Igreja, cultura e a integralidade da missão: vivendo na fronteira entre a relevância e a fragilização [Práxis 27, Julho-2016]

June 1, 2017 | Autor: Jonathan Menezes | Categoria: Missão Integral, Eclesiología, Pós Modernismo
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IN: PRAXIS 27, JULHO-2016, VERSÃO RASCUNHO

IGREJA, CULTURA E A INTEGRALIDADE DA MISSÃO: VIVENDO NA FRONTEIRA ENTRE A RELEVÂNCIA E A FRAGILIZAÇÃO Jonathan Menezes1 RESUMO Na maioria dos livros e conferências sobre igreja, a ideia de relevância se apresenta como um alvo imprescindível para a igreja no mundo. Para muitos, igreja boa é igreja relevante; igreja boa é igreja forte. A questão é: o que significa ser relevante? E mais que isso: o que a igreja precisa “fazer” para ser (considerada) relevante? Se nossa definição de relevância está muito condicionada ou à visão de “sucesso” e “pujança” de nossa sociedade, qual seria então uma perspectiva do evangelho sobre isso? E de que modo essa perspectiva aparentemente estranha pode servir como norte para uma igreja que queira ser, de fato, “evangélica” e “contemporânea”, embora nem sempre “relevante” ou “de sucesso”? Essas são algumas das questões que movem esse ensaio, que trata da relação entre igreja e cultura tendo como pano de fundo a integralidade da missão, desde uma fronteira em particular (já enunciada no título e nas questões acima): a fronteira entre a relevância e a fragilização. A premissa na qual se centra é a de que a igreja contemporânea, na contramão da direção das ventanias de sua época, precisa assumir-se como frágil e irrelevante para o mundo. Tendo essa assunção em mente, a igreja pode deixar de lado a pretensão de univocidade e de ter a última palavra, e abraça as implicações de ser uma metáfora vibrante do amor de Deus ao mundo.

PALAVRAS-CHAVE Cultura; Pós-modernidade; Igreja; Missão; Fragilidade.

ABSTRACT In most of the books and conferences about church, the idea of relevance is presented as an unprecedented goal for the church in the world. For many, the church must be relevant in order to be good, and the good church is a strong one. The question is: what does it mean to be relevant? Moreover: what the church need “to do” to be (considered) relevant? If our definition of relevance has been conditioned to our society’s vision on “success” and “strength”, what then would be the Gospel’s perspective on this? And in what ways this apparently weird perspective may serve as a guide to a church desiring to be, in fact, evangelical and contemporary, albeit not necessarily “relevant” or “successful”? These are some of the core questions of this essay, which deals with the relationship between church and culture having the integrality of Mission as its background, and also departing from a specific kind of crossroad (already announced in the title and in the questions stated above): the crossroad between relevance and fragility. The main proposition is that contemporary church must, against all odds and directions of her own time, undertake herself as fragile and irrelevant to the world. With this assumption in mind, the church may put aside the pretentiousness of being the only voice or of having the last word, and embrace the corollaries of being a vibrant metaphor of Gods’ love in the world.

KEYWORDS Culture; Postmodernity; Church; Mission; Fragility.

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Professor adjunto na Faculdade Teológica Sul Americana. Doutorando em História pela UNESP, Campus de Assis, SP. Email: [email protected]

Que teologia, para que cultura? Nenhuma corrente teológica, bem como nenhuma linha de pensamento tem, embora algumas pretendam ter, a primazia de interpretação sobre por onde deve se orientar o Espírito, a Igreja, e a Missão. Simplesmente porque o Espírito sopra onde quer, e principalmente porque interpretações são geradas e geram diferentes maneiras de falar, e maneiras de falar são sempre provisórias. A linguagem teológica é composta por várias línguas, vários modos de expressar e de dar significado às palavras, ou, melhor dizendo, por vários dialetos. E dialetos teológicos, ouso dizer, são como roupas, que a gente usa por um tempo, mas depois joga fora ou deixa guardado quando percebe que ficou velho e desgastado com o tempo. Assumir essa provisoriedade requer da gente uma abertura para a desconstrução e ressignificação de nossos discursos teológicos, não apenas passando uma maquiagem neles, mas questionando seus pressupostos, expondo sua “porosidade e transitoriedade”, como disse Nicolás Panotto (2012, p. 80). Uma vez que é uma linguagem, Panotto afirma que toda e qualquer teologia precisa ser colocada entre parênteses, isto é, “reconhecer que não está livre de determinismos e reducionismos subjetivos, contextuais, políticos e discursivos”. Assim, toda boa teologia, em meu modo de ver, é aquela em que encontramos consistência, mas também a humildade de manter as portas abertas para constantes revisões de sua linguagem. Igualmente, todo bom teólogo é um transgressor por natureza, não porque transgrida o pensamento alheio, mas porque desenvolveu a coragem de transgredir os seus próprios, de não se levar tão a sério. Para tanto, parafraseando Pedro Demo (1995), é preciso, mais que acreditar no que se pensa, questionar seu próprio pensamento. Nessa mesma direção – de desconstrução, reinvenção e reimaginação – penso que a igreja precisa se colocar e se comportar em relação à cultura, e esse é meu foco particular nesse ensaio. Tenho pensado um pouco no papel e importância da igreja no mundo e na cultura contemporâneos ultimamente. Tenho convivido e conversado com muitas pessoas diferentes, dentro e fora da igreja, e minha visão é de que estamos em um processo de transição, de revisão de modelos, de reorientação de práticas. Que papel a igreja tem a desempenhar, por exemplo, numa fatia de cultura (e aqui prefiro falar em fatia que na cultura em si) como a urbana, pós-moderna ou líquido moderna (como prefere o Bauman), pós-paradigmática, de posicionamentos, “desideologias” e religiosidades fluidas, de espiritualidade ao invés de religião, de encantamento com o sagrado, com o transcendente, e menos com suas expressões doutrinárias e/ou institucionalizadas; de menos certezas, dogmas e posturas rígidas ou sólidas, e mais incertezas, dúvidas, paradoxos, liquidez; de saturação do individualismo e da autossuficiência modernos, de renascimento das tribos, dos ajuntamentos por gostos, como tem dito Michel Maffesoli (2012). Que lugar e papel as igrejas ainda podem desempenhar para inúmeras pessoas que não escutam mais o que ela diz (ou escutam e detestam) e não querem saber dela, pois a consideram uma voz tacanha, ultrapassada, anacrônica – isso quando não intolerante, mesquinha, pretensiosa à verdade universal. Quem tem sido e será igreja para os “sem igreja”, “sem religião”, “sem instituição”, para os desencantados com os modelos religiosos e institucionais vigentes; que igreja existirá para quem está sedento não de ser convencido, por vias lógicas e argumentativas, de que a fé faz sentido, mas de relacionamentos que indiquem como e onde podem encontrar sentido de vida, experiência, amor, amizade e comunidade; o que ela tem a propor para pessoas não dão a mínima para quantidade, pirotecnia espiritual e entretenimento, e, portanto, jamais

