IDENTIFICAR PARA PUNIR: IDENTIFICAÇÃO ANTROPOMÉTRICA E A EXPLORAÇÃO MIDIÁTICA DE REGISTROS POLICIAIS

May 27, 2017 | Autor: Raquel Sirotti | Categoria: Criminology, Criminal Law, Legal History, Critical Criminology
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22/11/2016

Identificar para punir: identificação antropométrica e a exploração midiática de registros policiais – Escola Superior de Direito Público

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IDENTIFICAR PARA PUNIR: IDENTIFICAÇÃO ANTROPOMÉTRICA E A EXPLORAÇÃO MIDIÁTICA DE REGISTROS POLICIAIS

Raquel Sirotti (http://esdp.net.br/author/raquel-sirotti/) 21/11/2016 Direito e Processo Penal (http://esdp.net.br/categoria/direito-e-processo-penal/)

Nas últimas décadas do século XIX, o francês ALPHONSE BERTILLON foi convertido em uma espécie de founding father daquilo que viria a se tornar um dos pilares da investigação criminal moderna: a identi cação antropométrica. Valendo-se da experiência adquirida em sua atuação como arquivista, em Paris, naquilo que para nós seria algo equivalente a uma “Superintendência Policial”, BERTILLON inspirouse na in nidade de fotogra as e chas policiais que percorria diariamente para desenvolver uma espécie de fórmula matemática que cruzava medições corporais e semiótica, com a promessa de chegar à identidade inconteste de suspeitos e condenados pelo cometimento de algum crime. Seu desejo era estabelecer um critério objetivo e e caz para a identi cação desses indivíduos, de modo que não restasse qualquer resquício de dúvida quanto à autoria dos casos que abarrotavam os armários das repartições policiais parisienses.[1] Embora difusamente aplicadas na França desde 1883, foi apenas em 1893 que suas técnicas foram transcritas e publicadas sob a forma de um livro — o ” Identi cation anthropométrique. Instructions signalétiques” — que viajou o mundo, contando, ainda, com uma segunda edição. Nas linhas e entrelinhas disso que se assemelhava a um manual de instruções, nos deparamos com uma receita tão exata quanto contingente. Peso, altura, tamanho dos olhos, espessura dos lábios, curvas das orelhas, formato do nariz. Mas também cicatrizes, tatuagens, verrugas, marcas de nascença; ao somar, multiplicar e subtrair essas características, cada pessoa produziria uma combinação única, um resultado capaz de isolar sua identidade, destacando-a em meio ao tormentoso mar de similaridades em que os investigadores acostumados à simples comparação de fotogra as encontravam-se submersos. E as supostas vantagens não paravam por aí: esse sistema, defendia BERTILLON[2], além de proporcionar um elevado grau de precisão para os padrões da época, teria condições de superar a própria fotogra a, pois forneceria, ainda, uma estimativa da feição do criminoso em potencial pela simples descrição aproximada de seus traços e medidas corporais — eis o nascimento do famigerado “retrato falado”. Sem contradições muito aparentes (sobretudo para os leitores mais familiarizados com as teorias deterministas

