IDEOLOGIA POLÍTICA, ATIVIDADE JUDICIAL E CONFLITO ENTRE DIREITOS FUNDAMENTAIS: A PROPOSTA ANALÍTICA DA “CRITICAL LEGAL STUDIES”

June 6, 2017 | Autor: Lawrence Estivalet | Categoria: Direito Constitucional, Critical Legal Studies, Direitos Fundamentais e Direitos Humanos
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ISSN 1984-0888 DIREITO & DERIVA Revista Científica do Curso de Graduação e de Pós-graduação em Direito das Faculdades Integradas do Vale do Iguaçu Editores João Vitor Passuello Smaniotto Sandro Marcelo Perotti Cainã Domit Vieira Fernando David Perazzoli Diagramação Luciane Mormello Gohl Capa Cleber Augusto dos Santos Revisão de Texto Atílio Matozzo Impressão Gráfica e Editora Kaygangue Ltda.

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IDEOLOGIA POLÍTICA, ATIVIDADE JUDICIAL E CONFLITO ENTRE DIREITOS FUNDAMENTAIS: A PROPOSTA ANALÍTICA DA “CRITICAL LEGAL STUDIES” Lawrence Estivalet de Mello1 Maria Vitória Costaldello Ferreira2 RESUMO No âmbito da teoria dos direitos fundamentais e no cotidiano da prática judicial, o tema da colisão entre direitos fundamentais é recorrente. Apresenta-se, neste trabalho, uma alternativa interpretativa para a análise tradicional da temática. Para tanto, em um primeiro momento problematiza-se a teoria dos direitos fundamentais, em especial sua divisão em “gerações” ou “dimensões”, e o desafio de efetivação em situações de colisão, diante do “compromissoconciliação” que permeia o pacto constitucional. Em seguida, apresenta-se a chave interpretativa proposta por Duncan Kennedy, por meio da escola do “Critical Legal Studies”, para a análise das decisões judiciais. PALAVRAS-CHAVE Direitos fundamentais. Conflitos entre direitos fundamentais. Critical Legal Studies. Duncan Kennedy.

1

Mestre em Direitos Humanos e Democracia pelo PPGD-UFPR. Docente do curso de direito da Uniguaçu (Faculdades Integradas do Vale do Iguaçu). Pesquisador e Secretário do Núcleo de Direito Cooperativo e Cidadania, vinculado ao PPGD-UFPR. E-mail: . 2 Mestre em Direitos Humanos e Democracia pelo PPGD-UFPR. Docente do curso de direito da Uniguaçu (Faculdades Integradas do Vale do Iguaçu). Pesquisadora do Pró-Polis, vinculado ao PPGD-UFPR. E-mail: .

1 INTRODUÇÃO Existe uma tensão latente entre a existência de direitos fundamentais e a dificuldade de sua garantia constitucional. Uma mediação explicativa, para este contraditório fenômeno, está na diferenciação entre direitos e  garantias constitucionais; outra, de análise mais densa, na própria contradição existente entre as chamadas “gerações” de direitos. Este problema, aparentemente teórico, revela permanências conservadoras no Estado Democrático de Direito. Objetiva-se, no presente trabalho, proporcionar uma chave explicativa para o problema da colisão entre direitos fundamentais. Para tanto, o trabalho divide-se em duas partes. Em um primeiro momento, problematiza-se a teoria dos direitos fundamentais, tal como tradicionalmente desenvolvida no Brasil. Contextualizam-se fundamentos, contradições, chaves explicativas de análise da diferença e contradição entre direitos e garantias constitucionais, bem como da aparente contradição na colisão entre direitos fundamentais. Em um segundo momento, apresentam-se as teorizações de Duncan Kennedy, representante da escola Critical Legal Studies (CLS), acerca do comportamento estratégico adotado pelos juízes na tomada de decisões. Essa análise tem como ponto de partida a revisão bibliográfica da obra Izquierda y derecho: ensayos de teoría jurídica critica3. Duncan Kennedy, ao partir da ideia de que juízes, além de aplicar, também criam direito4, destaca que o trabalho ideologicamente orientado dos magistrados na criação do direito é distinto do trabalho legislativo ideologicamente orientado5 e, assim, busca compreender como aqueles se comportam ao decidir. 2 DIREITOS E  GARANTIAS  FUNDAMENTAIS: ORIGENS E APARENTES CONTRADIÇÕES Este capítulo tem por objetivo apresentar uma crítica à teoria dos direitos fundamentais, sem perder de vista a compreensão do fundamento de toda Constituição como pacto político, tido por Wolkmer como de “compromisso-conciliação”6. Revela-se, no desenrolar da colisão de direitos fundamentais, a percepção de que as contradições latentes no referido compromisso não 3