entrariam em muitos dos templos evangélicos ou católicos existentes, mas ainda assim é encantada pela mensagem de Jesus e dos evangelhos? Será que a mesma igreja, que sabe muito bem como ser igreja para os “convertidos”, poderá ser igreja para os “peregrinos” (usando aqui as terminologias de Danièle Hervieu-Léger, 2008), os cavaleiros andantes, que não se encaixam em lugar ou sistema tradicional algum, não se veem contemplados pelos invólucros de Deus existentes? Penso “nesses jeitos particulares de ser gente” hoje (que é como Rubem Alves definiu cultura certa vez), porque tenho uma ligeira suspeita de que não tem tanta gente nas igrejas pensando e agindo ao encontro dessas pessoas. Se aqui estou pensando em uma fatia de necessidades dentro de uma fatia de cultura, pode-se dizer que a missão aqui implicada quer-se integral, mas não oniabrangente; isto porque, penso eu, fazer missão holisticamente é também admitir fazê-la parcialmente (ninguém pensa ou cumpre a missão toda sozinho). E investirei menos tempo em diagnósticos ou críticas, e mais em proposição, ou melhor, em imaginação: que igreja eu imagino que precisa existir em meio a essa fatia de cultura? E quando digo imagino, não significa invento do nada, mas imagino desde um ponto de vista bíblico. Para isso, quero explorar uma das consequências da aplicação da kenosis2 de Paulo (cf. Fp 2.5-11) e do pensamento fraco3 de Gianni Vattimo à igreja cristã, presente e atuante especialmente em culturas líquido-modernas (Bauman, 2013) ou pós-modernas: a de levar a sério e a assumir sua condição frágil e irrelevante no mundo. Na maioria dos livros e conferências sobre igreja, a ideia de relevância está presente como sendo um alvo imprescindível para a igreja no mundo. Para muitos, igreja boa é igreja relevante; igreja boa é igreja forte. A questão é: o que significa ser relevante? E mais que isso: o que a igreja precisa “fazer” para ser relevante? Se nossa definição de relevância está muito condicionada ou à visão de “sucesso” e “pujança” de nossa sociedade, qual seria então uma perspectiva do evangelho sobre isso? E de que modo essa perspectiva aparentemente estranha pode servir como norte para uma igreja que queira ser, de fato, “evangélica” e “contemporânea”, embora nem sempre “relevante” ou “de sucesso” dentro de tal ou qual perspectiva? Sabemos que a igreja, diante dos dilemas culturais, vive numa tensão dinâmica (às vezes conflitante, às vezes amigável) entre ser uma expressão desta e (relevante) para esta época, e sua razão de ser, que é encarnar diante do mundo a boa nova do reino revelada na pessoa de Jesus. Ou seja, o que move a igreja, primordialmente, não são os ditames do que impera na sociedade em que ela coexiste, mas o exemplo de seu Senhor – cuja existência não foi apenas relevante, mas revolucionária, em conformidade com o querer do Pai e não de acordo com os modos e moldes deste mundo. E o exemplo do Cristo, suas prioridades, sua missão se desenham desde seus primeiros passos na vida e ministério.

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Palavra grega que designa o esvaziamento do poder ou da vontade de alguém em favor da de outrem. O uso desta palavra geralmente vem atrelado ao texto da carta de Paulo aos Filipenses, no capítulo 2, quando o apóstolo fala do movimento descendente do Cristo que, abandonando sua glória, esvaziou-se do poder de sua divindade, e humilhou-se, assumindo a forma humana. Na filosofia de Vattimo, kenosis é utilizada para se referir à humilhação, encarnação e humanização de Deus, ponto fundamental em sua teoria da secularização, que para ele brota exatamente do esvaziamento do falar de Deus a partir da metafísica. A partir de então, o chão da história em que Deus se encarnou torna-se o referente para se falar de Deus. 3 Nos escritos de Vattimo (2004, p. 30), pensamento fraco designa “o reconhecimento nietzschiano de que não podemos evitar que se fale em termos metafóricos, isto é, em termos que não são objetivos nem descritivos, que não espelham o estado de coisas”.