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que povoavam o imaginário ocidental àquela época), BERTILLON agenciava, simultaneamente, números e suposições, sempre na tentativa de alcançar uma narrativa resistente a ponto de atestar quem houvera ou (http://esdp.net.br/) não cometido um crime — ou, mais literalmente, quem era ou não o criminoso. Sob essas condições, não tardou para que o assim chamado Método de Bertillon ou “Bertilhonagem” fosse amplamente adotado como procedimento de referência em delegacias e repartições policiais mundo afora. Depois que aquele emaranhado de números e fórmulas elevou os registros de identi cação criminal à categoria de conjunto objetivo e sistematizado de informações, a mera identi cação fotográ ca já parecia coisa do passado. Sistematizar e identi car, mas, antes de mais nada, prever e disseminar: esses eram, na verdade, os grandes trunfos da “Bertilhonagem”. De um lado, os detalhes, insigni cantes ou até mesmo imperceptíveis aos olhos mais desatentos, tornavam-se, com BERTILLON, o bilhete de acesso para uma dimensão futura, em que o esquadrinhamento da representação visual do corpo do acusado teria prevenido o cometimento de um crime, ou, quem sabe, ajudado a identi car um perigoso delinquente foragido. A arrematar esse exercício “clarividente”, a outra – não menos importante – faceta de sua proposta: a diversi cação dos destinatários. Como BERTILLON fazia questão de explicar, seu método oferecia ferramentas especialmente úteis para delegados e investigadores policiais (ou, para usar um termo por ele repetido à exaustão, a polícia cientí ca), mas que poderiam ser aproveitadas, imediatamente, por qualquer “agente da força pública” ou, mais difusamente, por todos os interessados em explorar técnicas de memorização e classi cação de registros de identi cação criminal. Não obstante os possíveis vínculos oportunizados por essa “popularização”, um deles parece ter sido especialmente fortalecido. Em uma rápida pesquisa pelos cadernos policiais de alguns dos maiores jornais daquela época (franceses ou argentinos; italianos ou brasileiros) não é difícil topar com páginas inteiras ilustradas por retratos falados, ou por registros fotográ cos bem ao estilo do que recomendava BERTILLON. Em abril de 1892, por exemplo, a capa do francês “Le Journal Illustré” exibia a imagem do registro policial do famoso anarquista RAVACHOL (ou, como queriam outros, FRAÇOIS CLAUDIUS KOEGNESTEIN), a festejar sua captura pelas autoridades policiais francesas graças às orientações do método de BERTILLON[3]. Já no ano de 1910, o periódico carioca “O Paiz” dedicava dois longos artigos[4] à comemoração dos avanços que a adoção do sistema de BERTILLON representava, no Brasil, para a captura e aprisionamento de “delinquentes perigosos”, e desde então empregou-se a expressão “retrato falado” como marca distintiva de rigor cientí co na condução das investigações policiais. Se, por um lado, é certo que a exploração das imagens esquadrinhadas e da linguagem pretensamente objetiva pelos canais de comunicação em massa está longe de ter sido inaugurada pelo método de BERTILLON, não deixa de ser interessante notar como entre essas duas dimensões se estabeleceu uma relação algo simbiótica. Talvez porque, sob o abrigo da “Bertilhonagem”, tornava-se possível harmonizar a objetividade, a precisão e a cienti cidade, com o tom denuncioso, folhetinesco e sensacionalista, tão caro aos autores das colunas policiais. Ou, quem sabe, um motivo menos elevado: o nome de BERTILLON era um signo que ajudava a aproximar a linha editorial das tendências intelectuais que ditavam moda àquela época. De todo modo, ao que tudo indica, a tudo isso somava-se um elemento de caráter mais duradouro. A alternância de dados e previsões, constatações e suposições que BERTILLON acionava para sacramentar a identidade de seus criminosos revelava-se, também, bastante funcional ao modelo de narrativa criminal que aos poucos era costurado pelos agentes da mídia de massa.   *** http://esdp.net.br/identificar-para-punir-identificacao-antropometrica-e-a-exploracao-midiatica-de-registros-policiais/

