uma identidade única em sua dimensão subjetiva.15 Se a identidade não está, então, em elementos culturais, será que é possível formar uma identidade europeia estritamente a partir da dimensão objetiva? Checkel e Katzenstein (2009) defendem que sim, observados certos parâmetros. Identidades são processos de construção socialmente orientados; não há que se falar em uma identidade quando este indivíduo está fora de uma sociedade, uma vez que a sua identidade é um conjunto de elementos que o identificam como um ser único perante a sociedade. O parâmetro ideal para isto, segundo os autores, é observar a construção de uma identidade europeia como um processo através das políticas desenvolvidas, formalizadas, implementadas e, principalmente, aceitas pela população. As políticas que passam por este processo e chegam a ser aceitas por uma grande quantidade de cidadãos dos países membros da UE criam elementos de identificação entre estes indivíduos de diferentes nacionalidades, se não pela concordância, pela submissão a normas comuns. Observando os dados do Eurobarômetro apresentados nesta seção, nos quais se vê a crescente aceitação da população sobre a ideia de uma Europa com uma política externa unificada, um representante externo único e Forças Armadas para o desempenho de sua política comum de segurança e defesa permite induzir o pensamento de que se não há uma identidade europeia formada com base na questão de segurança e defesa, 15. Para considerar a existência de uma identidade comum na União Europeia é necessário lembrar de um contexto fluido, mutável e em permanente mudança, tal qual a própria organização. Assim, na medida em que ocorrem mudanças na composição da organização com a ampliação dos seus membros e a acessão à UE de novas populações e suas respectivas identidades nacionais, somam-se também novos interesses e objetivos que se busca tornar comuns no âmbito da PCSD, o que dificulta ainda mais o processo de uniformização de políticas da PCSD e afirmação de uma identidade única. 286

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ao menos é possível pensar que ela se encontra em um processo de construção, com aceitação cada vez maior. A visão do lado da União Europeia sobre a identidade está enraizada no anseio de ser reconhecida como elemento inerente a todos os cidadãos dos seus Estados membros. Em 1973, quando ainda era uma Comunidade Europeia e era conhecida como a Europa dos Nove, os ministros das relações exteriores dos seus países membros adotaram a declaração conjunta sobre a identidade europeia – ou o que deveria ser uma identidade europeia oficial. O objetivo principal era inserir nas políticas externas dos Estados membros a preocupação em definir e reforçar a concepção de uma identidade europeia para o futuro desenvolvimento de uma “Europa Unida” (CVCE, 1973). Definir esta identidade europeia, para os ministros ali reunidos, significava: - revisar a herança, os interesses e as obrigações especiais comuns aos Nove, bem como o grau de unidade alcançado na Comunidade, - avaliando até que ponto os Nove estão agindo conjuntamente em relação ao resto do mundo e as responsabilidades que resultam disto, - levando em consideração a natureza dinâmica da unificação europeia (CVCE, 1973: 2).

A unidade europeia é vista no documento como essencial para garantir a sobrevivência da civilização da qual comungam, o respeito às ordens política, legal e moral da Europa, mas preservando a “rica variedade de suas culturas” (CVCE, 1973: 2). Isto é, mesmo na primeira declaração oficial sobre esta questão, a identidade europeia que se pretendia construir não era uma identidade que visava à substituição das identidades nacionais, mas um instrumento que auxiliaria na aproximação entre os países membros da Comunidade para o exercício de esforços comuns com o objetivo de preservar as suas individualidades dentro da Comunidade Europeia. A Declaração sobre a Identidade Europeia16 relaciona os valores considerados comuns à Europa dos Nove e fundamentais à concepção de uma 16. Apesar de tanto a Declaração sobre a Identidade Europeia como a Política Comum de Segurança e Defesa terem sido criadas na estrutura da integração europeia, não há relação direta entre o documento e a Política. No entanto, a Declaração é aqui destacada por ser o primeiro 287