A narrativa de Lucas no capítulo 4, Jesus não inicia seu ministério em ação, mas em silêncio, oração e na total dependência do Espírito no deserto. É um excelente exemplo do que quero dizer aqui. Na tentação, ele rejeita o caminho do poder e abraça, a partir dali, uma vocação despossuída de pretensões grandiosas neste mundo e desejosa apenas de fazer a vontade do Pai de reconciliação de ada ser humano consigo mesmo. O caráter dessa vocação e mensagem se confirma no momento seguinte da narrativa, quando Jesus se dirige à sinagoga de Cafarnaum e arruma uma baita confusão com o pessoal do templo, ao evocar sobre si a palavra do profeta Isaías. Naquele momento, fica claro que ele encarna a figura indigesta do profeta (o profeta sem honra), que não tem amor ao próprio pescoço, não tem “rabo preso” com ninguém e que estabelece uma relação crítica com o poder e suas estruturas. Quase todo/a líder ou ministro/a cristã/o em nossos dias, naturalmente, imagina poder iniciar seu ministério bem, realizando boas e grandes coisas para se estabelecer, sendo notado e respeitado a fim de conquistar seu espaço. O mestre, porém, tem um início subversivo até nisso, pois esse primeiro ato ministerial, segundo esse relato, foi um fracasso total: todos na sinagoga ficaram enraivecidos com seu discurso, o expulsaram da cidade e tentaram jogá-lo do precipício, o que só não aconteceu porque ainda não era o momento. Mas era o indício de um caminho, um caminho de cruz. Que igreja contemporânea? O que a igreja contemporânea – aquela que leva a sério sua vocação na mesma medida em que tenta ouvir atentamente às questões plantadas em seu tempo – pode aprender com isso? Dentre tantas lições que daqui poderíamos extrair, eu diria que igreja e seus líderes precisam aprender com Jesus a não temer a rejeição, o escárnio e o insucesso (aos olhos do “mercado”) no instante em que ela decide viver com integridade sua vocação para ser um frágil instrumento da missão do reino neste mundo. Henri Nouwen vai além, e afirma algo arrojado em relação aos líderes cristãos (que aqui reaplico à igreja): O líder cristão do futuro será aquele que ousa afirmar sua irrelevância no mundo contemporâneo como uma vocação divina. Ela permite que ele esteja em profunda solidariedade com a angústia atrás de todo aquele esplendor do sucesso. E leve a luz de Jesus para brilhar ali (Nouwen, 2002, p. 21, grifo meu).

Por isso, utilizo os termos “frágil e irrelevante,” referindo-me à igreja, não porque ela abraça o espírito de vítima ou de derrotada, tampouco porque não faça e não vá fazer diferença, mas porque é irreverente aos caminhos de sucesso mundanos, e porque encarna o espírito de sua fragilidade humana na dependência do Espírito, como Jesus no deserto, e admite não precisar nem desejar viver sob a égide e em busca de outro poder que não esse; e mais, assume que todo exercício legítimo de poder (na igreja) passa pela fragilização de quem o exerce, no momento em que se coloca tanto na dependência do mesmo Espírito no serviço, como na mútua e fraterna dependência da própria comunidade. Em suma: olhar para Jesus torna mais claro o tipo de opção que a igreja de Cristo precisa fazer ao lidar com poder, cultura e instituições neste mundo, qual seja, não a de rejeitá-los como quem os demoniza, mas de abandonar o modo como se valoriza poder e instituição por aí, tantas vezes colocando-os acima das pessoas às quais deveríamos amar e servir. Instituições são instrumentos úteis, não objetos de amor, cultivo ou veneração! Não há um mal inerente às instituições em si, penso eu, mas no que fazemos delas.

Instituições existem para servir as pessoas; tornam-se um problema quando passam a existir para servir a si mesmas, esquecendo-se das pessoas. Então o processo passa ser inverso: ao invés de pormenorizar a instituição em si e amar as pessoas, amamos instituições e pormenorizamos pessoas e suas necessidades. Em suma: quando a comunidade é organismo vivo e pulsante, instituição não é razão de ser, mas instrumento; mas tem vezes, muitas vezes, em que a organização mata, aos poucos, o organismo. Logo, o que existe e o que sobra é apenas instituição: inoperante, incapaz de transformar, sem vida. Mas o organismo normalmente renasce, fora dali, e continua espalhando vida enquanto o valor maior for a vida, e não as coisas; as pessoas, e não os objetos e bens culturais, materiais e de consumo que tanto valorizamos. Como corolário, hoje já não basta para a igreja se limitar a uma “comunidade local”, que atenda às necessidades específicas de pessoas – pensando, mais precisamente, naquelas que mencionei no começo. Concordo que é preciso comunidade. Mas talvez o local, para muitos, seja algo muito limitado, pois dá a ideia de que as pessoas é que têm de se descolar até lá. Uma igreja missional, porém, vai até as pessoas, encontra pessoas, reúne pessoas onde quer que estejam, toca e transforma a vida de pessoas, pois, no fim das contas, ser igreja é apenas um modo alternativo e radical de ser gente. Logo, o ser precede o ir: isto é, não vamos à igreja, mas somos e nos fazemos igreja onde quer que estejamos, e onde quer que uma necessidade humana se apresente. Mas essa igreja (essa que aqui imagino), por assim dizer, é (ou deveria ser) uma metáfora vibrante do amor de Deus ao mundo. Como metáfora, ela jamais deveria pretender falar de Deus em termos absolutos ou compreensivos, mas apenas por meio de aproximações e possibilidades; como metáfora, seu chamado é para anunciar as boas novas do reino ao mundo, podendo ser ouvida e aceita não pelo caminho do poder (físico ou simbólico), mas do esvaziamento do poder e da vontade, pela humildade e integridade (isto é, através do exemplo de vida e humanidade, tal como vimos e aprendemos em Jesus Cristo). É uma igreja que atrai mais pela vivência quase muda e marginal e menos pelas palavras mágicas e de poder ditas diante dos holofotes e das mídias. Dessa forma, a vocação primária da igreja faz com que ela não esteja neste mundo para estabelecer coisas – como que monumentos só dela, porém supostamente erigidos “para a glória de Deus” (resta saber qual “Deus”) –, mas para peregrinar na liberdade do Espírito, seguindo seus rastros e obedecendo unicamente a um Senhor. Que outras facetas teria essa igreja, frágil e irrelevante, que os/as convido aqui a imaginar? Aqui vão algumas, como um resumo estendido do que disse até aqui: 

É uma igreja voltada para pessoas, e não negócios, programas, agendas, questões.



É uma igreja contracultural, no sentido de ser irreverente aos meandros de sucesso e relevância que respondem mais aos apelos do status quo, que à sua vocação radicada no evangelho do nosso Senhor.