KENNEDY, Duncan. Izquierda y derecho. Buenos Aires: Siglo Veintiuno Editores, 2010. Como ele mesmo explica, na contramão das teorias liberais, que separam as instituições e, por consequência, as atividades desempenhadas por elas, entre legislativo, executivo e judiciário. 5 KENNEDY, Duncan. Izquierda y derecho. Buenos Aires: Siglo Veintiuno Editores, 2010. p. 27. 6 “Enquanto pacto político, Constituição expressa uma forma de poder ideológico que se legitima pela natureza do compromisso e da conciliação” (WOLKMER, 1989, p. 13). 4

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são apenas lógicas ou argumentativas, passíveis de resolução no campo do discurso jurídico. Distinguem-se, no caminho de pesquisa, a noção de garantia constitucional e seu contraste ao conceito de direito fundamental. Na sequência, apresenta-se um breve panorama das gerações de direitos fundamentais, conforme análise tradicional. Por fim, analisa-se a existência de contradições entre gerações de direitos, cuja resolução não se resolve por mera arbitrariedade no campo do jurídico. Propõe-se, então, uma alternativa crítica à tradicional classificação das “gerações” ou “dimensões” de direitos fundamentais. 2.1. DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS: DISTINÇÃO E ANÁLISE TRADICIONAL Os direitos e garantias constitucionais, no Brasil, foram positivados em cinco capítulos da Constituição Federal de 1988 (doravante CF), em rol não taxativo. Trata-se do Título II (“Direitos e Garantias fundamentais”), artigos 5º a 17, bem como de outros dispositivos que venham a receber esse status constitucional. Os cinco capítulos são divididos em direitos individuais e coletivos (Capítulo I), direitos sociais (Capítulo II), direitos de nacionalidade (Capítulo III), direitos políticos (Capítulo IV) e direitos relacionados à participação em partidos políticos e à sua existência e organização (Capítulo V). A enumeração de direitos originalmente descritos na CF deve ser realizada com cautela. Deve-se manter interpretação aberta, conforme prescreve o art. 5º, §2º da CF. in verbis: “Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”. Para uma primeira compreensão dos direitos fundamentais, costumase recorrer à distinção entre direitos e garantias constitucionais, bem como à existência de gerações ou dimensões de direitos. É o que se apresentará nesta subseção (1.1.). No constitucionalismo brasileiro, a investigação sobre o sentido de garantia  constitucional, para Paulo Bonavides, deve começar pelo significado etimológico de garantia, qual seja, de uma “posição que afirma a segurança e põe cobro à incerteza e à fragilidade” (2012, p. 541). Cuida-se, pois, de garantia como resposta à tensão entre proteção e perigo, ambos em relação a um direito. A garantia constitucional é um meio de defesa de um direito fundamental, com este não se confundindo7. 7

“(...) uma coisa são garantias constitucionais, outra coisa os direitos, de que essas garantias traduzem, em parte, a condição de segurança política ou judicial” (BARBOSA apud BONAVIDES, 2012, p. 545).

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Três polos balizam a noção de  garantia  das constituições liberais: o indivíduo, a liberdade e as instituições. Para Sanchez Viamonte, garantia é a “proteção prática da liberdade levada ao máximo de sua eficácia”. Para Bielsa, garantias são “normas positivas - e, portanto, expressas na Constituição ou na lei -, que asseguram e protegem um determinado direito”. Para Juan Carlos Rébora, “o fracasso da garantia não significa a inexistência do direito; suspensão de garantias não pode significar supressão de direitos”8. Questiona-se, no entanto, de quem sejam os direitos cuja não-proteção revela o fracasso das  garantias  constitucionais. Na origem da noção de  garantias  constitucionais, encontra-se densa noção individualista. Como sistematiza Bonavides, “a expressão garantias individuais na mesma acepção de garantias constitucionais se propaga com a linguagem de muitos publicistas do liberalismo hispano-americano, bem como luso-brasileiro”9.  As garantias constitucionais, assim, são vistas como “uma espécie de escudo da personalidade contra os desvios do poder do Estado ou se converteram historicamente no símbolo mais positivo e prestigioso de caracterização jurídica do Estado liberal”10. Assim, correspondente ao direito fundamental à vida tem-se a garantia fundamental de vedação à pena de morte; correspondente ao direito fundamental à igualdade tem-se a garantia constitucional de proibição de discriminação; correspondente ao direito fundamental à liberdade de locomoção tem-se o habeas corpus, entre outros inúmeros exemplos. Veja-se, por exemplo, o art. 5º, VI11 e XXXVII12. Na esteira de Canotilho, os direitos fundamentais foram positivados justamente a partir da Revolução Francesa (Déclaration deês Droits de l’Homme et du Citoyen, 1789) e da independência dos EUA em relação à Inglaterra (Virginia Bill of Rights, 1776). As garantias a eles correspondes, portanto, visavam a restringir a atuação do Estado. Defendia-se a ampliação da “autonomia individual” frente à ação estatal13. Surge, nessa linha argumentativa, a denominada “classificação em gerações” dos direitos fundamentais. A garantia da autonomia individual, decorrente do direito fundamental à liberdade, estaria inscrita na chamada 8

