Identidades e Festejo: representações do Riso em Metamorfoses, de Lúcio Apuleio. In: Anais do Congresso de Pesquisa, Ensino e Extensão – CONPEEX, 2012, p. 1362-1373.

May 28, 2017 | Autor: Erick Otto | Categoria: Apuleius, Roman cultural identity, Roman Festivals
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Anais do Congresso de Pesquisa, Ensino e Extensão- CONPEEX (2012) 

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Identidades e Festejo: representações do Riso em Metamorfoses, de Lúcio Apuleio. Orientando: Erick Messias Costa Otto Gomes, Orientadora: Luciane Munhoz de Omena [email protected], [email protected] Faculdade de História: Universidade Federal de Goiás, 74001-970, Brasil PALAVRAS-CHAVE: Festa, Identidade, Império Romano, Poder.

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INTRODUÇÃO A festa é uma produção social, um espaço para construção identitária de uma dada

comunidade. Nela os valores sociais são emitidos, apreendidos e ressignificados pelos seus participantes. É um momento de ruptura com o cotidiano, no qual o tempo é ressignificado, rememora-se a tradição, haja vista que “as festas antigas traçam perspectivas que apontam o passado e o futuro de uma coletividade. Por elas, a comunidade reunia o que ocorria no presente, relembrava o passado e indicava metas para o futuro” (GONÇALVES, 2005, p. 02). Nesse sentido, a festa é memória, é tradição. Do mesmo modo, o evento festivo, na Antiguidade, possuía uma dimensão claramente religiosa, ritualística. E é esse aspecto que se torna claro quando analisamos a representação apuleiana da festa ao deus Riso, pois, sendo o personagem Lúcio um forasteiro, descobre ao final ter participado de uma festa religiosa dedicada ao deus (OMENA, 2009, p. 9). Essa festa é representada na obra de Apuleio, O Asno de Ouro ou Metamorfoses, a qual narra às aventuras do jovem Lúcio que viaja à Hípata a negócios e hospeda-se na casa do avarento Milão (Livro I, XXII). O jovem fica fascinado pela cidade, sobretudo por esta ser conhecida como uma região em que a magia é uma prática comum, a qual desperta a curiosidade do protagonista. Nessa cidade, conhece sua tia Birrena, que o convida a visitar sua faustosa casa, com seu “átrio belíssimo” (Apuleio, O Asno de Ouro, II, IV). Alguns dias depois, Lúcio é convidado a participar de um banquete na casa dela, e saindo tarde da noite é surpreendido por três bandidos. Preocupado com sua segurança e com a de seu hospedeiro, mata-os. Na manhã seguinte, Lúcio é acusado, pelos magistrados da cidade, do assassinato dos três jovens. É levado ao teatro da cidade para ser julgado, pois o tribunal não era suficiente para acomodar a multidão ululante, que os acompanhavam (Livro III, II).

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Entretanto, o protagonista nota algo estranho, pois todas as pessoas riam dele. Ao defender-se da acusação, Lúcio percebia o riso contínuo e, no momento em que lhe é revelado que matara três odres, e não os jovens, a multidão finalmente explode em risos. (Apuleio, O Asno de Ouro, III, IX-X). Ao final, o protagonista compreende que participou de uma brincadeira em homenagem ao deus do Riso. Lúcio é escolhido por dois motivos para ser o protagonista da festa: em primeiro lugar por ser um forasteiro, assim não reconheceria o gracejo da festa; e, em segundo, por pertencer ao grupo de notáveis, engrandeceria o momento festivo com sua dignidade (OMENA, 2009, p. 9). Esse elemento é essencial à nossa compreensão, pois a comemoração festiva, compreendida como uma forma de comunicação (BURKE, 2002, p, 27), transmite uma mensagem aos seus participantes em que é exaltado o mos maiorum romano por meio da representação de Lúcio. É nessa festa em que se cunha uma identidade citadina, a qual mantém uma relação com os poderes imperiais de Roma, mas sem deixar de lado as características locais próprias à Hípata. 2

