IDENTIDADE, TERRITORIALIDADE E CONFLITOS SOCIOAMBIENTAIS: ALGUNS CENÁRIOS DO ALTO SOLIMÕES (AM)

June 2, 2017 | Autor: Edna Alencar | Categoria: Social and Cultural Anthropology
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IDENTIDADE, TERRITORIALIDADE E CONFLITOS SOCIOAMBIENTAIS: ALGUNS CENÁRIOS DO ALTO SOLIMÕES (AM)1 EDNA FERREIRA ALENCAR2 UFPA

Introdução A partir dos anos 80 as populações indígenas do alto Solimões3, em sua maioria pertencentes à etnia ticuna4, passou a controlar um vasto território, e recebeu também a tarefa de zelar pelos recursos naturais neles existentes, podendo desempenhar então o papel que lhe cabe no imaginário nacional: o de protetores da natureza. Entretanto, a incapacidade do órgão indigenista, FUNAI, de desenvolver medidas de proteção das terras indígenas e de apresentar alternativas de renda capazes de alterar a dependência econômica das populações indígenas da exploração dos recursos naturais como principal meio de subsistência e de acesso a produtos industrializados tem contribuído para a configuração de uma situação de insustentabilidade social e ambiental. A continuidade das práticas econômicas centradas no extrativismo para garantir o acesso a tais produtos, resultou na escassez e na redução localizada de vários recursos, particularmente aqueles de maior valor no mercado, como algumas espécies de peixe, espécies madeireiras e animais de caça de grande porte. Associada à escassez está a competição pela apropriação dos recursos, que é a principal causa dos conflitos envolvendo diferentes segmentos da sociedade regional movidos por interesses distintos. De um lado estão os pescadores urbanos, caçadores, comerciantes de madeira e de peixe, dentre outros; de outro, os moradores das comunidades indígenas que defendem seu território e o direito de usufruto exclusivo dos recursos neles existentes. Os conflitos estão associados à invasão de terras indígenas ou dos territórios das comunidades, e à disputa pelo controle do acesso aos recursos. Nos últimos dez anos, a escassez de alguns recursos – peixe, madeira e animais de caça –, nas áreas próximas das comunidades, acentuou os conflitos e exigiu a adoção de atividades voltadas para a conservação de recursos naturais, como as atividades de manejo de lagos e de madeira realizadas por algumas comunidades

indígenas. O controle do acesso aos recursos existentes nos territórios das comunidades com a elaboração de regras que visam regulamentar a forma de exploração dos recursos e definir quem tem o direito de explorá-los foi a alternativa encontrada para garantir sua reprodução social, posto que dependem da exploração destes recursos para sua subsistência. Embora se saiba que as populações indígenas desenvolveram estratégias de uso e manejo dos recursos naturais, o modelo econômico historicamente desenvolvido no Alto Solimões, uma herança do processo de dominação colonial na Amazônia, tem como principal base de sustentação a exploração comercial desses recursos. Para alimentar a indústria extrativista tem sido utilizada a mãode-obra nativa, inicialmente paga com mercadorias, num sistema de troca mercantil localmente referido como “troco”, que resultou na imposição de bens manufaturados a esta população gerando novas necessidades de consumo e alterando a maneira de esta população explorar os recursos naturais. As dívidas contraídas com a aquisição de bens manufaturados junto aos comerciantes – representado no passado pelo barracão do seringalista e modernamente pelos comerciantes de peixe que comercializam mercadorias ao longo dos rios – são saldadas principalmente com produtos extrativos, tornando-a escrava destes comerciantes5. Para atender as necessidades de consumo de produtos industrializados intensificou-se a exploração de recursos valorizados no mercado regional, principalmente a madeira e o peixe. Nestas condições, o envolvimento cada vez maior da população indígena com o mercado resultou em mudanças não apenas na prática, mas também nas concepções simbólicas que orientam sua relação com a natureza. Enquanto no passado essa população supria suas necessidades de consumo retirando o essencial para garantir suas necessidades de consumo e, desta forma, permitindo a renovação dos recursos, no presente a exploração continuada e sem medidas, e a

