Igreja de Cristo Pentecostal no Brasil: um panorama histórico-teológico e sinais de profecia em plena ditadura militar

June 2, 2017 | Autor: W. de Góis Silva | Categoria: Ditadura Militar, Pentecostalismo, Pentecostalismo Brasileiro
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Igreja de Cristo Pentecostal no Brasil: um panorama histórico-teológico e sinais de profecia em plena ditadura militar Por Wallace de Góis Silva1

Este artigo pretende, primeiro, introduzir aspectos históricos da Igreja de Cristo Pentecostal no Brasil (ICPB), uma denominação pentecostal fundada entre 1935 e 1937, pelo missionário estadunidense Horace Ward, da Pentecostal Church of Christ (PCC). A igreja no Brasil está inserida entre os períodos denominados de “primeira” e “segunda onda” do pentecostalismo brasileiro, e apesar de relativamente antiga e tradicional é pouco conhecida. Depois apresentaremos um panorama do ensino bíblico-teológico sobre a sociedade e o governo, a partir de temas que permitem verificar a cosmovisão da igreja em suas revistas de escola dominical em dois períodos históricos: 1) dois anos antes e dois anos depois do golpe de 1964 (portanto de 1962 a 1966); 2) do ano de 1975, que abordou temas interessantes para essa análise dentro dos chamados “anos de chumbo”. A revista começou a ser publicada em 1959, e foi, pelo menos inicialmente, a tradução de um material formulado por um casal de pioneiros da ICPB que produziam antes para sua antiga denominação, a Pentecostal Holiness Church. Encontramos nas primeiras edições, até por volta de 1966, uma forte tendência evangelical, com orientações taxativas sobre amor ao próximo, serviço, ação social e afirmações favoráveis ao governo. Depois, em 1975, o redator era pela primeira vez um brasileiro, prática e ideologicamente mais progressista e representa uma mudança significativa nos temas e enfoques da lição: assuntos como missão, profetas menores, justiça, economia e pobres numa perspectiva que dialoga facilmente com as teologias contextuais como a Missão Integral e a Teologia da Libertação e os movimentos sociais de inclinação à esquerda.

1 Breve histórico da ICPB A Igreja de Cristo Pentecostal no Brasil caminha para os seus 80 anos de fundação no país. O movimento que deu origem à ICPB começou em 1908, dois anos depois de Azusa, na região de Ohio e Kentucky (nordeste dos EUA), quando um presbítero 1

Bacharel em Teologia e Mestre em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo. Atua como ministro evangélico e professor de teologia da Igreja de Cristo Pentecostal no Brasil.

metodista chamado John Stroup (1853-1929) recebeu o batismo no Espírito Santo no templo da missão pentecostal em Findlay, Ohio, que, em 1912, seria a primeira igreja local a se chamar Assembleia de Deus. Stroup era evangelista do movimento da santidade wesleyana (segunda bênção), e assim que recebeu o batismo pentecostal (terceira benção) se tornou pioneiro desta experiência em algumas cidades da região, o que o levou a ser expulso de sua denominação e a não ser aceito em outras igrejas tradicionais. Em 1917, como fruto de sua pregação e apoio das congregações que já tinha constituído informalmente, fundou a Pentecostal Church of Christ (Igreja de Cristo Pentecostal), em Flatwoods (então Advance), KY, e foi eleito seu Bispo. Stroup justificou que o nome da igreja foi revelado por Deus com o propósito de restaurar a doutrina e a experiência do Pentecostes na Igreja de Cristo. Em 1934, a Convenção da PCC enviou o missionário Horace Singleton Ward (1906-1993) ao Brasil. Ele aportou no Rio de Janeiro em 1935 e pregou entre as Assembleias de Deus. Depois, viajou para o nordeste e após alguns anos de trabalho fundou a primeira ICPB em 24 de janeiro de 1937, em Serra Talhada, PE. Sua esposa Carolyn Ward, com quem teve os três filhos no Brasil, viria no ano seguinte. Nos EUA, a PCC passaria a ser IPCC ou Igreja de Cristo Pentecostal Internacional em 1976, quando se uniu às Assembleias Pentecostais Internacionais, ou IPA em inglês. A história da IPA está ligada por um jornal ao importante pregador metodista Gaston Barnabas Cashwell (1862-1916) que se tornou pentecostal no galpão de Azusa e foi considerado o “apóstolo pentecostal do sul”. Ele fundou muitas congregações e o jornal Bridegroom's Messenger em Atlanta. Em 1919, o casal pentecostal Hattie e Paul Barth fundou o Instituto Bíblico Beulah de Ensino Superior, existente até hoje, e assumiu por vários anos a continuidade do Mensageiro. Mais tarde, já em 1936, as IPA, que são resultado da união de igrejas e conferências pentecostais ligadas ao casal Barth, prosseguiram com a administração do Beulah e a publicação do jornal. Na década de 1970, a PCC e a IPA se uniriam durante o mandato de Chester Miller (1917-2003) como superintendente geral da PCC. Miller serviu como missionário da PCC no Brasil entre os anos 1941 e 1952, como pastor e superintendente nacional, até que retornou ao seu país para ser o bispogeral. Sua esposa, Rachel Miller era “profetisa” (pregadora licenciada) nos EUA e bastante atuante, inclusive no Brasil. Em 1952, chegou também ao país o casal missionário Annie e Russel Frew. Estes foram responsáveis pela implantação da revista

