(III) HORCH, Rosemarie E. - As embarcações de madeira do rio Amazonas (Séculos XVI-XVIII)

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FIVE HUNDRED YEARS OF NAUTICAL SCIENCE 1400-1900 Proceedings of the Third International Reunion for the History of Nautical Science and Hydrography held at the National Maritime Museum, Greenwich 24 - 28 September 1979

Edited by Derek Howse Keeper of Navigation and Astronomy, National Maritime Museum

©Crown copyright 1981 ISBN 0 905555 55 4 National Maritime Museum Greenwich, London

Rosemarie E. HORCH Brazil AS EMBARCAÇÕES DE MADEIRA DO RIO AMAZONAS (Séculos XVI-XVIII) I. Introdução: - Navegação fluvial - Histórico e a Conquista do rio das Amazonas. Em 7 de junho de 1494, pela Capitulação da Partição do Mar Oceano, mais conhecido como Tratado de Tordesilhas, as terras descobertas por Cristó vao Colombo e ainda por descobrir, eram divididas pelas grandes potências marítimas de então, Espanha e Portugal. O rio Amazonas,- ainda não descoberto naquele ano-, pertencia assim à Espanha. 0 primeiro a referir-se ao rio Amazonas foi Américo Vespucci(1451-1512) em sua Lettera indirizzata a Lorenzo di Pierfrancesco de'Medici e datada de Sevilha de 18 de Julho de 1500 (1). Nela relata que, dirigindo-se para o Sul, - após alcançar a América do Sul na altura da costa de Suri nam ou na da Guiana Francesa -, encontra dois enormes rios (Amazonas e Pará). Ancora no estuário ("il maré dolce") e utilizando-se de quatro barcos menores, com 20 homens, penetra pelo rio (é o Amazonas) adentro. Torna-se assim, o primeiro europeu a chegar ao rio Amazonas, além de ser um curioso por conhecê-lo. Não consegue desembarcar devido à densidade da floresta. Nota que a terra é habitada, embora não tenha visto nenhum ser humano. Após dois dias, resolve voltar por achar que a caravela se encontra em lugar perigoso. Em 1500, Vicente Yañez Pinzõn (c,1460-c.l523) passa pela embocadura do mesmo rio sem contudo, querer investigá-lo. Denomina-o Rio de Santa Maria de Ia Mar Dulce (2). Os indígenas denominavam o rio de Marañon. 0 primeiro a percorrê-lo foi Francisco de Orellana (1511-1546), que par ticipara da conquista do Peru. Saindo de Quito, à procura de canela e de ouro ou melhor, da cidade Manoa, que segundo diziam era toda feita de ouro, desce o rio, durante oito meses (em 1541/2) com um grupo de 57 aventureiros europeus. Luta com algumas tribos indígenas, moradoras à beira do rio. Entre elas, segundo o testemunho de Carvajal (3), haveria também uma tribo de mulheres guerreiras. Daí a proveniência do nome de Amazonas, baseado na lenda grega. Ao voltar para fundar uma colónia no Amazonas, encontra séries dificuldades e morre, sendo enterrado à margem do rio, que primeiramente navegara por inteiro. 0 outro a seguir o exemplo de Orellana foi Pedro de Ursua(1527-1561), que também desceu o rio à procura de canela e outras riquezas, mas mor re assassinado por Lope de Aguirre às margens do Maranon. Desde os fins do século XVI há tentativas de fixação tanto de ingleses, como de holandeses e irlandeses na área amazônica. Com a união da coroa portuguesa à espanhola em 1580, os holandeses chegam a querer colonizar o Xingu, estabelecendo feitorias fortificadas (4). Isto em 1599. Os ingleses só começam a se interessar a partir de 1610. E foi Thomas Roe que mais se empenhou em explorar o Amazonas à procura do Eldorado ou Manoa. Chega a fundar uma colónia, seguida por outros aventureiros.