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identidade europeia oficial: a democracia representativa, o primado da lei, a justiça social e o respeito aos direitos humanos. Na Declaração, a Europa dos Nove se mostra aberta à entrada de novos membros, desde que compartilhem dos mesmos ideais, e demonstra o seu cuidado em definir, naquele momento, uma identidade europeia: Apesar de no passado os países europeus terem sido individualmente aptos a desempenhar papeis de protagonistas no cenário internacional, os problemas internacionais do presente são de difícil resolução para qualquer um dos Nove, sozinhos. Mudanças internacionais e a crescente concentração de poder e responsabilidade nas mãos de um conjunto muito pequeno de grandes potências significa que a Europa deve se unir e falar cada vez mais com uma só voz, se ela desejar ser ouvida e desempenhar o seu papel apropriado no mundo (CVCE, 1973: 3).

A identidade aqui se mostra uma ferramenta de inserção internacional da União Europeia como agente, constituída a partir de alguns valores-chave, considerados comuns a todos os países da Comunidade e para a qual é igualmente indispensável a confecção de políticas comuns no domínio das relações exteriores e da segurança e defesa: Os Nove, nos quais um dos principais objetivos é manter a paz, nunca serão bem sucedidos nisto se continuarem a negar a própria segurança. Dentre eles, os que são membros da Aliança Atlântica consideram que nas circunstâncias atuais não há alternativa para a segurança provida pelas armas nucleares dos Estados Unidos e pela presença de forças norte-americanas na Europa: e eles concordam que à luz da relativa vulnerabilidade militar da Europa, os europeus devem, se desejam manter a sua independência, respeitar os seus compromissos e realizar esforços constantes para garantir que tenham meios adequados de defesa à sua disposição (CVCE, 1973: 3). A Identidade Europeia evoluirá em função da construção dinâmica de uma Europa Unida. Em suas relações exteriores, os Nove se propõem documento oficial da organização no qual surge expressamente a preocupação com a formação de uma identidade própria. 288

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a empreender progressivamente a sua definição de identidade em relação a outros países ou grupos de países. Eles acreditam que, ao fazê-lo, irão reforçar a sua própria coesão e contribuir para a estruturação de uma política externa genuinamente europeia. Eles estão convencidos de que erigir esta política os ajudará a abordar com confiança e realismo estágios posteriores na construção de uma Europa Unida, facilitando a proposta de transformação do complexo de suas relações em uma União Europeia (CVCE, 1973: 4).

Fica ainda mais evidente no discurso da União Europeia a busca por uma identidade ao manter no preâmbulo do Tratado da União Europeia (TUE, 2012), em sua versão consolidada, quando já não é mais a Europa dos Nove, mas a Europa dos Vinte e Sete, os elementos identificados na Declaração de 1973: BUSCANDO INSPIRAÇÃO na herança cultural, religiosa e humanista da Europa, da qual desenvolvemos os valores universais dos direitos invioláveis e inalienáveis da pessoa humana, liberdade, democracia, igualdade e o primado da lei, (…) CONFIRMANDO o seu compromisso com os princípios da liberdade, democracia e respeito pelos direitos humanos e liberdades fundamentais e do primado da lei, (...) DESEJANDO aprofundar a solidariedade entre o seus povos e mantendo o respeito pela sua história, sua cultura e suas tradições, DESEJANDO reforçar o funcionamento eficiente e democrático das instituições de forma a permitir-lhes realizar, em uma estrutura institucional única, as tarefas que lhes forem confiadas, (...).