É a igreja da dispersão, dos peregrinos, e não somente dos e para os convertidos; uma igreja que se reúne senão para se fortalecer na e para a dispersão.



É uma igreja que não quer ter a última palavra sobre nada, mas se coloca como uma parceira possível na busca por respostas aos problemas e às perguntas diversas da humanidade, como quem sonha, imagina e anseia ao lado das pessoas, e não acima delas.



É uma igreja que revê sua teologia do sofrimento e abraça o trágico não apenas como posição eventual, mas como atitude de fé, de empatia para com a vida, de

resistência às forças de morte, sem renega-las ou sublimá-las em si mesma; afinal, onde houver trigo sempre haverá joio. Adotar o trágico significa afirmar a vida com tudo o que ela implica, seus sabores, dissabores, êxitos e fracassos a fim de que mais humanos nos tornemos, como humano foi e é o Senhor Jesus. Só pode abraçar e acolher aquele que padece quem não tem pavor do padecer. A dor e a cura, nesse sentido, não são inimigas, mas parceiras de jornada. 

É uma igreja que não mete sua cumbuca em assuntos de Estado a não ser como cidadã, como lutadora pelos direitos, sobretudo, dos menos assistidos e dos oprimidos na esfera do político: os pobres, os negros, as mulheres, os homossexuais, os indígenas e assim por diante.



É uma igreja que fala em nome de Jesus, mas que não ousa falar por ele; prefere que as pessoas enxerguem a Jesus mais no espelho de suas práticas, e menos no poder persuasivo das palavras, a exemplo de Paulo, que disse: “Minha mensagem e minha pregação não consistiram de palavras persuasivas de sabedoria, mas consistiram de demonstração do poder do Espírito, para que a fé que vocês têm não se baseasse na sabedoria humana, mas no poder de Deus” (1Co 2.4-5).



Por fim, mas não finalmente, é uma igreja que retoma sua vocação protestante, e assim não teme relativizar estruturas, poder e hierarquia por um único absoluto: a Mensagem. Como eu digo em meu mais recente livro (Menezes, 2015, p. 70), quanto mais fiel sou ao evangelho e à verdade revelada na pessoa de Jesus, mais procurarei resguardá-los do aprisionamento de minha própria linguagem e experiências. Há somente um evangelho! E este não é meu, nem da igreja, nem de Paulo, Barnabé ou Pedro: mas de Jesus.

Que desafios? Relendo a pós-modernidade Pensar em desafios atuais não é tarefa fácil, pois depende de uma série de determinantes contextuais e situacionais. Dessarte, procurarei ser fiel à linha que tenho adotado nesse ensaio. Um dos temas prediletos dos tribunais teológicos nos últimos tempos se chama “pós-modernidade”. Para muitos ela inspira ou representa quase sempre algo ruim, um tremendo desafio ao testemunho cristão, a besta do Apocalipse. No livro A igreja do outro lado (2008), Brian D. McLaren critica algumas das críticas cristãs, para ele, distorcidas à pós-modernidade – que são papagaiadas exatamente por quem provavelmente nunca leu um livro sequer de um pós-moderno (que não proponha valetudismos), ou leu “alguma coisa” e pensa que, por ela, leu o todo, mais ou menos como quem acha que sabe tudo sobre a Teologia da Libertação tendo lido apenas “o livrinho introdutório dos irmãos Boff”, como vi um teólogo dizer recentemente. Entre as críticas mais requentadas, sobre a qual gostaria de falar nesse texto, está a de que “cristianismo e pós-modernidade são incompatíveis porque os pós-modernos não creem na verdade absoluta”. A resposta de McLaren, com a qual concordo inteiramente, é a seguinte: Bem, é claro que há uma verdade absoluta lá fora. Não duvido disso. Apenas duvido de sua habilidade, ou na minha própria, de apreender essa verdade e de compreendê-la, lembrá-la, codificá-la numa determinada linguagem e comunicá-la a outros e fazê-la compreendida de uma maneira absolutamente exata. (...) aquilo que as pessoas pósmodernas tendem a rejeitar não é a verdade absoluta, mas o conhecimento absoluto (McLaren, 2008, p. 234).