OBJETIVOS A identidade, enquanto construção social que se insere na memória da

comunidade através da festividade em homenagem ao deus do Riso, é a temática que foi trabalhada no decorrer de nossa pesquisa. Dessa forma, nosso objetivo central foi o de compreender a importância do festejo para a constituição identitária da sociedade de Hípata. Entende-se por identidade a fonte de significado e experiência de um povo (CASTELLS, 2006, p. 22), ou seja, ela é responsável pela orientação do eu no mundo, pela criação de um sentimento de pertencimento em relação ao todo comunitário. Além disso, a identidade é relacional, isto é, precisa do outro para ser construída, necessita da diferença, da alteridade, para se estabelecer. A identidade é sempre construída, e a questão principal, na verdade, diz respeito a como, a partir de quê, por quem e para quê isso acontece (CASTELLS, 2006, p. 23), e estas são algumas questões que vamos responder ao longo de nossa pesquisa. Ao objetivo central, associaram-se alguns objetivos específicos1, em que compreendemos: 

A importância da memória coletiva e da representação na constituição identitária;



Porque a festa, enquanto ritual, representa um “eterno retorno” ao momento

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Os objetivos da pesquisa são aqui apenas apresentados, pois serão detalhadamente desenvolvidos no tópico 4 “DISCUSSÃO/RESULTADOS”.

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fundador da cidade e como tal representação implica na construção identitária; 

Quais os valores que os promotores da festa querem transmitir, como a emissão desses valores contribuem na formação identitária e porque a figura de Lúcio é importante para essa finalidade.



Que Hípata não se configura apenas como uma extensão do poder e da cultura de Roma, mas como uma cidade cuja elite local negocia/relaciona com a dominação romana e, dessa forma, constrói identidades próprias.

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METODOLOGIA A História se faz com documento-monumento (LE GOFF, 2003) e, seja qual for

sua natureza, ele é essencial na pesquisa histórica. É nesse sentido que damos primordial importância à nossa fonte, que é uma narrativa literária de representação realista (MOTTA, 1998). Como nos informa Pesavento (2004, p. 22) a literatura nos possibilita um acesso especial ao imaginário. Este é aqui percebido como um conjunto de produções, mentais ou materializadas em obras, com base em imagens visuais e linguísticas, formando conjuntos coerentes e dinâmicos, referentes a uma função simbólica no sentido de um ajuste de sentidos próprios e figurados (WUNENBURGER, 2007, p. 11). Assim como é apresentado no discurso apuleiano, o festejo do deus do Riso é um momento em que o imaginário social é reforçado, pois a festa é “uma produção social que cunha uma identidade entre os participantes e o compartilhamento do símbolo que é comemorado e que, portanto, se inscreve na memória coletiva como um afeto coletivo. Representa a produção de memória e da identidade no tempo e no espaço social” (GUARINELLO, 2001, p. 971). Deste modo, é através da função simbólica do imaginário social que uma comunidade designa sua identidade, elaborando uma representação de si mesma (BACZKO, 1984, p. 28). Mas essa identidade cunhada não é necessariamente consensual, pois, da mesma forma que a festa é o espaço-tempo em que uma comunidade compartilha símbolos comuns, gerando uma agregação entre os participantes. A festa também é o lugar em que os diferentes grupos sociais estabelecem suas diferenças e seus interesses distintos. Isso ocorre porque a festa “como produto da realidade social, exprime os conflitos, as tensões, as censuras e as estruturas de poder” (OMENA, 2009, p. 5). O Império romano foi o resultado de conquista militar e centralização política, o qual não circunscrevia uma organização homogênea e singular, mas agrupava povos completamente distintos, que mantiveram suas identidades próprias (GUARINELLO, 2009,