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utilização de práticas extrativistas que não respeitam os ciclos da natureza, comprometem a renovação dos estoques naturais, resultando na escassez e mesmo no esgotamento daqueles mais valorizados no mercado. Nesse sentido, a falta de alternativas econômicas tem como principal conseqüência a intensificação da exploração da natureza, resultando em uma situação em que a natureza deixa de ser a provedora direta do consumo e se torna a principal provedora de meios para o consumo de mercado, como afirma Deborah Lima (2002). A escassez é decorrência do aumento da pressão sobre os recursos que ocorreu a partir do fim dos anos 70 e está associada ao crescimento da população da área urbana e rural; ao crescimento do mercado e à introdução de novas tecnologias de pesca – gelo, barcos motorizados, e de capital para financiamento da produção6. Esta competição, associada à falta de políticas públicas eficientes na área social, tem causado impactos ambientais, tais como o aumento da pressão sobre alguns recursos, mas tem afetado principalmente a esfera social, com a degradação das condições de vida e migração da população rural para a área urbana. As populações indígenas são particularmente afetadas por essas transformações, com sérios impactos sobre a qualidade de vida e a sustentabilidade no uso dos recursos naturais. Nesse sentido, a maioria das comunidades indígenas pouco se diferencia daquelas comunidades ocupadas por não indígenas. Tendo seu referencial de identidade associado a um território, não encontram na migração para a área urbana a solução para os problemas relacionados à escassez de recursos e à falta de políticas públicas na área social7. A partir da observação de processos sociais que envolvem o manejo de recursos naturais em algumas comunidades situadas em terras indígenas do alto Solimões, tentaremos mostrar neste trabalho que as ações destes grupos sociais são orientadas por uma referência de território. A apropriação dos recursos existentes nesses territórios e o direito a sua exploração são garantidos pela ocupação histórica de um território que corresponde à comunidade, que é distinto do território mais englobante, a terra indígena. Neste contexto, o fato de pertencerem a um mesmo grupo étnico e de residirem na mesma terra indígena não é suficiente para garantir aos membros de uma aldeia (ou comunidade) acesso ao território das demais; no entanto, as lideranças das aldeias (ou comunidades) mantêm a sua autoridade sobre este território particular da comunidade. Também tentaremos mostrar como os conflitos sociais surgidos em torno da restrição da exploração dos recursos naturais põem em evidência a necessidade de políticas públicas para a região voltadas para a promoção do desenvolvimento sustentável, de atividades de manejo de recursos e formas alternativas de geração de renda.

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A construção social do espaço: a terra indígena e a comunidade No alto Solimões os conflitos socioambientais gerados em torno da disputa pelo controle do acesso a recursos naturais evidenciam a maneira como as comunidades8 indígenas concebem o espaço e manipulam de forma instrumental a noção de território9. De um lado, está o território das comunidades, construído pelas ações cotidianas do grupo social agindo sobre o ambiente, atribuindo significado e transformando o espaço biofísico. De outro lado, está o território mais englobante, a terra indígena, que remete ao processo político de territorialização referido por Oliveira (1983). Para a geografia moderna o espaço é, sobretudo, social, e o território se constrói com a atividade humana. A relação do homem com o ambiente biofísico, desenvolvendo ações continuadas em um determinado período histórico, cria o território. As fronteiras de um território são estabelecidas pelos antepassados através de ações cotidianas sobre o ambiente, e pela atribuição de significados ligados a aspectos religiosos e cosmológicos. Ao realizar a exploração dos recursos naturais, agindo sobre o ambiente, transformam o espaço em lugar (Tuan, 1983; Hirsch and O’Hanlon, 1995; Alencar, 2002). O conhecimento que as pessoas possuem do território se dá por meio de um aprendizado, resultado de uma experiência vivida e também compartilhada, não se restringindo ao que cada uma delas conhece pela experiência direta. Este conhecimento é refeito a cada geração e transmitido através tanto da narrativa da experiência dos antepassados agindo sobre o meio ambiente, quanto pela implicação prática das pessoas na paisagem. O território abrange, ainda, o conjunto dos espaços de cuja existência são sabedores, embora não os conhecendo (Tuan, 1983). Os grupos sociais que formam as comunidades usam uma referência de território que lhes é particular e que remete à própria constituição do grupo social que construiu este território. O termo comunidade remete ao pertencimento a um grupo de parentesco, ao domínio e ocupação de um território, e está em primeiro plano em relação ao conceito de um coletivo relacionado à terra indígena. Trata-se de um território circunscrito, historicamente construído e escrito de forma particular através da agência das gerações passadas que deram origem ao grupo social. Pertencer a uma comunidade significa partilhar um mesmo conjunto de memórias do passado10 que enfatizam as ações do ancestral fundador do grupo social (Gow, 1994; Alencar, 2002). Para Paul Little (1994), uma das maneiras como um determinado povo se localiza num espaço geográfico e reconhece o lugar de origem do grupo é partilhando uma memória coletiva do passado. A existência de comunicação entre as gerações permite não somente partilhar experiências e

