IGOR SOUZA SARAIVA FORMA LÓGICA E FIGURAÇÃO: UM ESTUDO SOBRE A TEORIA PICTÓRICA DE WITTGENSTEIN GOIÂNIA 2016

June 7, 2017 | Autor: Igor Souza | Categoria: Philosophy Of Language, Logic, Early Wittgenstein
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IGOR SOUZA SARAIVA

FORMA LÓGICA E FIGURAÇÃO: UM ESTUDO SOBRE A TEORIA PICTÓRICA DE WITTGENSTEIN

GOIÂNIA 2016

RESUMO A Teoria Pictórica é aquilo que é apresentado entre os aforismos 2.1 à 2.225 do Tractatus Logico-Philosophicus de Wittgenstein. Nestes aforismos, o filósofo parece apresentar uma reflexão acerca das condições lógicas de possibilidade da relação representativa. E assinala, dentre tais condições, que para que possa haver uma relação representativa entre uma representação e aquilo que esta representa é necessário que representação e representado compartilhem uma forma lógica em comum. Ao longo da primeira capítulo procuramos esclarecer o que o autor compreende por “forma lógica” e o papel que esta noção desempenha na teoria pictórica. No segundo capítulo estaremos interessados na questão pela possibilidade de compreender as proposições, em especial aquelas da linguagem natural, como uma figuração lógica das situações que descrevemos por meio destas proposições. Apontaremos que, embora uma proposição da linguagem corrente, tal como vem escrita, não pareça ser uma figuração lógica, tal aparência se deve por empregarmos uma notação que não nos permite reconhecer a complexidade do símbolo que é expresso por meio dos sinais utilizados. Investigaremos também as características essenciais de uma notação que seria capaz de espelhar o símbolo no sinal e deixar clara a natureza da representação proposicional, além da relação que é mantida entre a linguagem corrente e uma tal notação.

Sumário Introdução.............................................................................................................................................4 Capítulo 1- A NOÇÃO DE FORMA LÓGICA 1.1 A Ontologia Tractariana..................................................................................................................5 1.2 A Teoria Pictórica...........................................................................................................................6 1.3 O Método de Projeção....................................................................................................................9 1.4 Forma Lógica................................................................................................................................11 1.5 A Doutrina do Mostrar..................................................................................................................14 Capítulo 2 – TODA PROPOSIÇÃO É UMA FIGURAÇÃO LÓGICA 2.1 A Linguagem Natural e a Linguagem Completamente Analisada................................................16 2.2 As Proposições Elementares.........................................................................................................21 2.3 A proposição é uma Função de Verdade de Proposições Elementares.........................................26 Considerações Finais..........................................................................................................................32 Bibliografia.........................................................................................................................................34

Introdução Wittgenstein apresenta já no prefácio do Tractatus Logico-Philosophicus o tema e o objetivo geral que pretende alcançar com esta obra: O livro trata dos problemas filosóficos e mostra- creio eu- que a formulação desses problemas repousa sobre o mau entendimento da lógica de nossa linguagem.[...]O livro pretende, pois, traçar um limite para o pensar[...]. O limite só poderá, pois, ser traçado na linguagem, e o que estiver além do limite será simplesmente um contra-senso.(Wittgenstein, 2010, p. 131)

Assim, podemos dizer que o livro pretende dar uma solução definitiva aos problemas de natureza filosófica, delineando claramente o campo daquilo que pode ser pensado através da “lógica de nossa linguagem”, mostrando que os problemas filosóficos são pura e simplesmente contrassensos, que se apoiam em uma má compreensão do que seja a lógica de nossa linguagem. Para traçar esse limite, Wittgenstein, analisará o “mecanismo” através do qual a linguagem pode representar as situações que efetivamente representa, adquirindo um sentido. Esta análise se desenrola principalmente nos aforismos que vão de 2.1 à 2.225, onde o autor desenvolve aquilo que se tornou conhecido na literatura tractariana como Teoria Pictórica. O objetivo geral deste texto será apresentar a assim chamada teoria pictórica do Tractatus Lógico Philosophicus, mantendo o foco principalmente em desenvolver melhor uma interpretação do que seja a forma lógica, seu papel dentro desta teoria e da obra como um todo. Para cumprir tal objetivo primeiro adentraremos na ontologia tractariana. Após constatar que as figurações consistem em fatos do mundo, surgirá a questão de o que torna possível para um fato do mundo ser tomado como uma projeção de um outro fato diferente. A teoria pictórica será assim desenvolvida como uma teoria das condições necessárias para a relação representativa entre os fatos no mundo. No segundo capítulo pretendemos mostrar como as proposições que constituem a linguagem natural, ou “linguagem corrente” pra usar a terminologia de Wittgenstein, são também figurações lógicas das situações que descrevem, embora isso seja velado pela forma habitual de expressão dos sinais linguísticos.

CAPÍTULO 1 A Noção de Forma Lógica

1.1 A Ontologia Tractariana No grupo de aforismos 1, Wittgenstein caracteriza a noção geral de “mundo” afirmando, em primeiro lugar, que “O mundo é tudo o que é o caso.” 1 e que este é a “[...]totalidade dos fatos, não das coisas”2. Já nestes primeiros aforismos, deixando de lado se a expressão “coisas” deve, desde já, ser entendida como um termo técnico dotado de um significado preciso dentro do contexto do Tractatus, podemos compreender uma característica fundamental da ontologia desenvolvida na obra, a saber, os constituintes do mundo são ocorrências que podem apenas ser descritas por proposições completas e não algo que possa ser pura e simplesmente nomeado. Se lermos agora o aforismo 1.13, Wittgenstein afirma que “Os fatos no espaço lógico são o mundo.”. Ao longo de toda a obra Wittgenstein não fornece uma definição clara para o termo “espaço lógico”, que, no entanto, é fundamental para a compreensão do Tractatus. Podemos compreender o espaço lógico como um espaço de possibilidades que contém não apenas aquilo que de fato ocorre, a saber, o mundo, mas também tudo aquilo que não ocorre. Assim o mundo é a totalidade dos eventos que efetivamente ocorrem, circunscritos dentro de um espaço maior de possibilidades, que conteria tudo aquilo que de fato ocorre, mas também tudo aquilo que em princípio poderia ocorrer3. Uma característica que chama a atenção na ontologia tractariana é que o autor não termina sua análise ontológica nos constituintes últimos do mundo, a saber, os estados de coisas. Mas há neste livro a tentativa de desvendar, ou melhor, postular a estrutura interna destes constituintes, que se desenrola nos aforismos do grupo 2. Assim os dois primeiros aforismos deste grupo afirmam que “O que é o caso, o fato, é a existência dos estados de coisas. O estado de coisas é uma ligação entre objetos (coisas)”4. Desse modo, aquilo que em última instância constitui o mundo consiste, por sua vez, em uma combinação de “objetos” ou “coisas”. Esses objetos, cujas combinações formam os estados de coisas, não devem ser compreendidos no sentido habitual da palavra, isto é, como corpos físicos distribuídos ao longo do espaço-tempo. Pois: “Os objetos constituem a substância do mundo e por isso não podem ser 1 Tractatus logico-philosophicus, 1 2 Tractatus logico-philosophicus, 1.1 3 GLOCK, 1998,p. 136 4Tractatus logico-philosophicus, 2-2.01

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compostos.”5 E “A substância é aquilo que subsiste independente do que seja o caso.” 6. Ora, subsistir independentemente do que é o caso é subsistir de modo não condicionado a quais estados de coisas se encontram efetivados no mundo. Corpos espaço-temporalmente dispersos, tais como cadeiras ou mesas, não podem ser objetos tractarianos, uma vez que são compostos de partes que podem ser recombinadas de diferentes modos, fazendo com que estas coisas não subsistam independentemente de quais estados de coisas se encontram efetivados. Quando discutirmos a analogia entre proposições elementares e coordenadas espaciais, no segundo capítulo, iremos propor uma sugestão interpretativa para a noção tractariana de objeto. Por hora importa-nos apenas a ideia de que os elementos últimos do mundo consistem em eventos que não podem ser nomeados, mas apenas descritos por proposições completas.

1.2 A Teoria Pictórica Antes de compreendermos em que consiste a relação afigurativa mantida entre proposição e estado de coisas, precisamos considerar o seguinte: os sinais que compõem as proposições de fato expressas são eles mesmos estados de coisas efetivados no mundo. A proposição é da mesma natureza daquilo que representa. Mas o que torna possível que um fato do mundo possa ser tomado como estando por um outro fato distinto? O que há de comum em ambos os fatos que garanta essa possibilidade? Em suma, em que consiste a relação de figuração? Nos aforismos que vão de 2.1 a 2.225 Wittgenstein desenvolve aquilo que se torna conhecido na literatura tractariana como a teoria pictórica (FRASCOLLA, 2007, p.18). A teoria pictórica é uma teoria desenvolvida a partir de fatos fundamentais da nossa compreensão de figurações, como uma teoria das condições necessárias para a relação figurativa. Essa teoria busca dar uma resposta ao problema das condições de possibilidade de uma tal relação. Antes de tocar propriamente na questão da linguagem, no sentido mais habitual da palavra, isto é, como um sistema simbólico onde se compõem sentenças, Wittgenstein define um conceito mais geral, ao qual denomina de “figuração”(Bild). As figurações consistem em fatos que, de algum modo, representam outras situações (como por exemplo, uma maquete de um acidente de carro, um diagrama, etc.): “A figuração é um fato” 7 e “A figuração representa a situação no espaço lógico, a existência e a inexistência de estados de coisas.”8 5 Tractatus logico-philosophicus, 2.021 6 Tractatus logico-philosophicus, 2.024 7 Tractatus logico-philosophicus, 2.141 8 Tractatus logico-philosophicus, 2.11