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  Tomada isoladamente, essa breve narrativa sobre o surgimento e os deslocamentos experimentados pelo (http://esdp.net.br/) método de BERTILLON pode parecer nada mais que a imagem borrada de um passado distante, de uma época (hoje, por certo, superada) em que corpos humanos dissecados enfeitavam as vitrines dos museus de história natural, ou em que CESARE LOMBROSO fascinava seus leitores com imagens e descrições aterrorizantes d’O “Homem Delinquente”. Não sem alguma razão, os mais sinestésicos diriam que seu enredo “cheira a naftalina”, a nal, mais de um século separa as trenas, escalímetros e imagens de BERTILLON, das assépticas soluções químicas empregadas nos processos de identi cação genética dos nossos dias. Colocar o surgimento da identi cação antropométrica em relação, encarando-o, como sugeri acima, dentro de uma perspectiva de longa duração, pode, entretanto, dar azo a outras sensações. Se adotarmos as recomendações de BERTILLON como ponto de partida para pensar alguns acontecimentos bastante recentes, é possível que a impressão de estarmos diante de um paradigma ultrapassado seja dissipada pelas interpretações surpreendentemente vívidas que dele podem emergir.   Dois exercícios No dia 5 de outubro de 2016 a Comissão de Ciência e Tecnologia da Câmara dos Deputados aprovou o texto integral do Projeto de Lei 7.553/14, que pretende tornar legal a divulgação de informações não autorizadas de adolescentes suspeitos de envolvimento em atos infracionais. A proposta visa reverter um dispositivo do Estatuto da Criança e do Adolescente que atualmente classi ca essa atividade como infração administrativa, punindo-a com multa de três a vinte salários mínimos. “Consideramos que a sociedade brasileira já está madura o su ciente para decidir não punir quem divulga imagens ou outros dados que podem conduzir à identi cação de um delinquente, seja de que idade for”.[5] Apartados os eufemismos, o cálculo apresentado pelo deputado autor do projeto (MARCOS ROGÉRIO, PDT-RO) é, na verdade, bem simples. O anonimato favorece a impunidade, e a impunidade, por sua vez, abre alas à reincidência. Quanto mais se protege a identidade do acusado – tenha ele 14, 25 ou 57 anos – maior é a probabilidade de que ele se livre da condenação e saia por aí cometendo novas atrocidades. Nesse cenário distópico, a mídia aparece como estratégia de salvação. Ao se dar o aval jurídico para exploração das imagens produzidas pelas autoridades policiais, aumentam-se consideravelmente as chances de que crimes sejam prevenidos, suspeitos capturados e criminosos identi cados. Identi car e (para) punir. Mais que um trabalho conjunto — o que, por si só, já é bastante signi cativo –, trata-se de uma prática que, como vimos, não é assim tão nova: múltiplos agentes, sob um argumento objetivo e racional, sob agenciamento da imagem, do registro e da representação visual do acusado como forma de certi car a culpa e determinar seu futuro. “A foto que Crivella esconde há 26 anos”. Em letras garrafais, essa é a chamada que acompanha os registros fotográ cos de identi cação criminal do Senador MARCELO CRIVELLA, eleito recentemente prefeito do Rio de Janeiro. Publicadas na capa da revista semanal VEJA em 22 de outubro de 2016 (ou seja, quando a prefeitura carioca ainda estava sob disputa no segundo turno das eleições municipais), as fotogra as registram um CRIVELLA duplicado: vemos, de um lado, a fronte e, de outro, o per l do político, sobreposto por uma placa de identi cação em que se pode ler o número do distrito policial, a data e os algarismos do auto de inquérito. Na reportagem[6], polemiza-se sobre o sumiço, no início da década de 90,

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de um inquérito criminal envolvendo CRIVELLA que, ao invés de descansar nos arquivos da delegacia como o registro de qualquer cidadão comum, fora localizado pela produção da revista na casa do próprio (http://esdp.net.br/) Senador. Daí em diante, uma rede de argumentos trabalha em favor da identi cação entre o CRIVELLA de 20 e poucos anos atrás – inescrupuloso (e pecador) a ponto de cometer um crime e deliberadamente esconder seus rastros – e o Crivella de 2016 – o pastor que se diz condutor do corpo e da alma dos cariocas à salvação do inferno vermelho. Intermediando essa dinâmica, um elemento forte o su ciente para situar a narrativa no nível da objetividade: o registro fotográ co de identi cação criminal, que não deixa espaço para dúvidas. Nele, encontram-se os elementos que comprovam que o político que promete moralizar a gestão pública, é, com efeito, o mesmo que segura uma placa atestando sua culpa, enquanto encara a câmera com a serenidade de quem domina as engrenagens do sistema de justiça criminal. Nele, estão os signos de uma mensagem premonitória: o passado de CRIVELLA pode ser o futuro do Rio de Janeiro. Nele, o testemunho de que o paradigma de representação visual inaugurado por BERTILLON (identi cação – esquadrinhamento – previsão) continua sendo ativado para além dos limites das divisões policiais.   ***   Aos casos de CRIVELLA e do PL 7.533/14 poderiam somar-se outros tantos em que é possível enxergar o esboço