Ora, isso é quase um truísmo (uma obviedade), poderia dizer alguém, pois quem seria obtuso o bastante para ainda crer e dizer que pode codificar a verdade ou compreendê-la de maneira “absolutamente exata”? Também não entendo que haja um grande número de pessoas que faça isso assim, tão explicitamente. Mas no campo das ciências humanas e no da religião, por exemplo, ainda temos muitos/as “Dom Quixotes” da verdade que resistem em admitir os limites do saber e, mais ainda, da expressão desse saber. Então, prosseguem, usando aqui outra expressão de McLaren, “batendo o tambor da verdade absoluta” por aí, por mais ridículo e desesperado que isso pareça, quem sabe esperando que a chuva caia do céu e esses pós-modernos irresponsáveis finalmente se convençam de que não podemos jogar todos os valores (sobretudo os morais) na lata do lixo. Mas quem disse que o pós-moderno se caracteriza pela completa destruição de todos os valores? Talvez estejamos lidando aqui com mais um preconceito. Lembrando a famosa definição de François Lyotard (1988, p. xvi), o pós-moderno se caracteriza (“simplificando ao extremo”) pela “incredulidade em relação aos metarrelatos”, isto é, os grandes relatos (ou narrativas), aqueles com pretensões grandiloquentes e que se colocam em letras maiúsculas, que pretendem oferecer explicações últimas ou definitivas para uma determinada realidade nos termos de uma determinada forma de pensamento ou linguagem. A teologia, por exemplo, torna-se um metarrelato quando – num ímpeto semelhante ao dos “amigos de Jó” – abandona sua vocação metafórica, e passa a querer explicar e abarcar aquilo que não pode ser contido em vasos, odres ou caixas. Que podemos falar sobre o “radicalmente outro”? Ora, só uma teologia que, por natureza, também só pode ser “radicalmente outra” em relação a Deus, é capaz de dizer algo dentro de suas limitadas possibilidades, reconhecendo que só se pode conhecer em parte, como o próprio Paulo – talvez o maior teólogo que já existiu – o fez (cf. 1Co 13.12). E isso não tem nada a ver com “acabar com o absoluto”, porque essa é uma impossibilidade. O absoluto é o que está alheio a tudo: é o Totalmente Outro, o Eterno, o Incondicional. Não há razão para se precaver tanto contra a relativização em questão, pois ela não tem em vista o absoluto em si, uma vez que esse não é passível de ser relativizado, tampouco de ser supra-absolutizado – ficar repetindo, em alto e bom som, a Deus que Ele é absoluto (ou todo-poderoso) é tão inútil quanto tentar explicar a um peixe que este sabe nadar. Somente o relativo pode (e deve) ser relativizado, sobretudo quando nutre pretensões ao status de absoluto, ou de ilusões de equivalência. No fim das contas, a supra-absolutização do absoluto ou a tentativa de guarda-lo “a sete chaves” é apenas mais um dos efeitos do desejo por poder que ocupa o interior da religião (e da teologia) há bastante tempo. Nomear ou conceituar um aspecto do Reino de Deus, por exemplo, e então dizer “isso É o Reino”, é o mesmo que pretensamente conferir (a tal conceito) a mesma natureza (absoluta) do Reino. Por isso, a teologia de Jesus era metafórica, pois, ao se referir ao reino nas parábolas de Mateus, capítulo 13, por exemplo, ele nunca disse o que o reino é, e sim com o que se assemelha: “O reino de Deus é semelhante a ...” um homem que semeou a boa semente no campo (v. 24); um grão de mostarda, que um homem tomou e plantou em seu campo (v. 31); um fermento que uma mulher tomou e escondeu em três medidas de farinha (v. 33); um tesouro escondido no campo (v. 44); um que negocia e procura boas pérolas (v. 45); uma rede, que lançada no mar colhe peixes de toda espécie (v. 47). Diante das acusações de que gente pós-moderna não se importa com a verdade, McLaren então parte da ideia – talvez um pouco romântica, e quem sabe se referindo a uma parcela dos pós-modernos (são tantos, então penso que sim) – de que “as pessoas

pós-modernas se importam tanto com a verdade que não querem fingir que uma opinião subjetiva ou ‘vista de um ponto’ seja mais do que ela realmente é. E se importam tanto com a verdade que questionam a habilidade da linguagem de comunicá-la suficientemente” (McLaren, 2008, p. 235). Mas isso ainda pode nos colocar diante de um impasse ético, do tipo: bem, se a verdade não nos é acessível, como distingui-la da mentira? Como justificar, do ponto de vista hermenêutico, o sincero escândalo que nos provocam tantos políticos e outras pessoas que mentem? Ou seja, ao se dizer adeus à verdade (como conhecimento absoluto sobre algo), como reconhecer e denunciar a mentira nociva ao bem individual ou comum? Coadunar-se-á com a descarada mentira? Ou, indo adiante, sem o parâmetro da verdade, como é possível se definir e diferenciar coisas tais como “mentira” e “bem comum”, como certo ou errado? Se a verdade absoluta é “mais um perigo que um valor”, como declarou Gianni Vattimo, que valores ainda podem ser nutridos sem que resultem no mesmo perigo ora rechaçado: o de absolutizar aquilo que é apenas particular? A proposta que Vattimo oferece em seu livro Adios a la Verdad (2010), parece ser uma solução aberta e provisória ao problema: se é passível que tal conflito não possa ser vencido pela pretensão de se chegar à verdade das coisas, uma vez que o produto sempre será diferente da verdade mesma, resulta que não mais se busque a verdade universal, mas verdades comunitariamente válidas aos diferentes grupos vivendo numa situação histórica dada. No “adeus à verdade” suspende-se a pretensão a uma validade universal de pressupostos, e se dá boas-vindas a “verdades particulares” com validade relativa e temporária. Assim, não se trata de um total abandono da tarefa de distinguir práticas ou discursos que sejam verdadeiros ou falsos, mas de reconhecer que “a diferença entre verdadeiro e falso é sempre uma diferença que surge de interpretações mais ou menos aceitáveis e compartilhadas”, como produto não do autoritarismo da visão de uns sobre outros, mas de consensos solidariamente possíveis. Não que o papel do diálogo seja, necessariamente, o de produzir consenso, nem que o do intelectual não possa, eventualmente, ser o de persuadir seus pares de sua posição. A diferença, para Vattimo, está na palavra interpretação, de modo que: “A filosofia não é expressão da época, é uma interpretação que com certeza se esforça por ser persuasiva, mas que reconhece sua própria contingência, liberdade e riscos” (Vattimo, 2010, p. 61, tradução minha). A filosofia (e/ou a teologia) que emerge, então, dessa abertura para a pluralidade de visões e interpretações diferentes, é carente de princípios últimos ou, por assim dizer, pós-fundacionalista. Mas, se ela é débil de fundamentos e de uma origem, como pode falar racionalmente e/ou não descambar para um irracionalismo puro e simples do tipo vale-tudo? Na perspectiva desse autor, ela o faz a partir de “eleições responsáveis” ou pontos de partida explícitos (não neutros, nem universalizantes), que surgem de necessidades plantadas não pelo olho de Deus subjacente a toda moral, mas pelo contexto e suas situações específicas. Vattimo parece propor, assim, a troca de uma ética universal (com imperativos categóricos) por uma ética situacional (com imperativos contextuais, forjados a partir de uma pertença comunitária e, assim, relativos a um lugar). A isto ele chama de ética da finitude: “aquela que tenta se manter fiel ao descobrimento da situação, sempre insuperavelmente finita, da própria procedência, sem esquecer-se das implicações pluralistas de tal descobrimento” (Vattimo, 2010, p. 110, tradução minha). Isso se estende também ao que chamamos de “verdades” ou da “ética” do cristianismo. O cristão pode se manter fiel aos princípios nos quais acredita sem ter a pretensão de que eles sejam adotados irrestritamente por todas as pessoas, especialmente no âmbito público e civil. A ideia de que “precisamos implantar os valores cristãos na sociedade” tende a perder sua preeminência, não para que o relativismo – como parece