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Podemos compreender qual é a situação projetada por uma determinada figuração, isto é, qual é o seu sentido, sem saber se essa situação de fato se dá no mundo, ou seja, sem que tenhamos que verificar o mundo para descobrir se ela corresponde ou não a maneira como as coisas estão. Pelo contrário, devemos compreender seu sentido para reconhecer a situação que a torna verdadeira. Para compreender corretamente uma figuração deve-se compreender como estaria o mundo caso ela fosse verdadeira. Não diríamos que alguém compreende a expressão “está chovendo!”, se costuma afirmá-la em um dia ensolarado e negá-la em um dia chuvoso. Portanto, toda figuração possui o sentido determinado anteriormente à sua verdade ou falsidade, de tal modo que apreender qual é a situação projetada por uma certa figuração, isto é, compreender quais situações tonariam a figuração falsa e quais a tornariam verdadeira, é condição necessária para que se determine seu valor de verdade. Mais do que uma condição necessária para que se compreenda o sentido de uma proposição, no Tractatus, compreender quais situações tornam uma figuração verdadeira e quais a tornam falsa é o mesmo que apreender o seu sentido. O sentido de uma proposição é definido como suas condições de verdade, isto é, situações que tornam a proposição verdadeira e situações que a tornam falsa.9 A figuração representa uma situação ao apresentá-la como a que se efetiva em detrimento de outras situações que tornariam falsa a figuração. Se a situação figurada ocorre, dizemos que a figuração é verdadeira e se não ocorre, que é falsa. Quais são as condições nas quais um fato do mundo pode ser uma figuração verdadeira de um outro fato? É somente na medida em que o fato figurante é um complexo que este possui a possibilidade de representar uma situação. Seus elementos constituintes devem estar articulados entre si de uma determinada maneira, e isto representa os elementos da situação afigurada estando uns para os outros dessa maneira. Se a maneira como os elementos da figuração estão dispostos corresponder efetivamente a maneira como estão os elementos que estes substituem, dizemos que a figuração é correta ou verdadeira, se não, dizemos que é incorreta ou falsa. Imaginemos duas figurações de um acidente de carro fictício: a primeira é uma maquete constituída por brinquedos coloridos e a segunda um diagrama simples 10. O acidente a ser figurado 9 Tractatus logico-philosophicus, 4.2 10 O exemplo a ser apresentado se baseia no comentário a teoria pictórica desenvolvido no capítulo 2 do livro Understanting Wittgenstein Tractatus(Frascolla), que por sua vez é baseado na seguinte afirmação contida nos cadernos 1914-1916: "In the proposition a world is as it were put together experimentally. (As when in the lawcourt in Paris a motor-car accident is represented by means of dolls, etc.†1) "(WITTGENSTEIN, 1998 , página 7). Parte desta afirmação constitui uma parte do aforismo 4.031 do Tractatus onde Wittgenstein remove a afirmação entre parenteses que justamente era aquilo que permitia a comparação de um modelo, tal como uma maquete a uma proposição. Utilizar de uma maquete para exemplificar o conceito geral de "Bild" conforme utilizado no Tractatus parece envolver alguns problemas teóricos. Podemos nos questionar, por exemplo, se os elementos do acidente automotivo realmente podem ser substituídos (no sentido que Wittgenstein confere ao termo "vertreten") por elementos de uma figuração ou se apenas os nomes simples que constituem as proposições elementares são capazes de substituir um objeto e que portanto apenas os objetos simples podem ser propriamente substituídos. Por outro

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ocorreu em um lugar qualquer e neste um carro de cor vermelha chocou-se com uma moto azul, arremessando o motorista da moto a, digamos, uma distância de três metros. Em nossa maquete tal situação será representada por brinquedos correspondentes a um carro vermelho, uma pessoa e uma moto azul. Os brinquedos substituirão os elementos relevantes do acidente, e no diagrama, este papel será feito pelas letras pretas “C”, “M” e “P”, onde “C” está pelo carro, “M” pela moto e “P” pelo motorista da moto. Na maquete poderá ser representada a disposição espacial dos veículos e do motorista através de uma escala, levando em conta três dimensões espaciais, além das cores destes. Por outro lado, nosso diagrama bidimensional e monocromático poderá representar apenas a disposição espacial dos elementos do acidente em duas únicas dimensões espaciais. Se nossa maquete dispõe seus elementos de tal maneira que suas cores correspondam as cores das coisas envolvidas no acidente e a posição espacial relativa de cada elemento da figuração corresponda a posição proporcionalmente relativa dos elementos do acidente, então consideramos a maquete como uma figuração correta. Se no entanto, erra nestes aspectos, ela é incorreta por figurar uma situação possível que, no entanto, não corresponde ao ocorrido. Por dispor de uma forma espacial e colorida, nossa maquete pode representar tudo aquilo que seja espacial e colorido no acidente. Nosso diagrama, por outro lado, só pode representar aquilo que é espacial no acidente, uma vez que seus elementos não podem se apresentar em diversas cores. É a existência de algo em comum entre o fato que afigura e o que é figurado que torna possível que um possa ser tomado como uma representação do outro. E aquilo que é comum à figuração e ao figurado Wittgenstein denomina “forma da afiguração”. A forma da afiguração é a possibilidade de que os elementos da situação afigurada estejam uns para os outros assim como estão os elementos da figuração. É um isomorfismo entre as possibilidades de representatividade da figuração e do afigurado que garante a possibilidade de um ser tomado como figuração de outro. A partir dos aforismos do grupo 3 Wittgenstein deixa parcialmente de lado o conceito geral de figuração para tratar de um conceito mais específico: a linguagem como a totalidade das proposições, e mostra que a linguagem deve ser compreendida como um tipo particular de figuração. “Fica muito clara a essência do sinal proposicional quando o concebemos composto não de sinais escritos, mas de objetos espaciais (digamos: mesas, cadeiras, livros). A posição espacial relativa dessas coisas exprime, nesse caso, o sentido da proposição”.11 lado, Wittgenstein parece pretender que a proposição elementar seja uma figuração puramente lógica do estado de coisas e menciona no aforismo 2.171 e 2.182 a possibilidade de uma “figuração espacial”. É difícil compreender o que o autor pretende denominar por “figuração espacial” se não modelos espaciais tais como maquetes. Não pretendo tratar de tais questões nesta monografia. Meu objetivo com o fornecimento de tais exemplos concretos é apenas tornar mais claro o conceito de forma lógica, uma vez que o próprio autor não nos fornece exemplos. 11 Tractatus logico-philosophicus, 3.1431

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Entretanto, o que haveria de comum entre o acidente automotivo, por exemplo, e as proposições que o descrevem corretamente? Essas são também figurações do acidente segundo a noção de “proposição” do Tractatus. Mas certamente não é uma forma colorida e espacial que as proposições compartilham com a situação figurada, pois na linguagem natural indicamos as cores através de adjetivos, uma classe de combinações de sinais que nada possuem em comum com as cores que significam, e apesar de distribuído no espaço, o sinal proposicional não se serve deste para afigurar espacialidade. Não encontramos, na linguagem natural, um correlato imediato para cada sinal significativo, de tal modo que a combinação entre os sinais linguísticos empregados de fato em uma frase possa mostrar uma combinação possível entre seus significados. Entramos assim, na questão de saber qual a posição da linguagem natural conferida pelo autor. Aqui entra o conceito de figuração lógica, que torna possível generalizar a noção de “figuração”, permitindo que as proposições sejam tomadas como casos particulares desta. Uma figuração pode representar tudo aquilo cuja forma ela compartilhe, assim uma figuração espacial pode afigurar tudo que seja espacial e uma colorida tudo que seja colorido, mas é a forma lógica aquilo que existe de comum em toda e qualquer figuração, seja ela espacial, colorida ou qualquer outra. Toda figuração é também uma figuração lógica. De modo que uma melhor compreensão do conceito de “figuração lógica” do Tractatus resulta em uma compreensão da essência da relação figuradora e consequentemente da natureza da representação proposicional do mundo. O que toda figuração, qualquer que seja sua forma, deve ter em comum com a realidade para poder de algum modo – correta ou falsamente – afigurá-la é a forma lógica, isto é, a forma da realidade. Se a forma de afiguração é a forma lógica, a figuração chama-se figuração lógica. Toda figuração é também uma figuração lógica.(No entanto, nem toda figuração é, p.ex., uma figuração espacial.)12

1.3 O Método de Projeção A questão de como propriamente a linguagem natural representa, por meio de suas sentenças, situações no espaço lógico envolve uma série de questões as quais só pretendo abordar na parte final deste texto. Como, por exemplo, a relação entre a notação da linguagem natural e uma notação constituída apenas de proposições elementares e operações vero-funcionais. A fim de melhor compreender a noção de “forma lógica” penso que primeiro devemos tratar de um problema mais simples. O problema de um sistema de notação que à primeira vista não compartilha uma 12 Tractatus logico-philosophicus, 2.18-2.182

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forma com as situações que afigura, aparece já em outros tipos de figuras mais rudimentares, como quando usamos retas no espaço para representar o intervalo temporal de eventos. Podemos traçar uma reta no espaço e utilizá-la como uma linha temporal, representando a distância temporal relativa entre dois ou mais eventos através da distância espacial dos elementos distribuídos ao longo da reta, chamemos essa notação de N13. Utilizarei aqui o exemplo dado por Griffin(1998, p.130-131). Suponhamos uma linha reta contendo dois pequenos objetos que denominarei a e b, a está por um determinado evento A e b por um outro evento B. a e b se encontram separados na linha por uma certa distância entre si, esta distância espacial entre estes elementos representa o intervalo temporal entre o evento A e o evento B. Assim temos um caso de uma figuração cujos elementos se distribuem no espaço representando um fato temporal. Isso seria possível, segundo a teoria pictórica, porque apesar da reta em questão não compartilhar com o fato temporal a sua forma temporal, isto é, seus elementos não podem se combinar de modos diversos ao longo do tempo, compartilham ainda assim uma mesma forma lógica. Cada elemento de uma pode ser mapeada sobre um elemento de outra, e os elementos de uma podem se combinar entre si tal como podem os elementos de outra. É importante notar, tal como faz Griffin(1998, p.131) que a linha no espaço tomada por si mesma como um fato no mundo, pode permitir certas combinações de elementos que, no entanto, não são capazes de figurar situação alguma. Essas combinações seriam aquilo que denominamos de “contrassensos”. Algo bastante análogo ocorre na linguagem natural. Se tomamos uma sentença da linguagem natural, tal como “Alfredo está pensando em um sorvete”, podemos recombinar as palavras desta sentença de tal modo que a combinação resultante não será capaz de vincular nenhum sentido, como por exemplo:“sorvete um pensando Alfredo está”. Para que uma figuração possa adquirir sentido, precisamos instaurar uma relação figuradora entre esta e a situação afigurada, coordenando os elementos da figuração com os elementos da situação que ela representa. Só após realizarmos essa coordenação, os elementos da figuração adquirirão as mesmas possibilidades de se combinarem entre si que os elementos da situação figurada possuem. Assim, tornamo-nos capazes de distinguir combinações que fazem sentido, de combinações que não passam de contrassensos. A essa coordenação entre os elementos da figuração e do figurado Wittgenstein denomina de método de projeção. Como estamos interessados em compreender o que torna possível que a reta espacial represente uma situação temporal, é mais interessante levar em consideração o fato de que, embora os elementos a e b possam se combinar entre si de modo que os eventos A e B não podem, todas as 13 Vale aqui o mesmo que foi levantado na nota 4 acerca do exemplo da maquete. Podemos dizer que um evento pode apenas ser representado por uma figuração completa e não meramente nomeado por um elemento da figuração(Tractatus logico-philosophicus, 3.144).