BONAVIDES, 2012, p. 543. BONAVIDES, 2012, p. 547. 10 BONAVIDES, 2012, p. 548. 11 O dispositivo constitucional se divide em duas partes. Na primeira, vê-se o direito fundamental: “É inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre-exercício dos cultos religiosos”; na segunda, prescreve-se a garantia fundamental: “(...) garantindo-se na forma da lei a proteção aos locais de culto e suas liturgias”. 12 O dispositivo veda o juízo ou tribunal de exceção (“não haverá juízo ou tribunal de exceção”). Corresponde, portanto, ao direito fundamental ao juízo natural. 13 PAULO, ALEXANDRINO, 2008, p. 91. 9

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“primeira geração”. A segunda geração teria a igualdade como direito fundamental precípuo; a terceira geração, a fraternidade14. A primeira geração, assim, compreende as chamadas “liberdades negativas”. São os direitos civis e políticos, surgidos ao final do século XVIII. São meios de defesa, de não-ingerência do Estado na esfera privada. Defendem a liberdade do indivíduo; são, por isso, também denominados “direitos negativos” ou de “igualdade formal”. Apresenta-se como passagem do “Estado Absoluto” para o “Estado Liberal”. A segunda geração é identificada às liberdades positivas. Acentua o princípio da igualdade, ora entendida como igualdade material. São os direitos sociais, econômicos e culturais. Eles exigem uma prestação estatal, na proteção de trabalhadores contra patrões e dos “despossuídos” ou “hipossuficientes”, de maneira geral; são exemplos os direitos fundamentais a saúde, trabalho, educação, habitação, previdência social, assistência social, entre outros. Apresenta-se como passagem do “Estado Liberal” para o “Estado Social”. A terceira geração, enfim, consagra a solidariedade e a fraternidade. Protege interesses de titularidade difusa ou coletiva. Isto é, não são destinados a interesses individuais (primeira geração) ou de um grupo (segunda geração). Defendem o gênero humano, presente e futuro. São exemplos o direito do consumidor, direito à paz, direito à autodeterminação dos povos, ao meio ambiente, ao desenvolvimento, à comunicação etc. Parte da doutrina tradicional defende a existência de uma quarta ou, mesmo, quinta geração de direitos fundamentais, de forma ainda não consensual. Para Bobbio, a quarta geração compreenderia o campo da engenharia genética15. Para Bonavides, ela seria a fase da globalização dos direitos fundamentais, com efeitos sobre a institucionalização do Estado Social16. Para o autor português, ademais, existiria uma quinta dimensão de direitos fundamentais, como o direito à paz, “axioma da democracia participativa ou, ainda, supremo direito da humanidade”17. É comum que, em lides concretas ou mesmo no âmbito do controle abstrato de constitucionalidade, direitos fundamentais se apresentem em colisão. A doutrina tradicional apresenta, em resposta à colisão de direitos funda 14

A forma de classificar contém, em si, escolhas políticas. Não por acaso, as “gerações” dividemse exatamente conforme a insígnia “liberdade, igualdade e fraternidade”, oriunda da Revolução Francesa. 15 “(...) já se apresentam novas exigências que só poderiam chamar-se de direitos de quarta geração, referentes aos efeitos cada vez mais traumáticos da pesquisa biológica, que permitirá manipulações do patrimônio genético de cada indivíduo” (BOBBIO, 1995). 16 “(...) a globalização política na esfera da normatividade jurídica introduz os direitos de quarta dimensão, que, aliás, correspondem à derradeira fase de institucionalização do Estado Social” (BONAVIDES, 2010, p. 569). 17 BONAVIDES, 2012, p. 593. 74