opiniões, como também construir uma memória sobre a história do lugar que é partilhada pela geração do presente, e reforçar os vínculos com o lugar. Segundo Paul Connerton11, “se as memórias que têm do passado da sociedade divergem, os seus membros não podem partilhar experiências ou opiniões” (1999:03). Este território remete a ancestralidade da ocupação de um espaço e construção de um lugar por um grupo social. Já a terra indígena possui uma conotação política, abriga várias comunidades e possui fronteiras fixas demarcadas juridicamente. Trata-se de um território que é englobante e cujos ocupantes pertencem a uma identidade étnica juridicamente reconhecida e comum. Pressupõe-se que os ocupantes deste território englobante se percebam enquanto parte de uma coletividade, partilhando interesses comuns, devendo buscar a sustentabilidade ambiental de suas terras e a sustentabilidade social e cultural do seu modo de vida. Do ponto de vista das ações de preservação ambiental, a demarcação das terras indígenas no alto Solimões deu lugar a um novo modo de perceber o território e serve de justificativa para a ação dos grupos sociais que manipulam esses dois conceitos de território12. Nesse sentido, os grupos sociais que formam as comunidades, estejam elas situadas em terras indígenas, em unidades de conservação ou fora delas, manipulam esses dois níveis de territorialidade de acordo com o contexto político, social e econômico nos quais são gerados os conflitos. A gestão de territórios comuns, como ocorre nas RDS13 e nas terras indígenas, exige a construção de um coletivo envolvendo diferentes atores, sejam eles representados pelas comunidades ou por indivíduos dentro das comunidades. Entretanto, as experiências têm mostrado que o referencial utilizado para reivindicar o direito ao uso dos recursos é a comunidade e que, seja em terra indígena ou RDS, as pessoas não perdem este referencial em nome do coletivo mais inclusivo. Ou seja, dependendo dos atores envolvidos nos conflitos gerados em torno da disputa por recursos naturais, recorrem a uma ou outra referência de território. Moradores de comunidades situadas na mesma terra indígena ou em terras diferentes tendem a usar o critério étnico para reivindicar o direito de explorar os recursos naturais nas áreas das outras comunidades e a buscar apoio nas relações de parentesco para ingressar nos territórios, gerando conflitos intracomunitários. Tais conflitos deixam evidente que não basta pertencer a uma mesma etnia ou residir num mesmo território para ter acesso ilimitado aos recursos existentes em territórios que são considerados como de uso exclusivo das comunidades. O critério ou condição de acesso é o pertencimento ao grupo de parentesco e de pertencimento ao lugar (Lima-Ayres, 1992; Alencar, 2002a), como ocorre em áreas não indígenas14.

O processo de construção do território das comunidades é anterior ao próprio processo de definição do território que forma a terra indígena. Portanto, quando se trata de manejo de recursos naturais, partilhar o mesmo status identitário e um território comum, a terra indígena, não garante o direito de explorar os recursos existentes nos territórios menores, das comunidades. Esse é um aspecto importante porque evidencia um critério também muito utilizado pela população não indígena que reside nas áreas de várzea para definir quem pode ter acesso aos recursos e aos territórios: o pertencimento à comunidade, aqui tanto se referindo a uma comunidade de parentesco quanto a uma comunidade no sentido político15.

Manejo de recursos e administração de conflitos socioambientais No alto Solimões a demarcação das terras indígenas, embora tenha contribuído para amenizar um tipo de conflito ao definir os territórios das populações indígenas e garantir sua autonomia sobre os recursos existentes em suas terras, tornou-se um fator de potencialização de conflitos de natureza política e ambiental. As terras indígenas são alvo da cobiça por parte de certos segmentos da sociedade regional – madeireiros, pescadores e dentre outros que exercem forte pressão sobre algumas lideranças indígenas para que estas permitam a exploração de suas terras. Impedidas de explorar os recursos que ainda existem em suas terras e sem encontrar alternativas econômicas para sua subsistência, estas lideranças são facilmente cooptadas, permitindo a exploração de lagos e de madeira em troca de produtos manufaturados. Este tipo concessão é hoje uma fonte permanente de conflitos intra e intercomunitário, causando sérias divergências entre moradores de comunidades situadas numa mesma terra indígena. De acordo com Oliveira (2000) nos anos 90 vários caciques ticuna foram cooptados por madeireiros e políticos locais para que permitissem a exploração de suas terras. Com isso “a situação para os índios tornou-se mais difícil porque precisam lutar não apenas contra os brancos, mas muitas vezes contra lideres indígenas que agem movidos por estes interesses” (2000:232). A continuidade de tais práticas econômicas num cenário de escassez de recursos acentua a crítica realizada por aqueles segmentos que são contrários à criação das terras indígenas, e são proibidos de explorar os recursos naturais nelas existentes. Alem de acusarem os índios de depredadores e de impedirem o desenvolvimento da região, também questionam a tradicionalidade destas populações, particularmente no que tange aos modos de uso do meio ambiente e à capacidade de garantirem a sustentabilidade ambiental de seus territórios conservando os recursos naturais neles existentes. Estas práticas

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também fornecem novos elementos para reforçar uma imagem do índio como destruidor da natureza16, que ganha proporções cada vez maiores no cenário regional, expressando não apenas orientações culturais e econômicas diversas, mas concepções ecológicas distintas. Embora as experiências de manejo de recursos, como as reservas de lagos e o manejo florestal, realizadas por algumas comunidades indígenas possibilitem a concretização da imagem do índio como protetor da natureza, no cenário local de disputa pelo controle do acesso aos recursos naturais elas ganham outros contornos, despontando como uma das principais causas dos conflitos socioambientais, como os conflitos intercomunitários que envolvem membros de comunidades situadas na mesma terra indígena, ou conflitos interétnicos, envolvendo moradores de comunidades indígenas e moradores de comunidades não indígenas, ou da área urbana. Na primeira situação citamos como exemplo o conflito envolvendo os moradores da comunidade indígena Palmeira do Norte, situada na terra indígena Maraitá, município de Amaturá, e moradores de comunidades indígenas situadas na terra indígena Wu-Wata-In. Os moradores de Palmeira do Norte tentam controlar o acesso a um dos maiores lagos da região, o Manacari, farto em recursos pesqueiros e madeireiros, localizado em território da comunidade. O direito à exploração dos recursos existentes na área do lago é reivindicado tanto por moradores da área urbana de Amaturá, quanto por moradores das comunidades indígenas de Wu-Wata-In. Estes entendem que o lago estando localizado em uma terra indígena o direito de explorar os recursos ali existentes é extensivo a todos os indígenas, independente da terra indígena à qual eles pertencem. Logo, recorrem a uma identidade e a um referencial de território que é englobante. Mas para os moradores de Palmeira do Norte, o principal critério que define o direito do acesso aos recursos é o pertencimento a comunidade, e não o étnico. As regras estabelecidas pela comunidade para o uso dos recursos naturais se aplicam tanto aos civilizados quanto aos moradores de outras comunidades indígenas. Somente é permitida a entrada de moradores da localidade indígena situada na várzea, Maraitá, desde que os mesmos respeitem as regras estabelecidas. Os moradores de Palmeira do Norte possuem vínculos de parentesco com os moradores de Maraitá (Alencar, 2004). Os conflitos colocam em confronto membros da mesma etnia que disputam pelos mesmos recursos. De um lado estão aqueles que reconhecem a necessidade de manejar os recursos como forma de reduzir a escassez; de outro lado estão aqueles que invadem as áreas onde se realizam as atividades de manejo ou que utilizam o timbó em suas pescarias. Tais ações são fontes permanentes de conflitos não somente entre aldeias, mas entre