de escola dominical, ao lado de Ernest Grimm, um pregador pentecostal independente de rádio e de tendas. Grimm, estoniano, fugiu para a Alemanha aos 14 anos por causa da invasão comunista. Lá fez parte da Força Aérea e chegou a ser prisioneiro de guerra. No Brasil aceitou o convite de Horace Ward para se unir à ICPB. Fundou a igreja em Santo André, SP, em 1958, a partir, dentre outros, de um grupo de presbiterianos que receberam o batismo com Espírito Santo. O primeiro superintendente brasileiro foi o nordestino José Pinto de Oliveira, eleito na convenção de 1964 quando a missão brasileira teve sua autonomia administrativa. Ele e seu pai, Eloy Pinto, lideravam a Igreja Pentecostal de Cortês, PE, que se uniu à ICPB nos anos quarenta. Segundo as últimas estatísticas a que tivemos acesso, ICPB tem cerca de 32 mil membros e 400 locais de culto espalhados por todos os Estados. Juntamente com a IPCC mantém missões e projetos sociais internacionais no Sudão do Sul, Quênia, Senegal, Venezuela, Argentina, Filipinas, Itália, México, Uruguai e Guiana Francesa. A revista de Escola Dominical continua a ser publicada, com poucas interrupções desde a sua primeira edição, em 1959. Desde meados dos anos 1950 já fazia preocupação com a formação teológica, e isso aconteceu através da Escola Bíblica Pentecostal do Sul, em Santo André, SP, e depois, nos anos 1970 pelo Instituto BeiraMar, em Florianópolis. Ambos eram administrados por Grimm que trabalhava com os alunos em regime presencial e à distância. Evoluções da ideia dariam origem ao Seminário Teológico Pentecostal do Brasil, em 2004, com reconhecimento da ASTE.

2 Tensão interna e apoio ao Governo expressos na época do Golpe Militar de 1964 As tensões com um modelo ditatorial de governo não estavam presentes somente na política brasileira, mas, também na política da ICPB. No período em questão, o pastor José Pinto de Oliveira tornou-se o superintendente geral e era tido por muitos como uma figura autoritária e centralizadora. Permaneceu na liderança por mais de vinte anos. Pinto tinha amizade com alguns políticos, entre eles o ex-governador de Pernambuco, Miguel Arraes, de trajetória socialista e deposto pelos militares em 1964. Ernest Grimm foi o principal redator das revistas de escola dominical no período estudado inicialmente (1962-1966), e permaneceu no cargo até 1970. Diante das tensões do contexto interno, o seguinte trecho parece criticar a liderança nacional da igreja:

Um servo do Senhor tem que servir e não mandar. Por isso Jesus não constituiu algum discípulo superior, para que exercesse autoridade sobre os outros. Não há donos da Igreja! O rebanho não é do Pastor – é do Senhor! Tirania, despotismo e autocracia não têm lugar no reino de Deus. O Filho de Deus veio para servir e não para ser servido. (GRIMM: 1964, p.30)