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mentais, a necessidade de realização de “juízo de ponderação” ou do “princípio da concordância prática ou da harmonização, de forma a coordenar e combinar os bens jurídicos em conflito”18. 2.2. CRÍTICA ÀS GERAÇÕES DE DIREITOS E À COLISÃO COMO COMPROMISSO-CONCILIAÇÃO “Os homens nascem livres e são iguais em direitos”, prescreve o artigo primeiro da famosa “Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão”, oriunda da Revolução Francesa de 1789. Apresenta quatro direitos em que “homens são iguais”, quais sejam, “a liberdade, a propriedade, a segurança e a resistência à opressão” (art. 2º). Tais “direitos naturais”, conforme lição de José Damião de Lima Trindade, são contemplados desigualmente na Declaração: A liberdade recebeu sete artigos, o 4º e o 5º definem seus contornos gerais, o 7º, o 8º e o 9º tratam da liberdade individual, o artigo 10 refere-se à liberdade de opinião e o 11, à liberdade de expressão. A propriedade só é abordada no artigo 17, mas beneficia-se de um tratamento enfaticamente protecionista e privatista – note-se que é o único direito qualificado como “inviolável e sagrado”. A segurança só é contemplada no artigo 12, e de modo visivelmente menos relevante. Quanto ao direito de resistência à opressão, a Declaração nada lhe dedicou, a não ser a menção inicial19.

Mais do que a desigualdade entre os direitos proclamados, destaca-se o silêncio eloquente em relação à igualdade, ao sufrágio universal, ao machismo, ao racismo, ao direito ao trabalho. Como destaca Trindade: (...) a igualdade não figurou entre os direitos “naturais e imprescindíveis” proclamados no artigo 2º, muito menos foi elevada ao patamar de “sagrada e inviolável”, como fizeram com a propriedade. Além disso, quando mencionada depois, o foi com um certo sentido: os homens são iguais – mas “em direitos” (artigo 1º), perante a lei (artigo 6º) e perante o fisco (artigo 13). (...) [Ademais,] o sufrágio universal sequer foi mencionado, a igualdade entre os sexos não chegou a ser cogitada (o “homem” do título da Declaração era mesmo só o do gênero masculino), o colonialismo francês (ou europeu em geral) não foi criticado, a escravidão não foi vituperada (e era uma realidade dramática naquele tempo), o direito ao trabalho foi esquecido etc.20 18 MORAES apud PAULO, ALEXANDRINO, 2008, p. 101. Em sentido contrário, ver Lênio Streck. 19 TRINDADE, 2002, p. 54. 20 TRINDADE, 2002, p. 55.

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Assim, os direitos fundamentais nascem desiguais, em um contexto histórico específico, não apenas para a afirmação de “liberdades negativas” contra o “Estado Absoluto”, mas também em continuidade conservadora de uma sociedade em que central a exploração do trabalho e as opressões de gênero, raça e diversidade sexual. Conforme preleciona George Marmelstein Lima, a mera apreensão da teoria das gerações dos direitos fundamentais, como “sucessivos”, apresenta uma compreensão equivocada da história, instituindo perigosa e falsa dicotomia. Segundo o autor, a expressão “gerações de direitos do homem” tem origem em aula inaugural no Curso do Instituto Internacional dos Direitos do Homem, proferida por Karel Vasak. O autor teria intentado apresentar a evolução dos direitos humanos, metaforicamente, com base no lema da Revolução Francesa. Para Cançado Trindade, nem Vasak levou sua teoria muito a sério. Ao perguntar ao jurista tcheco por que desenvolveu sua teoria, Vasak respondeu: “Ah, eu não tinha tempo de preparar uma exposição, então me ocorreu de fazer alguma reflexão, e eu me lembrei da bandeira francesa”21. Marmelstein apresenta três argumentos contra a teoria das gerações de direitos fundamentais, todos no sentido de que, embora possua valor didático, ela não é sustentável nem possui utilidade dogmática. Primeiro, no sentido de que o termo geração “pode dar a falsa impressão da substituição gradativa de uma geração por outra”22. Gera-se, assim, a ideia de que uma nova geração só deve ter seus direitos reconhecidos e efetivados quando a anterior já estiver madura o suficiente. A teoria, desse modo, “contribui para a atribuição de baixa carga de normatividade e, consequentemente, de efetivação dos direitos sociais e econômicos”23. Segundo, porque a ideia de gerações, em que pese apresente uma dimensão de historicidade, não retrata a verdade histórica em seus acontecimentos concretos. Um dos exemplos utilizados é o da implementação de direitos fundamentais no decorrer da “Era Vargas”. Nela, foram reconhecidos por lei inúmeros direitos sociais (“segunda geração”), sem que direitos de liberdade (“primeira geração”) fossem assegurados, visto que momento de exceção democrática. Para o autor, a história também desmente a ideia de que o Estado Liberal seja meramente passivo: (...) no campo da repressão, o Estado Liberal foi bastante ativo, extrapolando, muitas vezes, a proclamada condição de espectador, colocando-se ao lado dos detentores do capital na repressão aos trabalhado21

MARMELSTEIN, 2004. MARMELSTEIN, 2004. 23 MARMELSTEIN, 2004. 22

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res. Era comum o apoio das forças policiais para proteger as fábricas, perseguir e prender as lideranças operárias, apreender jornais, destruir gráficas, demonstrando que o discurso liberal era de mão única, protegendo apenas os interesses da burguesia. Quando a liberdade (no caso, a liberdade de reunião, de associação e de expressão) representava uma ameaça ao status quo, o Estado deixava de ado a doutrina do laissezfaire, passando a agir, intensamente, em nome dos interesses da burguesia24.