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índios e não índios, contribuindo ainda para reforçar a imagem do índio como destruidor da natureza. Estudo realizado no alto Solimões (Alencar, 2002b e 2004) constatou que as pessoas mais diretamente envolvidas nos conflitos são aquelas que dependem exclusivamente da venda do peixe para sua sobrevivência, ou que dispõem de poucos lagos em seus territórios. “Sempre há conflitos. Diminui o conflito exatamente porque os donos, os próprios beneficiados pela demarcação das terras indígenas, são os próprios índios que vendem o peixe porque permitem, trocam o peixe por cachaça, por qualquer coisa. Eles permitem que entrem barcos pesqueiros e devassem e arrasem os lagos, que deveriam ser patrimônio deles, vigiado por eles, não é? Então, o quê que vai fazer? Se eles mesmos se vendem?” (Representante da diocese do alto Solimões) Os conflitos evidenciam ainda a maneira como as comunidades delimitam seus territórios, cujas fronteiras não são claramente discernidas pelos de fora, e manipulam o conceito de terra indígena. Para alguns, este é um território tradicional de uso coletivo de um grupo étnico. Logo, os recursos ai existentes devem ser de uso comum a todos os que nele residem. Nesse sentido, as atividades de manejo revelam um aspecto importante relacionado ao modo como esta população constrói sua territorialidade e manipula alguns diacríticos que marcam as fronteiras identitárias: são atividades que implicam na exclusão tanto daquela parcela da população que possuía um vinculo histórico com este território, mas que no processo de demarcação das terras indígenas optou por não ser índio e foi expulsa para a área urbana ou para outras áreas rurais, quanto de moradores de comunidades indígenas que partilham o mesmo território. Neste ultimo caso constata-se que o pertencimento ao mesmo grupo étnico não é um critério suficiente para garantir o acesso aos recursos naturais existentes no território de uma comunidade indígena. Esta separação entre o território da comunidade e o território englobante, a terra indígena, e a conseqüente definição de quem pode ter acesso aos recursos existentes em cada um deles, fica evidente através das ações de algumas lideranças indígenas quando arrendam as terras e lagos existentes no território de suas comunidades para a exploração dos recursos naturais, estabelecendo alianças com madeireiros e comerciantes de peixe, à revelia das demais comunidades que se localizam na mesma terra indígena e que necessitam utilizar esses recursos. Partem de uma concepção de território que está circunscrito no tempo e no espaço, e está associado à noção de comunidade, da conquista do direito de usufruto dos recursos existentes neste território. O território da comunidade é,

neste caso, anterior ao território que forma a terra e que remete a uma coletividade maior, o grupo étnico. Portanto, a questão que se apresenta hoje para as populações indígenas do alto Solimões é a estreita relação entre a construção de um território por um grupo social que forma a comunidade e a liderança política, estreitamente vinculada ao parentesco e à ancestralidade da ocupação do lugar. A referência geopolítica dos caciques é o território das comunidades a partir do qual exercem sua liderança política. Segundo Oliveira Filho, uma das dificuldades vivenciadas atualmente pelos ticunas esta relacionada a questão da autoridade das lideranças ticunas: “¿Como se puede empezar un proceso de desarrollo sin quebrar las autoridades indígenas auténticas, sin quebrar los procesos de decision que son familiares, que son procesos efectivamente por generación, y que son arreglados por normas muy definidas? (cf. 2000:232)”. Autores como Sheridan (1988) e Little (1996) mostram que nas atividades voltadas para a administração e o gerenciamento de recursos naturais envolvendo diferentes atores com interesses e modos distintos de gerir o território e os recursos, torna-se necessário um comanejo ou co-gestão das relações no processo de tomada de decisão. Partindo-se da premissa de que os diferentes atores envolvidos não representam grupos coesos e monolíticos (Sheridan, 1988), torna-se necessário buscar interesses em comum entre as partes envolvidas, tendo como pressuposto o gerenciamento partilhado, a igualdade de decisão e a prática democrática. Portanto, situar e identificar os atores, identificar os interesses e os conflitos dentro de cada grupo é uma forma de amenizar os conflitos. No caso aqui analisado, entender a importância das lideranças indígenas é fundamental no processo de co-gestão de recursos naturais. Os conflitos envolvendo a gestão e o manejo de recursos naturais em terras indígenas do alto Solimões deixa evidente um aspecto importante: a gestão de recursos envolvendo moradores de uma mesma comunidade ou moradores de várias comunidades pressupõe a gestão de relações. Embora se considerem os moradores de uma comunidade como um grupo coeso, nas situações de conflitos eles tendem a apresentar divergências por possuírem interesses distintos, como vimos no exemplo referido anteriormente sobre a atuação de algumas lideranças indígenas que agem, muitas vezes, em desacordo com os interesses da coletividade que representam, aqui referindo tanto à coletividade que é a comunidade quanto ao grupo étnico. Nas situações em que a iniciativa de manejar um determinado recurso que é explorado por um grupo de comunidades que estão geograficamente próximas é tomada por uma única comunidade e não uma decisão que é tomada de comum com as demais comunidades, a definição das regras de aceso e das formas de uso dos

