IDEOLOGIA PUNK E MILITÂNCIA POLÍTICA JUVENIL: AS PUSSY RIOT E A INVASÃO DO SACRO

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REVISTA LUMEN ET VIRTUS ISSN 2177-2789 VOL. VII Nº 17 DEZEMBRO/2016

IDEOLOGIA PUNK E MILITÂNCIA POLÍTICA JUVENIL: AS PUSSY RIOT E A INVASÃO DO SACRO Prof. Dr. Jack Brandão1 http://lattes.cnpq.br/0770952659162153

Aryana Vicente de Sousa2 http://lattes.cnpq.br/8606923409489143

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RESUMO – O artigo pretende discutir o impacto provocado pelo grupo punk Pussy Riot, devido a sua intervenção na Catedral Ortodoxa de Cristo Salvador em Moscou. Para isso, analisar-se-á o conceito e a estética punk, bem como sua relação com a formação do grupo, além da repercussão causada por sua atuação em um espaço sagrado no interior daquela sociedade. PALAVRAS-CHAVE – punk; movimentos juvenis; imagem, política; Pussy Riot ABSTRACT – The article intends to discuss the impact caused by the punk group Pussy Riot due to his intervention in the Orthodox Cathedral of Christ the Savior in Moscow. For this, will be analyzed the concept and the aesthetic punk, as well its relation with the formation of the group, besides the repercussion caused by its action in a sacred space inside that society. KEYWORDS – Punk; youth movements; image, politics; Pussy Riot

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Mestre e Doutor em Literatura pela Universidade de São Paulo (USP), Professor Titular do Mestrado Interdisciplinar em Ciências Humanas da Universidade de Santo Amaro (UNISA/SP) e coordenador do Grupo de Pesquisa CONDESIM-FOTÓS/DGP-CAPES. 2 Aryana Vicente de Sousa é mestre em Ciências Humanas pela Universidade de Santo Amaro (UNISA/SP) e pós-graduada em Docência no Ensino Superior pela FMU/SP, integrante do Grupo de Pesquisa CONDESIM-FOTÓS/DGP-CAPES.

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Introdução Em março de 2012, um episódio único desafiou a sobriedade e a solenidade da Catedral Ortodoxa de Cristo Salvador, sede do patriarcado ortodoxo russo de Moscou: cinco moças encapuzadas componentes da banda de rock punk Pussy Riot – postam-se em frente à porta santa do iconostásio que conduz ao altar da catedral e interpretam, dançando uma canção intitulada: Holy Shit (literalmente em português: “Santa Merda”). O episódio, gravado pelo próprio grupo é, em seguida, posto à disposição no Youtube (https://www.youtube.com/watch?v=ALS92big4TY ) e, em poucas horas, causou comoção internacional, deixando literalmente entre a cruz e a espada as estreitas relações entre o poder político e o poder religioso na Rússia de Vladimir Putin. No entanto, para além do evento em si mesmo, as consequências advindas de sua repercussão, como o julgamento das integrantes do grupo ou as manifestações a favor ou contra ao redor do mundo, trouxeram à tona também a presença da cultura punk no 9

cenário internacional. O que, aparentemente, poderia ser considerado um episódio interno de crítica política ou religiosa, havia escapado da influência de todos os atores envolvidos – das meninas inclusive – e despertado intensos debates ao longo do mundo sobre os diferentes papéis que as manifestações culturais de contestação (nesse caso ligados a um grupo punk) poderiam desempenhar no mundo contemporâneo. O presente artigo, partindo da análise de alguns desdobramentos deste caso, pretende investigar, de maneira breve, como a ideologia punk, surgida décadas antes na Inglaterra dos anos 60, aparece ressignificada em suas expressões contestatórias ao status quo vigente. O título deste trabalho também poderia ser algo como “Se o punk é por nós, todos serão contra nós”, uma alusão indireta à tradicional frase bíblica de uma epístola paulina que evocava a proteção divina, que faz aqui todo sentido ao (re)pensar o punk não apenas