ser o temor de tantos – tome seu lugar e se instaure o regime da desordem (uma espécie de anarquismo ético), e sim para que esses “consensos solidários”, sobre os quais Vattimo fala, sejam possíveis (ou pelo menos pensáveis por um grupo mais significativo de pessoas), levando em conta os direitos humanos básicos – que os cristãos deveriam ser os primeiros a abraçar, se é que são tão “éticos” quanto pensam e se é que sua ética transpassa o âmbito dos “princípios morais individuais” (do “eu” não faço isso ou aquilo) – e não o que “a igreja”, ou “um governo cristão”, ou uma “bancada evangélica” quer determinar como regra para todo mundo. Se os cristãos não colocam como uma voz no coro de múltiplas vozes que se fazem ouvir na sociedade, talvez seja melhor que se calem; se não se podem contentar no papel de cooperadores (e não paladinos ou detentores) com o evangelho, talvez seja melhor não atrapalhar o processo; caso prossigam sendo teimosos em não se abrir para o diálogo (mais por medo que por convicção), provavelmente prosseguirão falando apenas de si para si mesmos numa congratulação universal dos que se colocam como os fiéis defensores da verdade. Os “demais cristãos”, marginais por natureza, que não pensam assim, devem ser exilados sob a pecha de “liberais”, “hereges” ou “apostatas”, quando não “anticristos”, porque tanto sua forma de pensar, quanto de ser, não estão de acordo com o que “a Bíblia diz”. “Compare com o que a Bíblia diz”, afirmam alguns desses fiéis (mais retos que a lei), “e verás que estás fora da verdade!”. Para esses, a equação é muito simples: “a Bíblia diz” é igual a “Deus diz”. Se eu repito, fielmente (ou seja, de modo literal), o que a escritura está dizendo, então a minha palavra corresponde à Palavra de Deus. Logo, se alguém contradiz a minha palavra, contradiz a Palavra de Deus e, portanto, é um herege. Isso é um exemplo tosco de como se pode perder de vista a lição de Jesus nas parábolas do Reino: só podemos comparar linguagem com linguagem e não linguagem com “o fato”, “a realidade”, “o ser”, “a essência”, “a verdade”, e assim por diante. O que preocupa aos cristãos em geral é uma coisa chamada “critério de decisão”. Qual é o critério que devemos adotar para decidir sobre questões de cunho moral (já que entramos no assunto)? Richard Rorty, em Contingência, ironia e solidariedade (2007), apresente uma interessante contribuição nesse sentido. O problema, para ele, não é a busca por critérios em si, mas a busca deles no mundo (ou em Deus) na expectativa de que ele “fale”, ou melhor, dite o que é ou tem de ser. Essa tentação de buscar critérios no mundo é devida a tendência de pensar no mundo, ou no próprio ser humano, como possuidor de uma “natureza intrínseca”, uma “essência”. Como não alcançamos essa essência (apenas pretendemos), o resultado é a “tentação de privilegiar uma dentre as muitas linguagens com que habitualmente descrevemos o mundo ou nós mesmos”, e a consequente criação de “vocabulários-como-totalidades” (Rorty, 2007, p. 31), ou, diria eu, de vocabulários-deuses. Evitar essa tentação é minha proposta aqui, destinada particularmente aos próximos da fé, e é também a proposta de pós-modernos como Rorty e Vattimo. Para isso é necessário um sacrifício: não o sacrifício da verdade, mas o sacrifício pela verdade – se é que ainda nos importamos com ela, e não apenas estamos interessados no poder ou status que a pretensão de possuí-la, ou que sua posse efetiva como efeito do “abuso espiritual” ou religioso, nos confere. O sacrifício da verdade acontece sempre que alguém alega tê-la encontrado, em seu estado absoluto, e a codificado em uma linguagem; já o sacrifício pela verdade é um sacrifício de si mesmo e da visão de que minha linguagem e teologia correspondem ao modo como as coisas (Deus, sua Palavra) realmente são. O sacrifício pela verdade é uma imitação do sacrifício de Jesus – o caminho, a verdade e a vida –, que como Ser-Verdade se sacrificou por amor, ao contrário de muitos dos que