O discurso da União Europeia na defesa dos valores e princípios adotados como sendo caracteristicamente “europeus” na Declaração de 1973 permanece o mesmo, atrelado à necessidade de desenvolver ações conjuntas e reforçar a cooperação e integração da União Europeia. Desse modo, a PCSD, como extensão natural da PESC, não apenas amplia o escopo da atuação da UE no exterior, mas é um importante instrumento de consolidação de ações conjuntas, operando através da busca por um caminho comum, negociado entre os membros da União Europeia. 289

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Considerações finais A barreira dos nacionalismos é muito forte, mas não intransponível. Se a União Europeia mostra-se a organização complexa que é hoje, não foi sem percalços ou mesmo sem vários entraves. Ela foi edificada a partir de negociações constantes, barganhas institucionais e, principalmente, com a perspicácia de agentes políticos fundamentais ao avanço do processo de integração em momentos importantes. É legítimo dizer que no caminho percorrido até meados de 2014 a organização adquiriu reconhecimento enquanto agente das relações internacionais, tanto no domínio econômico quanto no político-militar; enquanto o seu reconhecimento como agente econômico se deu ainda no final da década de 1980 e início da década de 1990, a sua identidade enquanto ator securitário precisou passar por um período de maturação até se consolidar, mais de vinte anos depois. Digno de nota, neste sentido, que em dados apresentados por instituições internacionais acerca de capacidades econômicas e militares, não só figuram os países que integram a organização como a própria UE entre os agentes internacionais, como um ente distinto dos países que a compõem. Isto não foi possível sem uma transformação da identidade dos Estados que compõem a UE. Como destaca Medeiros (2010: 32), (...) se o cenário mundial sofre modificações, isto se deve, primordialmente, à ação adaptativa do Estado que, a montante, busca meios de satisfazer às demandas nacionais e, a jusante, procura adequar estes meios à realidade forjada pela multitude de agentes e estruturas existentes ou em construção. Sem embargo, são transformações nas concepções de soberania, autodeterminação e segurança que, saindo de seus quadros nacionais, autorizam novas formas de regulações (Grifos Nossos).

Ora, se há modificações substanciais no modo como os Estados percebem o papel das estruturas nacionais frente ao sistema internacional, ao ponto de aceitarem novos mecanismos de regulação externos à burocracia do Estado, é razoável supor que os Estados atribuem legitimidade aos processos decisórios de tais mecanismos externos voltados para a regulação 290

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de questões específicas entre eles. Dentre estes mecanismos, está a União Europeia e sua pletora de instituições, entre as quais se insere a Política Externa e de Segurança Comum que dá forma aos interesses comuns da organização no exterior em relação a outros agentes internacionais. Esta representação comum perante as relações internacionais é ainda mais reforçada com a criação de uma Política Comum de Segurança e Defesa, capaz de relacionar ameaças, objetivos e intenções compartilhadas entre os cidadãos europeus de forma coesa. A observância desta coesão, por sua vez, demonstra a existência de elementos que sugerem a existência de uma identidade externa da União Europeia. A identidade externa da UE como agente internacional é reforçada pelo crescente reconhecimento das populações dos seus Estados membros de uma identidade europeia, da importância da ação exterior da organização e, como se buscou argumentar neste trabalho, da necessidade de um papel mais ativo da UE enquanto agente internacional de segurança, agindo para solucionar crises internacionais e até dispondo de Forças Armadas, ou algum mecanismo que se lhe assemelhe, para garantir a sua autonomia na realização dessas operações. A autonomia, por seu turno, é indispensável neste contexto de afirmação de uma identidade europeia enquanto agente internacional. A parceria histórica entre a União Europeia e a Organização do Tratado do Atlântico Norte não pode ser desconsiderada no contexto do complexo regional de segurança europeu, como não pode ser desconsiderada a importância da atuação de outros organismos internacionais no continente. No aspecto militar, é a relação entre a União Europeia e a OTAN e suas identidades construídas neste contexto que importam para a configuração de uma política de segurança e defesa no continente. As operações executadas sob os auspícios da PCSD são um capítulo à parte na história da integração em segurança e defesa da UE. No início do século XXI a União Europeia inaugura um novo paradigma de intervenções em países não membros da organização, com foco nos aspectos civis do gerenciamento de crises, enfatizando missões pontuais que auxiliam na busca de paz e estabilidade. Ele se distingue do tradicional paradigma intervencionista da ONU focado em missões e mandatos independentes, para a execução das funções militares de pacificação e separação 291