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p. 149). Por outro lado, a força da dominação romana estava nas cidades, nas quais as elites tenderam a uma unificação política e cultural, cuja aliança com o centro do poder representou um pacto conservador que manteve o Império unido por séculos, envolto em uma identidade política (GUARINELLO, 2009, p. 152). A fim de gerenciar e controlar a diversidade constituinte do Império foram criadas “duas áreas lingüístico-culturais específicas dotadas de prestígio social e de eficácia político-administrativa: a área de predomínio do latim, correspondendo à metade ocidental do império, e a área de predomínio do grego, em todo o Mediterrâneo oriental” (GUARINELLO, 2009, p. 153). A criação dessas áreas culturais representou “um instrumento para construir e gerenciar uma identidade imperial que legitimasse a posição do imperador e a supremacia das elites nas cidades do Império” (GUARINELLO, 2009, p. 153). As cidades, apesar de aceitarem a dominação, pois tinham respeitados os costumes locais, procuravam circunscrever um espaço e identidades próprias no seio do Império romano. A festa do deus do Riso é uma expressão dessa negociação, pois, por um lado, expressa a difusão dos valores romanos, por outro, é uma festa que remete à fundação da cidade, é organizada pelos magistrados locais e conta com a participação dos mais diversos atores sociais sendo, portanto, fator essencial para o reforço da identidade local. 4

DISCUSSÃO/RESULTADOS Nosso objetivo central é o de compreender a importância do festejo para a

constituição identitária da sociedade de Hípata. Para tanto, analisemos alguns pontos específicos que contribuirão para tal análise. Primeiro, vejamos a importância da memória coletiva e da representação na constituição identitária. Toda identidade social se constrói no tempo e no espaço, pois a identidade de determinada comunidade pressupõe sua continuidade temporal e sua localização espacial. O caráter temporal da identidade evidencia-se pelo fado de que as pessoas que vivem em sociedade pretendem que essa sociedade continue existindo. Os romanos, como todas as outras sociedades, possuíam uma concepção temporal do mundo a sua volta, um “regime de historicidade” (HARTOG, 2003), que é um discurso sobre o tempo que dá sentido e localização aos seus membros. Estas “ordens do tempo” são criações, mas que se tornam a própria realidade, e os indivíduos ficam presos nestas “grades temporais”. “Um “regime de historicidade” se impõe imperiosamente aos indivíduos sem que eles se dêem conta, dando forma, plasmando, esculpindo o seu corpo, o seu cotidiano, enfim, a sua vida” (REIS, 2011, p. 8).

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Uma das formas de criar e expressar essas concepções temporais se dá através dos usos da memória coletiva, ou no nosso caso específico, da comemoração. A “percepção de que tal ou qual evento deva ser comemorado, de modo que permaneça sua lembrança na memória individual e coletiva, é uma questão substantiva para as comunidades que tiram desses episódios elementos fundantes de sua identidade.” (MARTINS, 2008, p. 21). As comemorações festivas consagram o universalismo dos valores de uma comunidade, rememoram os acontecimentos fundantes e fazem o seu uso no presente para a construção da identidade temporal, de modo a projetar esses valores no futuro, no sentido de representar uma continuidade temporal da comunidade. As comemorações não se prendem a uma relação passado-presente, pois as festas coletivas sempre indicam o futuro, traçam metas e ações a serem realizadas (ou não) pelos sujeitos, criam e propagam valores, propõem a permanência da sociedade, enfim, constroem identidades que pressupõe a continuidade do grupo que comemora. Identidades essas que são um conjunto de representações sociais, constituem o imaginário social. Trata-se de um aspecto da visa social, no sentido de que é através dos seus imaginários que uma coletividade designa a sua identidade, elaborando uma representação de si, estabelece a distribuição de papéis e das posições sociais, exprime e impõe crenças comuns, constrói códigos de bom comportamento etc. (BACZKO, 1985, p. 309). As identidades sociais tornam-se, dessa forma, uma das forças reguladoras da vida coletiva e das ações sociais. Mas as identidades dependem do outro para se constituírem, a “normalidade” e os códigos sociais necessitam do desviante, da alteridade para serem forjados. No âmbito da obra em análise, as feiticeiras e os banidos funcionam como elementos de alteridade na formação de uma identidade em Hípata. Vale lembrar que Apuleio pertence o grupo social da aristocracia norte-africana no contexto imperial, a qual partilha de valores comuns. Daí podermos afirmar que “a estigmatização dos bandidos se relaciona a um processo de constituição da identidade da elite citadina norte-africana e refletia uma realidade de conflito e de dicotomia entre as civitates romanas e a vasta hinterland norte-africana no contexto altoimperial.” (NETO, 2009, p. 12). Dessa forma, Apuleio estigmatiza os ladrões, representandoos como inferiores, de modo a atribuir melhores valores e qualidades à elite citadina, à qual pertencia. Quanto às feiticeiras, estas também são estigmatizadas em O Asno de Ouro. Afinal, é pelo envolvimento com a feitiçaria que o personagem Lúcio transforma-se em asno e sofre todas suas desventuras, até ser transformado em humano novamente pelo intermédio da