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No entanto, o governo luso-brasileiro ainda estava ocupado em desalojar os franceses do Maranhão, não podendo,assim, se preocupar com a região amazônica. Assim mesmo, funda em 1616 Belém, pela ação de Gaspar de Sou sa. Procuraram os portugueses o apoio indígena, através da catequese franciscana. Fizeram uma ligação terrestre com S. Luís do Maranhão, ten do assim a retaguarda livre e o abastecimento garantido. Mesmo assim, passaram-se quase 10 anos sem que as forças luso-espanholas partissem para a ofensiva, a fim de desalojar os inimigos. E faziam-no de maneira radical: os fortes, as colónias eram arrazadas e seus habitantes, quan do não morriam combatendo, caiam em emboscadas ou eram simplesmente mor tos. Os índios que os haviam auxiliado eram duramente castigados. É evidente que estes ataques não partiam apenas de Belém. Na medida que foram eliminando os estabelecimentos próximos, as tropas foram avançan do e fundando postes intermediários, como Camutá ou Cametá no Tocantins, ou o Forte de Mariocai no Gurupá, onde se abasteciam de alimentos e principalmente, de índios remadores, "os de melhor préstimo para o serviço de vogar canoas" conforme Baena (5). Essa atitude produziu efeitos, os invasores desistiram, em parte por se tratar de empresas particulares de recursos limitados e de outra parte por não terem o apoio de seus países. Conclui o capitão de mar-e-guerra Max Justo Guedes: "No que respeita a Marinha, é da maior importância recordar que, tanto os ingleses quanto os luso-brasileiros, cedo julgaram indispensável a presença de uma força naval permanente na Região, constituida de embarcações ligeiras...Já come Raimundo de Noronha em sua Relação aconselhou a criação de 'duas Companhias de 30 Soldados cada h~ ua volantes em Canoas...' como básicas para garantia da integridade e segurança da Região Amazônica." (6) Alguns anos mais tarde, em 1637, um novo explorador, dessa vez português, Pedro Teixeira (1587-1641), navega pelo Amazonas. Foi incumbido pelo então governador do Maranhão, Jácome Raimundo de Noronha a explorar e se apossar de todas as terras que encontrasse, em nome da Coroa de Portugal. Este propósito lhe era facilitado pela união das duas monarquias ibéricas, que anulava o Tratado de Tordesilhas. Pedro Teixeira foi o primeiro a fazê-lo em direção contrária à dos exploradores do Século XVI. Partiu de Cametá, no Tocantins, a 28 de outubro de 1637 "cons tante de 40 canoas, guarnecidas de setenta soldados e mil e duzentos ín dios; mas, contando mulheres e crianças eram ao todo mais de duas mil pessoas" (7). Passa por Gurupá, descobre o Rio Negro, à margem do qual deixa parte da expedição e continua pelo rio Solimões e Napa até Quito. Ao retornar fun da Franciscana em terras do Peru. Mais tarde, este povoado servirá como marco para as discussões de limites no tratado de Madrid (1750). A 12 de dezembro de 1639 está de volta em Belém do Pará. Com a Restauração de Portugal (1640), o território do Pará já passara à administração portuguesa. Com a chegada da bandeira de António Raposo Tavares ao Guaporé e sua descida pelo rio Amazonas (1648-52) consolidava-se a conquista da quase totalidade da bacia amazônica aos portugueses. Contudo, a posse definitiva da terra não foi das mais fáceis. Os indígenas consideravam todos os brancos como intrusos. Deve-se às missões religiosas o apaziguamento, se não total, pelo menos parcial das tribos vizinhas às aldeias. Entre as ordens religiosas mais empenhadas na tare_ fa missionária podemos destacar os jesuítas e os carmelitas. Eles deveriam converter os indígenas à religião católica, ensinar-lhes a língua