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REVISTA LUMEN ET VIRTUS ISSN 2177-2789 VOL. VII Nº 17 DEZEMBRO/2016 como uma linguagem cultural específica, mas sobretudo como uma ideologia que pretende (des)vendar relações de poder e estabelecer críticas a elas. Assim, o texto que a seguir apresentamos está dividido em quatro partes: trata-se inicialmente de uma breve apresentação do punk enquanto prática cultural e estética; a seguir, investigaremos o grupo Pussy Riot em sua relação direta com a estética; num terceiro momento procuraremos apontar algumas implicações políticas da intervenção do grupo na catedral moscovita; por fim, discutiremos diferentes possibilidades que a atuação juvenil pode realizar em relação à contestação do poder no mundo contemporâneo. A ideologia punk: breves considerações Afinal, que seria o punk? Num primeiro momento, poderíamos dizer que é uma estética marcada por uma atitude de contestação e de transformação. Dito em outras palavras, pode ser definido como uma atitude de contestação ao sistema vigente em contraposição ao princípio da submissão ao sistema capitalista. Não à toa, era marcado pelo 10

princípio de autonomia, do faça você mesmo – do it yourself – que compreendia muito mais que uma simples apologia ao espontâneo ou ao mero individualismo das soluções simples. Isso porque, ao convidar seus interlocutores a fazer por si mesmos os bens de que têm necessidade, o punk procura desvelar uma nova lógica do pensar, marcada essencialmente pelo risco, pela abertura de caminhos cognitivos e estéticos de maneira particular, com ingredientes peculiares. Nesse sentido, a estética punk é iconoclasta: procura desconstruir modelos interpretativos prontos como uma forma de não submeter os indivíduos ao mero pensar imposto pela lógica da indústria cultural. Nesse sentido, o jornalista Daniel Rodrigues (2012), autor da obra Anarquia na Passarela, estudando a influência da estética e filosofia punks no mundo da moda, assim descreve as origens do punk: De uma maneira geral, o punk enquanto cena insere-se dentro da leva de manifestações de contracultura juvenil iniciadas nos anos 50 e advindas

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REVISTA LUMEN ET VIRTUS ISSN 2177-2789 VOL. VII Nº 17 DEZEMBRO/2016 com o chamado baby boom, subculturas como o hippie e o beat (...). Politicamente, o punk, do modo como ficou conhecido até os dias atuais, busca base no pensamento da extrema-esquerda, no anarquismo (...). Porém o termo, no fim dos anos 80 e início dos 70, não era usado para designar necessariamente um estilo, uma pessoa, tampouco um movimento social. Só veio a significar o modo como é entendido hoje quando desembarcou no Velho Mundo. Acima de tudo, o cerne de sua concepção e atitude, em todo o seu processo evolutivo, é a contrariedade diante do status quo social e burguês do mundo capitalista, da sociedade de consumo. (RODRIGUES, 2012, p. 27).

Descontentamento: eis aqui a palavra-chave que pode definir como o punk se situa em relação ao status quo vigente, desafiando-o. Desde sua origem, a ideologia punk é marcada por uma crítica explícita ou implícita às urdiduras do tecido social, marcadas por uma lógica de dominação socioeconômica e cultural que submete o indivíduo a um viver mecânico, isolando-o de suas próprias habilidades, sentimentos e desejos. A aparente agressão da estética punk pode, assim, ser lida numa perspectiva de resposta às agressões cotidianas que o sistema vigente impõe ao indivíduo. Nesse sentido, 11

não é contemporizadora, já que se percebe o quanto precisa subverter a cultura para assim melhor questioná-la. Não apresenta, num primeiro momento, concessões a seus princípios niilistas de destruição do que é vigente. Essa perspectiva de aniquilamento daquilo que é considerado fruto do sistema capitalista pode se dar a partir de várias possibilidades de afirmação dos indivíduos, como a indumentária e a música. São essas que se colocam como as alternativas mais comuns, enquanto formas de expressão, para a manifestação ideológica punk. No entanto, outra forma de manifestação que, de certa forma também inclui a indumentária e a música, é a atuação de caráter político. Utilizando diferentes linguagens que se interpenetram na constituição da atuação cênica, a performance punk também se apropria dos próprios espaços institucionais os quais critica, subvertendo seus significados. Como exemplo do caráter dessas ações pode-se citar, exatamente, a realizada pelas Pussy Riot na catedral Ortodoxa Russa.