recursos tenderão a contrariar os interesses destas. Logo, não se sentem com o dever de respeitar regras de cuja criação não participaram. .

Políticas Públicas e gestão de recursos naturais As comunidades indígenas vivenciam hoje problemas semelhantes aos enfrentados, em geral, pelas comunidades rurais da Amazônia: a falta de políticas públicas na área de prestação de serviços sociais, de alternativas econômicas e formas de financiamento da produção. Tudo isso contribui para que elas tenham na exploração dos recursos naturais sua principal atividade econômica. Diante da escassez de alguns recursos, surge a disputa por territórios envolvendo tanto a população indígena quanto não indígena, seja das áreas urbanas, seja das áreas rurais. As terras demarcadas nos anos 80 sofreram ao longo de 500 anos de ocupação colonial a exploração sistemática de seus recursos naturais. A população indígena que passou a ser a principal beneficiada com a demarcação foi incumbida de zelar por estes recursos, sem que lhes fossem apresentadas formas alternativas de produção econômica capazes de gerar renda necessária para atender suas necessidades de consumo de produtos de uma economia globalizada. Para agravar este quadro, a tutela do Estado – particularmente, sob a forma de pensões e aposentadorias – criou várias situações de dependência que têm resultado no abandono de certas práticas econômicas, como o cultivo de roças, que deixaram de produzir itens importantes da alimentação dessas populações como a farinha, a banana, dentre outros. O resultado é uma dependência cada vez mais acentuada de produtos industrializados e até de produtos antes cultivados em suas roças e agora adquiridos no mercado. Para suprir essas necessidades de consumo e garantir sua subsistência, essas populações continuaram a explorar os recursos naturais, muitas vezes rompendo o ciclo de renovação natural desses recursos. Nesse sentido, o controle do acesso e da exploração dos poucos recursos existentes em suas terras surge como uma estratégia para garantir um estoque mínimo destes recursos e nem sempre está relacionado ao respeito às necessidades naturais de renovação destes recursos. Assim como para a grande maioria da população não indígena do Alto Solimões, as políticas públicas elaboradas para a população indígena são inadequadas ou inexistentes, não favorecendo o desenvolvimento de atividades econômicas com a exploração dos recursos naturais em bases sustentáveis, capazes de garantir sua preservação enquanto bem comum junto à população indígena. A escassez de certos recursos tem gerado competição por territórios, resultado de ações desenvolvidas para controlar o acesso aos recursos existentes nestes territó-

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rios. Alguns programas voltados para a conservação e manejo dos recursos naturais, desenvolvidos juntos às comunidades indígenas, ao estabelecerem condições para as quais a população não está preparada para atender, ao exigir, por exemplo, a restrição do consumo desses recursos e a elaboração de projetos de longo prazo, introduzindo assim uma nova maneira de lidar com o tempo, estão fadados ao fracasso por contrariarem um aspecto da cultura destas populações. Sem falar que o tempo da economia de mercado nem sempre coincide com o tempo biológico de reposição dos seres e coisas da natureza. Assim, a limitação da exploração dos recursos naturais em nome da preservação destes recursos e a falta de alternativas econômicas têm resultado em situações de insustentabilidade social e ambiental. A exploração, embora de modo controlado, desses recursos pela população indígena resulta em conflitos com a população que vive no entorno das reservas, à qual foi negado o direito de explorá-los. Também reforça uma tendência que tem marcado alguns conflitos com populações que residem em unidades de conservação ambiental e que é a contradição entre políticas de conservação da natureza e reivindicações de direito à diferença cultural por grupos sociais que dependem diretamente da apropriação e do uso da natureza para sua sobrevivência física e cultural. Nesse sentido, constata-se no Brasil um modelo de uso e conservação dos recursos naturais no qual a presença humana tem sido defendida, mas enfatizando a necessidade de se estabelecerem limites à exploração dos recursos17, como é o caso das Resex, FLONAs e RDS. A elaboração de programas como o PDPI18 é uma evidência da necessidade de se regulamentarem atividades de exploração dos recursos e gerar alternativas econômicas para estas populações. Incidentes recentes, como o que envolveu os índios Cinta Larga e garimpeiros, resultando na morte de dezenas destes, mostram a urgência de se repensar o papel do Estado e a necessidade de normatizar ou regulamentar a exploração dos recursos naturais em áreas indígenas sem que isto fira seus direitos à autodeterminação. Nesse sentido, a população indígena do alto Solimões vive hoje um dilema: escolher entre a conservação dos recursos naturais ou exercer seus direitos fundamentais de acesso a estes recursos. O resultado é um paradoxo ético, pois embora estejam localizados em áreas ricas em recursos naturais possuem restrições quanto à forma de explorar esses recursos, e também um problema de ordem ambiental, uma vez que a renovação dos recursos está diretamente vinculada à restrição do consumo dos mesmos.