Da edição de 1959, a primeira, destacamos duas coisas que consideramos importantes para fins de comparação, apesar de ser um período fora do nosso recorte. Em primeiro lugar, as questões sociais. Elas são tradadas na perspectiva da alteridade e do servir ao próximo: “O maior gozo na vida vem pelo servir humildemente aos outros para a glória de Deus”. (FREW; FREW; GRIMM: 1959, p. 2). Outra lição diz ainda que “A experiência cristã deve se expressar na preocupação pelos outros” (p. 20). O corpo redatorial era composto primeiro pelo casal estadunidense Annie e Russel Frew (que faleceria ainda em 1959), e Ernst Grimm. Em 1960, Carolyn Ward, esposa de Horace Ward, entrou na equipe. Do quarto trimestre de 1960 até 1970, somente o nome de Grimm aparece. No ano de 1959 também se falava de maneira inclusiva sobre a participação feminina na comunidade e na evangelização: “A religião de Jesus Cristo nunca contou as mulheres como inferiores aos homens, mas tem as honrado, e, por outro lado, tem sido grandemente divulgado por elas.” (p. 33). Essa afirmação, que não voltaria a se repetir, se fazia relevante devido à presença marcante das missionárias Carolyn Ward e Annie Frew, e do contexto de seca que forçava os homens a se ausentarem por longos períodos das igrejas e famílias, e consequentemente, as mulheres tomavam as rédeas. Agora, a partir de 1962 a 1966 podemos verificar mudanças graduais nas concepções que tocam o tema da sociedade e do governo. A cristologia, altadescendente, carrega um fortalecimento da moral e tende a levar a uma ética de indivíduos. A divindade e a humanidade do Cristo se revezam em momentos diferentes da vida de Jesus, e continua atuando como antes: “Ainda hoje grandes maravilhas estão sendo operadas no Nome glorioso de Jesus Cristo.” (GRIMM: 1964). Porém, nela “Cristo veio ao mundo para servir os indignos e nós somos desafiados a servir junto com Ele” (GRIMM: 1962, p.16) e “devemos usar os Seus métodos de trabalho, obedecer os Seus mandamentos, seguir o Seu exemplo e andar como Ele andou.” (GRIMM: 1965, p. 12). Na revista o ser humano é agente da evangelização e alvo da salvação. A ênfase maior está no aspecto imaterial do ser humano, mas levava em consideração as

necessidades humanas como um todo: “O homem não é somente um corpo que precisa de cura; ele é essencialmente uma alma que necessita da purificação e renovação. (...) A libertação é para corpo, alma e espírito!” (GRIMM: 1962, p. 3). O autor alerta para o fato de que o homem não tem poder para vencer o diabo e as dificuldades da vida a menos que confie em Deus e obtenha seu poder que vem pelo batismo no Espírito Santo. (GRIMM: 1964, p. 35) Ao diabo ou Satanás, além de constante opositor de Jesus, de Deus, dos crentes e da Igreja, é atribuída a responsabilidade pela causa do mal econômico, social e político e de se aproveitar deles: “Os tributos do rei tinham se tornado insuportáveis. Havia calamidade pública em Jerusalém. É isto que o inimigo gosta. Ele leva o povo à miséria por meio de armadilhas, a fim de distanciá-los de Deus. O diabo é o maior aproveitador da miséria” (GRIMM: 1964, p. 40-41) A política dos tempos de Davi no Antigo Testamento é entendida na revista como uma manifestação física da dimensão espiritual, um conflito entre Deus e o diabo (GRIMM: 1962, p. 22). Embora não se excluísse a participação humana, se alguém poderia fazer algo realmente relevante esse alguém seria Deus. Porém, atitudes de caridade e gestos de compaixão eram bem vindos.

3 Deus e seu reino na sociopolítica da revista da ICPB: o já e o ainda não A soberania de Deus é o fator determinante na formulação do pensamento sobre o reino de Deus no presente, na dimensão do “já”. Em 1965, já dentro do período militar, o autor declarou que os crentes devem se submeter à autoridade do governo: A responsabilidade política do crente – Romanos 13.1-5. Paulo vê o governo como instrumento de Deus. Deus dá aos governadores terrenos autoridade para combater o mal. Por isso o crente deve obedecer ao governo. O governo humano foi instituído por Deus como consequência da queda do homem no Paraíso. (GRIMM: 1965, p. 29-30)

Isso porque, como se disse mais de uma vez, é Deus quem o legitima: Deus tem dado aos governos autoridade para combater o mal de acordo com os princípios de justiça e igualdade. O governo tem autoridade para punir os malfeitores e transgressores que põem em perigo a vida e o bem estar dos cidadãos do país. (Idem)

Há, sem embargo, um convite para o engajamento político por meio de orações e no dever diário de cumprir o papel de cidadão:

Devemos sempre levar a Deus as nossas súplicas em favor do governo da nossa Pátria, bem como pelos governos de quem dependem os destinos do mundo. Os crentes verdadeiros sempre tem se destacado como excelentes cidadãos, ajudando na construção da sua Pátria terrena. O povo de Deus deve ser um alicerce firme no país que vive – um benefício aos seus concidadãos e ao governo. (Idem) (grifo pelo autor)

Um ano antes dessas declarações e poucos meses depois do golpe militar de 1964, o comunismo é citado como uma alternativa política ineficaz. Não obstante, há posicionamentos contra a guerra e anúncio da esperança do reino vindouro de Deus, que acabará com os problemas sociais, econômicos e políticos: A ação benéfica da Palavra de Deus fará conversão rigorosa até das armas de guerra. Pelo preço de um gigantesco avião bombardeiro atômico poderá se construir uma cidade para 2.000 pessoas, completa com escolas, hospital e outras facilidades! E quantos milhares de aviões estão sendo construídos! No glorioso reino de Deus (...) não mais haverá disputas sobre terras, propriedades e semelhantes. Cada pessoa terá a sua propriedade particular. Quão diferente isto é do ensino comunista onde não há propriedade particular, sendo tudo do governo! (GRIMM: 1964, p. 14)

A crítica a esse modelo nos parece tocante principalmente pela sua visão de mundo em que as relações são construídas em torno das lutas de classe e explicadas, sobretudo a partir de aspectos econômicos, excluindo-se e na de certa forma negando a participação divina na história. Além disso, é evidente que Grimm não guarda boas lembranças de sua própria experiência com o que chamou de comunismo, e isso aparece nos seus textos. “Parecemos ter o Império do comunismo em certas partes do mundo, porém isto não está dentro do plano de Deus, no que concerne a dominação do mundo inteiro. Até a instalação do Reino eterno de Deus não haverá mais Impérios como nos antigos tempos.” (GRIMM: 1963, p. 17) O milenarismo, o dispensacionalismo e a esperança da volta de Cristo permeiam a revista. Este representa o “ainda não” da teologia da ICPB na época. No período próximo à ditadura, toda esperança futura está na restauração que Cristo fará: O fim do mundo, pelo qual os discípulos indagaram, não se referiu ao fim do universo criado por Deus, mas sim ao fim de uma dispensação. A vinda de Jesus marcou o fim da dispensação mosaica (de Moisés e a Lei) e deu entrada a dispensação da graça. (GRIMM: 1965, p. 16)

4 Ação social e presença pública A perspectiva de cuidado com as necessidades humanas aparece, com tonalidades dualistas, em textos de 1963 (GRIMM: 1963, p. 15). Notamos, porém, que em 1961, a visão apresentada na revista parecia estar mais preocupada com a “unidade [ou dimensão] social”: A chamada de Samuel está cheia de lições, tanto pessoais como sociais. Para uma pessoa ela representa um dos grandes exemplos do Antigo Testamento, de como responder a chamada de Deus. (...) Para a unidade social esta lição mostra a necessidade de uma ação responsável, na família, na comunidade e na nação inteira para desarraigar o descuido e a negligência. Deus tem profetas ainda hoje em dia que falam dos pecados sociais e nacionais e, se não arrependermos, sofreremos o julgamento vindouro como o veio sobre a casa de Eli. (GRIMM: 1961, p. 18)

Se por um lado houve, por volta do início dos anos 1960 avanços do ponto de vista das teologias contextuais no sentido de tratar temas como a responsabilidade social e amor e serviço, houve retrocesso no discurso que legitimava o governo, e por tabela, a ditadura.

6 Uma voz pentecostal contra a ditadura? A partir da edição de 1971, José Pinto, então superintendente geral da igreja, foi o único redator identificado na revista. Ele permaneceu até 1986, quando faleceu. Testemunhos de quem o conheceu deixam claro sua preocupação com causas sociais, principalmente sua presença crítica em grupos de articulação de trabalhadores rurais. Pensando nesse perfil, compartilharemos a visão que encontramos na edição 39 da revista, escrita para ser usada no ano de 1975. O texto em análise é um discurso positivo do ponto de vista das teologias progressistas, e gira em torno dessa afirmativa: “É iníqua uma sociedade que viola os mais elementares princípios de justiça. Provoca a ira de um Deus justo. Clama aos céus a hediondez dos pecados cometidos com base na superioridade do poder econômico.” (OLIVEIRA: 1975, p. 1) No contexto em que foi escrita, as ideias expressas se posicionam, ao menos, contra a ideologia hegemônica que permitiu o Golpe e o cerceamento da democracia e dos direitos políticos e civis de muita gente. Para o primeiro semestre, o tema das lições abordou a cristologia e os profetas menores, e no segundo semestre, tratou de eclesiologia em perspectiva da missiologia.