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REVISTA LUMEN ET VIRTUS ISSN 2177-2789 VOL. VII Nº 17 DEZEMBRO/2016 Este grupo, ao se definir como punk, procura estabelecer, em suas ações culturais, uma crítica aos valores tidos como hegemônicos no seio das sociedades em que se inserem. Nesse sentido, sua performance está sempre conectada a tais postulados, a sua crítica incisiva e à desconstrução simbólica daquilo que é sacramentado pelos grupos sociais dominantes. Assim, pode-se afirmar que as Pussy Riot, enquanto grupo punk, insistem de maneira contundente em desestabilizar o status quo, reapropriando-se dos símbolos hegemônicos, a fim de combatê-los sob perspectivas cômicas e inusitadas. Desse modo, têm por objetivo o impacto que podem causar na sociedade em que se inserem, como a russa. É possível afirmar que os punks, em meio a tantas outras comunidades subversivas que se desenvolveram após os anos 60 (...) lograram constituir, por meio da linguagem e signos sociais autênticos, uma cultura própria e autônoma que os diferenciassem da sociedade homogeneizada pela “mídia-consumo”. (SOUSA, 2002, p.66) 12

Esse conjunto de signos sociais torna-se um elemento não apenas de questionamento da ordem social estabelecida, mas de desestabilização dos paradigmas que definem essa mesma ordem. Dito de outro modo, a estética punk procura redimensionar símbolos sociais implodindo-os a partir de seu próprio interior. No caso das Pussy Riot, isso fica claro pela postura das cantoras imitando fieis no templo (figura 1). Tais posturas pretendem, ao mesmo tempo, não apenas ridicularizar os símbolos da cultura vigente, mas também levar a reflexão sobre outras possibilidades de compreendêlos para além da submissão e da veneração acríticas. O grupo, ao “invadir” a catedral moscovita, não pretendeu apenas estabelecer um clima de crítica social às ambíguas relações da Igreja com Putin, nem descontruir o próprio espaço do sagrado, do religioso no interior de sua esfera de inviolabilidade simbólica. Foi além, oferecendo à sociedade uma denúncia explícita de como essas relações tensas – entre o

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REVISTA LUMEN ET VIRTUS ISSN 2177-2789 VOL. VII Nº 17 DEZEMBRO/2016 sacro e o profano; entre os poderes espiritual e temporal – podem minar projetos sociais direcionados à construção dos direitos humanos ou da autonomia política dos cidadãos russos.

Figura 1 Banda Pussy Riot

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As Pussy Riot no Reino do Czar Putin O Governo Putin, tido por muitos analistas políticos como um governo extremamente autoritário e com fortes raízes nas contradições da história russa é, nos últimos anos, um dos alvos prediletos das Pussy Riot. Ao exercer seu poder com mão de ferro sobre as instituições políticas russas, Putin atraiu para si o apoio da nova elite burguesa – surgida ainda na fase final do período soviético - ávida por manter seus privilégios de forma incontestável no interior dessa nova sociedade. Defensor de uma política econômica privatizante e neoliberal e, ao mesmo tempo, amparado numa retórica moral e religiosamente conservadora, ele tenta reelaborar a ideia de nacionalismo russo, duramente solapado durante as décadas do socialismo soviético.

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REVISTA LUMEN ET VIRTUS ISSN 2177-2789 VOL. VII Nº 17 DEZEMBRO/2016 Ao longo de seu governo, Putin elaborou com extrema atenção sua estratégia política, que vai desde a reaproximação com a Igreja Ortodoxa Russa (ele mesmo fez e faz questão de comparecer e ser visto nas imponentes liturgias ortodoxas, ao lado de sua esposa, como um cristão devoto) até ações de enfrentamento, como as decisões contrárias a políticas da União Europeia e dos Estados Unidos, lembrando a todo o momento que a Rússia pode não estar tão adormecida quanto se imagina no Ocidente. Essa retórica política, porém, vem sendo, de certa forma, reelaborada a partir da reapropriação de símbolos da nacionalidade russa e de seu conservadorismo moral, representados pela era czarista – simbolizados, por exemplo, pelo sepultamento dos restos mortais da Família Imperial russa na Catedral de São Pedro e São Paulo em São Petersburgo, em 1998 – e adotadas por grande parte das famílias russas anteriores à Revolução Bolchevique. Tais modelos, ressignificados e reelaborados, também estão sendo construídos sob o patrocínio ideológico de Putin, e contam com uma participação ativa e efetiva da Igreja 14