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deusa Ísis. Torna-se claro, na fonte, a dicotomia estabelecida entre duas formas de magia: uma magia ligada às práticas de feitiçaria e outra relacionada aos cultos dos deuses oficiais (Livros II, III e XI). Nesse sentido, ao estigmatizar as práticas mágicas destituídas dos cultos oficiais, Apuleio defendia o uso da magia apenas no âmbito da legalidade, haja vista que o próprio autor era iniciado no culto à deusa Ísis. Percebe-se, então, que os bandidos e as feiticeiras funcionam como elementos de alteridade, exemplos de condutas desviantes, às quais se contrapõem comportamentos tidos como a norma, ligados principalmente à religiosidade. Esse aspecto perpassa toda a obra de Apuleio, tornando-se claro que as ações tidas como lícitas são aquelas que se ligam aos cultos oficiais, às festas organizadas pelas autoridades municipais e religiosas, como na festa à deusa Ísis, no livro XI, ou na festa ao deus do Riso, na qual o personagem Lúcio torna-se o principal atrativo. Vejamos mais detalhadamente a festa dedicada ao deus do Riso. Temos três informações importantes a respeito desta comemoração: em primeiro lugar, é uma festa que ocorre desde a fundação da cidade (Livro II, XXXI); segundo, ela é organizada pelos magistrados municipais (Livro III. XI); por fim, trata-se de uma comemoração que conta com a participação de todos os cidadãos de Hípata (Livro III, II). Se ela ocorre desde a fundação, logo toda vez que é comemorada há uma referência a essa mesma fundação, haja vista que, no Mediterrâneo antigo, o regime de historicidade é o do tempo cíclico, e as comemorações servem justamente para “reatualizar” o tempo fundador, o tempo do início, de modo a evitar a mudança e manter-se numa continuidade no tempo (ELIADE, 1992). As festas antigas configuravam-se como rituais religiosos, eram cíclicas e realizadas segundo fórmulas precisas de modo a obter as benesses divinas. Os romanos empregavam dois termos para referir-se à religião: religare (ligar) e relegere (retomar, controlar). No primeiro caso aludia-se ao elo entre os deuses e os homens, enquanto no segundo era destacado o zelo da observância de um sistema de obrigações ritualísticas (BUSTAMANTE, 2006, p. 322). Todo ato religioso possuía um aspecto comunitário, era uma religiosidade social, ligada em primeiro lugar à comunidade, e não ao indivíduo. Dessa forma, a religião romana consistia em cultivar as relações com os deuses, celebrando os ritos de modo a manter este elo. Os ritos deveriam ser realizados em uma determinada data e em uma ordem tradicional, pois do contrário a ordem do mundo seria abalada, provocando a ira dos deuses. Nesse sentido, a festa representada por Apuleio em sua obra pode ser considerada como um ritual religioso, pois atende todas as características dos ritos religiosos dos romanos.

