Ignorância é força

June 3, 2017 | Autor: Berenice Bento | Categoria: Gender Studies, Education, Gender
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14/05/2016

Revista Cult Ignorância é força ­ Revista Cult

Ignorância é força   Conforme  eu  me  aproximava  da  Câmara  de  Vereadores  da  cidade  de  Natal,  o  som  que  se espalhava  por  vários  quarteirões  do  bairro  ficava  mais  nítido.  Diante  da  sede  do  poder legislativo local, feministas, transfeministas, ativistas LGBTs e estudantes denunciavam, em um pequeno  carro  de  som,  o  que  estava  prestes  a  acontecer  lá  dentro.  Como  uma  citação  de  uma cena já conhecida em várias partes do Brasil, seria votado, naquela tarde, o Plano Municipal de Educação,  e,  já  sabíamos  (por  debates  anteriores  e  pela  correlação  de  forças)  que  a  meta  que previa  formação  de  professores  nos  temas  de  gênero,  diversidade  e  orientação  sexual  seria retirada daquele Plano. Quais  os  argumentos  foram  acionados  para  não  garantir  aos/às  professores/professoras  o direito à formação em temas fundamentais para lidar com questões que atravessam o cotidiano escolar? Para somar­se aos/às vereadores/vereadoras de Campinas que votaram uma moção de repúdio à Simone de Beauvoir, escutamos acusações de que Karl Marx era o responsável por ter criado a perigosa teoria segundo a qual crianças devem ser educadas sem gênero. A “ideologia de gênero”, afirmavam, teve pai e data de nascimento: Karl Marx, por volta dos anos de 1886! A “ideologia de gênero” faria parte de um campo mais amplo de teorias, o “marxismo cultural”, e que  teria  como  objetivo  destruir  a  família  tradicional.  Faltou  apenas,  para  a  certidão  de nascimento ficar completa, dizer quem foi a mãe.

  Por  onde  começar  o  diálogo?  Uma  vereadora  reclamava  que  os  ruídos  que  brotavam  das galerias  não  permitiam  que  se  instalasse  ali  um  bom  debate.  O  “bom  diálogo”  não  estava prejudicado por esta razão, mas pela impossibilidade de se estabelecer um núcleo comum para se iniciar a conversa. Este núcleo comum deveria ser o Plano de Educação. Ou seja, o confronto de ideias seria estruturado a partir do que estava sendo proposto naquele documento. Embora não houvesse uma única linha que mencionasse “educação sexual para as crianças”, “banheiros sem  gênero”,  “educação  sem  gênero”,  foi  em  torno  destes  tropos  que  vereadores/vereadoras  se posicionaram  contrários  ao  Plano.  Para  o  sociólogo  Max  Weber,  as  relações  sociais  são estruturadas  quando  se  compartilham  intencionalidades  de  ações.  Ali,  portanto,  não  tinha como se compartilhar nada. O ruído, a ininteligibilidade não vinha das palavras de ordem dos manifestantes, e, sim, dos/das vereadores/vereadoras que negavam à escola a realização de sua http://revistacult.uol.com.br/home/2016/03/ignorancia­e­forca/

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promessa  histórica:  ser  um  espaço  onde  a  dúvida  e  a  criticidade  não  sejam  silenciadas  por medo de ferir dogmas religiosos. Ali, a ignorância em estado puro podia ser ouvida e vista. Embora  sejam  quase  risíveis  as  falas  dos/das  parlamentares  quando  evocavam  e  inventavam uma teoria e um pai, a imprensa local noticiou o debate sem aspear “ideologia de gênero”, sem ao  menos  fazer  um  box  para  explicar  para  a  sociedade  o  que  significa  gênero,  identidade  e orientação sexual. E, ao fazer isso, transformou em verdade, em força, a ignorância que ecoou naquela tarde. E qual a força que faz o poder da ignorância cessar? A liberdade da crítica, da dúvida, enfim, seria a escola o lugar idealizado para esta liberdade se efetivar, embora saibamos que  esta  instituição  tem  cumprido  historicamente  antes  o  trabalho  de  reprodução  dos estereótipos  de  gênero,  sexualidade  e  raça/etnia.  Embora  saibamos  que,  historicamente,  a escola seja reconhecida como um lugar de (re) produção de estigmas; também é ali um lugar de enfrentamentos,  de  fugas,  da  micropolítica.  E  o  debate  daquela  tarde  deixou  esta  disputa explícita. Em Oceania, a cidade imaginária criada por George Orwell, no livro 1984,  o  partido  tinha  três princípios que fundavam seu poder: Guerra é paz; Liberdade é escravidão; Ignorância é força. Com  estes  princípios,  o  partido  (ou  Grande  Irmão, Big Brother),  produzia  medos,  estatísticas falsas,  desaparecia  com  pessoas  dos  registros,  inventava  a  história,  criava  memória  e  apagava outras.  Foi  a  força  da  ignorância  que  venceu  aquela  votação.  Naquele  espetáculo  tragicômico, Eugène  Ionesco  teria  um  belo  laboratório  para  fazer  seu  teatro  do  absurdo.  A  ignorância,  a recusa à dúvida, a abertura para o mundo venceram. O que assistimos naquela tarde foi a um corpo  político  formado  por  vereadores/vereadoras  ignorantes  que  têm  poder  e  faz  de  sua própria ignorância o conteúdo último do seu poder. Tudo em nome de Deus. E, ali, descobrimos que a Oceania pode estar aqui. Certamente  a  ignorância,  esta  negação  ao  pensamento,  o  medo  de  pensar  o  pensamento,  o prazer pela repetição da repetição e, por fim, a recusa a qualquer autenticidade está em todos os lugares. No entanto, quando o/a ignorante tem poder para decidir os rumos da educação de uma  coletividade  por  vários  anos,  neste  momento,  não  resta  outra  alternativa  aos  seres  com “presença no mundo” (Paulo Freire) que desobedecer, negar qualquer legitimidade a este poder. Portanto,  vamos  continuar  fazendo  nossos  cursos  e  debates  sobre  diversidade  sexual,  gênero, orientação  sexual  e  nos  mobilizando  em  múltiplas  frentes  para  transformarmos  as  estruturas hierárquicas e assimétricas dos gêneros e das sexualidades. Quando eu saí da Câmara, conversei com uma ativista travesti, a mesma que escutei quando me aproximava do local, horas antes. Com os olhos cheios d’água, ela desabafava: Hoje uma amiga travesti foi agredida na escola. Ela tem apenas 16 anos. Todos os dias isso acontece. O que eles querem?  Eles  querem  que  a  gente  morra.  Mas  não  vamos,  não.  Os  professores  precisam  de formação nesses temas. Fui  para  casa  atravessada  pela  imagem  potente  daquela  ativista.  Ela  é  o  pesadelo  daqueles parlamentares ignorantes. Ela estava no espaço público, durante o dia, gritando sua existência. E  com  sua  “presença  no  mundo”  nos  ensina  que  o  antônimo  de  ignorância  não  é  erudição, instrução, ilustração, mas disposição ativa para transformação do mundo.

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