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possíveis combinações temporais de A e B podem ser representadas por meio da disposição de a e b na reta. Assim, ao tomarmos a notação N como um sistema por meio do qual representamos a disposição relativa de A e B no tempo, e através de um método de projeção coordenarmos os elementos da reta com os eventos em questão, subscrevemos certas combinações possíveis de a e b que são isomorfas a todas as combinações possíveis de A e B, e separamos as combinações que efetivamente representam algo das que são pura e simplesmente contrassensos. Mas o quê é compartilhado entre uma certa configuração de a e b, nesta notação, e a situação que eles podem representar? Por certo não são relações espaciais, já que a notação N não foi concebida para representar a distância espacial entre A e B, e também não são relações temporais, já que o tempo é irrelevante neste tipo de notação, que podemos chamar de “estática”. Mas sim suas relações lógicas. Relações lógicas são relações internas mantidas entre coisas em virtude tão somente de sua forma lógica.

1.4 Forma Lógica Poucas são as sentenças do Tractatus Logicus Philosophicus que explicitamente se refiram ao conceito de forma lógica. No artigo Some Remarks On Logical Form, Wittgenstein afirma que a forma lógica é aquilo que remanesce ao substituirmos todos os elementos de uma proposição por variáveis. A ideia de substituir os constituintes de uma proposição também aparece no Tractatus. Wittgenstein diz em 3.315, que ao substituirmos algum nome em uma proposição por uma variável, há uma classe de proposições formada por todas as proposições que poderiam resultar da substituição da variável por um nome. Se substituirmos todos os constituintes de uma proposição por uma variável, continua havendo uma tal classe de proposições. Esta classe de proposições é, segundo Wittgenstein, correspondente a uma forma lógica, que é aquilo que há de comum entre todas as proposições da classe. Penso ser proveitoso para compreender a noção de “forma lógica” falarmos brevemente sobre uma caracterização das propriedades geométricas das figuras, feita por Cassirer. Ernst Cassirer, em um artigo de 1944 intitulado “The concept of groups and the theory of perception” pretende mostrar como novas questões acerca da percepção, principalmente da percepção visual, e da geometria estão intrinsecamente relacionadas. O que nos interessa no artigo não é exatamente o conceito de grupos ou a teoria da percepção, mas algumas considerações acerca da geometria e da natureza das propriedades geométricas dos objetos, escritas na seção II do artigo de Cassirer com base em escritos de Felix Klein. 11

Segundo Klein, nem toda descrição de um objeto espacial é, apenas por ser descrição de um objeto espacial, uma caracterização geométrica. Ao descrever a forma espacial de um objeto tomado em sua individualidade, fornecemos, no máximo, as suas propriedades topográficas. Reproduzo aqui a citação do texto de Klein feita por Cassirer, para a qual o autor não forneceu uma referência, e em seguida cito Cassirer14: As propriedades geométricas de qualquer figura devem poder ser descritas em termos de fórmulas que permanecem inalteradas quando mudamos o sistema de coordenadas."[...] A geometria trata apenas daquelas propriedades das figuras espaciais que não dependem da localização e da magnitude absoluta das figuras; ela não distingue entre as propriedades de um corpo e as de sua imagem produzida em um espelho.(CASSIRER, 1944, p.6).

Podemos compreender a partir dos trechos acima citados que as propriedades de uma figura que são genuinamente relevantes para a geometria são aquelas que permanecem intactas mesmo quando projetamos uma figura de um sistema de coordenadas para um outro sistema de coordenadas. Assim, podemos por exemplo, mapear uma certa figura geométrica α de um certo sistema de pontos para um outro sistema de pontos, através de uma regra de tradução que permita projetar figuras de um sistema para outro. Assim obteremos uma outra figura β como função de nossa regra de tradução. A figura β pode diferir da figura α em termos de várias propriedades, de acordo com a regra de tradução que utilizamos, ela pode ser maior ou menor, estar inclinada em relação a figura α, etc. Contudo, as propriedades que seriam geometricamente relevantes em nossas duas figuras em questão são aquelas que permaneceriam invariantes no processo de tradução em ambas as figuras. O ponto que estou querendo marcar aqui é a semelhança entre essa caracterização das propriedades geométricas com a que faz Wittgenstein acerca da forma lógica. Relembro aqui os aforismos 4.014 e 4.0141: O disco gramofônico, a idéia musical, a escrita musical, as ondas sonoras, todos mantêm entre si a mesma relação interna afiguradora que existe entre a linguagem e o mundo. A construção lógica é comum a todos. (Como, no conto, os dois jovens, seus dois cavalos e seus lírios. Todos são, em certo sentido, um só.) Que haja uma regra por meio da qual o músico possa extrair a sinfonia da partitura, uma por meio da qual se pode derivar a sinfonia dos sulcos do disco e, segundo a primeira regra, derivar novamente a partitura, é precisamente nisso que consiste a semelhança interna dessas configurações, que parecem tão completamente diferentes. E essa regra é a lei de projeção, lei que projeta a sinfonia na linguagem das notas. É a regra de tradução da linguagem das notas na linguagem do disco gramofônico. 15 14 Tradução minha. 15 Tractatus logico-philosophicus, 4.014-4.0141

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Nestes aforismos Wittgenstein afirma que o disco gramofônico, a escrita musical e as ondas sonoras(entre outras coisas) possuem entre si a mesma relação afiguradora que existe entre a linguagem e o mundo. Pois, há uma regra de tradução, através da qual estes elementos podem ser extraídos um do outro. Certamente a sinfonia, a partitura e o disco diferem entre si em muitos aspectos. Mas, afirma Wittgenstein, “A construção lógica é comum a todos” e “[...]todos mantêm entre si a mesma relação interna afiguradora que existe entre a linguagem e o mundo”. Ora vimos que para que a linguagem possa afigurar o mundo, é condição necessária que partilhem entre si uma mesma forma lógica. Assim não há porque hesitar em afirmar: a sinfonia, a partitura e o disco partilham entre si a mesma forma lógica. Esta forma lógica é aquilo que permanece invariante no processo de tradução da sinfonia para o disco ou para a partitura. No verbete “Forma Lógica”, Glock, em seu dicionário de conceitos da filosofia de Wittgenstein, afirma que “a forma lógica de uma proposição é sua estrutura tal como parafraseada na lógica formal[...]”(Glock, 1998, p.178). Para obter a forma lógica de uma proposição precisamos substituir seus elementos por variáveis. No texto citado Glock utiliza, como exemplos, fórmulas do cálculo de predicados com relações. Podemos, segundo Glock, substituir os elementos da proposição “Platão ama Sócrates” e obter a forma lógica “xΦy”. Wittgenstein, no entanto, é enfático ao dizer que a forma aparente de uma proposição, tal como vem escrita na linguagem natural, não tem que ser sua forma lógica real pois “A linguagem é um traje que disfarça o pensamento. E, na verdade, de um modo tal que não se pode inferir, da forma exterior do traje, a forma do pensamento trajado.”16. A forma lógica real da proposição que é escondida pela notação da linguagem natural é, por si mesma, um tema bastante extenso e será abordado apenas no capítulo seguinte. Por agora, fica apenas marcado o seguinte ponto: para obter a forma lógica de uma proposição devo substituir seus elementos por variáveis. Mas, qual a relação entre a sequência de sinais resultantes desse processo de abstração e a forma lógica? Wittgenstein afirma nos aforismos 4.12 e 4.121 que a forma lógica não pode ser ela mesma representada por uma proposição, ao invés disso, cada proposição exibe a sua forma lógica como condição necessária para que represente o seu sentido. A proposição pode representar toda a realidade, mas não pode representar o que deve ter em comum com a realidade para pode representá-la – a forma lógica. Para podermos representar a forma lógica, deveríamos poder-nos instalar, com a proposição, fora da lógica, quer dizer fora do mundo. A proposição não pode representar a forma lógica, esta forma se espelha na proposição. O que se espelha na linguagem, esta não pode representar. 16 Tractatus logico-philosophicus, 4.002

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O que se exprime na linguagem, nós não podemos exprimir por meio dela. A proposição mostra a forma lógica da realidade. Ela a exibe. 17

Assim, a sequência de variáveis que resulta da substituição de todos os elementos de uma proposição por uma variável não pode ser uma proposição que figura a forma lógica, tal como proposições fazem com estados de coisas. Na seção seguinte apresentarei aquilo que Griffin denomina de “A doutrina do mostrar”, a qual penso, resolve o problema em questão.