dizem seus seguidores, que continuam, em nome de uma versão tremendamente distorcida dele, sacrificando o amor ao próximo em nome da apologia da verdade: que mata, trucida e exclui. Por fim, como destaca Rorty (2007, p. 33), “dizer que devemos abandonar a ideia da verdade como algo que está aí, à espera de ser descoberto, não é dizer que descobrimos que não existe verdade alguma”. Igualmente, dizer que não podemos mais aceitar critérios absolutos, porque supostamente atribuídos pela “natureza intrínseca” de algo, não é dizer que a partir de agora vivemos a partir de critério algum ou do “critério de me der na telha”. Apenas admitimos, pelo bom senso evangélico, que são nossos critérios, que podem e devem ser colocados no mesmo patamar e em diálogo com outros critérios, em busca não de que um se estabeleça ou prevaleça sobre outro, mas de que encontremos aqueles “consensos solidários possíveis”, para construção de uma sociedade democrática e de direitos, na qual os marginalizados pelo sistema também tenham voz, e não de uma sociedade regida por parâmetros da minha religião. “Mas eles precisam saber que Cristo é a Verdade!”, pode bradar alguém. Respondo com outra pergunta: como é que alguém “sabe” que Cristo é “a verdade”? Será por meio do convencimento proveniente de uma lógica teológica ou apologética qualquer? Será por ter sido testemunha ocular do poder de Deus? Vamos supor que um descrente X chegue a ser convencido, pelos crentes A e B, de que “Cristo é a Verdade”. Convenceram-no de que a verdade do cristianismo é plausível, e de que é absoluta, ou seja, de que está acima e, portanto, torna mentirosa qualquer outra forma de saber, religioso ou não, que reivindique ser verdade. Seria possível inferir pela situação descrita que: já que X foi convencido por A e B de que Cristo é a verdade, logo X tornou-se agora um cristão convertido? Mais do que isso: imaginemos que X tenha também presenciado um milagre, como a cura de um paralítico, que A e B obviamente atribuíram a Deus. Isso deve, necessariamente, levar-nos a crer que X agora se tornou uma pessoa de fé, que crê no “Deus de milagres”? Pode ser que sim, pode ser que não; mas não há garantias cósmicas, nem provas cabais de que seja (ou tenha de ser) assim. Afinal de contas, a vida humana, seus encontros e desencontros com Deus e consigo mesma, tem uma dimensão de mistério, de inexplicável; Deus, por sua vez, tem seus próprios meios de se fazer conhecido, com ou sem nossa “santa ajuda”, e não é absolutizando nossos meios (nossa linguagem) que garantiremos que alguém venha a conhecer ou aceitar Deus. Estou convencido de que meu papel, ou melhor, meu modo de ser é ser testemunha, por palavras e ações (e, no contexto em que estou inserido, mais por ações que palavras) do Cristo que, pela graça, me fez e me faz ser quem sou, ou seja, do Deus que “É”, apesar de eu não ser, e que, parafraseando Tillich, me dá a “coragem de ser” apesar de não ser. O “convencimento” é papel de Deus; a salvação também. Nesse sentido, finalizo essa parte com as palavras de Michel Quoist: Qualquer pessoa pode mudar de opinião, e algumas vezes bastante rapidamente. Mas, raramente acontece que alguém mude de opinião pelos argumentos de um outro que decidiu convencê-lo. Assim, se, por uma verdadeira preocupação de difundir a verdade você resolveu fazer alguém evoluir, não diga: vou demonstrar-lhe que está errado, mas, vou ajudá-lo a descobrir a verdade por si mesmo. Muitas vezes o outro estaria pronto para aceitar “a” verdade e não a “sua” verdade. Por que você monopoliza a verdade? Ela existe independentemente de você. Em noventa por cento dos casos, quando você a açambarca, você a turva. Se você quiser ser bem sucedido em suas discussões, esqueça-se e respeite o outro. Não seja o rico que dá uma esmola ao pobre, mas o

amigo que corre em direção ao amigo para se unir a ele, e com ele descobrir a verdade. Trata-se de uma verdade religiosa? Então nunca se esqueça que o cristianismo não se demonstra por meio de raciocínios ou de ideias [sic.], pois antes de ser uma doutrina, o cristianismo é uma pessoa. A verdade é Cristo. E não se discute Cristo, acolhe-se Cristo. “Discutir religião” é, antes de tudo, dar testemunho e ajudar o outro a encontrar Cristo (Quoist, 1978, p. 163).

Que fazer? Reimaginando a igreja em missão Quais são as (possíveis) consequências diretas disso sobre a integralidade da missão dessa igreja aqui imaginada? Gostaria de nomear (e na verdade reforçar) principalmente um: a importância e o desafio de assumirmos e lidarmos com nossas fraquezas enquanto caminhamos pela vida em missão, especialmente hoje. David Bosch (1979, p. 76, tradução minha) disse: “A verdadeira missão é a mais fraca e menos impressionante atividade humana que se pode imaginar, a própria antítese de uma teologia da glória”. Bosch não está sozinho nesta percepção. José Comblin (1983, p. 56) também escreveu algo nesta direção, servindo de inspiração ao próprio Bosch em sua abordagem à espiritualidade missionária de Paulo: “A fraqueza não é nenhum acidente da missão, nenhuma circunstância que se tenha que lamentar. Muito pelo contrário, é uma condição prévia de qualquer missão autêntica”. Ora, quando olhamos para o caminho (missionário) de Jesus, a imagem não é de triunfo, glória ou conquista, mas de submissão, fragilidade e sofrimento. Com isso não quero dizer que, em Jesus, Deus foi derrotado, e sim que nele vemos o sentido de que perder nem sempre é signo de derrota; pode ser caminho para uma vitória não triunfal, mas significativa. Assim é, para mim, a relação entre a cruz e a ressurreição. A mensagem da cruz carrega o gene da morte, que gera vida, como no paradoxo do Cristo: tentar salvar a vida é, na verdade, perdê-la; já perder a vida, pela causa certa, é achá-la (cf. Mt 17.25). Jesus também falou em Mateus sobre negar a si mesmo: “Se alguém quer vir após mim, a si mesmo se negue, tome sua cruz e siga-me”. O paradoxo, porém, é que negar-se é uma forma de declarar a morte de algo dentro de si (o que Paulo chama de “velho homem”), a fim de fazer brotar e florescer da própria vida um novo ser humano. Não, Deus não é sádico; não quer que a gente morra apenas pelo prazer mórbido de nos ver morrendo; não nos criou para rejeitar a vida, mas para afirmá-la. No entanto, segundo Jesus, é negandose a si mesmo, desfazendo-se de todo orgulho de ser, abraçando a própria fragilidade, reconhecendo-se como ser codependente, é que podemos afirmar a vida e a liberdade humanas. Jesus, pelo que sei, caminhou à margem da religião e da cultura dominantes; abraçou não apenas as vulnerabilidades humanas como escolheu ser humilde entre os humildes e desgraçados; não primava por demonstrações sobrenaturais de poder, pelo contrário, em muitos milagres que realizou pedia total sigilo daquele(a) que o recebeu; não partiu para o caminho da apologética ou defesa da fé, cercando-se de argumentos fortes para “defender” a perspectiva do reino de Deus, de modo que, em Jesus, não se faz ninguém se achegar ao reino pelo poder do argumento, mas pelo caminho da fragilidade, da infantilidade espiritual, do diálogo, do arrependimento, do perdão e da graça. Como lembra José Comblin (1983, p. 58), “os homens são vulneráveis. A possibilidade de mudança radica justamente nessa vulnerabilidade”. Além disso, Jesus não se aliou às estruturas e poderes de seu tempo (como vimos no exemplo de Lucas), ao mesmo tempo em que rejeitou o caminho da usurpação de ser “igual a Deus” (cf. Fp 2.6); apresentou a boa nova do reino em obediência à sua missão,