Considerações finais Para as populações indígenas do alto Solimões, as mudanças introduzidas no seu modo de produção econô-

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mica e na forma de organização social resultaram na perda de um importante patrimônio com o esgotamento de alguns recursos, e numa maior dependência por produtos industrializados. A subordinação à economia de mercado aumentou o consumo e também a necessidade de potencializar a produção com vistas a obter a renda necessária capaz de satisfazer este consumo, com impactos negativos sobre o meio ambiente. Contudo, a incapacidade de atender com a venda de produtos às necessidades de autoconsumo resultou em situações de privação, com o empobrecimento cada vez maior da população local. A escassez e o esgotamento localizado de certos recursos afetam de modo negativo a vida da população local, cuja economia tradicionalmente se fundava no equilíbrio entre a satisfação das necessidades e a capacidade de regeneração da natureza, garantindo a renovação dos recursos. Embora esta escassez se deva principalmente às ações de atores externos, são as populações locais que ficam com a responsabilidade de garantir a preservação desses recursos, ficando com o ônus de regular suas atividades em prol de um calculo, um ‘porvir’ a ser alcançado no futuro; são elas que têm suas atividades de produção e consumo alteradas, resultando em mudanças no modo de vida cujas implicações talvez ainda não se tenha vislumbrado. Para os setores da economia capitalista que dependem da exploração destes recursos, a escassez não causa grande impacto porque estes tendem a migrar para outras regiões em busca de novos produtos ou a diversificar a produção econômica. A dependência de produtos extrativos para sua subsistência e a consciência da escassez desses recursos levaram as populações indígenas do alto Solimões a desenvolverem atividades de manejo de recursos. O sucesso dessas atividades depende do respeito aos ciclos da natureza e da restrição do consumo, até que os mesmos possam ser explorados de forma sustentada. Mas depende, principalmente, da existência de alternativas econômicas de geração de renda. O manejo de recursos naturais, associado à política de desenvolvimento comunitário, tem como conseqüência o aumento da renda e, indiretamente, o aumento do consumo de produtos industrializados. Apesar de as populações indígenas serem acusadas pela população regional de serem más gestoras dos recursos naturais existentes em seus territórios, e apesar dos conflitos que surgem com o estabelecimento de regras que visam controlar o acesso a estes recursos, constata-se que nas terras indígenas a proteção da biodiversidade ocorre com um custo muito baixo para o Estado, pois é realizada por aqueles que ali residem e se interessam por elas. Pelo recente mapa do desmatamento da

região amazônica elaborado pelo Ministério do Meio Ambiente, é possível constatar que a degradação ambiental é significativamente menor onde existem terras indígenas. Em que pesem as acusações daqueles que vivem no entorno das terras indígenas, os índios não estão destruindo os recursos na mesma proporção que o fazem os não-índios. Entretanto, se houvesse mais investimentos em atividades de preservação ambiental nessas áreas, a capacidade desta população de manejar esses recursos seria maior. Portanto, é necessário que se repensem ou se criem políticas públicas de forma a garantir a esta população a conservação desta tendência através, por exemplo, do incentivo a atividades de manejo e de gestão de recursos naturais, do financiamento de atividades econômicas que não explorem os recursos naturais, garantindo meios de subsistência para diminuir a pressão da população que vive no entorno das terras indígenas sobre os recursos aí existentes. Para isso é necessário desenvolver políticas públicas voltadas para a melhoria da qualidade de vida desta população, contribuindo para diminuir os conflitos socioambientais, uma vez reduzida a pressão sobre a exploração dos recursos naturais das terras indígenas. Nesse sentido, a realidade do alto Solimões se destaca pela carência de políticas públicas voltadas para a melhoria

da qualidade de vida tanto da população indígena quanto da população não indígena. Deve ainda ser ressaltado que, embora a demarcação das terras indígenas tenha configurado um novo território a partir do qual as populações indígenas podem afirmar sua diferença e resgatar um modo de vida particular, dentro deste território mais amplo existem territórios menores que são tornados significativos e particularizados pelos grupos sociais que neles residem e detêm o controle sobre eles. Entender os mecanismos de construção desses territórios, entender o processo de definição da autoridade das lideranças indígenas, cujo poder político está fundado na ancestralidade da construção desse território é imprescindível para o desenvolvimento de atividades voltadas ao manejo sustentável de recursos naturais em territórios comuns.