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portuguesa, aproveitá-los, aldeando-os, em atividades agrícolas e extrativas. Assim, em substituição às colónias orientais portuguesas perdidas, o plantio das especiarias (cacau, baunilha, cravo, canela, plantas medicinais, resinas aromáticas) eram grandemente incentivadas. Seguindo as pegadas dos missionários vinham os sertanistas, comerciantes e aventureiros. Estes, muitas vezes, se adiantavam, à procura de ouro, alargando as fronteiras. Assim, floresciam aldeias indígenas à margem do Juruá, sob o controle jesuítico do padre Samuel Fritz descritas pelo mesmo em seu diário (8). Nessa mesma obra relata a sua viagem de S.Joaquim de Omaguás à Cidade do Grão Pará em 1689 pelo rio Amazonas e seu retorno ao Puebla de la Laguna em 1691. Entre 1691 a 1696 aventureiros portugueses, com o apoio do governo de Lisboa penetram nesta área de colonização espanhola, atacan do essas missões e levando consigo os indígenas como escravos. A primeira metade do Século XVIII destaca-se pelas atividades missioneiras e comerciais. Contudo, é na segunda metade do mesmo século que haverá um incremento nas atividades econômicas. Com a subida ao poder do Marquês de Pombal haverá um crescimento na administração colonial amazonense em detri mento da atividade missioneira. Toda a região amazónica sofria influências diretas de Lisboa, a quem se achavam mais ligados do que propriamente a Salvador e ao Rio de Janeiro. Tanto que, quando Pombal cria a Companhia Ge ral do Grão Pará e Maranhão (em 7 de junho de 1755), "as operações mercantis /foram/ animadas pelo audacioso empreendimento colonial /e/ explicam a vivacidade náutica da barra de Belém..."(9). É óbvio que em toda esta movimentação tanto comercial ou religiosa como a de conquista, os caminhos fluviais eram as únicas vias de penetração e, como meio de transporte, a canoa ou barco era imprescindível. II. As embarcações indígenas no Rio Amazonas. A imensidão da Amazónia, com os seus caminhos proporcionados pela própria natureza, convidavam o ser humano, habitante daquelas paragens a se locomo ver, através dessas estradas líquidas. Ainda hoje, a canoa é um elemento indispensável de locomoção, não só ao índio como aos outros habitantes da região, para a pesca, o comércio, a sua movimentação diária, enfim. Já nos primeiros relatos europeus, encontramos a menção de embarcações usa das pelos habitantes da terra recém-descoberta. Assim, Vespucci menciona em sua segunda viagem, uma canoa de 26 passos (1 passo = 0,82 m) e 2 braços (1 braço = 0,578 m, correspondente à medida antiga italiana em uso em Gênova, cidade natal de Vespucci) de largura, feita de uma só árvore "cavato molto bene lavorata"(10). Também Carvajal descreve o primeiro encontro da expedição exploradora do rio com os indígenas: "Al cabo de dos léguas que habíamos ido al rio abajo vimos venir por el rio arriba cuatro canoas lienas de indios..."(11). É a canoa, certamente, uma das primeiras embarcações usadas pelo homem. Sua predecessora devemos imaginá-la numa simples tora de madeira, que boiando na correnteza de um rio, e arrancada por alguma intempérie rio acima, suge riu ao homem primitivo a ideia de usá-la como meio de transporte, fazendo uma canoa. 0 termo canoa é indígena, provém do aruaque, "importante família indígena da América, cujas manifestações se estendem desde a Flórida até o Paraguai, e do litoral peruano à embocadura do rio Amazonas."(12) Informa-se, que o termo canoa provém da região do seu "Diário de Bordo", o menciona quando fala das denominadas pelos habitantes da região de canáoa, árvore cavado e tão grandes que comportavam de 40

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Caribe. Já Colombo em em estranhas embarcações, feitas de um só tronco de a 45 pessoas. Eram im