1.5 A Doutrina do Mostrar Wittgenstein aparentemente introduz a distinção entre dizer e mostrar para dar uma explicação satisfatória do caráter próprio das proposições da lógica, isto é, das tautologias e contradições. Estas não consistem em proposições dotadas de sentido, uma vez que não separam entre os estados de coisas que as tornariam verdadeiras e os estados de coisas que as tornariam falsas e portanto não figuram uma situação no espaço lógico. Pelo contrário, tautologias são verdadeiras para qualquer situação possível e contradições são falsas para qualquer situação. Wittgenstein distingue as tautologias e contradições de contrassensos. Uma tautologia não consiste em uma combinação absurda de sinais, mas em uma combinação legítima onde operações de verdade se anulam umas as outras, resultando em uma combinação de símbolos que não vinculam um conteúdo assertivo. Mas qual é, afinal, a importância destas combinações de símbolos se não nos fazem conhecer que um certo estado de coisas é efetivo, isto é, se não nos dão nada a conhecer sobre o mundo? Tautologias e contradições não dizem nada, entretanto sua estrutura assim constituída nos mostra algo: Que as proposições da lógica sejam tautologias, isso mostra as propriedades formais – lógicas – da linguagem, do mundo. Que suas partes constituintes, assim enlaçadas, resultem numa tautologia, isso caracteriza a lógica de suas partes constituintes. Para que proposições, enlaçadas de determinada maneira, resultem numa tautologia, elas devem ter determinadas propriedades estruturais. Que assim ligadas resultem numa tautologia, portanto, mostra que possuem estas propriedades estruturais. 18

Talvez Wittgenstein tenha inserido a distinção entre dizer e mostrar para dar conta do “conteúdo cognitivo” das proposições da lógica, mas mesmo que este seja o caso é certo que o 17 Tractatus logico-philosophicus, 4.12-4121 18 Tractatus logico-philosophicus, 6.12

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âmbito da distinção não se restringe a isso. Uma proposição bipolar também exibe a sua forma lógica que determina as suas propriedades lógicas, com a única ressalva de que ao contrário das proposições da lógica, o valor de verdade das proposições bipolares não é determinado puramente em virtude de sua forma. É necessário não confundir forma com estrutura. Wittgenstein afirma nos aforismos 2.031, 2.032 e 2.033 que a forma de um estado de coisas é a possibilidade de sua estrutura. Embora o autor esteja se referindo nos aforismos 2.031 e 2.032 aos estados de coisas, a afirmação contida em 2.033 é geral: “A forma é a possibilidade da estrutura”. Uma questão que pode-se levantar, dado este aforismo, é: cada estrutura possui a sua própria forma, ou ao contrário, existem diversas estruturas com uma forma em comum? A questão não pode aqui ser tratada com a atenção que merece, entretanto, como seria possível que houvesse estruturas isomorfas entre si, se estas não compartilhassem a forma em comum? É porque a situação figurada e a proposição que a representa são estruturas que possuem a mesma forma lógica, que é possível que a proposição seja tomada como uma figura daquilo que representa. Voltemos ao exemplo concreto de uma sinfonia e a sua partitura. Imaginemos uma partitura muito simples, formada apenas de três elementos, cada um dos quais representando uma nota a ser tocada. O músico que realiza a leitura da partitura, sabe qual é a nota significada por cada um dos símbolos da partitura. Portanto, ele pode olhar para a partitura composta por três elementos e compreender, a partir de como esses elementos são articulados entre si, como ele deve articular os elementos da sinfonia para que esta possa efetivamente corresponder a sua partitura. Se substituirmos cada um dos símbolos de nossa simples partitura por uma variável, teremos uma sequência tal como “xyz”. Esta sequência não precisa, necessariamente, conter elementos próprios do cálculo de predicados tais como símbolos gerais para relações. Basta que os sinais “x”,“y” e “z” estejam de um certo modo articulados entre si de tal modo que o sinal “x” esteja para o sinal “y” assim como o sinal “y” está para o sinal “z”, sem que precisemos necessariamente escrever algo tal como “xRyRz”. Se imaginarmos agora que não queremos mais uma notação que nos permita figurar uma sinfonia, mas uma espécie de metalinguagem que nos permita representar a própria partitura, podemos usar a mesma forma lógica que usamos para representar a sinfonia, dessa vez para representar a própria partitura, que por sua vez representa a sinfonia. Isto é possível porque esta forma é comum tanto entre a sinfonia e a partitura, quanto entre nossa nova notação, a sinfonia e a partitura. No capítulo seguinte levantaremos a questão pela possibilidade de se conceber as proposições da linguagem natural como figurações lógicas das situações que representam. 15

Capítulo 2 Toda Proposição é uma Figuração Lógica

2.1 A Linguagem Natural e a Linguagem Completamente Analisada Agora possuímos uma ideia mais clara do que seja a forma lógica de uma proposição que é partilhada pela situação que a proposição descreve. Para tratarmos a representação como efetivamente uma representação de uma situação instauramos um método de projeção. O método de projeção consiste em uma regra segundo a qual os elementos da situação que representamos devem corresponder aos elementos da representação. Desse modo, transformamos a estrutura da situação representada na estrutura da representação. A forma lógica é aquilo que permanece invariante ao longo desta transformação por meio da projeção. A possibilidade da projeção é a condição necessária para a relação representativa e é assegurada tão somente pela existência de uma forma lógica comum entre as estruturas em questão. Podemos, agora, voltar a questão de como é possível que as proposições da linguagem natural representem a situação que elas descrevem. Uma dificuldade a mais é adicionada a esta questão, em relação a questão de como é possível que uma partitura represente a sinfonia ou que uma reta no espaço represente o intervalo temporal entre eventos. Pois embora a partitura não compartilhe sua forma espacial ou temporal com a sinfonia, vimos que não é difícil mostrar como ainda assim devem partilhar a mesma forma lógica. Aos elementos da partitura é possível realizar um mapeamento um a um para com os elementos da sinfonia de tal modo que tanto sinfonia quanto partitura possuem o mesmo número de elementos. Igualmente, é possível mostrar que os elementos da partitura se articulam entre si de um modo determinado e isto mostra como os elementos da sinfonia devem estar articulados para que essa possa corresponder adequadamente à partitura. Assim, é óbvio que há a possibilidade de uma regra de projeção que nos permita projetar a sinfonia a partir da partitura. As sentenças da linguagem natural, por outro lado, não parecem compartilhar uma forma lógica comum com, por exemplo, um certo acidente automotivo que elas descrevem. Pois não podemos correlacionar cada elemento da proposição da linguagem natural a um elemento do acidente a ser descrito. Assim parece tentador adotar a posição de que o Tractatus trataria das condições para uma linguagem ideal, capaz de expressar todo o sentido, e que a linguagem corrente não seria ela mesma, estritamente adequada para expressar sentido algum. Talvez tenha sido o fato de que as proposições da linguagem natural não parecem atender aos critérios que Wittgenstein impõe para que algo possa ser uma figuração, que tenha levado 16

Bertrand Russell a posição de que: Importam ao Sr. Wittgenstein as condições de uma linguagem logicamente perfeita- não que alguma linguagem seja logicamente perfeita, ou que nos acreditemos capazes de construir, aqui e agora, uma linguagem logicamente perfeita, mas toda a função da linguagem é ter significado, e ela só cumpre essa função na medida em que se aproxima da linguagem ideal que postulamos.(RUSSELL, 2010, p.114)

Neste trecho, Russell parece atribuir a Wittgenstein uma posição gradualista do significado das proposições da linguagem, onde uma linguagem adquiriria significado “na medida em que se aproxima da linguagem ideal que postulamos”, de tal modo que seria possível dizer de uma certa linguagem que esta possui mais ou menos sentido que uma outra, conforme se aproximasse mais ou menos da “linguagem ideal” postulada pelo Tractatus. Para Russell a questão pela essência da representação proposicional não é a questão pelos atributos essenciais de toda e qualquer linguagem possível ou real, mas a questão pelos atributos de uma linguagem ideal que atuaria como um padrão para determinar o quanto uma dada linguagem real é capaz de cumprir sua função de “ter significado”. Ora, segundo Luiz Henrique, tal posição contraria diretamente um dos alicerces fundamentais do Tractatus, a saber, o princípio da completa determinação do sentido. Se uma proposição tem sentido, ela tem um sentido inteiramente determinado. Se uma cadeia de sinais não exprime um sentido inteiramente determinado, simplesmente não é uma proposição. Se estivesse correto o diagnóstico de Russell relativo à inaptidão da linguagem corrente para exprimir sentidos bem definidos, então, concluiria Wittgenstein, a linguagem corrente seria pura e simplesmente incapaz de exprimir qualquer sentido.(SANTOS, 2010, p.68)

E não é difícil encontrar no próprio Tractatus aforismos que contrariem diretamente, ou indiretamente, a posição de Russell: “De fato, todas as proposições de nossa linguagem corrente estão logicamente, assim como estão, em perfeita ordem.” 19. E “o homem possui a capacidade de criar linguagens com as quais se exprime todo sentido”20, etc. Luiz Henrique procura ainda diagnosticar o erro de Russell: Se a Russell parece difícil conferir pleno direito de cidadania lógica à linguagem comum, é porque lhe escapa a distinção entre símbolo e sinal, proposição e sinal proposicional- enfim, a boa e velha distinção filosófica entre fundo essencial e superfície aparente(SANTOS, 2010, p.69).

A distinção entre sinal e símbolo é feita de tal modo no Tractatus: o sinal é aquilo que é material e perceptível na proposição21. O símbolo é o sinal no contexto da relação projetiva. 19 Tractatus logico-philosophicus, 5.5563 20 Tractatus logico-philosophicus, 4.002 21 Tractatus logico-philosophicus, 3.32

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Aparentemente, o sinal escrito não caracteriza a identidade do símbolo, pois tanto é possível que o mesmo símbolo seja empregado via diversos sinais, quanto que ao mesmo sinal em diversos contextos correspondam diversos símbolos22. Embora a linguagem corrente não pareça compartilhar a multiplicidade lógica e matemática com as situações que descrevem, tal aparência se deve por empregarmos, na linguagem corrente, sinais que não nos permitam reconhecer imediatamente o símbolo por meio do sinal. Para isso devemos nos atentar para o seu uso significativo: “O que não vem expresso nos sinais, seu emprego mostra. O que os sinais escamoteiam, seu emprego denuncia” 23. “Para reconhecer o símbolo no sinal, deve-se atentar para o uso significativo”24. Aquilo que precisamos não é de uma linguagem ideal que seria capaz de expressar sentidos que a linguagem natural não pode, mas apenas de uma notação ideal capaz de permitir que reconheçamos o símbolo no sinal.(GLOCK, 1998, p. 45). Na linguagem natural, usamos o mesmo sinal(uma palavra) para designar de modos diferentes, de tal modo que a palavra pertença a símbolos diferentes. Desse modo a linguagem natural não nos permite, por uma simples inspeção do sinal, reconhecer o símbolo expresso: Na linguagem corrente, acontece com muita frequência que uma mesma palavra designe de maneiras diferentes- pertença, pois, a símbolos diferentes – ou que duas palavras que designam de maneiras diferentes sejam empregadas, na proposição, superficialmente do mesmo modo. Assim, a palavra “é” aparece como cópula, como sinal de igualdade e como expressão de existência; “existir”, como verbo intransitivo, tanto quanto “ir”; “idêntico”, como adjetivo; falamos de algo, mas também de acontecer algo. (Na proposição “Rosa é rosa” – onde a primeira palavra é um nome de pessoa, a última é um adjetivo – essas palavras não têm simplesmente significados diferentes, mas são símbolos diferentes.)25

