IDEOLOGIA E UTOPIA EM \"NÓS MATAMOS O CÃO TINHOSO\"

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IDEOLOGIA E UTOPIA EM "NÓS MATAMOS O CÃO TINHOSO"

Antonio Carlos Santana de Souza1 [email protected]

"O efetivamente ideológico também é, ao mesmo tempo, necessariamente utópico". (F. Jameson)

Numa visão pessimista, que muitas vezes preferimos chamar de "realista", reconhecemos

(mesmo que inconscientemente) como sendo utópicos os

nossos sonhos diurnos. No entanto, às vezes estes sonhos se realizam fazendo com que as ideologias se tornem um pouco menos utópicas. A Revolução Burguesa do século XVIII, por exemplo, foi estimulada pelas utopias de Morus, Bacon e Campanella e marcada por uma nova época de desenvolvimento científico e tecnológico. Logo, não poderia ser diferente em um pais de música e cultura tão fecundas como o arquipélago de Cabo Verde. Algumas de suas utopias desde a época colonial, como, por exemplo, a utopia da liberdade política e de expressão atraves

1 Professor Adjunto da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul. Pós-Doutorando em Linguística pela UNEMAT-Cáceres. Doutor em Letras pela UFGRS (2015). Mestre em Linguística e Semiótica Geral pela FFLCH-USP (2000). Bacharel em Português e Respectivas Literaturas pela FFLCH-USP (1998). Bacharel em Hebraico pela FFLCH-USP (1998). Licenciado em Letras pela FE-USP (1998). Pesquisador do Grupo de Estudos de Línguas Africanas do Departamento de Linguística da FFLCH-USP. Pesquisador do ALMA LINGUAE: Variação e Contatos de Línguas Minoritárias do Instituto de Letras da UFRGS. Pesquisador Líder do Núcleo de Pesquisa e Estudos Sociolinguístico, Dialetológicos e Discursivos do Cnpq. Avaliador de Cursos do INEP/MEC. Editor-chefe da Web- Revista SOCIODIALETO (ISSN 21781486, www.sociodialeto.com.br, Qualis B4) desde 2010. Membro do Conselho Editorial da Web-Revista DISCURSIVIDADE Estudos Linguísticos (QUALIS). Membro da Comissão Editorial da Revista transdisciplinar de Letras, Educação e Cultura da UNIGRAN - InterLetras (QUALIS). Áreas de interesse: Linguística Geral com ênfase em Sociolinguística e Dialetologia. Temas de interesse: português falado; contatos linguísticos; línguas africanas; línguas ameríndias; diversidade sociocultural.

da música2, foram em parte realizadas quando o arquipélago se tornou independente (1975). "Nós matamos o cão tinhoso", de Bernard Honwana, é uma narrativa em primeira pessoa que tem por base uma utopia de solidariedade de interesses. Foi lançado em 1964, época em que Cabo Verde era ainda colônia e sofria com a decadência econômica, a seca, a fome e a diáspora, desde o século XIX.3 Durante

a

narrativa,

Ginho

(personagem-narrador)vai

personificando o cão, atribuindo características humanas ao animal e, com isto, indentificando-o cada vez mais com Isaura e, de certa forma, consigo mesmo. Na verdade, ele também se sentia menosprezado pelos outros meninos. Tinha receio de que eles (principalmente o Quim) descordassem de suas opiniões e atitudes. Não obstante, ainda conseguia se integrar à malta, fazendo o que ele acreditava que iria impressionar ou agradar aos colegas e ao Quim. O cão era repudiado tanto pelas pessoas quanto pelos outros cães, por ser velho, feio e doente. Isaura por sua vez, era menosprezada pelas colegas e até mesmo pela professora, por ser mais velha e menos produtiva que as outras meninas da escola. Diziam que ela era "maluquinha", por seu jeito introvertido de ser e também porque se identificava muito com o cão tinhoso. Tornou-se uma espécie de protetora do animal e fez do mesmo seu confidente. conversava com ele, dava-lhe de comer, acariciava-o, tornando-se por isso discriminada e motivo de chacota de seus colegas de escola.

2O "Funana", considerado o mais africano dos gêneros musicais, tem um ritmo muito rápido, lembrando a música zuk. Seus temas são amor, alegria e principalmente o protesto político. Talvez por isso este gênero tenha sido proibido nas ilhas até 1975. 3Talvez essa situação tenha dado à morna aquele aspecto melancólico em temas como partida "sodade", amor fome etc. Estes temas calam fundo aos cabo-verdianos, já que a maioria de sua população vive no estrangeiro.