pulsionadas por remos em forma de pá de forno e moviam-se rapidamente sobre a água. (13) As embarcações indígenas da região amazônica sao denominadas originaria mente na língua geral do Brasil e destinam-se às embarcações menores. As de tamanho maior, apropriadas para a carga e o transporte de comitivas , são chamadas de Canoa. Assim, vamos encontrar cerca de 6 tipos de embarcações: as ubás, os cas cos ou montarias, os igarités, as canoas cobertas, as gambarras e as jangadas. Esses tipos também foram usados em outras regiões brasileiras, às vezes com nomes diversos, mas semelhantes em seu princípio de construção. As diversas árvores empregadas na feitura dos barcos propriamente ditos, assim como as outras partes do madeiramento, encontram-se relacionados na tabela anexa, no fim, com a indicação de seu uso específico. O barco mais comum e usado são as ubás. A origem da palavra é obscura. Nos diversos dicionários, tanto os da língua tupi e guarani, como os comuns, vamos encontrar interpretação diversa para ubá: Gonçalves Dias (14) não a cita; Ruiz de Montoya (15) diz ser uva ou então forro, tapume, cobertura ou veste. Já Aurélio (16) declara "embarcação indígena sem quilha e sem banco, constituída de um só lenho, escavado a fogo, ou de uma casca intei rica de árvore cujas extremidades são amarradas com cipós. Difere do casco... por ser reta, ao passo que este é bojudo." Das ubás existem dois tipos, conforme sua construção: as de tronco e as de casca. Para as de tronco, derrubam uma árvore, fazem uma face plana e depois procuram cavar o centro, com fogo ou machado, procurando dar forma de canoa. Uma das extremidades é conservada reta, conforme o corte feito durante a derrubada da árvore e servirá como popa ou ré. À outra extremidade é dado o formato de proa. Alexandre Rodrigues Ferreira em sua "Memória" descreve a construção da se guinte maneira: "A ubá não é mais que o tronco de alguma árvore, escalvado simplesmente, "ou mediante o fogo, ou pelo uso das ferramentas, quando as há, explanan"do-se-lhe um dos dois topos, para servir de rodela de popa,e aguçando-se "-lhe o outro para talhamar de proa. As ubás dos Gentios são de duas sor"tes, por que ou são os troncos escavados, ou meras cascas dos paus, que "eles despem a seu geito. Tudo o que não são as referidas ubás, lhes custa "tempo, e trabalho, porque lhes faltam as ferramentas. Por todas as mar"gens dos Solimões há uma casta de Paxiuba, espécie de palmeira daquele "género, chamada =barriguda= por que se coangusta para as extremidades , "dilatando-se para o meio do tronco, em seu bojo, como se fora talhado , "para haver de servir de ubá..." (17) Já António Alves Câmara (18) afirma que este tipo de canoa"...sao pouco u sadas, ou antes menos do que as outras por darem muito trabalho em sua ma nufatura, serem muito pesadas e não governarem bem. Sempre ficam bastante grossas e desigualmente." Acreditamos que esta afirmação não corresponda bem a verdade, dado o testemunho dos diversos viajantes, que mencionam as canoas feitas de um tron co só e serem muito bem manejadas por indígenas habilidosos. No entanto, devem dar mesmo muito trabalho, pois sempre há o problema de o tronco se rachar e tornar assim, todo o trabalho inútil. O outro tipo é o feito de casca. É evidente, que são árvores específicas, das quais os indígenas ou derrubam as árvores para retirar a casca ou sim plesmente a tiram inteira da árvore em pé."Amarram as extremidades com ci pós depois de cortarem alguma porção para não ficarem muito grossas e po derem apertar com mais facilidade. Atravessam pedações de madeira forte, como o macucú e outros, para abrir o bojo, e tomarem a configuração de ca noas. Assim preparadas, em pouco tempo secam, e ficam rijas, suportando du rante anos o peso de homens e pequenas cargas na navegação dos rios."(19)

Também elas são preparadas com fogo para dar-lhes maior duração, para não apodrecerem. Parece, no entanto, que a duração das mesmas não e muito longa, pois o pa dre Daniel afirma que nao duram mais de dois anos.(20) Outro tipo de embarcação encontradiça no Rio Amazonas é o casco ou a montaria. Sua construção se inicia, de fato, com o casco, que é a parte prin cipal de qualquer embarcação. Após o corte da árvore destinada a este fim "cortam as extremidades no comprimento, de que precisam, e a escoram com paus de um e outro lado para não rolar. Fazem uma face na parte superior, com o compasso marcam o centro, e traçam o eixo longitudinal, batendo uma linha passada pelo carvão. Dão a configuração exterior estreitando as extremidades de maneira a terminar quasi em ponta, bem como desbastam a par te inferior, dando ao todo a forma de uma embarcação de duas proas, com uma pequena quilha. Nessa linha do centro em três, ou mais pontos, cavam pequenos buracos, dentro dos quais acendem fogo com lenha e palhas a fim de destruir a madeira, e cavá-la por meio da carbonização. O fogo é vigiado para queimar igualmente, em razão do que vão molhando os lugares para onde ele desvia-se. Também usam suspender o casco de boca para baixo, e acender o fogo com cavacos no chão." "Durante este processo atravessam na parte superior da cavidade produzida pelo fogo uns caibros um pouco inclinados em relação à seção transversal, para poderem ir apertando e abrindo-a de mais em mais, e os substituem por maiores, a proporção que ficam frouxos ou queimados, ajudando assim a ação do fogo nesse sentido. Depois de queimado internamente o casco e bem aberto, apagam o fogo, e terminam o trabalho, aperfeiçoando-o com enxó goiva." "Os pequenos cascos costumam ter de 0,02 a 0,03 metros de espessura, e os maiores 0,06."(21) Em cada extremidade é colocada uma rodela feita de madeira. As embarcações, assim, parecem ter ou duas popas, ou duas proas. Conseguem aumentar o tamanho dessas embarcações colocando uma tábua, denominada pavez, onde fixam os bancos para os remadores. Para abrigarem a carga eventual ou mes mo passageiros, os indígenas cobrem parte do barco com coberturas de telhado ou abauladas, que são denominadas por eles de Panacarica e pelos brancos de toldos. Essas embarcações são usadas principalmente para a pes caria e também para a caça. As igarités (igara= canoa e rêtê= verdadeira = canoa verdadeira) são em tudo semelhantes às montarias. A diferença entre uma e outra é que na construção a igarité, já se faz com o toldo, enquanto que na montaria, só se coloca quando se achar necessário. A igarité também é maior que a mon taria e menor que a galeota(= grande canoa usada pelo comerciante fluvial, que vai de aldeia em aldeia). Servem para o transporte de cargas (sal, azeite, fazendas, ferro etc) de uma a duas toneladas. Também as canoas cobertas servem para o transporte de mercadoria. Sua construção é idêntica às igaritês. Usam velas e têm quilha. Embarcações desse tipo foram usadas na expedição de Pedro Teixeira. As gambarras eram, e ainda o foram no início do século XX, as maiores embarcações existentes no Amazonas que não usavam o motor. Serviam para o transporte do gado. Tinham dois mastros e eram usadas especialmente no trajeto da ilha de Marajó para Belém e vice-versa. As jangadas serviam aos brancos para o transporte das madeiras que se cor tavam na mata para serem enviadas aos arsenais. Os indígenas também delas se utilizavam. "Não havendo as cascas, suprem as jangadas de - Aninga, de Anibauba, em que atravessam os rios, e as suas correntezas."(22) Esses são os principais tipos de embarcações, que foram se desenvolvendo