Em 3.325 Wittgenstein diz que para evitar equívocos decorrentes de empregarmos o mesmo sinal para símbolos distintos devemos empregar uma notação que os exclua. E diz entre parenteses que a ideografia de Frege e Russell é uma tal notação, mas que todavia não chegar a excluir todos os erros. Podemos nos perguntar porque a notação de Frege e Russell é “uma tal notação”, capaz de excluir pelo menos alguns erros decorrentes do emprego do mesmo sinal para símbolos distintos e ainda assim não é capaz de excluir a totalidade dos erros. Em 4.04 Wittgenstein parece impor um critério para uma notação capaz de exibir a forma lógica daquilo que figura: “Deve ser possível distinguir na proposição tanto quanto seja possível distinguir na situação que ela representa. Ambas devem possuir a mesma multiplicidade lógica (matemática).” Ora, a linguagem natural não exibe nos sinais empregados a multiplicidade lógica e 22 Tractatus logico-philosophicus, 3.321 23 Tractatus logico-philosophicus, 3.262 24 Tractatus logico-philosophicus, 3.26 25 Tractatus logico-philosophicus, 3.323

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matemática daquilo que representa. Pois várias situações distintas poderiam tornar verdadeira uma certa proposição da linguagem natural. Assim, uma proposição aparentemente simples como “O círculo vermelho está dentro do quadrado” pode ser tornada verdadeira por uma série de situações distintas. Tal proposição é tornada verdadeira caso o círculo vermelho se encontre no centro do quadrado, ou em um certo canto ou infinitas outras possibilidades. Desse modo uma tal proposição não é dotada de uma única condição de verdade singular, mas de uma variedade de condições de verdade. Na linguagem natural não há uma única proposição para cada condição de verdade. Ainda que as notações de Frege ou Russell visem eliminar os possíveis erros inferenciais decorrentes de empregar o mesmo sinal para símbolos distintos ou empregar do mesmo modo sinais que designam de forma diferente, vale para as proposições escritas nessas notações o mesmo que para a linguagem natural. A superfície visível das sentenças nestas notações, isto é, os sinais, não mostram a complexidade lógica real do sentido que exprimem, de tal modo que seja “possível distinguir na proposição tanto quanto seja possível distinguir na situação que ela representa”. Assim, as notações de Frege e Russell não são suficientes para reconhecer no sinal a complexidade real do símbolo. Mas se não é a proposição da linguagem corrente tal como vem escrita que nos deixa ver a complexidade real do sentido por ela expressa, e nem mesmo as fórmulas que constituem a ideografia, que proposições são essas cuja superfície material exibe claramente a forma lógica que ela compartilha com a situação que ela representa? Ora vimos que os constituintes últimos do mundo, que são descritos pelas proposições, segundo a ontologia tractariana são os estados de coisas. Se o estado de coisas é aquilo que corresponde a uma proposição, pois é a ocorrências destes que determina o valor de verdade de uma proposição, deve então haver, em princípio, proposições capazes de representar um estado de coisas singular no espaço lógico, uma situação possível mínima que não pode mais ser decomposta em termos de situações ainda mais simples. Tais proposições Wittgenstein denomina de “elementares” ou “completamente analisadas”. “A proposição mais simples, a proposição elementar, assere a existência de um estado de coisas”26. Mas se uma figuração deve necessariamente ser complexa, sendo dotada de diversos elementos configurados entre si de uma maneira determinada de tal modo que o arranjo destes elementos espelhem o arranjo dos elementos da situação representada, então o estado de coisas figurado deve ele mesmo ser dotado de uma certa complexidade interna. O estado de coisas deve, por sua vez, ser em algum sentido composto por certos elementos. Tais elementos, como vimos na seção sobre a ontologia tractariana, são denominados “objetos”. Os objetos não podem eles mesmos 26 Tractatus logico-philosophicus, 4.21

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ser ocorrências espaço-temporais, pois desse modo eles seriam situações dotadas de extensão que admitiriam ser analisadas em termos de situações ainda mais simples. A relação de “composição” que parece ser traçada por Wittgenstein entre o estado de coisas e objeto, certamente não pode ser confundida com a relação parte e todo que se dá entre corpos espaciais. Assim, os objetos devem ser simples, uma vez que não dotados de complexidade espacial e temporal que possa ser descrita por uma proposição. Mas porque devem haver objetos não dotados de forma alguma de complexidade? Nos aforismos 2-2.063 Wittgenstein pretende caracterizar a natureza dos objetos. Como vimos no primeiro capítulo, nestes aforismos Wittgenstein alega que os objetos são a substância do mundo, isto é, são aquilo que subsiste independentemente de quais estados de coisas são efetivados no mundo e por isso devem ser simples 27. Em 2.0211 e 2.0212 o autor parece nos fornecer, ainda que sem muitos detalhes, um argumento para demonstrar a necessidade de que hajam objetos simples: “Se o mundo não tivesse substância, ter ou não sentido uma proposição dependeria de ser ou não verdadeira uma outra proposição. Seria então impossível traçar uma figuração do mundo(verdadeira ou falsa).”28 Uma vez que a proposição é uma figuração, a proposição deve ser complexa. Seus elementos estão arranjados de um modo definido e isto representa os elementos da situação afigurada pela proposição estando combinados de um certo modo. Assim como a proposição, o estado de coisas que é representado deve ser um complexo de elementos. Ora, se os elementos que compõem os estados de coisas fossem eles mesmos complexos, então haveria uma proposição que afirmaria a existência de tais elementos ao representar sua configuração. A verdade de uma tal proposição seria uma condição de possibilidade do sentido da proposição que descreve o estado de coisas. Mas se os elementos que compõem os estados de coisas ainda consistissem em uma configuração, esta configuração seria também uma combinação entre elementos ainda mais simples, que, por sua vez, poderiam ainda ser analisados. Haveria uma outra proposição que descreveria a existência dos elementos que se combinam para formar aqueles elementos que, por sua vez, compõem o estado de coisas. E mais uma vez a verdade de uma tal proposição seria condição de possibilidade do sentido da proposição que afirma a existência não só do estado de coisas mas também dos elementos que entram na combinação do estado de coisas. Tal processo se repetiria ad infinitum se não houvessem objetos absolutamente simples cuja combinação consistisse em um estado de coisas singular, isto é, um estado de coisas que não pode ser analisado em termos de outros estados de coisas ainda mais simples. Desse modo, para cada proposição dada haveria uma outra proposição cuja verdade é condição de possibilidade do sentido da proposição dada. Nenhuma 27 Tractatus logico-philosophicus, 2.021 28 Tractatus logico-philosophicus, 2.0211- 2.0212

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proposição poderia ser dotada de sentido. Para que proposições possam possuir sentido, deve haver algo de fixo e subsistente capaz de determinar de uma vez por todas o sentido de toda proposição possível. Este algo fixo é precisamente aquilo que Wittgenstein denomina “objetos”.

2.2 As Proposições Elementares Uma vez que estejamos certos em afirmar que: a possibilidade de correlacionar os elementos de uma estrutura nos elementos de outra, através de um mapeamento um a um, é uma condição necessária para que duas estruturas partilhem sua forma lógica, e também que o estado de coisas seja pura e simplesmente uma concatenação entre objetos simples e nada além disso, então a proposição que compartilha a forma lógica com o estado de coisas não deve conter nada mais do que sinais simples que se referem diretamente aos objetos que compõem os estados de coisas. “Um nome toma o lugar de uma coisa, um outro, o de outra coisa, e estão ligados entre si, e assim o todo representa- como um quadro vivo- o estado de coisas.” 29. A proposição elementar não deve conter predicados, mas deve ser pura e simplesmente uma combinação de nomes que se referem aos objetos simples. Caso contrário, não saberíamos com o que correlacionar o elemento predicativo. A proposição elementar seria, nesse caso, dotada de um elemento supérfluo. Tampouco a proposição elementar deve conter algum sinal para designar relações entre elementos. Pois a presença de uma relação entre os objetos não é representada na proposição por um sinal geral para designar a relação, mas tão somente pelo arranjo dos nomes. “Não:'O sinal complexo 'aRb' diz que a mantém a relação R com b', mas: que 'a' mantenha uma certa relação com 'b' diz que aRb”30. A notação musical não se serve de símbolos para relações a fim de representar a articulação dos sons na sinfonia. É apenas a articulação entre os elementos da partitura que representa as relações entre os elementos da sinfonia. Sinais para relações não são componentes essenciais da proposição que caracterizem o seu sentido e podem, portanto, ser eliminados. A proposição elementar é uma figuração, pois representa a subsistência de um estado de coisas. Toda figuração é, antes de mais nada, uma figuração lógica. A proposição elementar é portanto, uma figuração lógica de um estado de coisas. A proposição elementar deve ser composta apenas por nomes. A cada nome na proposição elementar deve corresponder um objeto do estado de coisas representado. Na proposição elementar os nomes estão articulados entre si de um modo definido, dizemos então que ela possui uma estrutura. O modo como os nomes estão estruturados para formar a proposição elementar mostra o modo como os objetos, no estado de coisas, têm de 29 Tractatus logico-philosophicus, 4.0311 30 Tractatus logico-philosophicus, 3.1432