Analisando o enredo desse conto, podemos traçar um paralelo com diversas situações análogas, em diferentes circunstâncias de tempo e lugar, percebendo que toda ideologia também é, por natureza, utópica. Como no conto de Honwana, os diversos grupos de extermínio que agem nas grandes capitais brasileiras têm como ideologia a eliminação dos "párias" da sociedade, gerando com isso, a utopia da sociedade ideal, sem crimes ou violência. Se o problema é de ordem política, jurídica ou social, há muitas controvérsias, gerando grande polêmica. Na verdade, o crescimento populacional, aliado à falta de vontade política para investir em áreas sociais e à ineficácia do sistema judiciário (embargado por um sistema penitenciário caótico e pela velha desculpa: "Sô dimenor"), é que nos fazem compreender melhor a afirmação de Jameson: "Toda consciência de classe é utópica, na medida em que expressa a unidade de uma coletividade". (...)"Ninguém gosta dele...Eu nunca vi ninguém passar-lhe a mão pelas costas como se faz com os outros cães..."3 (narrador). 4 (...)"Não adiantava nada levá-lo para casa e tratar-lhe as feridas e fazer uma casinha para ele dormir, porque ele era capaz de não gostar disso". (...)"Sempre quando olhava, estava a pedir qualquer coisa que eu não entendia mas que não devia ser só para lhe tratarem as feridas, para lhe darem de comer ou para lhe fazerem uma casinha". Conforme o próprio narrador já havia percebido, o cão tinhoso queria algo mais; queria

"ser humano": olhos azuis, assistir futebol todo sábado à

4Transpondo para a realidade brasileira, a maioria das pessoas não demonstra solidariedade para com os meninos de rua ( assim como no caso do cão, as pessoas têm nojo ). Principalmente se eles estiverem sujos, maltrapilhos ou doentes.

tarde, manter-se afastado dos outros cães e sentimentos tipicamente humanos, como medo, coragem, etc.. De certa forma, a "ideologia"do cão também era utópica, pois através do relato do narrador, observa-se que a longa convivência do cão com os humanos fez com que ele aprendesse muito e inclusive assimilasse algumas peculiaridades do comportamento humano.Isaura percebeu isso. Ela tratava o cão como gente.Ambos se entendiam e ela achava o cão mais "humano" e bem comportado que os meninos mal-criados de sua comunidade. E até se criaram lendas em torno do animal, como a da fuga milagrosa da explosão atômica5, fazendo com que Isaura e Ginho sentissem compaixão pelo animal e percebessem toda a ironia na ideologia dos adultos de sua comunidade: o cão não poderia morrer daquele jeito, após ter corrido aquela distância enorme para escapar dos efeitos de uma bomba atômica. Em um breve passeio pela cidade, podemos observar nas calçadas e cruzamentos, uma legião de famintos olhinhos de meninos de rua. Não são azuis como os do cão tinhoso, mas aparentam estar sempre pedindo algo, sem querer dizer. Afinal, o que os meninos de rua estão a pedir? Uns trocados? Um lar? Saúde? Escola? 6 Talvez a resposta (ou parte dela) esteja nesses versos de Arnaldo Antunes, em "Comida": "A gente não quer só comida / A gente quer comerr e fazer amor / A gente quer prazer prá aliviar a dor / A gente não quer só dinheiro; a gente quer dinheiro e felicidade /A gente quer inteiro e não pela metade / Desejo, necessidade e vontade (...)".

5Através dessa lenda divulgada pelos garotos percebemos, na ideologia cabo-verdiana, um certo receio ( não muito utópico ) de uma possível guerra nuclear. A estória do cão e da bomba foi fruto da imaginação dos garotos, ou de outrem, influenciada pelos seus medos inconscientes. 6A falta de vontade política também em relação a este item, consideradas as devidas proporções, cria uma situação análoga à situação da personagem Azarias de Mia Couto (em "O dia em que explodiu Mabatabata"): o pobre órfão não poderia ir à escola porque seu tio ganancioso não tinha outra pessoa para cuidar do gado; ou seja, para realizar o trabalho braçal e pesado.