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da primitiva ubã. Com a vinda dos portugueses, evidentemente, as construções foram se adaptando aos modelos europeus. Já o padre Daniel observara que, "os indios não costumavam navegar muito longe, porque lho não permitiam as suas fracas embarcações, que só eram cascas de paos, nem tinham ferros e mais necessários instrumentos para fa bricarem outras maiores..."(23) Em geral, as embarcações menores não tinham quilha, para poderem ser mais facilmente arrastadas por terra, quando alguma corredeira ou mesmo cascata impedisse a navegação. Isso os predispunha que "rolassem" com uma certa facilidade e isto também não permitia que se afastassem muito das margens. Já nas igarités colocam uma pequena quilha, na proa apenas. As canoas cobertas, maiores em tamanho, já a possuem. Impulsionadas eram essas embarcações menores com o remo de mão, denomina do pelos indios de Jacumã. Chamam a remo de mão a uma haste de um metro, terminada em pá redonda (a pá de forno), que se manobra ora de um lado, ora de outro da embarcação. Em se tratando de embarcação de maiores proporções, usava-se um pau inteiriço, cilíndrico numa das pontas, de cerca de 3 metros de comprimento, e terminado em triângulo na ponta. Foi introduzido pelos portugueses. Utilizavam-se de velas quadrangulares, que quando não eram feitas de algo dao, ou este, por sua vez, se estragava, improvisava-se, conforme o padre António Vieira (24), de uma madeira leve e fina, denominada de jupati, tam bém empregada para os toldos. Inicialmente a fabricação era totalmente nativa. Com a vinda dos europeus, no entanto, os indígenas aprenderam a se utilizar das ferramentas trazi das pelos portugueses e se tornaram excelentes carpinteiros nos estalei ros criados pelos mesmos. III. Estaleiros existentes no Rio Amazonas no Século XVIII. A primeira construção naval realizada por europeus no Rio Amazonas é, sem dúvida alguma, aquela feita a mando de Pizarro, que "se hiciese un bar co para navegar el rio", foi executado por Orellana, "visto esto, anduvo por todos el real sacando hierro para clavos y echando á cada uno la made ra que habia de traer, y desta manera y con el trabajo de todos se hizo el dicho barco..."(25). Já os indígenas construiam-nos sempre que deles necessitassem. Tinham a madeira à escolha e não precisavam de ferragens. Compreende-se que os portugueses sentissem a necessidade de terem Ribei ras(*) para a construção das canoas que os ajudassem na interiorização e conquista da nova terra, uma vez que a Amazónia é pródiga em rios em to das as direções, servindo como vias de penetração. E à medida que a conquista vai penetrando no território amazonense vão fazendo novos estaleiros. Já Pedro Teixeira, em sua expedição de Belém a Quito pelo rio Amazonas tem necessidade de renovar as canoas e as vai fazendo em diversos pontos à margem do rio (26). Os portugueses encontraram várias facilidades para a construção de navios: madeiras a escolher para íis diversos fins e mão-de-obra já propensa a es te trabalho: os indígenas. Daí, já na época de Pedro Teixeira ter-se duas Ribeiras: uma em Belém e outra mais para o interior, que foi Cametá (27). (*) Nome de uma localidade a beira do Tejo (=Ribeira das Naus) onde se construíam as embarcações e que por generalidade foi aplicado seu nome à instituição da Marinha que o fazia." In: Leivas, L.C.P. - Op.cit., p.17. 222