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estar estruturados para formar o estado de coisas. O objeto é simples. Não é, portanto, um evento espaço-temporal que possa ser representado. O objeto deve estar fora do espaço-tempo. O sinal proposicional por meio do qual representamos o estado de coisas consiste em um fato. Embora o modo como os sinais se distribuem no espaço não seja essencial para caracterizar o sentido da proposição elementar, ainda assim é no espaço-tempo que os sinais estão de um certo modo articulados. O modo como os sinais estão articulados nos permitem reconhecer a proposição no sinal proposicional. Os sinais simples, constituem o sinal proposicional da proposição elementar. O sinal simples, é, desse modo uma parte do sinal proposicional em sentido literal(assim como um corpo espacial é parte de outro). Mas os objetos, residindo fora do espaço e do tempo, não podem ser partes espaciais dos estados de coisas, tal como os sinais simples são partes espaciais do sinal proposicional. Desse modo parece razoável dizermos que a proposição elementar não pode compartilhar literalmente a sua configuração(estrutura) com o estado de coisas que representa. Para sermos mais precisos deveríamos dizer que a estrutura da proposição elementar e a estrutura do estado de coisas, que corresponde à proposição, compartilham a mesma forma entre si. Suponhamos que [a,b,c] seja uma proposição elementar devidamente constituída e que portanto afirme a existência de um único estado de coisas. Uma vez que estabeleçamos uma projeção entre a proposição [a,b,c] e o estado de coisas por ela figurado, coordenamos seus elementos, os nomes, aos objetos que compõem o estado de coisas. Cada nome deve, no contexto da proposição elementar, adquirir as possibilidades combinatórias do objeto que substitui. A possibilidade do nome se combinar com outros nomes para compor estruturas, chamamos de forma do nome. Igualmente a possibilidade do objeto se combinar com outros objetos para compor estados de coisas, chamamos de forma do objeto. É somente por poder se combinar com outros nomes do mesmo modo que o objeto pode se combinar com outros objetos, ou seja, por compartilharem a forma, que um nome pode substituir um objeto. Na proposição elementar combinamos os nomes entre si: [a,b,c]. A esta combinação entre nomes na proposição corresponde uma combinação entre os objetos. Se a combinação entre objetos que é descrita pela proposição ocorre, dizemos que a proposição é verdadeira, se não ocorre que é falsa. No contexto da proposição elementar, o nome “a” deve poder se combinar com outros nomes de objetos assim como o objeto designado pelo nome pode se combinar com outros objetos. Se “a” pode se combinar com “b” e “c” para formar uma proposição elementar com sentido, então os objetos correspondentes a tais nomes devem poder se combinar para formar um estado de coisas correspondente a proposição. Para pensarmos a relação entre a proposição elementar e o estado de coisas por ela figurado podemos nos servir de uma outra analogia com a geometria que entra em cena no Tractatus. Dessa vez nos aforismos do grupo 3 que visam tratar sobre a natureza da proposição elementar. 22

Wittgenstein compara o estado de coisas com um “lugar lógico” que é determinado pela proposição. Assim como uma sequência de coordenadas são utilizadas na geometria para determinar um ponto no espaço tridimensional, a proposição, combinação de nomes, deve determinar um “lugar lógico” no espaço lógico. A existência do lugar lógico é garantida tão somente pela existência dos nomes 31. Desse modo, “Representar na linguagem algo que ‘contradiga as leis lógicas’ é tão pouco possível quanto representar na geometria, por meio de suas coordenadas, uma figura que contradiga as leis do espaço; ou dar as coordenadas de um ponto que não exista”32. A proposição elementar está para o estado de coisas assim como um ponto no espaço está para as coordenadas que lhe correspondem. Assim como não podemos utilizar coordenadas para nos referirmos a um ponto que não existe, tampouco podemos, por meio de uma proposição dotada de sentido, representar um estado de coisas que não se encontra no espaço lógico, isto é, um “estado de coisas impossível”. Nos aforismos onde Wittgenstein claramente traça analogias entre a lógica e a geometria, a saber os aforismos 3.032, 3.0321, 3.4, 3.41 e 3.411, o filósofo não parece sugerir que tratemos os objetos simples como sendo simplesmente o “valor de uma coordenada” e que façamos a equação: nomes simples são coordenadas utilizadas para determinar um ponto(um estado de coisas) no espaço lógico. Esta sugestão é, no entanto, feita por David Hyder e parece a possibilidade interpretativa que melhor se ajusta a natureza dos objetos simples conforme descrita nos aforismos do grupo 2 do Tractatus(VELLOSO, 2014, p. 264). Segundo Hyder: The objects that Wittgenstein's names denote are characteristic features of classes of facts. Such objects[...] have little in common with the things of our experience. They agree better with the conception of objects involved in the Helmholtz/Riemann definition of a manifold: the objects are determinations of the variables in a dimensional concept. They are like coordinatevalues. And what corresponds to a full determination of the concept is an element in the manifold: a location, in other words, and not a coordinate-value.(HYDER, 2002, p.151)

Segundo Hyder, os objetos significados pelos nomes são “fatores característicos de classes de fatos”33. Voltemos a nossa suposição de que [a,b,c] seja uma proposição elementar devidamente constituída e que portanto afirme a existência de um único estado de coisas. Este estado de coisas é composto pelos objetos que são designados pelos nomes “a”, “b” e “c”. Se substituirmos um dos nomes nesta proposição por uma variável obteremos, por exemplo, a expressão [x,b,c]. Há, então, 31 Tractatus logico-philosophicus, 3.4 32 Tractatus logico-philosophicus, 3.032 33 Hyder emprega o termo "fatos" como intersubstituível ao termo "estados de coisas". Como podemos ver em sua introdução:"Each elementary proposition point to what Wittgenstein calls a "logical place" in the space of elementary facts."(Hyder, 2002, p.6). Tal emprego parece não considerar a distinção entre "Tatsache" e "sachverhalt" que é traçada no aforismo 2 do Tractatus: “O que é o caso, o fato, é a existência de estados de coisas”, a distinção entre a situação meramente possível e a possibilidade atualizada. Aquilo para o que uma proposição elementar aponta é um sachverhalt. A expressão “fatos elementares” deveria ser guardada para aquilo que é apontado por uma proposição elementar verdadeira.

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uma classe de proposições elementares que são todas aquelas que poderiam resultar da fixação do valor da variável x. Chamemos tal classe de P1. Igualmente uma classe de estados de coisas E1 deve corresponder a classe de proposições. Tais estados de coisas são todos aqueles que são figurados por uma proposição elementar pertencente a classe P1. Assim, reunimos os estados de coisas da classe E1 em uma única classe, pois são dotados de um “fator característico” comum. Possuem em comum o fato de serem constituídos pelos objetos designados pelos nomes que permaneceram constantes após a substituição. Quais proposições devem adentrar a classe P1 e consequentemente quais estados de coisas devem pertencer a classe E1 depende de uma convenção linguística arbitrária: os objetos que pretendemos significar através dos nomes da proposição [a,b,c]. Se escolhermos substituir um outro nome por uma variável e mantivermos constante o nome que havíamos apagado antes, teremos novamente uma nova classe de proposições e uma classe de estados de coisas correspondente a nossa nova classe de proposições. Podemos chamar tais classes de P2 e E2. Podemos repetir tal processo com o terceiro nome de nossa proposição elementar e obter duas novas classes: P3 e E3. Assim, nossa proposição elementar [a,b,c] é o elemento comum as classes P1, P2 e P3. Igualmente o estado de coisas representado pela proposição [a,b,c] é o elemento comum às classes E1, E2 e E3. Assim como objetos são fatores característicos comuns de estados de coisas, nomes são fatores característicos comuns de proposições. A proposição elementar delimita um estado de coisas ao separá-lo como aquele estado de coisas que é o único que é constituído por tais e tais objetos. Se agora transformarmos em variáveis todos os sinais da proposição [a,b,c], e obtivermos a forma [x,y,z] ainda assim podemos falar da classe de todas as proposições que poderiam ser obtidas pela substituição de todas as variáveis por um nome. Mas Wittgenstein diz que tal classe “[...] não depende mais de qualquer convenção, mas apenas da natureza da proposição. Ela corresponde a uma forma lógica – a um protótipo lógico de figuração.”34 Uma vez que a coordenação que se dá entre um nome e um objeto seja arbitrária, não é difícil compreender porque as classes Pn e En dependem de uma convenção: quais elementos deverão compor uma tal classe depende daquilo que pretendemos significar com as partes da proposição [a,b,c]. Na forma [x,y,z] a relação coordenativa arbitrária entre nome e objeto não vem ao caso, uma vez que nomes não ocorrem nela. Sabemos apenas que toda e qualquer proposição que seja uma instância de [x,y,z] deve conter apenas três elementos, e que tais elementos devem estar articulados de um modo determinado. Sabemos que ao substituir os sinais x, y e z por constantes, o sinal que substitui x deve estar para o sinal que substitui y, tal como o sinal x está para o sinal y, etc. 34 Tractatus logico-philosophicus, 3.315

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Que um estado de coisas possa ser figurado por uma proposição da forma [x,y,z] diz respeito apenas a natureza do estado de coisas, a sua forma lógica. Wittgenstein não parece distinguir no aforismo 3.315 proposições elementares de proposições ordinárias. O filósofo não fala, no aforismo, sobre nomes simples ou nomes para complexos, mas apenas de “parte constituinte de uma proposição”. Apesar disso, parece razoável dizer que não há objeções para que apliquemos todas as afirmações contidas no aforismo, tal como “Se transformamos em variável uma parte constituinte de uma proposição, há uma classe de proposições que são todos os valores da proposição variável assim originada”, às proposições elementares e os nomes simples que às compõem. Se interpretarmos o aforismo como falando acerca das proposições elementares e pensarmos na relação entre cada proposição elementar e um estado de coisas tal como fizemos nos parágrafos acima, penso que revelamos alguns aspectos comuns entre proposições elementares e coordenadas. Suponhamos uma tripla de coordenadas que designem um ponto em um espaço tridimensional euclidiano. Se substituirmos uma de nossas coordenadas por uma variável, há assim uma classe de sequências de coordenadas que são todas aquelas que poderiam resultar da fixação da variável. Igualmente a essa classe de triplas coordenadas deve corresponder a classe de todos os pontos que são designados por todas as triplas coordenadas desta classe. Tal classe depende, ainda, daquilo que arbitrariamente estabelecemos como o valor de nossas coordenadas. Mas se apagarmos todas as coordenadas e ficarmos apenas com uma sequência de variáveis, ainda deve haver uma classe correspondente a sequência de variáveis, a saber, a classe de todas as coordenadas correspondendo a classe de todos os pontos do espaço. Esta classe, não depende mais do sistema de coordenadas arbitrário que instituímos, mas apenas da natureza do espaço. Because the point (x,y,z) is located in a three-dimensional space, we need three coordinates to situate it uniquely, that is to distinguish it from all other points in that space. The choice of these coordinates, as well as somes aspects of the sign displaying them, is arbitrary- but that there must be three is a necessary requirement, if the various intern relationships among the point in this space are to be describable. (HYDER, 2002, p. 134)

Apesar das diversas semelhanças entre a linguagem completamente analisada e um sistema de coordenadas cartesianas, há uma diferença clara entre o nome tractariano e uma coordenada numérica. Na linguagem completamente analisada as proposições são compostas por nomes. Os nomes se conectam diretamente com um objeto, são como rótulos arbitrários para designar objetos. Do fato de que um nome designe um objeto ou de que uma sequência de nomes represente um certo estado de coisas, não posso inferir que um outro estado de coisas é descrito por uma outra sequência de nomes ou que um outro nome designe um certo objeto.