O terceiro argumento, enfim, refuta a teoria de Jellinek, segundo a qual os direitos civis e políticos (primeira geração) teriam status negativo e os direitos sociais e econômicos (segunda geração) teria status positivo25. Para Marmelstein, essa é a principal fragilidade da teoria das gerações dos direitos fundamentais, pois enfraquece a normatividade dos direitos sociais. Para o autor, os direitos fundamentais da chamada “primeira geração” exigem prestações positivas do Estado, da mesma forma que os chamados da “segunda geração” exigem prestações negativas. A classificação é infeliz, justamente, porque ignora como as políticas públicas se desenvolvem em relação a cada um dos direitos fundamentais. Um interessante exemplo é dado pelo direito fundamental à propriedade privada. É verdade que ao direito de propriedade corresponde a garantia de proibição de violação da propriedade pelo Estado, salvo mediante prévia e injusta indenização; denota-se, aí, a dimensão negativa do direito, de não interferência vertical sobre direitos fundamentais. No entanto, a plena proteção ao direito de propriedade exige também inúmeras obrigações positivas. Como salienta Marmelstein, é necessária a promoção de adequado aparato policial, edição de normas para garantia do exercício do direito, estabelecimento de medidas normativas e processuais para garantia de reparação de danos26. No caso brasileiro, o autor cita vultosos gastos públicos com direitos de primeira geração. Entre eles, com o Poder Judiciário, presídios, agências reguladoras, processo eleitoral, conselhos de proteção da concorrência, polícias e corpo de bombeiros, bem como renúncias indiretas, como imunidades tributárias para templos (CF, art. 150, VI, b), livros, jornais, periódicos e papel destinado à sua impressão (CF, art. 150, VI, d), entre outros. 24

MARMELSTEIN, 2004. A referida teoria implica no mandamento de que a primeira geração de direitos exige um “não agir”, uma omissão estatal, ao passo que a segunda geração exige uma prestação, uma ação do Estado, com gasto de verbas públicas. 26 “Apenas para ilustrar esse aspecto oneroso de um direito dito de primeira geração, basta dizer que os Estados Unidos gastam, com segurança pública, várias vezes o valor que é gasto com a saúde, sobretudo após os ataques terroristas de 11 de setembro de 2011” (MARMELSTEIN, 2004). 25

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No lugar da ideia de “gerações” de direitos fundamentais, parte da doutrina tem apresentado a concepção de “dimensões” de direitos fundamentais. Todos os direitos fundamentais, com efeito, possuiriam dimensões liberal-individual (primeira dimensão), social (segunda dimensão) e de solidariedade (terceira dimensão). O direito a propriedade, por exemplo, tem natureza jurídica essencialmente privada (primeira dimensão), no entanto fica associado à função social por meio da CF, art. 5º, XXIII (segunda dimensão), ao mesmo tempo em que não deve cumprir apenas uma função social, mas também uma função ambiental (terceira dimensão)27. A compreensão crítica da teoria das gerações (ou, doravante, “dimensões”) dos direitos fundamentais é útil, mas não responde suficientemente à problemática da colisão de direitos fundamentais. Veja-se, no capítulo seguinte, a proposta teórica da Critical Legal Studies, que fornece elementos analíticos mais densos para a avaliação de situações de conflito entre direitos fundamentais. 3 A ESCOLA DOS CRITICAL LEGAL STUDIES (CLS) O movimento a partir do qual teve início a escola dos CLS surgiu nos fins da década de 1970 em uma conjuntura de agitação política nos Estados Unidos. Uma nova geração de professores e estudantes de direito, que teve contato com a luta pelos direitos civis, com a militância contra a Guerra do Vietnã e outros acontecimentos importantes para a história dos EUA e do mundo, passou a questionar a ciência jurídica e o ensino jurídico tradicionais, alicerçados nas noções de neutralidade, objetividade, técnica e ausência de influência da política no direito.28 Na combinação entre marxismo, realismo jurídico norte-americano e outras correntes do pensamento crítico, mesmo com trabalhos e perspectivas bastante distintas, esses sujeitos convergiam para a mesma constatação: a pretensa objetividade e neutralidade do discurso jurídico são, na verdade, máscaras que encobrem o verdadeiro papel do direito de mantenedor de um sistema político e econômico: Las normas jurídicas e sentencias judiciales – tanto como la supuesta “ciencia” jurídica construída para explicarlas y sistematizarlas – se cuentam entre los dispositivos simbólicos más importantes de la sociedad capitalista para naturalizar como institucionalidad inevitable lo que no es sino relación de poder contingente. El derecho, desde esta perspectiva, no es sino um dispositivo alienante, que distorciona la conexión entre las personas y las expropria del 27 28

MARMELSTEIN, 2004. KENNEDY, Duncan. Izquierda y derecho. Buenos Aires: Siglo Veintiuno Editores, 2010. p. 12.