A Ribeira de Belém foi reorganizada em 1729 por Alexandre de Sousa Freire, que fez levantar uma Casa das Canoas. Esta Ribeira de Belém foi ampliada , em 1761, para servir de Arsenal do Pará. Por ocasião da viagem científica de Alexandre Rodrigues Ferreira, este menciona para o ano de 1773 a cons trução da canoa Nossa Senhora do Pilar e para 1775 a construção de dois barcos de guerra Nossa Senhora do Bonsucesso e Nossa Senhora da Boa Viagem. Em 1776 é construído o barco Nossa Senhora da Atalaia da Vigia das Salinas (28). Todos nessa mesma Ribeira. Com a criação da Companhia Geral do Grão-Pará e Maranhão, em 1755, ampliase a indústria da construção de embarcações. Na própria Instrução da Companhia Geral do Grão-Pará e Maranhão em seu Parágrafo 109: "Dispunha que a Companhia teria o privilégio de mandar construir seus navios mercantes e de guerra, em Portugal e no Estado do Grão-Pará e Maranhão, podendo para isso mandar cortar onde entendesse toda a madeira que lhe fosse necessárias, pagando, porém, o seu justo valor aos respectivos donos."(29) Tinha assim, Ribeira e armazéns próprios em Belém, onde mandara construir navios-transporte de três mastros, as denominadas charruas, com um grande porão para o transporte de mercadorias entre o Grão-Parã e Lisboa e vice versa. Alexandre Rodrigues Ferreira constata também em Barcelos (em 1783), à margem do Rio Negro, construções de canoas artilheiras Nossa Senhora do Pilar, São João Batista e Nossa Senhora da Graça, São José (30). Na vila de Ega (Rio dos Solimões) são construídas duas canoas artilheiras, as Nossa Senho_ ra da Conceição, São Gonçalo e Nossa Senhora das Dores, São Bento, mostran do com isso a intensificação e penetração no interior da região amazônica, da construção naval. Entre os governadores que mais prestigiaram a construção naval no Grão-Pará temos D.Francisco de Sousa Coutinho (governou de 1790 a 1803) que não só reaparelhou o Arsenal do Grão-Pará, como também criou legislação especí fica. Após o seu afastamento houve um declínio nas atividades de constru ções navais da região amazônica. IV. - Conclusões. Vimos assim que, no decorrer de três séculos, praticamente durante todo o período colonial, sempre houve construções navais na região amazônica. Inicialmente, e mesmo anteriormente ao descobrimento europeu, os próprios indígenas já se locomoviam neste vasto mundo hidroviário em embarcações feitas pelas suas próprias mãos. Com a vinda de portugueses e de exploradores e conquistadores de outras na cionalidades, adotaram, em alguns casos, os métodos europeus de construção naval, assim como o uso de ferragens e outras peculariedades próprias do uso de ferramentas, desconhecidas, até então, para eles. O incremento das atividades agro-pastoris levaram a um surto de comunica coes por vias fluviais. Daí criar-se uma diversificação dos tipos de embar cações conforme a finalidade a que se destinavam. Da mesma época datam, provavelmente, as instalações de diversos estaleiros ou, melhor dizendo, conforme uso corrente do português da época, de Ribeiras. Belém tinha-se tornado o entreposto principal dos produtos da região, que aí chegavam diariamente em frotas de canoas e eram redespachadas para Lisboa.

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MADEIRAS UTILIZADAS NA FABRICAÇÃO DOS BARCOS As madeiras mais utilizadas na fabricação das embarcações do Amazonas, conforme as relações tanto de Alexandre Rodrigues Ferreira(31 ), como de António Alves Camara (32 ), são as seguintes: Nome comum

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Nome científico

Utilização

Acapú

Andira Aubletti

falcame e bancos

Acapú

Vouaoapoua americana

cascos

Acapurana

Uampsiandra laurifolia

cascos

Acaraúba

Leucuma sp.

varas (para movimentar o barco)

Acayaca-rana

das Anacardiaceas

cascos

Amapá

Parahancornia amapa

remos

Ananí

Symphonia globulifera

varas

Andiroba

Carapa guyannensis

faleame e bancos

Angelim

Hymenolobium exoelsum Ducke

braços e rodelas

Angelim de pedra

Hymenolobium petraeum

cascos

Angelim preto

Andira ormosioides

cascos

Angelim vermelho

Andira sp.