6.1 Continuidades e rupturas teológicas na revista Agora encontramos uma visão um pouco mais crítica do governo: “As autoridades são responsáveis pela administração da justiça. Não podem omitir-se. Devem agir com retidão, porque a Deus, o Supremo Juiz, prestarão contas de seus atos.” (OLIVEIRA: 1975, p. 1). Esta frase está presente numa lição intitulada Deus exige justiça econômica, que trata do cuidado com os pobres. Seu argumento principal para o contexto da igreja é que “Religião e ética não se separam. Amor a Deus implica, necessariamente, em amor ao próximo. Deus não atende à oração de quem não tem ouvidos para ouvir o clamor do pobre que está sofrendo a injustiça” (Id. Idem). Um tema como este numa revista pentecostal da década de 1970 nos parece um tanto incomum! O ser humano recebe mais responsabilidade: “A justiça é para ser praticada pelo homem. É ela que responde pela consciência entre a ética e a religião. Nisto reside a importância do ato exterior do culto que ao lado do seu sentido espiritual, revela que temos consciência de nossas obrigações para com o próximo.” (Idem, p. 72) Em tempos de ditadura no Brasil (e de Guerra Fria no restante do mundo), uma afirmação como a que segue nos parece bastante peculiar: a) “Ai dos que se estribam em cavalos, e têm confiança em carros" (31:1) b) A tendência humana é pensar que a força de um povo depende do seu poderio bélico. Os grandes impérios do passado desfizeram-se nas areias do tempo. A Bíblia ensina que é melhor confiar no Senhor do que confiar nos príncipes - (Sal. 118:9). (Idem, p. 66-67)

O discurso sobre Deus se mantém ligado ao pensamento evangélico tradicional. Sublinha ainda o papel essencial do amor na conceituação de Deus: O amor é a essência da natureza divina. É a lei e a ética de Deus: É o princípio que preside a todos os atos do Pai celestial, de muitas maneiras. Deus o havia declarado aos homens, até que o manifestasse na dádiva mais preciosa já concedida; que foi o Seu Filho unigênito mandado a este mundo. (Idem, p. 59-60)

A perspectiva mais voltada para questões sociais não impediu uma teologia em que Deus se insere na história humana, e é justamente isso que marca o seu diferencial com relação aos demais deuses: São poucas as revelações no Velho Testamento que Deus faz acerca de si mesmo através da natureza. No Novo Testamento são muito mais escassas ainda. As mensagens dos profetas são, quase sempre revelações de Deus na história. São interpretações dos acontecimentos, mostrando que a história e a própria vida estão dentro dos propósitos de Deus. Por isso a revelação de Deus na

história O distinguia claramente da natureza dos deuses do paganismo. (Idem, p. 65)

Damos destaque ainda para o profetismo exposto no trecho acima. Uma vez que se reconhece a possibilidade de que as profecias sejam leituras de conjecturas, e ao mesmo tempo, possuírem característica de ser “quase sempre revelações de Deus na história”, abre-se o caminho para o senso crítico com relação ao mundo e a igreja, e não exclui a profecia tal como se vivencia na espiritualidade pentecostal. Em adição à definição de profecia, afirma que A mensagem profética era a declaração do propósito redentor de Deus. Era de juízo, quando se dirigia ao pecador impenitente e de misericórdia para os que aceitavam o perdão e a salvação oferecidos por Deus: O profeta, portanto, apontava aos seus contemporâneos a alternativa de aceitarem a salvação de Deus mediante arrependimento e fé ou a de incorrerem no juízo de Deus por insistirem na incredulidade. [...] No cumprimento de sua missão, o profeta denunciava a idolatria, a injustiça social; o culto formal e o secularismo. O formalismo e o secularismo separavam a religião da vida, juntando-se à idolatria e à injustiça social. (Idem, p. 50)