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Como dissemos, a festa é realizada desde a fundação da cidade, em uma data fixa, organizada pelos magistrados e contando com a participação de todos os cidadãos de Hípata. Um aspecto importante da festa era a presença de Lúcio, que além de ser estrangeiro e não saber do costume da cidade era também cidadão romano, fato que engrandeceria o momento festivo. Por ser cidadão, alguns valores, estavam associados à sua figura, e este é homenageado pela cidade, após os festejos: Mas eis que, sesse instante, os próprios magistrados, revestidos com suas insígnias, penetraram em nossa casa e fizeram quanto podiam para me apaziguar: “Não ignoramos, Senhor Lúcio, nem tua classe, nem teu nascimento, nem o renome da ilustre família que é a tua e que se estende por toda a província. O que te aflige tão fortemente, não foi para te ofender que to fizemos suportar. Espanta do coração a tristeza e expulsa a amargura da alma, pois os divertimentos periódicos aos quais nossa cidade se entrega todo ano, em honra do Deus Riso, devem sempre seu sucesso a uma intervenção nova. Foste tu a fonte e o instrumento do Riso. O favor e a amizade do deus te acompanhará por toda a parte. [...] Em reconhecimento pelo que te deve, a cidade inteira te prestará honras extraordinárias. Ela te nomeará seu patrono e decidiu te elevar uma estátua de bronze.” (Apuleio, O Asno de Ouro, III, XI).

Dessa forma, a festa, ao associar essas várias características, como a fundação, a relação com o deus Riso e a figura de Lúcio, também se torna relevante para a formação de uma identidade citadina. É uma festa essencial para a emissão de determinados valores, entre os quais a imponência da cidade. Na narrativa, observamos que Birrena, tia de Lúcio, faz alusão à grandiosidade de cidade, na noite anterior à festa, comparando-a a Roma e ressaltando todas suas qualidades: Então Birrena, dirigindo-me a palavra, disse-me: “Estás contente da estadia em nossa pátria? Que eu saiba, pelos templos, banhos, e outros edifícios públicos, somos bem superiores a não importa qual cidade. Quanto a utensílios, estamos providos satisfatoriamente. E é certo que se vive livremente e à vontade. Um forasteiro ativo aqui encontra a animação de Roma. Um hóspede modesto, a paz do campo. Em suma, por toda província, somos um retiro encantador.” (Apuleio, O Asno de Ouro, II, XIX).

Nota-se claramente uma relação de ligação com o centro do poder imperial, a cidade de Roma. Ao estudarmos a formação e o funcionamento do Império Romano, notamos que uma característica comum da dominação romana é a relação com a elite local, estabelecendo alianças em que ambas as partes receberiam benefícios. Para Roma, seus territórios aumentariam, ampliando também o arrecadamento de tributos e o prestígio do império. Para as elites locais, isso também funcionaria como uma forma de dominação, pois teriam o apoio de Roma para eventuais revoltas, além de terem seus costumes respeitados (HINGLEY, 2010; GUARINELLO, 2009). Outra forma de garantir a dominação era pelo uso