cascos

Apecuitava

Cassia Apocouita

remos

Bacaraúba

?

braços e rodelas

Platonia insignis

braços e rodelas, cascos

Borajuba

Chrysophyllum sp.

braços e rodelas, cascos

Caá-uassú

Coccoloba grandifolia

Carapanayua

Calophyllun brasiliense

remos

Caroba

Jacaranda procera

braços e rodelas

Castanheiro

Bertholletia excelsa

estopa, mastros

Cedro vermelho

Cedrela fissilis

falcame e bancos

(para as toldas)

Anexo

Bacuri

Nome comum Cipó de morcego

Nome científico ?

Utilização cipós

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Arrabidaca Rego

cipós

Cipó Parana-rêmbo Cumari Cumati Cupiúba preta e vermelha Curupito Embira-branca Embira de Monguba branca e amarela Empira preta Embirarema Faveira cumandú-guassú Guambé (uambê) Guarijuba Gurijuba preta Guarumá Imbirajuba Inajá, ou anajá Ipiuba Itaúba

? Dipteryx odorata Myrcia atramentífera Goupia glabra Lecythis sp. das Thymelaeaoeae Erytkrina sp. Xilopia sericea? Xilopia sp. Vataivea guianensis Philodendron Imbé Schott? Terminalia aaianinata ? Maranta sp. Tunifera utilis Pindarea ooncinna Tecoma sp. Mezílaurus itavba

Jacaré-yúa,ou Jacaré-Ubá Jagucuitava-iuá Jandiroiarua,ou Jandiroba? Janiparana, ou Jandiparaíba? Jassapucaya Jatibá, ou Jatobá Jauá Jupati Jussara Jutaí Louro Louro-vermelho Macapú Macucú

Calophylwn brasiliense ? Carapa guyannensis Gustabia brasiliensis Lecythis sp. Hymenaea sp. Ziziphus sp. Raphia vinífera Euterpe Oleraci Hymenaea oourbavil Neatandra species Ocotea rubra Vouacapoua americana? Aldina heterophylta, A.latifolia Licania

cipós cascos, falcarne e bancos estopa cascos, faicarne e bancos falcame e bancos mastros cipós mastros cascos barcos cipós barcos braços e rodelas (para os toldos) barcos para os toldos barcos barcos, remos, falcame e bancos, braços e rodelas barcos, mastros remos barcos varas (para os toldos) estopa barcos barcos para os toldos ripas (para apertar a palha) barcos cavilhas, remos, falcame e bancos barcos cavilhas varas, estopa

Anexo

Cipo de rego

Nome comum

Nome científico

Utilidade

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Manga-narana

Ancornia pubescens

remos

Maparajuba, ou massaranduba Marajá(palmeira fina) Massaranduba, ou Maçaranduba Mucunã Muriti, ou buriti MuruKitica Obim Obussú Pacoba-sororoca Pau-amarelo Pau-d'arco, ou ipê Pau-rosa Paracuuba

Manilkara paraensis Bactris Marajá Mimusops ellata Mucuna urens Mauritia flexuosa ? Geonoma sp. Manicaria Saccifera Phenacosperma guianense Euxylophora paraensis Tabebuia leucoxylon Aniba rosaeodora, A.parviflora Lecointea amazonica ou Dimorphandra paraensis Iriartea exorriza Caryocar brasiliense Caryocar villosvm das Caryocaraceae Attdlea compta das Sapindaceas Bowdichia nitida, B. recemosa e B. brasiliensis das Ormosia Fagara rhoifolia das Caraipa Mabea angustifolia Bagassa guianensis Derris guianensis Carludovica sp. Hymenoea sp. ? Humiria floribunda Pseudochimarrhis turbinata

barcos varas cavilhas estopa para as toldas cipós para as toldas para as toldas para as toldas barcos cavilhas barcos barcos

Paxiuba Pequi Pequiá Pequiarana, piquiarana Pindoba Piquiara vermelha Sapupira

barcos braços e rodelas falcame e bancos falcame e bancos varas (para as toldas) falcame e bancos cipós cipós cipós barcos, braços e rodelas remos