Conforme Jameson, "Toda consciência de classe é utópica, na medida em que expressa a unidade de uma coletividade"7. Se percebermos que a consciência de classe é intimamente ligada à ideologia desta classe, podemos dizer que essa ideologia também é utópica. "O efetivamente ideológico também é, ao mesmo tempo, necessariamente utópico". Então, se quisermos saber quanta utopia há nas ideologias dos povos e das classes, basta imaginarmos uma tentativa de se criar uma "sociedade ideal" a partir de métodos como a eliminação sumária de elementos não produtivos, antisociais ou fora dos padrões estabelecidos arbitrariamente por eles mesmos. É o que aconteceu com o cão de Honwana e é o que ocorre atualmente nas grandes capitais brasileiras. Matar o cão para aliviar-lhe o sofrimento seria, ironicamente, matar os doentes para se erradicar a doença. Assim como hoje os grupos de extermínio matam ( como se matam cães raivosos ) os menores infratores, que não podem ser punidos por lei, como se com isto pudessem acabar com

a

criminalidade nos grandes centros urbanos. Na verdade não queriam matar o cão tinhoso para aliviar-lhe o sofrimento, mas porque ele era um "pária" da sociedade. Não havia interesse em curar suas feridas e dar-lhe guarida, pois já era muito velho e "andava todo cheio de feridas que era um nojo". Unindo o útil ao agradável", o Sr. Administrador quis vingar-se do cão, por achar que o mesmo "ria" de sua má sorte no jogo e por estar mal-humorado 7Unidade da coletividade: Enquanto seus colegas permanecem indiferentes, Ginho preocupa-se com o destino que seria dado ao cão mas, no entanto, acabou cedendo para não demonstrar "cagaço" aos colegas de sua malta. Da mesma forma, atualmente em nossa sociedade, muitas pessoas que a princípio seriam contrárias a formas radicais e desumanas para tentar resolver o problema da criminalidade, acabam cedendo a persuasivos argumentos, do tipo: "E se você ou alguém de sua família fosse morto ou estuprado por um menor delinqüente?" Portanto, é procedente a afirmação de Jameson, pois em nenhuma coletividade há uma unidade ideológica absoluta. Principalmente na sociedade dos meninos de Honwana, onde Ginho representava uma minoria que teve de ceder a uma pressão psicológica da maioria.

devido à derrota. Pela narrativa, percebe-se claramente que ele simplesmente se sentiu incomodado com a presença asqueirosa do cão. Da mesma forma que, por exemplo, o dono de um conceituado restaurante se sentiria incomodado e prejudicado com os meninos de rua pedindo nas imediações de seu estabelecimento, e cogitaria uma maneira, geralmente violenta, de resolver o problema. "O cão tinhoso dormia tranqüilamente na varanda do clube, sem se dar conta do que o Sr. Administrador lhe reservara... Da mesma forma, um grupo de crianças dormia tranqüilamente nas escadarias da candelária, sem saber o que o destino (?) lhes reservara". No caso das chacinas de menores (como a da candelária, no Rio de Janeiro), que freqüentemente mancham de sangue as primeiras páginas dos jornais do mundo inteiro, nem sempre seus objetivos são os mesmos. Nem sempre estes objetivos caracterizam a utopia de se construir uma sociedade ideal, a partir da eliminação de seus párias.8 O que ocorre, muitas vezes, é conseqüencia de disputa por drogas, tráfico e brigas pessoais. Mas também, constantemente , são conseqüencia dos comerciantes ou empresários gananciosos que contratam policiais corruptos ou até mesmo bandidos perigosos para defender seus interesses, sob uma máscara de justiceiro. Porém, ironicamente e lembrando que essa ironia surgiu de uma utopia, os bandidos que antes protegiam, agora atacam seus protegidos ou cobram, e muito caro, pela sua "proteção". Mesmo com a morte do cão, o Sr. Administrador continuaria perdendo nos jogos e, com certeza, encontraria pessoas ou animais ainda mais asqueirosos que o cão tinhoso. Seria utópico pensar que ele poderia mandar matar a todos. 8O notório massacre ocorrido na Casa de Detenção de São Paulo, diga-se de passagem, não resolveu o problema da superlotação carcerária e nem tampouco reduziu os índices de criminalidade.

E, finalizando, talvez agora possamos concluir que existem utopias e utopias... Algumas utopias são mais utópicas que as outras, como , por exemplo, a utopia brasileira da diminuição da criminalidade, da inflação, da erradicação da fome, aquela da ética na política ... Utopias ... Outras já não são tão utópicas quanto pareciam ser: Cabo Verde conseguiu sua "independência"e já se pode dançar o Funaná nas ilhas, sem medo de repressão. No entanto, a decadência econômica e o êxodo da população cabo-verdiana rumo ao exterior ainda são e serão, por algum tempo, temas para as mais melancólicas mornas que já se ouviu no arquipélago.

Bibliografia - "Ernest Boch -Filosofia da praxis e utopia concreta". - Arno Müster. - "O inconsciente político".- Frederic Jameson. - "Vozes anoitecidas. - Mia Couto. Outras fontes: - Jornal: Folha de São Paulo, de 29/0l/94.

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