Agradecimentos Agradeço a Neide Esterci e Deborah Lima pelo convite para publicar este artigo e pela leitura crítica do texto; aos participantes do Fórum de Pesquisa 27: “Meio Ambiente, Desenvolvimento e Sustentabilidade” da 24a. Reunião da ABA, coordenado por Andréa Zhouri e Deborah Lima, pelos comentários e sugestões.

Notas 1

As reflexões apresentadas neste texto resultam de uma pesquisa realizada na região do alto Solimões no período de junho de 2002 a agosto de 2003 para a realização de um diagnóstico socioambiental das comunidades da várzea do alto Solimões. A pesquisa é parte de um estudo realizado pelo ProVárzea/IBAMA e coordenado por Deborah Lima (Alencar, 2002b e 2004). 2 Doutora em Antropologia Social pela Universidade de Brasília; Professor Adjunto II da Universidade Federal do Pará, Campus Universitário de Santarém. 3

O alto Solimões compreende os municípios de Tocantins, São Paulo de Olivença, Santo Antonio do Iça, Amaturá, Tabatinga, Benjamin Constant e Atalaia do Norte. 4

Há também grupos de etnia cocama, cambeba e mayoruna. No alto Solimões as relações entre índios e não índios têm sido orientadas pela relação de sujeição / subordinação, às vezes se configurando como escravidão (Cardoso de Oliveira, 1972; Oliveira Filho, 1999; Taussig, 1993). Ambos mantêm uma relação com o ambiente que se caracteriza como de exploração. 5

6 A produção pesqueira do alto Solimões sob a responsabilidade dos pequenos produtores rurais aumentou consideravelmente a partir dos anos 90 com a facilidade de aquisição de caixas de isopor e de gelo para conservar o pescado, e de motores de popa de 5.5 HP conhecidos como rabetas, através de financiamentos obtidos junto aos patrões de pesca. Em todas as comunidades, famílias que têm sua economia baseada na pesca possuem um motor de popa ou trabalham em parceria com alguém que o possua. Também houve o aumento da frota pesqueira dos barcos conhecidos como peixeiros vinculados a frigoríficos de Manaus, Manacapuru ou outras cidades, com capacidade para mais

de 20 toneladas de pescado. Com relação à madeira, a popularização das motosserras financiadas pelos patrões / comerciantes de madeira e a implantação de serrarias e madeireiras também contribuíram para aumentar a exploração dos recursos madeireiros (Alencar 2004). 7 No caso particular das sociedades indígenas, o território, também conhecido como terra ou reserva indígena, é um dos referenciais para a afirmação da diferença. Os grupos sociais buscam o reconhecimento como um grupo étnico tem como principal reivindicação a demarcação de um território cujas fronteiras serão definidas a partir da comprovação de sua ocupação histórica. Segundo Oliveira (1983), que utiliza a noção de territorialização para se referir ao processo político de reconhecimento de territórios de grupos étnicos, “a atribuição a uma sociedade de uma base territorial fixa se constitui em um ponto-chave para a apreensão das mudanças por que ela passa, isso afetando profundamente o funcionamento das suas instituições e a significação de suas manifestações culturais”. Como territorialização ele está se referendo ao “processo de reorganização social que implica: i) a criação de uma nova unidade sociocultural mediante o estabelecimento de uma identidade étnica diferenciadora; ii) a constituição de mecanismos políticos especializados; iii) a redefinição do controle social sobre os recursos ambientais; iv) a re-elaboração da cultura e da relação com o passado” (1999 : 20), que considera distinto da noção de territorialidade que remete à relação das sociedades (culturas) com o meio ambiente. 8 Nesta região utiliza-se o termo comunidade e não aldeia para se referir aos povoados formados por grupos indígenas. 9 No final dos anos 80, a definição de territórios diferenciados sobre os quais as populações indígenas pudessem construir novas formas

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de organização social e afirmar politicamente suas identidades étnicas diferenciadas, fortalecer suas instituições sociais e manter suas manifestações culturais alterou a configuração geopolítica dos municípios do alto Solimões e redefiniu o papel de alguns atores no cenário social e político regional, no qual emergiram com mais força as identidades fundadas no critério étnico. 10

Para Anthony Cohen (1985), cuja ênfase recai sobre o aspecto simbólico das fronteiras que constituem uma comunidade, o conceito de comunidade possui um sentido relacional e remete não apenas ao aspecto material, mas também ao simbólico; remete a regras, valores e códigos morais, além de fornecer aos seus membros os elementos para a construção de um sentido de identidade (1985: 19).

de comunidades o papel de administrar os recursos existentes em determinado território, pressupondo a negociação de interesses em defesa de um território comum que está além dos territórios das comunidades. 15 Sobre o conceito de comunidade na região do Médio Solimões ver Lima (2000) e no alto Solimões, ver Alencar (2004). 16

No alto Solimões as populações indígenas nem sempre reconhecem os limites jurídicos das terras indígenas em seus processos sociais que envolvem a exploração de recursos naturais. Ao longo do ano famílias inteiras realizam a mobilidade geográfica dentro de um território que extrapola as fronteiras das terras indígenas, viajando por vários dias em busca de recursos para explorar, ou visitando seus grupos de parentela que residem em outras aldeias ou terras indígenas. Esta mobilidade geográfica também está associada a processos de fissão internos das aldeias, relacionados a acusações de feitiçaria, brigas familiares etc. (Alencar, 2002b; Ricardo e Macedo, 2004). Esta mobilidade já havia sido observada no passado por Cardoso de Oliveira (1972), que identificou como uma das causas as mudanças que foram introduzidas nas relações comerciais e de trabalho, com a utilização do papel moeda nas transações comerciais. Índios que moravam dentro dos igarapés e estavam sujeitos ao barracão mudavam-se para as margens do Solimões, onde poderiam vender seus produtos por dinheiro e ter acesso a mercadorias que não encontravam no barracão.