Anexo

Sucupira Tamanqueira Tamaquaré Taquari Tatajuba Timbó-açú Timbó-Titica Timboí Umiri Yapucuitanaiúa

barcos barcps barcos para as toldas

Notas bibliográficas. ( 1) publicada pela primeira vez por Angelo Maria BANDINI em sua Vita e let-tere di Amerigo Vespucci. Firenze, 1745, p. 64-86. ( 2) VIGNERAS, Louis André - The discovery of South America and the Andalusian Voyages. Chicago and London, 1976, p.72 ( 3) CARVAJAL, Gaspar de - Descubrimiento del rio de Ias Amazonas según la relación de fr. ... con otros documentos referentes a Francisco de Orellana y sus compañeros... Sevilla, 1894, p. 58-59. ( 4) GUEDES, Max Justo - Ações navais contra os estrangeiros na Amazónia, 1616-1633. In: História naval brasileira, Rio de Janeiro, 1975, vol. 1, tomo II, p.591. ( 5) BAENA, António Ladislau Monteiro - Ensaio chorographico sobre a província do Pará. Belém do Pará, 1839, p. 298. ( 6) GUEDES, M.J. - Op. cit., p.612 ( 7) VARNHAGEN, Francisco Adolfo de - Historia geral do Brasil. 7a. ed.inte gral. São Paulo, 1962, vol. 2, tomo III, p.152. ( 8) FRITZ, Samuel - Journal of the travels and labours of Father... in the River of the Amazons between 1686 and 1723... London, 1922. ( 9) DIAS, Manuel Nunes - As frotas de cacau da Amazónia (1756-1777). In: Actas. Congresso Internacional de História do Descobrimento. Lisboa, 1961, Vol. V, parte II, p.64. (10) BANDINI, A.M. - Op. cit., p. 37 (11) CARVAJAL, G. de - Op. cit., p. 10. (12) FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda - Novo Dicionário da Língua Portu guesa. Rio de Janeiro, 1976, p.143. (13) MORISON, Samuel Eliot - Christopher Columbus. London, s.d., p.230/1. (14) DIAS, António Gonçalves -Dicionário da Língua Tupi... Rio de Janeiro, 1965 - não cita. (15) RUIZ DE MONTOYA, António - Vocabulário y Tesoro de la lengua Guarani... Viena, 1876, p. 403-139(v). (16) FERREIRA, A.B. de H. - Op. cit., p. 1436. (17) FERREIRA, Alexandre Rodrigues - Memória sobre a Marinha interior do Es tado do Grão Pará. In: LEIVAS, Luis Cláudio Pereira & SCAVARDA, Levy História da Intendência da Marinha. Rio de Janeiro, 1972, vol.I,p.350-2 (18) CÂMARA, António Alves - Ensaio sobre as construções navais indígenas do Brasil. Rio de Janeiro, 1888, p.71. (19) CAMARÁ, A.A. - Op. cit., p.74. (20) DANIEL, João - Tesouro descoberto no Rio Amazonas. In: Anais da Biblio teca Nacional. Rio de Janeiro, 1976, v.95, tomo II, p.194. (21) CÂMARA, A.A. - Op.cit., p.77-78. (22) FERREIRA, Alex. Rodr. - Op. cit., p.352. (23) DANIEL, J. - Op. cit., v. 95, tomo I, p.31. (24) In: ALMEIDA, Cândido Mendes de - Memórias para o extincto Estado do Ma ranhão ... Rio de Janeiro, 1860-1874, vol. I, p.463. (25) CARVAJAL, G. de - Op. cit., p. 6 (26) BERREDO, Bernardo Pereira de - Annaes históricos do estado do Maranhão ... 2.ed., São Luiz do Maranhão, 1849, p.282-300. (27) LEIVAS, L.C.P. - Op. cit., p.32. (28) FERREIRA, Alex. Rodr. - Op.cit., p.387-389. (29) DIAS, Manuel Nunes - Subsídios para o estudo da tonelagem da frota da Companhia Geral do Grão Pará e Maranhão. In: Actas. Congresso Interna cional de História dos Descobrimentos. Lisboa, 1961, vol. V, parte II, p.75. (30) FERREIRA, Alex. Rodr. - Op. cit., p.392. (31) FERREIRA, Alexandre Rodrigues - Viagem filosófica pelas capitanias do Grão Pará, Rio Negro, Mato Grosso e Cuiabá. Memórias. - Zoologia. - Bo tânica^Rio de Janeiro,1972 (Memória sobre as madeiras mais usuais de que costumam fazer canoas, tanto os índios, como os mazombos do Estado do Grão Pará", p.225-228.) (32) CÂMARA, A.A. - Op. cit., p. 181-186.

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