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control sobre su destino. Es por eso que los trabajos de esta variante de la teoria crítica siempre se sustentaron en la esperanza de que descongelar la (falsa) necesidad para exhibir la contingência tendría um efevto revitalizante y emancipador, abriendo espacio para la imaginación de futuros alternativos.29

Segundo Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy, diversas correntes de pensamento influenciaram a formação dos CLS: Verificou-se forte influência do marxismo ocidental, especialmente em sua vertente frankfurtiana, aspecto potencializado com a presença de Max Horkheimer, Theodor Adorno e de Herbert Marcuse nos Estados Unidos a partir da década de 1940, quando fugiram da Alemanha nazista. Há também traços do estruturalismo francês de Claude Levi-Strauss e da historiografia crítico-social de Edward Palmer Thompson, bem como de um modo crítico de se pensar a história, o que qualificou essa ciência nos Estados Unidos no início do século XX. Percebe-se ainda a influência de Max Weber, para quem a ação social, por meio da organização normativa, deveria também ser implementada por categorias não jurídicas que demonstrassem um direito em ação, cuja dinâmica transcenderia o direito encontrado nos livros.30

Os intelectuais dessa corrente, assumidamente de esquerda, buscam demonstrar como o direito garante, na prática, a dominação de classe, de gênero e de raça, pois constituído e aplicado com base em valores políticos e ideológicos dominantes em uma sociedade. A linguagem pretensamente neutra e objetiva, a naturalização de valores que são social e historicamente construídos, como a liberdade, a igualdade e o individualismo, são questionados e desvelados31. Diferentemente de outras correntes críticas, os CLS optaram, estrategicamente, por fazer a crítica internamente ao direito, problematizando seus institutos, suas bases, a criação e aplicação do direito e suas consequências. 29

KENNEDY, Duncan. Izquierda y derecho. Buenos Aires: Siglo Veintiuno Editores, 2010. p. 13. GODOY, Arnaldo Sampaio de Moraes. O critical legal studies movement de Roberto Mangabeira Unger: um clássico da filosofia jurídica e política. Rev. Jur., Brasília, v. 8, n. 82, p.49-63, dez./jan., 2007. p. 50. Disponível em http://www.planalto.gov.br/CCIVIL_03/revista/ Rev_82/Artigos/PDF/Arnaldo_rev82.pdf. Acesso em 22 jan. 2014. 31 HARVARD. The Bridge. “They focused from the start on the ways that law contributed to illegitimate social hierarchies, producing domination of women by men, nonwhites by whites, and the poor by the wealthy. They claim that apparently neutral language and institutions, operated through law, mask relationships of power and control. The emphasis on individualism within the law similarly hides patterns of power relationships while making it more difficult to summon up a sense of community and human interconnection”. Disponível em: http://cyber. law.harvard.edu/bridge/CriticalTheory/critical2.htm. Acesso em 24 jan. 2014. 30

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Segundo Mangabeira Unger, as preocupações dos CLS são as seguintes: a) crítica ao objetivismo e ao formalismo e b) o uso puramente instrumental da teoria e da prática jurídica para avançar nos objetivos de esquerda32. É nesse movimento que se insere a obra de Duncan Kennedy, um dos fundadores do movimento, sobre o comportamento estratégico dos juízes na interpretação jurídica. 3.1. O COMPORTAMENTO ESTRATÉGICO NA INTERPRETAÇÃO JURÍDICA NA PERSPECTIVA DE DUNCAN KENNEDY Para tratar do comportamento estratégico na interpretação jurídica, utilizaremos a obra Izquierda y Derecho: ensayos de teoría jurídica critica33, de Duncan Kennedy. Duncan Kennedy, nascido em 1942 em Washington, Estados Unidos, é professor titular da disciplina “General Jurisprudence” da Harvard Law School e um dos fundadores da escola CLS. Nesta obra, Kennedy busca examinar o impacto da decisão judicial em uma sociedade dividida ideologicamente partindo da ideia de que os juízes são atores ideológicos. Kennedy define ideologia como “um proyecto de universalización de uma intelligentsia que considera que actúa ‘para’ um grupo cuyos intereses están em conflicto con los de outros grupos”.34 O autor inicia com o questionamento: como, afinal, pode o juiz atuar ideologicamente, especialmente quando aceita que está obrigado a ser intérprete fiel das leis? Busca-se reconstruir a posição do juiz a partir de dentro ao problematizar o modo como ele trabalha com as fontes do direito e como responde quando tem uma clara preferência por um resultado. Objetiva-se identificar as estratégias pelas quais o juiz pode manter a sua crença de que está cumprindo seu dever de fidelidade interpretativa, apesar de se mover em uma direção ideológica clara. Deve-se entender que os juízes constantemente têm que fazer escolhas estratégicas, que consistem na decisão de como irão desenvolver o trabalho de investigação e argumentação jurídica. Como estão orientados por um resulta32