sem se preocupar em agradar a ninguém ou mesmo com o possível insucesso, rejeição ou má reputação. Jesus foi um profeta, e profeta que é profeta não esconde sua fragilidade nem teme perder a própria cabeça. Por essa razão é que, segundo vejo, as perspectivas de que a missão não tem nada de impressionante, é antítese de uma teologia da glória (Bosch), e da fraqueza como condição prévia de uma missão autêntica (Comblin), fazem jus à visão bíblica e primitiva de missão. Isto porque, conforme analisa Comblin (1983, p. 60), a tentação pela qual passa o cristão e a cristã que desejam dar testemunho de sua fé hoje, é parecida com aquela enfrentada por Jesus: “a tentação de messianismo, a tentação da força, do poder, do dinheiro e da cultura”. Como ainda hoje podemos resistir a essas tentações? Pensando naquelas pessoas e naqueles perfis um tanto genéricos do começo, naquela fatia de cultura inicialmente pontuada, quero terminar levantando algumas pistas de como ser essa igreja “frágil e irrelevante” ao modo de Jesus – imaginando que ela pode ser sinal da esperança viva do evangelho para essa fatia de cultura, e quem sabe para outras também: (1) Ofereça seus dons e talentos ao mundo e à cultura a que pertencem, e não somente à subcultura evangélica ou ao “mundinho da igreja” e dos crentes; ninguém verá a luz que brilha em nós se essa luz não brilhar em tantos ambientes quantos for possível – chega dessa besteira de que a gente não é do mundo! (2) Use a criatividade que Deus te deu, e a liberdade no Espírito para arriscar novos passos, para ser igreja onde e para quem ninguém quer ser; não precisa necessariamente fundar novas congregações, mas inventar novos modos de ser igreja, bastando, para começo de tudo, estar disponível às pessoas e atento/a ao que o Espírito sopra. (3) Esteja aberto/a a “novos diálogos”, novas possibilidades de interface entre a fé que há em vocês, e sobre a qual são chamados a dar razão, e as outras formas de crença e cosmovisões, sejam elas religiosas ou não, expressando convicções com firmeza e ao mesmo tempo generosidade, e, de preferência, renunciando à tentação de ter “a última palavra”, aquela que deve convencer e prevalecer. (4) Envolva-se em relacionamentos de vida, companheirismo e amizade, onde a fé e a não fé, onde os diferentes gêneros, as diferentes posições políticas, opções sexuais e ideológicas, as diferentes concepções éticas, possam conviver em paz e, sobretudo, com respeito mútuo mesmo em meio a diferenças aparentemente inconciliáveis; lembrando que o maior dom que temos a oferecer ao mundo não são nossas palavras, nossa inteligência, nossos títulos, ou nosso trabalho; o maior dom somos nós mesmos. E Jesus disse que não havia maior dom, ou melhor, maior amor que esse: o de dar a vida por seus amigos. (5) Por fim, desenvolva o que Paul Tillich chamou de “coragem de ser”: de ser quem se é, com o muito ou o pouco que lhe foi dado, de ser humano, de ser gente: que assume suas fragilidades, que reconhece suas dúvidas, que divide suas dores com o mundo. Muitos dessas pessoas com que convivemos, nos encontramos, ou apenas cruzamos não estão tão interessados em campeões (no discurso, nas ideias, na espiritualidade), em religiosos de espírito cruzado, mas em pessoas “demasiadamente humanas” (Nietzsche) assim como elas. É um refrigério saber que o outro também dores de parto semelhantes às minhas. O que não pode ser assumido também não pode ser redimido, parafraseando aqui do que bem disse Segundo Galilea (1979, p. 47). Termino com uma frase de David Bosch (1979, p. 77, tradução minha), daquelas que precisamos lembrar não apenas na mente, mas gravar com lança pontiaguda no

coração: “A igreja não é composta de gigantes; apenas seres humanos feridos podem guiar outros até a cruz”. Referências bibliográficas BAUMAN, Zygmunt. A cultura no mundo líquido moderno. Rio de Janeiro: Zahar, 2013. BOSCH, David. A spirituality of the road. Scottdale, Pennsylvania: Herald Press, 1979. COMBLIN, José. Teologia da missão. 2ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1983. DEMO, Pedro. Metodologia científica em ciências sociais. 3ª ed. São Paulo: Atlas, 1995. GALILEA, Segundo. Seguir a Cristo. 2ª ed. São Paulo: Paulinas, 1979. HERVIÈU-LÉGER, Daniéle. O peregrino e o convertido. Petrópolis, RJ: Vozes, 2008. LYOTARD, Jean-François. O pós-moderno. 3ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1988. MAFFESOLI, Michel. O tempo retorna: formas elementares da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2012. MCLAREN, Brian. A igreja do outro lado. Brasília: Palavra, 2008. MENEZES, Jonathan. Espiritualidade em transformação: sentido, humanidade e vida. Rio de Janeiro: Novos Diálogos, 2015. NOUWEN, Henri. O perfil do líder cristão no século XXI. Belo Horizonte, MG: Atos, 2002. PANOTTO, Nicolás. Sendas nómades: encuentros, experiencias, fe, teología. Valparaíso: Concordia Ediciones, 2012. QUOIST, Michel. Construir o homem e o mundo. São Paulo: Duas Cidades, 1978. RORTY, Richard. Contingência, ironia e solidariedade. São Paulo: Martins Fontes, 2007. VATTIMO, Gianni. Adios a la verdad. Barcelona: Editorial Gedisa, 2010 _________. Depois da cristandade. São Paulo: Record, 2004.

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