Em situações nas quais ocorre a sobreposição de Unidades de Conservação e de Terras Indígenas, tem ocorrido o “questionamento da tradicionalidade da ocupação de determinados grupos indígenas (...) sob um conjunto de alegações, tais como alianças com palmiteiros, madeireiros, garimpeiros e outros cujas atividades são de caráter ilícito, assim como o questionamento da indianidade em razão da miscigenação e a apropriação de práticas e costumes nãoindígenas por parte dessas comunidades, tais como o uso de aparelhos eletrodomésticos, roupas, celulares, carros, e mesmo o consumo de bebidas alcoólicas, entre outros” (Ricardo e Macedo, 2004). 17 No Brasil a exploração de recursos naturais pelas populações indígenas, muitas vezes apoiadas por organizações ligadas ao movimento indígena, tem sido tolerada, sendo um direito que é garantido pela constituição brasileira de 1988, no artigo 231. Mas acontecimentos como o que envolveu os índios Cinta-Larga e garimpeiros de diamante, trouxeram à tona um debate em torno da exploração de recursos naturais em terras indígenas e a capacidade de estas populações gerirem tais recursos. “Os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam”. Cabe à União realizar a demarcação destas terras e dar condições para que as mesmas sejam respeitadas, o que não deixa de ser uma maneira de reconhecer os direitos territoriais indígenas, e de preservar seu direito à diferença cultural e a autodeterminação. Aos índios também é reconhecido o direito exclusivo sobre os recursos naturais existentes em suas terras, mas com limites à exploração dos recursos existentes no subsolo, pois estes são considerados estratégicos e pertencentes à União.

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Reserva de Desenvolvimento Sustentável, uma categoria de unidade de conservação que permite a presença humana.

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O mesmo fato se verifica com relação a RDS Mamiraua, onde a divisão em Setores, uma proposta ou modelo de gestão introduzida pela igreja nos anos 70 no Médio Solimões, atribui a um conjunto

Projetos Demonstrativos dos Povos Indígenas, um componente do Sub-Programa Projetos Demonstrativos do PPG7, voltado para as populações indígenas. Visa apoiar projetos inovadores que promovam o uso sustentável dos recursos naturais em comunidades indígenas, respeitando as especificidades socioculturais dos diferentes povos.

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Resumo

Abstract

A competição por recursos naturais envolvendo a população indígena e não indígena, associada à escassez e extinção localizada de alguns recursos de valor comercial, aparece como um dos principais problemas ambientais e sociais da região do alto Solimões. A escassez é decorrente do aumento da pressão sobre os recursos que ocorreu a partir do final dos anos 70 e está associada ao crescimento da população das áreas urbana e rural, ao crescimento do mercado e à introdução de novas tecnologias de pesca. Esta competição, associada à falta de políticas públicas eficientes na área social, tem causado impactos sociais e ambientais negativos, e promovido o êxodo rural. Impedida de explorar os recursos que ainda existem em suas terras, a população indígena precisa encontrar alternativas econômicas para sua subsistência. As terras indígenas são hoje alvo da cobiça por parte de madeireiros, pescadores e outros atores que exercem forte pressão sobre algumas lideranças indígenas para que estas permitam a exploração de suas terras, causando sérias divergências entre comunidades de uma mesma terra indígena e acirrando a competição por recursos entre índios e não índios. Tanto a impossibilidade de manter suas práticas “tradicionais” quanto a adoção de práticas econômicas de mercado ameaçam a capacidade de reprodução sociocultural destas populações, bem como a preservação dos recursos naturais dos seus territórios.

The competition for natural resources among indigenous and non-indigenous populations, associated with the depletion and localized extinction of certain resources of commercial value, has emerged as one of the primary environmental and social problems facing the region of the upper Solimões. Depletion is the result of the increased pressure on resources that began taking place in the late 1970’s, combined with rural and urban population growth, growing markets and the introduction of new fishing technologies. This competition, combined with the lack of effective social policies, has had negative social and environmental impacts and promoted a rural exodus. The indigenous population, impeded from exploiting the resources still available on their own lands, has had to find economic alternatives for its subsistence. Today, indigenous lands are the target of envy for several segments of the regional society – forest operators, fisherfolk and other actors – that have great influence over a few indigenous leaders who allow them to exploit their lands. This has created serious differences between Indian communities sharing the same lands and has aggravated competition for resources between Indians and non-Indians. The inability to maintain their “traditional” practices along with the adoption of market practices are threatening the sociocultural reproduction of these populations, as well as the preservation of the natural resources on their lands.

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