Ortodoxa Russa, cujo papel é preponderante em sua justificação ideológica. De tradição bizantina – cuja ligação com o Estado era visceral – é, dentre todas as Igrejas que formam a comunhão ortodoxa, a que mais fiéis possui. Estimativas chegam a calcular um número em torno de duzentos milhões, metade destes espalhados pelo mundo. Detentora de uma rígida tradição política de alianças com o poder estatal vigente, sua fundação remonta justamente a um rei, Vladimir, que no ano de 1288 teria realizado a conversão da Rússia à ortodoxia. Interessante perceber que, em 1988, quando se comemoravam os oitocentos anos deste evento (e em pleno processo de mudanças estruturais na Rússia), será o próprio Estado que favorecerá essas comemorações, iniciando mais uma etapa histórica dessas relações íntimas entre Estado e Igreja. Nesse sentido, as ações de 2012 das Pussy Riot precisam ser lidas à luz da intensa imiscuição destas instituições: Estado e Igreja russa, cujo restabelecimento na atual

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REVISTA LUMEN ET VIRTUS ISSN 2177-2789 VOL. VII Nº 17 DEZEMBRO/2016 conjuntura histórica daquele país, é um reflexo daquilo que acontece ao longo dos séculos; espelhando-se, como dito anteriormente, no Império Bizantino. Dois fatos políticos merecem atenção a título de exemplificação em relação a Putin. Ao assumir o poder pela primeira vez, o antigo patriarca russo Alexey II não só estava presente, como lhe deu sua bênção solene em pleno Palácio governamental. Algo impensado alguns anos antes. Da mesma forma, quando o patriarca faleceu, foi a vez de o presidente russo Medvedev, forte aliado de Putin, obrigar todas as principais instituições culturais do país a cancelarem seus programações em sinal de luto por sua morte. Esses exemplos deixam ainda mais evidente o vespeiro em que as Pussy Riot foram se inserir, bem como a ousadia de seu ato. Adentrar a Catedral moscovita não foi visto, de modo especial pelas autoridades, apenas como um ato sacrílego ou uma simples brincadeira de jovens punks transviadas. Isso porque o episódio joga, decididamente, com questões ideológicas fundamentais para a construção geopolítica do Estado russo, necessitado de se recompor, de maneira simbólica, diante dos desafios que o mundo globalizado e pós15

soviético aponta. O dia em que as Pussy Riot invadiram a catedral moscovita O filme produzido pelo próprio grupo já começa de forma provocativa: diante da solenidade do lugar sagrado e da imobilidade de seus ícones, as meninas se comportam de uma forma, avassaladoramente, rápida. Todos que estavam presentes são pegos de surpresa, como ficou claro a demonstração atônita dos visitantes e dos próprios fiéis diante da cena que tinham diante dos olhos. Essa postura contrastante é também parte da percepção ideológica do grupo punk frente à imobilidade do espaço. O vídeo espanta não apenas pelo ato em si, mas pela própria construção figurativa das imagens que, mais uma vez, contrapõem o status quo da construção imagética oficial do templo à dinâmica visual atabalhoada e assimétrica das ações do grupo punk.

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REVISTA LUMEN ET VIRTUS ISSN 2177-2789 VOL. VII Nº 17 DEZEMBRO/2016 No entanto, para além desse aspecto de desarmonia simbólica do espaço sagrado (fig. 2), ocorre outro: algumas garotas se prostam (de προσκύνησις - proskynesis) de costas para os ícones e em frente à porta principal do iconostásio, atrás do qual ocorrem os eventos mais sagrados da liturgia (Consagração do pão e do vinho), como se fosse uma fiel – fazendo inclusive o sinal-da-cruz –, num claro ato de zombaria (pela óptica dos fiéis) enquanto, outras cantam, do lado contrário uma canção de protesto.