A função do profeta aparece como a voz de Deus no que se refere à relação dos seres humanos com a divindade e na ética entre pessoas. O posicionamento a respeito de Satanás continua sendo o de afirmar sua oposição a Deus, e a nós: Satanás é uma pessoa e é nosso inimigo - É o tentador que nos incita, ao pecado contra Deus. Emprega o mundo e a carne para conseguir os seus propósitos. Não, nunca devemos nos esquecer de quem é ele que se esconde atrás de toda sorte de tentação. [...] Satanás é o príncipe deste mundo, há poderes, portanto, no mundo que estão sob seu controle. Ele dispõe de hostes numerosas, de agentes que obedecem às suas ordens. Felizmente, ele não é onipotente, apesar de ser poderoso. O Senhor Deus estará sempre assentado no trono do universo. (Idem, p. 11)

Mas, aqui se destaca a ideia de que Satanás é o “príncipe deste mundo”, o que coloca os governos humanos sob seu controle. O posicionamento da revista não é igual ao de outrora, no qual se deveria orar pelo governo e reconhecer seu direito de interferir para manter a ordem. Pelo contrário, diz-se que muitos que estão no poder são, na verdade, agentes do diabo. A cristologia continua marcadamente evangelical, reafirmando o aspecto divino e eterno de Jesus como o Deus encarnado, o Filho de Deus: “A verdade mais admirável de que o homem pode tomar conhecimento, é a divindade de Cristo. O reconhecimento e a aceitação deste fato é o dever de todo homem que vem ao mundo.

Sem isto, nada há para os homens no Evangelho, e a Bíblia se torna letra morta.” (Idem, p. 25). Mas relembra que o Senhor cuidava da vida humana em sua integralidade: “Embora sem fazer disto [a cura] o motivo principal de sua missão no mundo, Jesus cuidou do homem no seu todo. Deu atenção ao corpo, e ensinou que este era, e é o tabernáculo do Espírito Santo.” (Idem, p. 13). É o Cristo quem envia o Espírito Santo e empodera os discípulos para o exercício de sua missão, suprindo as falhas e limitações: A obra de Deus é para ser feita no poder de Deus. Como poderíamos enfrentar a oposição do mundo e de Satanás apenas com os nossos débeis recursos? Só o Cristo vivo podia vencer os temores, as perplexidades e as dúvidas dos discípulos, preparando-os para enfrentarem o mundo na qualidade de anunciadores das boas novas de salvação. Só o poder do alto nos habilita a vivermos como testemunhas fiéis do Salvador ressuscitado. (Idem, p. 49)

E ainda, os identifica como profetas, uma vez que a missão do discípulo é proclamar o evangelho: “Estou cheio do poder do Espírito do Senhor” - (Miq. 3:8) Este é o fato imprescindível à missão do profeta. Recursos humanos podem ser úteis, mas não são decisivos no trabalho do Senhor. A pregação, se não parte de um coração cheio do poder do Espírito, pode provocar aplausos, mas não convence os homens do pecado. (Idem, p. 52)

A leitura que a revista faz sobre o tema do Reino de Deus é digna de nota. Nela, o Reino é anunciado por Cristo, e é a única dimensão de poder onde Deus está. Percebe-se ainda a dimensão escatológica do Reino de Deus, com o que a teologia chama de “já”: Cumpridos, os sinais dos tempos, os avisos de Deus e as profecias. Era chegado à terra o reino de Deus. Estava exemplificado na pessoa de Jesus. Esse reino vem dizer-nos que só Deus pode reinar, e só Ele deve reinar sobre nós. É um reino em que o Rei é o Redentor e os súditos são os redimidos. Por isso a mensagem de Jesus foi de arrependimento e fé, trazendo assim as normas preliminares para a admissão no reino de Deus. (Idem, p. 4)

Apesar dos conceitos aproximados no que concerne aos temas de justiça, pobreza, missão e profetismo, mantém-se a noção de reino de Deus como participação ativa na comunidade, quando afirma que “Devemos encontrar tempo para cuidar dos interesses do reino de Deus, para as visitas à casa de Deus, se a nossa vida é de devoção às coisas de Deus”. (Idem, p. 8) Para entender melhor o que isso significa, passaremos agora a uma breve análise da eclesiologia presente nos textos:

Nenhuma organização no mundo se compara à IGREJA. Ela foi instituída por nosso Senhor Jesus Cristo, é formada por indivíduos salvos por Ele, que se arrependeram de seus pecados, que creram nEle como Salvador, e que se sentem transformados pela Sua graça. É uma organização que congrega essas pessoas regeneradas, para que elas promovam a obra do Sim Senhor. Proporciona aos crentes os meios que os ajudam a crescer na graça e no conhecimento de Cristo, tendo como alvo a maturidade cristã e a santidade da vida. As igrejas locais são agências do reino de Deus no mundo encarregadas da proclamação do evangelho. Esta é a sua importante missão. Vêm muito a propósito, portanto, as lições que vamos estudar. Elas nos advertem quanto às sutilezas da propaganda modernista e ecumênica, que procuram desestimular a evangelização. (Idem, p. 50)

Entre aproximações e distanciamentos dos temas do evangelho social e das teologias contextuais na atualidade, percebemos uma reafirmação da comunidade local e da Igreja em seu sentido universal com relação à noção de agência do reino de Deus, mas recua quando se trata de ecumenismo (provavelmente com a Igreja Romana), porque este, segundo argumenta, desestimula a evangelização. Em contrapartida reconhece que a “fé, pela qual nos tornamos membros da Igreja de Cristo, põe-nos em novas relações com Deus. Provenientes de raças, línguas, povos e culturas diferentes, somos feitos um em Cristo, e adorados como filhos na família de Deus” (Idem, p. 73), não deixando de considerar princípios que o movimento ecumênico também valoriza, como a diversidade na unidade e a unidade na diversidade. “Na Igreja, o esforço conjunto, o trabalho cooperativo, demonstra que cada um compreende que sua obra é tarefa da parte global executada por todos.” (Idem, p. 79) Quanto à eclesiologia, apesar de considerar que a igreja é agente do reino e resposta diante da necessidade de defender a justiça, a ação social tem um nível de importância inferior ao que chamam de trabalho espiritual: “Numa igreja ou congregação convenientemente organizada, o trabalho espiritual tem prioridade. A assistência social, embora importante e, que não deve ser negligenciada, não deve ocupar o tempo de que deve dedicar-se à oração e ao ministério da palavra” (Idem, p. 82) Em último lugar, analisamos a escatologia que transparece do conteúdo da revista. A expectativa e certeza pelo retorno de Cristo como desfecho de uma etapa histórica continuam a marcar presença em alguns textos como este: Que o Senhor virá, não há dúvida nenhuma. Este é um dos ensinos mais claros do Novo Testamento. A segunda vinda de Jesus encerrará

o ciclo da história que, de outro modo não teria uma explicação racional. [...] Esta vida tem o aspecto de uma noite escura e longa em que os homens parecem estar vencidos pelo sono da indiferença. A advertência do Senhor é para que vivamos como se esperássemos ainda hoje a Sua chegada. (Idem, p. 39-40)

Percebemos ainda que o autor lida com questões teológicas e racionais de maneira sóbria, pois entende que a parousia não pode ser explicada racionalmente, mas é uma declaração de fé presente num documento sagrado como Novo Testamento. Permanece ainda o alerta a respeito da missão sob a luz da escatologia, que é um dos temas-chave abordados na revista no ano de 1975: Enquanto o Senhor não vem, há trabalho para cada crente nos diversos setores da Sua causa. A nossa atividade visa à preparação do mundo para o glorioso advento do Senhor. Ele espera que cada servo seja encontrado em seu campo de ação. (Id. Ibidem)

Considerações finais Dizem que pentecostais são apolíticos, alienados. Como vimos no caso da ICPB, uma dentre as muitas e variadas denominações pentecostais, o debate sobre política e sociedade estava presente, mesmo que perifericamente ou sob linguagens não consideradas politizadas, mas profundamente significativas do ponto de vista teológico e prático. Outro aspecto que é necessário ponderar é o preconceito generalizante de que os pentecostais foram omissos ou apoiadores acríticos da ditadura militar. É necessário se buscar uma compreensão mais profunda, e ao menos na ICPB o problema é mais complexo. Há ainda diversas pontes de diálogos que precisam ser construídas com o passado e o presente das igrejas, inclusive pentecostais, na esperança de elencarmos juntos caminhos para teologia e prática cada vez mais relevantes. Em tempos de reflexão por ocasião dos 50 anos do Golpe Militar é fundamental relembrar a história, para aprendermos com nossos erros e acertos, e inclusive, para garantir que atrocidades e retrocessos como os que começaram em 1964 nunca mais aconteçam!

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