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das partes envolvidas em conflitos, para o cessar-fogo e para a celebração de acordos de armistício. A PCSD, ao inovar nesta seara, busca aliar as suas capacidades econômicas às suas capacidades militares, agindo sobre as causas fundamentais dos conflitos para resolvê-los de forma permanente ou, ao menos, estabelecer uma paz duradoura, mais estável do que a mera separação de partes opostas em conflitos armados, cumprindo isto em uma missão multidimensional e com cadeia de comando e mandato únicos. A União Europeia, assim, pavimenta o seu caminho enquanto agente internacional desenvolvendo mecanismos próprios de respostas a crises, focados em eficácia e eficiência, com operações mais modestas e aptas a resultados bem sucedidos do que as operações de larga escala executadas por outros organismos, como a ONU e a OTAN. Ao fazer isto, afirma uma identidade própria em matéria de segurança e defesa, distinta das demais organizações dedicadas ao tema no continente. E isto por duas razões: a) por um lado, a União Europeia, ao desvincular-se do uso exclusivo do hard power, faz uso de estratégias que visam aumentar o seu soft power ao tentar atrair legitimidade para o seu status de agente securitário. O reconhecimento de sua importância como tal e a não desconsideração do uso efetivo do poder bruto, apresenta a UE como um agente que utiliza de modo eficaz o smart power;17 b) por outro lado, a construção de uma identidade europeia ocorre por dois caminhos diferentes, ao tentar compatibilizar as diferenças internas em opiniões uniformes, e ao considerar os contrastes externos, quando lida com os objetivos e as diferenças de opinião de países e regiões externas à União Europeia. Se o elemento da identidade europeia apresenta-se em consolidação, pelo que se pode observar nos dados apresentados pelo Eurobarômetro e nos esforços institucionais de estabelecer uma identidade, a crise do euro ainda ecoa em 2014 os problemas iniciados em 2008, ameaçando a 17. O hard power, traduzido frequentemente como poder bruto, faz referência o uso da força e de meios coercitivos de imposição de vontade nas relações internacionais. O soft power, conhecido na literatura nacional como poder brando ou poder suave é a “habilidade de moldar as preferências de outros para quererem o que você quer” (NYE JR., 2008:. 29), operando por meio da atração e sedução. O smart power, por seu turno, envolve o uso inteligente e contextualizado de ambas as estratégias simultaneamente, isto é, o emprego de estratégias que auxiliam no desenvolvimento do poder brando, mas que não afastam a possibilidade do uso da força bruta. 292

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integridade da UE, tornando possível afirmar que não se pode subdimensionar o impacto que a crise terá sobre a PCSD. Frente a este ponto, as medidas de estabilização que impõem aos Estados membros ajustes de natureza macroeconômica, com o objetivo de evitar a desintegração do bloco, refletem sobre os outros domínios de intervenção. A crise fiscal, neste momento, parece mais importante do que a afirmação de uma identidade perante as relações internacionais e, na medida em que os esforços e recursos se direcionam para a contenção da crise do Euro, o orçamento da PCSD também é afetado e diminuído após vários anos de crescimento. Além do impacto da crise do euro sobre a PCSD, a relação de distanciamento ou aproximação entre a OTAN e a UE merece ser observada no futuro próximo. À autonomia crescente da UE mediante o seu plano de desenvolvimento de capacidades e o fortalecimento da sua identidade deverá corresponder um afastamento da OTAN do território europeu na cooperação militar, restando a cooperação em outros aspectos de natureza operacional, como o compartilhamento de informações e inteligência e o suporte logístico. Contudo, se as ações da PCSD se contraírem frente aos cortes de gastos militares, pode-se esperar que o espaço ocupado pela OTAN nas relações internacionais não seja tomado tão brevemente pela União Europeia. Qualquer um destes resultados possíveis produzirá um impacto sobre a afirmação de uma identidade europeia. Finalmente, a ênfase da UE em missões de gerenciamento de crises por meio de instrumentos civis combinados com instrumentos militares é outro aspecto relevante. Se este é um paradigma que se objetiva consolidar enquanto prática exclusiva do intervencionismo europeu ou se há chances de se tornar uma prática relevante nas relações internacionais vindo a substituir paradigmas recentes como os da responsabilidade de proteger18 e da