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Figura 2 Banda Pussy Riot no interior da Catedral de Cristo Salvador, Moscou, março de 2012

Apesar do teor de deboche e da crítica mordaz à imiscuição da Igreja em assuntos do Estado – daí a expressão holy shit (santa merda!) –, não há uma crítica herética ao sacro, isso fica claro quando o grupo se refere à Virgem Maria, empregando-a – assim como na própria tradição cristã – como intercessora, para que rompa aquela condição: “Santa Maria, enxote Putin!”, ou clamando-a para que a mãe de Cristo junte-se a sua luta: “Santa Maria, Virgem, torne-se feminista! Torne-se uma feminista!”. O grupo Pussy Riot propõe, dessa maneira, uma contundente crítica ao status quo, mas para isso emprega as mesmas estratégias simbólicas estabelecidas no âmbito religioso. De maneira diferente, são os métodos empregados pelo grupo feminista Femen em suas

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REVISTA LUMEN ET VIRTUS ISSN 2177-2789 VOL. VII Nº 17 DEZEMBRO/2016 incursões, quando há uma total negação do sacro, como demonstrou uma ativista em 2013 que chegou mesmo a urinar nas escadas do altar (fig. 3). Talvez aqui esteja uma das chaves para se entender a provocação empregada pelo Pussy Riot: o poder é questionado não apenas no próprio espaço do poder, ou execrando-o como fazem as integrantes do Femen, mas utilizando-se de chaves interpretativas e simbólicas próprias desse mesmo poder.

17 Figura 3 Membro do grupo feminista ucraniano Femen no interior da Igreja Santa Madalena, Paris, dezembro de 2013, foto de Thomas Samson (AFP)

A presença das garotas diante do altar é assim evocativa do impacto que a Igreja Ortodoxa sempre exerceu no imaginário russo. Entrar no templo e prostrar-se como um fiel de forma irônica leva o ultraje a sua máxima tensão. O grupo pretende assim subverter a lógica dominante apontando e ridicularizando atos de adoração que, na perspectiva punk, só submetem cada vez mais aos seres humanos à degradação, à subserviência e ao desrespeito de cada indivíduo por si mesmo. Se na Inglaterra da década de 60, a estética punk desafiava os burgueses conservadores em seus próprios nichos (os bairros frequentados pelas elites), em Moscou do

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REVISTA LUMEN ET VIRTUS ISSN 2177-2789 VOL. VII Nº 17 DEZEMBRO/2016 século XXI a história, em certo sentido, se repete: é no coração da ortodoxia russa que se constrói o discurso heterodoxo punk. Os ícones ortodoxos estão agora sendo ressignificados, imageticamente, pelos signos da desordem punk. Tempo e espaço celebrados na relação Estado-Igreja transformam-se agora numa celebração-denúncia do caos a que essa relação, na perspectiva do grupo, está arrastando a Rússia. O episódio repercutiu profundamente na percepção da elite político-religiosa dirigente do país. Palavras como: heresia, desrespeito e desordem foram pronunciadas por várias autoridades. Putin, raposa velha da política russa desde seus tempos de KGB, tratou o caso com ares de quem estava discutindo a segurança nacional do país.; e, em certo sentido (na perspectiva das necessidades de legitimação ideológica recíproca entre Estado e Igreja), estava mesmo. Isso ficou claro com a urgência como o caso foi tratado, com a prisão das cantoras e o clamor popular, capitaneado estrategicamente pela Igreja e por cidadãos cooptados pelos militantes dos partidos ligados ao governo, o que demonstrou a enorme 18

repercussão que o caso havia tomado.

Figura 4 Ícone do artista russo Artem Loskutov colocados nas ruas de Novosibirsk em apoio

às garotas do Pussy Riots que estavam presas, 2012

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REVISTA LUMEN ET VIRTUS ISSN 2177-2789 VOL. VII Nº 17 DEZEMBRO/2016 De uma denúncia ao status quo do establishment russo proposto por um grupo punk, o caso transformara-se agora num claro exemplo de desrespeito à ordem social e nacional que merecia uma condenação exemplar. As garotas presas, por exemplo, eram mostradas pela televisão enjauladas; padres apareciam na televisão comandando procissões e manifestações de desagravo; logo, contrárias ao grupo. Putin, por sua vez, apresentou-se na televisão estatal russa, como o defensor da causa de unidade nacional, mostrando-se compassivo com aquilo que chamou de imaturidade juvenil. Do ponto de vista que aqui nos interessa, ou seja, a compreensão dos impactos que a estética punk ainda hoje pode produzir, a prisão das garotas é apenas um dos eventos disciplinadores do Estado. Essa tentativa de disciplinar o grupo passa ainda pela tentativa oficial de se descaracterizar o sentido político-ideológico de intervenção das Pussy Riot. Tal descaracterização passa pela estratégia governamental de perdoar as garotas, apelando para sua imaturidade. A reação oficial procura reenquadrar o grupo no coletivo da sociedade russa, 19