“If the criticism of formalism and objectivism is the first characteristic theme of leftist movements in modern legal thought, the purely instrumental use of legal practice and legal doctrine to advance leftist aims is the second”. UNGER, Roberto Mangabeira. The critical legal studies movement. Harvard Law Review, vol. 96, n. 3, 561-675, janeiro 1983. p. 567. Disponível em: http://www.jstor.org/stable/1341032. Acesso em 04 mar. 2014. 33 KENNEDY, Duncan. Izquierda y derecho. Buenos Aires: Siglo Veintiuno Editores, 2010. 34 KENNEDY, Duncan. Izquierda y derecho. Buenos Aires: Siglo Veintiuno Editores, 2010. p. 28. 80

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do, primeiro escolhem um posicionamento e, após, passam a desenvolver uma argumentação que a torne racional e legítima. Sempre é possível para o juiz adotar uma atitude estratégica frente às fontes do direito, fazer com que elas signifiquem algo distinto do que parecia que significavam, dando-lhes um sentido que exclua outros inicialmente possíveis. Por outro lado, nunca é necessário que o faça nem é certo que sempre vá ter êxito na sua intenção. No entanto, sempre é possível comportar-se estrategicamente, no sentido de buscar uma interpretação particular das normas que pareça ser a mais adequada. Não há nenhuma definição do império da lei que possa evitar que os juízes caminhem nessa direção, e é sabido que a idéia de “império da lei” exige que os juízes atuem dessa forma ao menos uma parte do tempo. Um juiz que habitualmente se comporta de maneira estratégica frente às fontes jurídicas pode ignorar as implicações especificamente ideológicas de suas decisões ou então trabalhar duro para deixá-las de lado. Quando cremos que um juiz possui preferências ideológicas, devemos nos referir a “motivações ideológicas” e “influências ideológicas” sobre determinados resultados. Nas sentenças judiciais, os juízes sempre negam, no sentido comum do termo, que estejam atuando por motivos ideológicos. Afirmam explicitamente que o resultado foi alcançado seguindo procedimentos interpretativos impessoais que excluem a influência de suas preferências pessoais. No entanto, não é isso que ocorre. Duncan Kennedy cria uma tipologia para diferenciar o comportamento estratégico dos magistrados, identificando três tipos de juízes: i) o ativista restringido; ii) o mediador e iii) o bipolar. O ativista restringido é aquele que, sabendo que determinada lei deve ser aplicada ao caso em análise, se não concorda com a norma ou com as consequências de sua aplicação, tenta dar-lhe uma interpretação que lhe seja mais favorável. Não há, nessa hipótese, a intenção de desobedecer a lei. O que faz um ativista restringido é investir energia e tempo para elaborar uma interpretação jurídica diferente daquela que, em princípio, parecia a melhor de acordo com a fonte, para construir aquela que lhe seja mais aprazível do ponto de vista ideológico. Se esse tipo de juiz não consegue criar uma argumentação congruente com sua preferência ideológica, decide, sem rancor, de forma divergente da sua vontade. Qualquer que seja a norma que finalmente escolha aplicar ao caso, representará a melhor interpretação que pôde encontrar para as fontes. Suas sentenças são formalmente jurídicas e refletem sua honesta crença de que o direito exige o resultado que elas tenham alcançado. O ativista restringido é assim chamado pois possui uma motivação extrajurídica, qual seja, a busca por uma sentença justa e, por isso, seu ativismo