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A relação biunívoca que se dá entre proposição elementar e estado de coisas difere da “nomeação” que se dá entre sequências de coordenadas cartesianas e pontos no espaço. A nomeação de pontos no espaço por meio de coordenadas numéricas é estabelecida via relações que os pontos mantêm com um ponto de origem arbitrariamente definido. Assim, em um sistema de coordenadas cartesianas precisamos definir arbitrariamente um certo ponto de origem, atribuindo-lhe um rótulo numérico, e uma certa unidade de medida. Ao fazê-lo, estabelecemos um rótulo numérico para cada ponto que faça parte do sistema. Assim, um sistema de coordenadas numéricas é um sistema de nomeação relativa. Uma vez determinado quais coordenadas devem designar o ponto de origem, com isso está determinado quais coordenadas designam quais pontos dentro do sistema via relações internas de ordenação mantidas entre os pontos do sistema. Os objetos simples tractarianos e, consequentemente, os estados de coisas, não devem possuir as relações internas de ordenação que se mantém entre pontos do espaço. As propriedades dos objetos se resumem em suas propriedades internas e propriedades externas. Propriedades externas são aquelas que expressamos através de proposições da linguagem. Tais propriedades consistem no fato de um certo objeto estar ou não combinado com outros objetos. Já as propriedades internas dizem respeito as possibilidades de combinação do objeto e não podem ser figuradas por meio da linguagem, mas tão somente mostradas na linguagem. Que o objeto designado pelo nome “a” possa se combinar com o objeto designado pelo nome “b” não é algo que pode ser dito na linguagem, mas apenas mostrado pelo fato de que os nomes “a” e “b” podem se combinar em uma proposição com sentido. De modo semelhante, as relações gradativas que se dão entre pontos no espaço não são propriamente aquilo que designamos por meio das coordenadas. As coordenadas nos indicam apenas pontos no espaço. Mas, que um certo ponto seja designado por meio de uma certa tripla coordenada e um outro ponto por meio de uma outra tripla nos mostra algo acerca das relações entre os pontos. Podemos inferir, por exemplo, a distância entre os pontos por meio das sequências coordenadas que usamos para designá-lo. Como, no entanto, os nomes simples não são atribuídos sistematicamente por meio de suas relações internas aos objetos simples que denotam, não podemos dizer que objetos exibem relações internas de gradação que são exibidas pelos pontos no espaço. Pois tais relações não estão entre suas propriedades internas ou mesmo entre suas propriedades externas.

2.3 A Proposição é uma Função de Verdade de Proposições Elementares Mas qual a conexão entre as proposições elementares e as proposições ordinárias? 26

Proposições elementares diferem radicalmente das proposições ordinárias. As primeiras são compostas pura e simplesmente por nomes simples, figuram apenas um estado de coisas mínimo no espaço lógico e são logicamente independentes. As segundas, por outro lado, são compostas por termos dotados de generalidade, seus “nomes” singulares aparentes não são nomes genuínos que se referem diretamente a uma entidade que não pode ser descrita por uma proposição e certamente se conectam inferencialmente entre si. Vimos que a notação composta simplesmente por proposições elementares não é uma espécie de linguagem ideal e paradigmática cuja função seria servir de padrão para medir o quão bem uma determinada linguagem é capaz de cumprir a sua função de veicular um significado. Se o sentido é completamente determinado, então proposições da linguagem natural devem ser dotadas de um sentido inteiramente determinado assim como proposições elementares. Como então se dá a conexão entre estes dois sistemas notacionais tão radicalmente distintos entre si? Wittgenstein parece fornecer uma resposta a esta pergunta nos últimos aforismos do grupo 4, e principalmente no aforismo 5. Toda proposição “aparentemente singular” da linguagem corrente, consiste na verdade, em uma “generalização de proposições elementares”. O sentido de uma proposição da linguagem corrente, como por exemplo “o círculo está dentro do quadrado” poderia, em princípio, ser expresso por meio de uma proposição complexa que possui como constituintes apenas proposições elementares e operações de verdade efetuadas sob proposições elementares. Assim, a totalidade das proposições elementares delimita a totalidade das proposições possíveis. Suponhamos que me fossem dadas todas as proposições elementares: seria então possível perguntar simplesmente: que proposições posso constituir a partir delas? Essas são todas as proposições e assim se delimitam. As proposições são tudo o que se segue da totalidade das proposições elementares(e, naturalmente, também de ser a totalidade delas todas). (Assim, em certo sentido poder-se-ia dizer que todas as proposições são generalizações das proposições elementares.) A forma proposicional geral é uma variável. A proposição é uma função de verdade das proposições elementares.(A proposição elementar é uma função de verdade de si mesma.)35

Por meio de uma dada proposição elementar nos referimos a um “lugar lógico” determinado, isto é, a proposição elementar circunscreve um único estado de coisas no espaço lógico ao figurar um estado de coisas que consiste em tais e tais objetos. A existência de um tal lugar lógico é garantida pela existência dos nomes que compõem a proposição. Uma vez garantida uma denotação para as partes constituintes de uma proposição, podemos nos servir desta para delimitar um outro lugar lógico como função do lugar lógico delimitado pela proposição. É o que fazemos, por 35 Tractatus logico-philosophicus, 4.51-5

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exemplo, por meio de um sinal de negação. Através do sinal de negação obtemos uma proposição complexa cujo sentido e valor de verdade está em função do sentido e valor de verdade da proposição que é negada. Uma certa proposição elementar “p” representa uma situação no espaço lógico ao afirmar que um certo estado de coisas é efetivo e assim delimita o seu sentido. A proposição que nega “p” representa uma outra situação no espaço lógico ao afirmar que o estado de coisas correspondente a proposição “p” não é efetivo. A falsidade da proposição “p” é condição necessária e suficiente para a verdade da proposição “~p”. Se o estado de coisas descrito por “p” ocorre, “p” é verdadeira e “~p” é falsa, se não ocorre “p” é falsa e “~p” é verdadeira. Assim ao negar uma proposição determinamos um lugar no espaço lógico por meio da proposição negada. Poder-se-ia dizer: a negação já se reporta ao lugar lógico que a proposição negada determina. A proposição negativa determina um lugar lógico diferente daquele que a proposição negada determina. A proposição negativa determina um lugar lógico com o auxílio do lugar lógico da proposição negada, descrevendo aquele como situado fora deste.36

Se “p” é uma proposição, então é essencialmente bipolar. A proposição deve indicar um lugar no espaço lógico, descrevendo portanto uma situação possível. Ora, se uma certa situação é possível, a não ocorrência de uma tal situação deve ser igualmente possível. Assim, poder ser falsa e poder ser verdadeira é uma marca característica da proposição dotada de sentido. Portanto, se uma proposição é dotada de sentido segue-se que há uma outra proposição dotada de sentido que afirma exatamente a não ocorrência da situação que é descrita pela primeira proposição. Dada uma certa proposição elementar existe uma outra proposição não elementar cujas possibilidades de verdade e falsidade resultam da simples inversão das possibilidades de verdade e falsidade da proposição elementar. Tal proposição é a negação da proposição elementar. Uma característica distintiva do tratamento que Wittgenstein fornece no Tractatus para os conectivos lógicos é enunciado no aforismo 4.0312 onde o autor afirma que “minha ideia básica é que as ‘constantes lógicas’ não substituem; que a lógica dos fatos não se deixa substituir.”. Dentre as “constantes lógicas” referidas pelo aforismo em questão, se encontram aquilo que chamamos de “conectivos lógicos”(GLOCK, 1998 ,p.96). Os conectivos lógicos não são, segundo o Tractatus, nomes de objetos lógicos, mas operações que ligam proposições bases a uma proposição resultado por meio de uma relação interna entre as estruturas destas proposições. Conectivos lógicos não possuem a função de substituir um objeto. É necessário não confundir “função de verdade” com “operação de verdade”. Dizemos que “~p” é uma função de verdade de “p” e que o sinal o sinal de negação em “~p” é a expressão de 36 Tractatus logico-philosophicus, 4.0641

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uma operação que gera uma nova proposição a partir da proposição “p”37. Uma característica que Wittgenstein assinala como distinguindo uma função de uma operação é que uma função não pode conter a si mesma como argumento38, já o resultado de uma operação deve poder ser tomado como uma nova base da operação. Tomamos a proposição “p” como uma base para a operação de negação e obtemos a proposição “~p” como função da proposição base. A própria proposição “~p” deve agora poder ser utilizada como base para a mesma operação de negação. Assim obtemos a proposição “~~p”. A operação de negação gera uma proposição resultado por meio de uma proposição base, de um modo tal que a proposição resultado seja uma função de verdade da proposição base. As condições de verdade e, consequentemente, o valor de verdade da proposição resultado deve depender apenas das condições de verdade da proposição base. O modo como o valor de verdade do resultado depende do valor de verdade da base é aquilo que é expresso por meio da operação. Se a operação em questão é a negação, então a ocorrência do sinal da operação de negação na proposição resultado diz que o valor de verdade desta proposição é o inverso do valor de verdade da proposição base. Segue-se então que a aplicação de distintas operações ou iterações sucessivas de uma operação pode cancelar o efeito de outras operações: as condições de verdade de “~~p” são idênticas às de “p”, pois o valor de verdade da proposição “~~p” resulta da inversão do valor de verdade de “p”(o valor de verdade de "~~p" é necessariamente o mesmo de “p”)39. Assim, a primeira operação de negação, na proposição "~~p", deve cancelar o efeito da segunda operação de negação. A ocorrência de um sinal para uma operação não deve ser uma marca essencial do sentido de uma proposição. Pois a proposição “~~p” possui o mesmo sentido que a proposição “p”: elas são, em sentido estrito, uma e a mesma proposição40. Isto mostra, segundo Wittgenstein, que ao sinal de negação e claro, aos outros conectivos lógicos, nada corresponde na realidade. Uma proposição negada não deve tratar de um objeto que corresponde ao sinal de negação, pois desse modo “p” e “~~p” não poderiam possuir o mesmo sentido41. O mesmo se mantém para outras operações de verdade que não a negação. Dadas duas proposições elementares dotadas de sentido “p” e “q”, existem doze outras proposições não elementares dotadas de sentido cujas possibilidades de verdade e falsidade resultam das possíveis combinações de verdade e falsidade das proposições elementares. Dizemos que tais proposições são funções de verdade das duas proposições elementares em questão. Assim podemos tomar nossas 37 38 39 40 41