despolitizando suas ações e inserindo-as, novamente, no contexto da indústria cultural. Esse reenquadramento implica aquilo que os teóricos da Escola de Frankfurt, ao tratar da indústria cultural, chamam de caráter manipulador. Para Theodor Adorno (1995), Pessoas que enquadram cegamente em coletivos convertem a si próprios em algo como um material, dissolvendo-se como seres autodeterminados. Isto combina com a disposição de tratar os outros como sendo uma massa amorfa. Para os que se comportam desta maneira utilizei o termo “caráter manipulador”. (p.129)

Talvez resida aqui um dos grandes dilemas que o movimento punk deva enfrentar nos próximos anos, isso porque seus oponentes tendem a desqualificar seus membros e a tratá-los como inocentes, infantis ou ignorantes. Assim, sua tarefa busca não apenas “dessacralizar os espaços de poder”, mas garantir que esse processo e seu significado não

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REVISTA LUMEN ET VIRTUS ISSN 2177-2789 VOL. VII Nº 17 DEZEMBRO/2016 sejam minimizados, por meio do caráter manipulador dos discursos hegemônicos. Não à toa que enquanto os garotas do grupo ainda estavam presas, surgiram pichações e grafites na Rússia, buscando aprofundar a crítica à política e aos valores sagrados russos.

20 Figura 5 Mãe de Deus Panagía (Sinal), iconostásio da Igreja da transfiguração, monastério de Kizhi, Rússia, séc. XVIII

Assim, aproveitando o espaço dedicado a propagandas de rua, simpatizantes do grupo espalharam pelas ruas de Novosibirsk uma paródia de um ícone da παναγία (panagía: Santíssima, termo como os orientais se referem à Virgem Maria), do artista russo Artem Loskutov, no qual é possível verificar a imiscuição do sacro com o profano. A própria Virgem Maria de rosto coberto com a mesma máscara das Pussy Riot, também se põe, de certa forma, a protestar contra o sistema. Obviamente que com o ato havia se buscado um único intento: o de provocar reações, afinal a maneira como o artista se apropriou da imagem é extremamente provocadora: reconstruiui-se um dos ícones mais

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REVISTA LUMEN ET VIRTUS ISSN 2177-2789 VOL. VII Nº 17 DEZEMBRO/2016 importantes do imaginário cristão ortodoxo, o da Platytera (πλατστέρα), em que vemos a Virgem Maria de braços abertos em atitude de orante, levando em seu peito um medalhão em que está inserido a figura do Menino Jesus (BELTING, 2009). Verifica-se, portanto, que o próprio ícone da Panagía (παναγία) ou Platytera (πλατστέρα) (fig. 5), considerado símbolo da ortodoxia russa referente à Mãe de Deus (θεοτόκος), torna-se, reelaborado pela crítica punk à prisão das garotas, ele mesmo um grito de proteção, empregado pelas próprias Pussy Riot, que podem oferecê-lo a todos aqueles que não se deixam manipular pela lógica oficial. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ADORNO, Theodor W. Educação e emancipação. 3.ed. Trad. Wolfgang Leo Maar. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995. BELTING, Hans. Imagen y culto: uma historia de la imagen anterior a la edad del arte. Madrid: Akal, 2009. 21

RODRIGUES, Daniel. Anarquia na Passarela: A Influência do Movimento Punk nas Coleções de Moda. Porto Alegre: Dublinense, 2012. SOUSA, Rafael Lopes de. Punk: cultura e protesto, as mutações ideológicas de uma comunidade juvenil subversiva. São Paulo: Edições Pulsar, 2002. Site visitado: YouTube https://www.youtube.com/watch?v=ALS92big4TY

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