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está orientado às normas jurídicas. Trabalha com uma meta: fazer crer que a solução legislativa que prefere é a solução jurídica correta e, nesse percurso, sua atuação é qualquer coisa outra que não neutra no uso dos seus recursos. Ao contrário, investe muito tempo pensando em uma estratégia, pesquisando em livros e buscando outras fontes que podem ser úteis na construção de sua argumentação. Por certo, o ativista restringido atua de boa fé, considera a possibilidade de se dar por vencido se não puder contestar os argumentos opostos. Mas, de todo o modo, tem um projeto identificável, uma direção na qual se move. Desde seu ponto de vista, será uma derrota não encontrar uma maneira de se esquivar da norma injusta. Já o juiz mediador tem uma postura mais passiva do que a do ativista restringido. Ele compreende que os interesses em conflito são ideológicos, mas acredita que, entre os posicionamentos extremos, como o conservador e o liberal, é possível se posicionar “no meio”. E isso seria plausível porque a estrutura ideológica das fontes é um processo: a norma liberal e a conservadora são pólos entre os quais haveria uma série de posições “moderadas”. Mediação, portanto, significa aqui a escolha por uma interpretação temperada da norma, mais que uma tomada de posição em favor de uma das partes, que é moderada do ponto de vista ideológico. O mediador está controlado pela ideologia, ainda que seja a ideologia dos outros e que se abstenha de todo compromisso ideológico. Ele se coloca, precisamente, entre as posições ideológicas de outros. O juiz bipolar, por sua vez, combina características dos dois tipos de juízes anteriores. Às vezes trabalha duro para desenvolver uma posição liberal forte a respeito de um tema, parecendo um ativista restringido mas, logo em seguida, adota com igual força, uma posição conservadora, também à maneira de um ativista restringido, mas com compromisso oposto. É difícil diferenciar sua sentença daquela proferida por um juiz ativista restringido que estivesse com o mesmo posicionamento ideológico. O que o distingue, no entanto, é que não buscará promover o projeto liberal ou conservador ao largo de uma série de casos. O que faz que um juiz seja bipolar é sua tendência constante a alternar entre as ideologias ao longo do tempo. Não pertence a nenhum campo ideológico. Diferente do mediador, ele “se deixa ir” e participa ativamente na construção das posições ideológicas das quais ao mesmo tempo é “independente”. Kennedy explica como se dá o processo de negação da influência da ideologia na decisão judicial, a partir dos três tipos ideais de juízes por ele criados. Assim, o autor possibilita a compreensão, desde um certo ponto de vista específico, que é o da Escola Critical Legal Studies, de como os juízes decidem e como se posicionam diante de conflitos de interesses.

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4 CONSIDERAÇÕES FINAIS O presente artigo teve como problema de pesquisa as deficiências da análise tradicional da colisão entre direitos fundamentais. No primeiro momento, apresentaram-se elementos conceituais acerca da teoria dos direitos fundamentais, sua diferenciação com relação às garantias fundamentais, bem como sua divisão em “gerações” ou “dimensões”. Buscou-se conferir complexidade ao desafio da efetividade dos direitos fundamentais, quando em situação de colisão entre si, haja vista a natureza de “compromisso-conciliação” de todo pacto constitucional. Na sequência, apresentou-se a teoria de Duncan Kennedy acerca do comportamento estratégico dos juízes. A breve incursão na corrente teórica dos Critical Legal Studies possibilita a apreensão do papel que cumprem a ideologia e a política no Judiciário e, por sua vez, o papel que o Judiciário cumpre na sociedade, enquanto ator político e ideológico. Desmistificar a ideia de que os juízes são sujeitos neutros, imparciais, leais ao “império da lei” e que tomam suas decisões com base em fundamentos puramente técnicos e racionais, é fundamental para compreendermos o Judiciário, suas potencialidades e limites nas transformações sociais. É essa a principal contribuição de Kennedy e dos CLS. Ao afirmar que o direito não é algo neutro, mas que é produto de uma sociedade de classes e que, portanto, é contraditório e, na maioria das vezes, está a serviço da classe dominante, os CLS estabelecem uma forma diferente de análise do direito e do mundo jurídico. De fato, os juízes, assim como todos aqueles que vivem em sociedade, são sujeitos políticos, possuem suas preferências ideológicas e, ao contrário do que prega o imaginário positivista, não se despem totalmente de suas predileções ao julgar. A proclamada neutralidade e o suposto predomínio da técnica encobrem uma série de interesses e opções políticas que norteiam, na maioria das vezes, o julgador. É possível concluir, com essas breves notas, que o elemento político -ideológico está, quase sempre, presente nas decisões judiciais, de forma explícita ou implícita. A proposta de que a colisão entre direitos fundamentais seja resolvida mediante a “ponderação” dos próprios magistrados, portanto, é anunciadamente limitada. A crença excessiva na racionalização do processo de decisão judicial, quando envolve a garantia de direitos fundamentais, confere baixa densidade de proteção aos direitos da classe trabalhadora. Contra a falsa afirmação de que se trava uma disputa meramente racional na colisão entre direitos fundamentais, deve ser fortalecida uma análise comprometida com o desvelamento do caráter de classe desses conflitos. Dela resulta a percepção de que os direitos sociais são, “ponderadamente”, os primeiros a ter sua eficácia restringida, na maior parte das análises de casos concretos.

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