de

uma

formação

triangular

que

reúne

cobertura

midiática,

registros

policiais

e

exploração/esquadrinhamento das imagens de acusados e condenados. Como sugeri alguns parágrafos acima, essa não foi uma relação iniciada a partir da difusão do sistema antropométrico de BERTILLON, e nem muito menos a ele se limitou. Para melhor compreendê-la, certamente seriam necessárias outras informações, abordagens e, é claro, outras tantas páginas. Entretanto, as ressonâncias sentidas desde esse episódio histórico – aparentemente perdido na imensidão de análises mais sociológicas que abordam a relação entre mídia e sistema penal[7] – são um indicativo de que as pequenas peças desse quebra-cabeça ainda estão por ser encaixadas. Extrapolando as fronteiras de sua obsolescência, o método de ALPHONSE BERTILLON, se bem contextualizado, ainda parece capaz de ecoar uma mensagem muito próxima daquela de pouco mais de um século atrás: quanto maior for o público experimentado nas técnicas e linguagens da identi cação criminal, mais “certas” e “e cientes” haverão de ser as punições.   [1] Para mais detalhes sobre como Bertillon derivou seu método das condições de trabalho às quais estava submetido, consultar: BERTILLON, Suzanne. Vie de Alphonse Bertlillon. Inventeur de L’anthropométrie. Paris: Gallimard, 1941. [2] Para uma descrição mais detalhada das vantagens propagandeadas por Bertillon em relação ao seu método antropométrico, ver o primeiro capítulo da obra: BERTILLON, Alphonse. Identi cation anthropométrique. Instructions signalétiques. Melun: Imprimerie Administrative, 1893. [3] A prisão de Ravachol é constantemente citada como um dos primeiros e mais emblemáticos casos de “sucesso” do método de Bertillon. Acusado de envolvimento em diversas greves, protestos e explosões à dinamite na cidade de Paris no nal do século XIX, Ravachol foi detido em 1892 após ser delatado por um informante, que o apontou como autor de um atentado ao restaurante Véry. Submetido à identi cação antropométrica, descobriu-se que Ravachol utilizava uma identidade falsa: era, na verdade, François Koegnestein, cuja cha criminal já contava com passagens por estelionato, roubo e assassinato. Para mais http://esdp.net.br/identificar-para-punir-identificacao-antropometrica-e-a-exploracao-midiatica-de-registros-policiais/

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detalhes sobre esse episódio e sobre como a cobertura midiática aproveitou-se dele para construir uma representação negativa e alarmista em torno da gura de Ravachol — e dos anarquistas de uma forma (http://esdp.net.br/) mais geral — consultar: LAND, Isac (ed.). Enemies of Humanity – the nineteenth century war on terrorism. London:

Palgrave

Macmillan

US,

2008.

 

A

capa

do

jornal

pode

ser

acessada

em:

https://chrhc.revues.org/docannexe/image/952/img-1.png (https://chrhc.revues.org/docannexe/image/952/img-1.png). [4] Os artigos aparecem sob os títulos de “Investigação cientí ca” e “A Policia”, e podem ser consultados nos

seguintes

links:

http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?

bib=178691_04&pesq=retrato%20falado&pasta=ano%20191 (http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx? bib=178691_04&pesq=retrato%20falado&pasta=ano%20191);http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx? bib=178691_04&pesq=retrato%20falado&pasta=ano%2011 [5]

Informações

gerais

sobre

a

proposta

podem

ser

consultadas

em:

http://www2.camara.leg.br/camaranoticias/noticias/DIREITO-E-JUSTICA/476341-PROJETO-AUTORIZADIVULGACAO-DE-INFORMACOES-SOBRE-MENORES-INFRATORES.html [6] A reportagem pode ser acessada aqui: http://veja.abril.com.br/brasil/a-foto-que-crivella-esconde-ha-26anos/ [7] Com a expressão “análises mais sociológicas” me re ro a pesquisas que consideram, de maneira ampla, a relação entre mídia e processos de criminalização como resultado de uma gradual expansão dos sistemas penais. Nesse sentido, os meios de comunicação em massa, na condição de “formadores de opinião”, tornar-se-iam mais um agente (re)legitimador das práticas punitivas estatais, contribuindo para a sustentação de uma espécie de “estado de exceção permanente”. Embora essa abordagem ofereça boas explicações conjunturais, ela tende a desprezar a relevância de episódios históricos localizados. Para exemplos de estudos nesse sentido, consultar: BATISTA, Nilo. Mídia e sistema penal no capitalismo tardio. Disponível

em:

http://www.bocc.ubi.pt/pag/batista-nilo-midia-sistema-penal.pdf

(http://www.bocc.ubi.pt/pag/batista-nilo-midia-sistema-penal.pdf); BUDÓ, Marília Denardin. Mídia e crime: a contribuição

do

jornalismo

para

a

legitimação

do

sistema

penal.

Disponível

em:

http://egov.ufsc.br/portal/sites/default/ les/anexos/12502-12503-1-PB.pdf (http://egov.ufsc.br/portal/sites/default/ les/anexos/12502-12503-1-PB.pdf).   O conteúdo do presente texto re ete a opinião da autora, não constituindo, em seus termos, necessariamente, a posição dos demais membros da Escola Superior de Direito Público.   Imagem

retirada

de 

http://diariodorio.com/wp-content/uploads/2016/10/crivella-preso.jpg

Acesso

18112016 PS. A foto estampou a capa da revista semanal VEJA em 22 de outubro de 2016.  

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