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de construções tipicamente romanas espalhadas pelas diversas cidades do Império, como teatros, fóruns, termas etc. E a cidade de Hípata está repleta dessas construções, como deixa clara a fala da personagem Birrena, uma rica cidadã da cidade. Tais construções difundiriam os costumes romanos, como o culto aos deuses, os banhos em termas, o uso do direito romano no tocante às questões jurídicas. Mas no caso de Hípata cabe destacar que a elite citadina, apesar de se comparar a Roma em prestígio, respeita algumas características próprias, e isso se vê na própria festa do deus Riso, afinal, esta é realizada desde a fundação da cidade, e essa é uma característica local, não imposta pela força do Império. A partir das discussões feitas anteriormente, temos que Hípata não se configura apenas como uma extensão do poder e da cultura de Roma, mas como uma cidade cuja elite local negocia/relaciona com a dominação romana e, dessa forma, constrói identidades próprias. Conforme já dissemos, as cidades eram responsáveis pela força da dominação romana nas diversas partes do Império, pois constituíam centros administrativos nos quais as elites locais, atendendo aos interesses do imperador, constituíam uma coesão com as elites romanas. Richard Hingley (2010), ao estudar a relação de dominação dos romanos na região da Bretanha, conclui que uma pesquisa que vise à relação de Roma com as regiões dominadas deveria levar em consideração que os indivíduos, no interior de uma sociedade, negociam e resistem a certas representações de superioridade/inferioridade, e erigem contraargumentos. Isso significa que, ao contrário do que o modelo dominante ainda sugere, o processo de mudança das sociedades nativas em contato com a cultura romana não se deu de forma passiva, de modo que os indivíduos adotariam as ideias e deuses romanos para a criação e manutenção de seu status; pelo contrário, o contato entre culturas distintas pressupõe a ressignificação dos símbolos compartilhados. Assim, os elementos intitulados “romanos” diferem em natureza, contexto e significado através das várias regiões do Império Romano. Além disso, argumenta o autor, nem todas as formas de oposição precisam ser manifestas. A ressignificação dos símbolos adotados pode ser tomada como uma forma de resistência, bem como o controle das festas e dos rituais, que podiam conferir poder aos que os organizavam. Afinal, a adoção de símbolos romanos não significa necessariamente a adoção de uma identidade romana. É exatamente esta situação que encontramos em Hípata, pois o uso de locais como o fórum e o teatro, símbolos da dominação romana, são

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ressignificados pelos magistrados ao serem usados na festa ao deus Riso, festa essa típica da cidade de Hípata, e não de Roma. 5

CONSIDERAÇÕES FINAIS No decorrer de nossa pesquisa, analisamos a representação festiva feita por

Apuleio em sua obra O Asno de Ouro. Consideramos que a obra em questão configura-se como fonte de informações a respeito das formações identitária nas regiões dominadas pelo Império Romano no Mediterrâneo, haja vista que Apuleio, além de compor a elite citadina norte-africana, também viajou para diversas regiões do Império, entre elas a província grega, local de ambientação da obra. Apesar de ser uma obra literária, O Asno de Ouro expressa o imaginário social em que o autor se insere, isto é, o imaginário de uma elite que faz parte de um todo que é o Império, e que por isso mesmo pode ser estudada como uma fonte para a análise do jogo de imposição/ressignificação de símbolos da dominação romana. Intencionamos, com o desenvolvimento de nossa pesquisa, compreender que as festas, na representação apuleiana, constituem elementos essenciais de sociabilidades e de formações identitárias. Através da interpretação da festa como um ritual em homenagem ao deus, analisamos sua dimensão religiosa e como esta constituiu o imaginário social da comunidade de Hípata. A partir disso, percebemos de que forma os símbolos compartilhados no momento festivo se inserem na memória coletiva e, deste modo, compõem identidades. As identidades são construções sociais, baseadas em valores compartilhados por uma dada comunidade, os quais são reafirmados e fortalecidos no momento festivo em homenagem ao deus do Riso. Por fim, esperamos ter mostrado que as identidades cunhadas no momento festivo não apenas como o reflexo de uma identidade imperial que é difundida e imposta por Roma às províncias, mas como resultado de uma ressignificação desses valores à luz da própria sociedade de Hípata. 6

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Eu, Profa. Dra. Luciane Munhoz de Omena, revisei o texto do bolsista Erick Messias Costa Otto Gomes e considero, pelo menos, nesta etapa, suficiente às discussões sobre as comemorações festivas e suas relações identitárias no mediterrâneo romano do século II d. C. Sem mais, despeço-me com cordiais saudações acadêmicas.

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