18. No relatório intitulado The Responsibility to Protect, a Comissão Internacional sobre Intervenção e Soberania Estatal propôs que a soberania do Estado deveria estar condicionada à sua responsabilidade e disponibilidade de proteger seus cidadãos, de modo que, quando se mostrasse incapaz para tanto, os princípios do consentimento e do não uso da força deveriam ser relativizados, em prol da defesa das vidas em risco. Faz parte do relatório também a defesa de que as intervenções devem ser realizadas de modo integrado, valorizando a prevenção, mas afirmando a necessidade de a comunidade internacional estar comprometida com a responsabilidade de reagir com medidas de restauração da paz e da estabilidade. Fechando o tripé de ações cobertas pela responsabilidade de proteger, além de prevenir e reagir, deve-se estar consciente da 293

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responsabilidade ao proteger,19 só o tempo dirá. O fato, neste caso, é que em bem menos tempo de funcionamento, a PCSD consolidou práticas almejadas há muito pela Organização das Nações Unidas, concatenando ações menos danosas – mas não menos invasivas – e ações mais incisivas na resolução de crises internacionais, como os casos da pirataria na Somália e as ações de manutenção de paz na Bósnia. Faz-se importante estudar como irá se desenrolar, daqui por diante, a prática das intervenções armadas pelos países e organizações internacionais e se, também neste aspecto, pode-se continuar afirmando uma identidade genuinamente europeia20. Uma lição que se desprende do estudo realizado é a natureza constitutiva da realidade da União Europeia, permeada de instituições intergovernamentais e refém de interesses particulares dos Estados. A construção de uma identidade europeia em matéria de segurança e defesa decorre de um longo processo de desenvolvimento das relações exteriores da organização, culminando na PCSD. Devido ao seu caráter de constituição a partir das interações sociais, todavia, a identidade poderá se transformar a qualquer momento, refletindo novas ações e interações promovidas pela UE. Os desafios são novos, e múltiplos: é possível afirmar que a União Europeia se manterá firme como agente internacional, mas a sua identidade não é estável como as identidades ontológicas de um Estado. Ela é passível de mudanças que acompanhem as suas próprias transformações internas, com o alargamento ou eventual saída de alguns dos seus membros. Além disso, as relações estabelecidas com organismos que atuam sobre a segurança e defesa, assim como o fracasso ou sucesso destes, também devem ser observados, uma vez que repercutirão sobre a percepção responsabilidade pela reconstrução dos teatros das intervenções, colaborando para o estabelecimento de uma paz duradoura (ICISS, 2001). 19. Proposto pela Presidente brasileira Dilma Rousseff em 2011 logo após a intervenção na Líbia, esta atualização da ideia de responsabilidade de proteger tem por finalidade reforçar a necessidade de investir em técnicas de prevenção de conflitos e tratar a intervenção armada como último recurso. O ponto principal da responsabilidade ao proteger parece ser o de reavivar o debate sobre como intervir, sobretudo quando se fizer o uso da força armada sem o consentimento das partes envolvidas no conflito, com o objetivo de minimizar os danos causados pelas intervenções militares (ICRP, 2012). 20. O tema do sucesso ou insucesso destas operações em comparação às missões da ONU é extenso demais para ser tratado aqui, mas merecia a menção. Reserva-se, assim, a questão para tratamento em trabalhos futuros. 294

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de sucesso ou fracasso da PCSD e, consequentemente, sobre a afirmação de uma identidade europeia.

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