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Tractatus logico-philosophicus, 5.25-5.3 Tractatus logico-philosophicus, 3.333 Tractatus logico-philosophicus, 5.254 Tractatus logico-philosophicus, 5.141 Tractatus logico-philosophicus, 5.44

duas proposições elementares “p” e “q” e formar, por exemplo, a proposição complexa “p∨q” como resultado da aplicação da operação de disjunção sobre as proposições “p” e “q”. A proposição complexa resultante da operação consiste em uma função de verdade das proposições base, pois seu valor de verdade é determinado pura e simplesmente pelos valores de verdade das proposições base. A proposição “p∨q” é verdadeira se e somente se “p” é verdadeira ou “q” é verdadeira. O resultado da operação pode agora ser a base de uma nova operação. Podemos tomar a proposição complexa “p∨q” e a proposição elementar “p” e, por meio da operação de conjunção, obter a proposição “((p∨q) ∧ p)”. A aplicação da operação de conjunção sobre as bases “p” e “p∨q” cancela a operação de disjunção e elimina a contribuição do valor de verdade de “q” da proposição resultado. O valor de verdade da proposição “((p∨q) ∧ p)” é necessariamente o valor de verdade da proposição “p”, portanto ambas são uma e a mesma proposição. Uma vez que a proposição “p∨q” é uma função de verdade das proposições elementares “p” e “q”, o valor de verdade de “p∨q” está ligado inferencialmente ao valor de verdade de “p” e “q” por meio de uma relação estrutural que tais proposições mantêm entre si. Se “p∨q” é verdadeira, segue-se que ou bem “p” é verdadeira, ou “q” é verdadeira ou ambas são verdadeiras. Não é possível tomar a proposição “p∨q” como verdadeira e, ao mesmo tempo, tomar tanto “p” quanto “q” como falsas. Atribuir um valor de verdade a uma função de verdade de proposições elementares é limitar as possibilidades de verdade destas proposições. Podemos dizer que a proposição complexa representa a existência e inexistência dos estados de coisas por meio de suas conexões com os possíveis valores de verdade das proposições elementares das quais é uma função de verdade. Se a proposição complexa representa a existência e a inexistência dos estados de coisas apenas via suas relações internas para com as proposições elementares, então a possibilidade de tais proposições não deve acrescentar nada ao espaço lógico. O espaço lógico contém apenas os estados de coisas singulares que são figurados pelas proposições elementares. É apenas a totalidade das proposições elementares que determina, por meio de suas possibilidades de verdade e falsidade, a totalidade daquilo que pode ser expresso pela linguagem. Pois as possibilidades de verdade e falsidade das proposições elementares determinam quais proposições podem ser afirmadas como funções de verdade destas proposições. Assim, “As proposições são tudo aquilo que se segue da totalidade de todas as proposições elementares(e, naturalmente, também de ser a totalidade delas todas)[...]”.42 Embora toda proposição dotada de sentido seja uma função de verdade de proposições elementares, a notação da linguagem natural não é bem sucedida em exibir, por meio dos sinais 42 Tractatus logico-philosophicus, 4.52

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empregados, o modo como as condições de verdade de uma dada proposição deve resultar apenas das condições de verdade das proposições elementares. Ao processo de demonstrar como o valor de verdade de uma proposição singular da linguagem natural é uma função do valor de verdade de proposições elementares, Wittgenstein denomina de “análise completa da proposição”. Se atribuirmos um único significado bem definido para uma sentença da linguagem natural, então deve haver uma única análise completa de uma tal sentença 43. Tal análise é um processo de tradução da notação da linguagem natural em uma notação que exibe claramente o modo como a proposição deve resultar de operações de verdade sobre proposições elementares.

43 Tractatus logico-philosophicus, 3.25

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Considerações Finais No primeiro capítulo vimos que as proposições são figurações da situação que representam. As figurações são elas mesmas situações, consistindo em elementos organizados de um certo modo entre si. O modo como os elementos da figuração estão articulados entre si mostra o modo como os elementos da situação representada devem estar articulados para tornar verdadeira a figuração. Para que esse processo de figuração de uma estrutura em outra seja possível é necessário que haja uma regra segundo a qual cada elemento de uma deve corresponder a um certo elemento de outra. Essa regra é uma regra de projeção ou como Wittgenstein denomina “método de projeção”. A possibilidade dessa regra de projeção está fundada na existência de certas propriedades formais comuns entre a figuração e aquilo que ela afigura. Tais propriedades formais são determinadas pela forma lógica da figura e da situação, que ambas compartilham entre si. A forma lógica de uma figura não pode, por sua vez, ser figurada, podendo apenas ser exibida pela estrutura da figura, ou por um esquema vazio, onde cada elemento da estrutura é substituído por uma variável. Essa “estrutura vazia” resultante desse processo de abstração, deve permanecer invariante no processo de projeção, isto é, deve ser exibida tanto pela estrutura da figura como pela estrutura da situação figurada. É serem estruturas dotadas de uma mesma forma que torna possível que a figura possa ser tomada como figura daquilo que representa. Esta é a condição necessária fundamental da relação de figuração. No segundo capítulo vimos que embora a linguagem natural não pareça compartilhar a forma lógica com a situação que representa, tal aparência se deve por empregarmos uma notação que não seja capaz de exibir nos sinais a complexidade do símbolo que é expresso. Para que isso seja possível devemos empregar uma notação com proposições capazes de representar um estado de coisas singular no espaço lógico. A proposição que afirma a existência de um único estado de coisas é chamada de “proposição elementar”. A proposição elementar é uma figuração lógica de um único estado de coisas. Proposições elementares são compostas simplesmente por nomes que substituem os objetos do estado de coisas. Cada nome está, na proposição elementar, articulado de um certo modo em relação aos outros nomes da mesma proposição. Esta articulação dos nomes na proposição representa a articulação dos objetos nos estados de coisas. O estado de coisas é como um lugar no espaço lógico que é designado por uma proposição elementar, que é, por sua vez, como uma sequência de coordenadas atribuídas ao estado de coisas. A proposição que corresponde ao sinal proposicional da proposição aparentemente singular da linguagem corrente é, na verdade, uma proposição complexa. Proposições complexas são funções de verdade de proposições elementares. As proposições complexas figuram por meio das proposições elementares, ao determinar um lugar no espaço lógico em função do lugar determinado pela proposição elementar. Isto é possível pois a 32

proposição complexa se encontra em relações internas com as proposições elementares que a constitui. O sentido e o valor de verdade da proposição complexa depende apenas dos sentidos e valores de verdade das proposições elementares com as quais esta se encontra relacionada. O modo como o valor de verdade da proposição expressa pela linguagem natural depende do valor de verdade de proposições elementares é velado pelo modo de expressão da linguagem corrente. Pois na linguagem corrente os sinais não são capazes de exibir a complexidade real da proposição que é expressa pelo sinal proposicional. Para exibi-lo devemos realizar o processo de análise. O processo de análise consiste em um processo de tradução onde a proposição tal como vem expressa na linguagem natural é traduzida por uma proposição complexa que mostra claramente como o sentido expresso pela proposição resulta da aplicação de operações de verdade à proposições elementares. Podemos concluir que toda proposição é uma figuração lógica daquilo que representa. Embora a proposição expressa pela linguagem natural não pareça, à primeira vista, uma figuração, tal aparência se deve por empregarmos uma notação que não satisfaça os requisitos necessários para mostrar que o sentindo de uma tal proposição consiste em uma função de verdade de proposições elementares. Proposições elementares, por outro lado, exibem claramente na estrutura do sinal a estrutura do estado de coisas que representa e portanto são, incontestavelmente, figurações lógicas dos estados de coisas cuja existência afirmam. Assim proposições complexas figuram estados de coisas, mas o fazem apenas via suas conexões inferenciais com proposições elementares.

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Bibliografia CASSIRER, Ernst. The Concept of Group and the theory of perception. Philosophy and Phenomenological Research. Volume V, n. 1. 1944. pp. 1 – 36. FOGELIN, Pasquale. Wittgenstein. 2ª edição. London and New York: Routledge,1987. FRASCOLLA, Pasquale. Understanding Wittgenstein's Tractatus. London and New York: Routledge,2007. GLOCK, Hans-Johan. Dicionário Wittgenstein. Rio de janeiro: Jorge Zahar, 1998. GRIFFIN, James. O Atomismo Lógico de Wittgenstein. Porto: Porto Editora, 1998. HYDER, David. The Mechanics of Meaning, Berlin. New York: de Gruyter, 2002. RUSSELL, Bertrand. Introdução. Em Tractatus logico-philosophicus. São Paulo: Edusp- Editora da Universidade de São Paulo, 2010. SANTOS, Luiz Henrique Lopes dos. A essência da proposição e a essência do mundo. Em: Tractatus logico-philosophicus. São Paulo: Edusp- Editora da Universidade de São Paulo, 2010. VELLOSO, A.R.S. Wittgenstein's unique Great Analysis: a consequence of the construal of propositional sense as truth-conditions. Analytica (UFRJ), VOL 18(1), p. 229-269, 2015. WITTGENSTEIN, Ludwig. Tractatus Logico-philosophicus. Tradução de Luiz Henrique Lopes dos Santos 3ª edição. São Paulo: Edusp- Editora da Universidade de São Paulo, 2010. _______. Some Remarks on Logical Form. In: Philosophical Occasions. James Klagge and Alfred Normann (eds.). Indianapolis and Cambrid ge: Hackett Publishing Company, pp. 29-35, 1993. _______. Notebooks 1914-1916. Oxford: Basil Blackwell, 1998.

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