“ILUSÃO DA VONTADE”? CONSIDERAÇÕES SOBRE O ATUAL DEBATE ENTRE AS NEUROCIÊNCIAS E O DIREITO PENAL

July 21, 2017 | Autor: Wilson Franck Junior | Categoria: Filosofia da Mente, Neurociências
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Arquivo Jurídico – ISSN 2317-918X – Teresina-PI – v. 1 – n. 5 – p. 81-92 Jul./Dez. de 2013

“ILUSÃO DA VONTADE”? CONSIDERAÇÕES SOBRE O ATUAL DEBATE ENTRE AS NEUROCIÊNCIAS E O DIREITO PENAL "ILLUSION OF WILL"? CONSIDERATIONS ABOUT THE CURRENT DEBATE BETWEEN NEUROSCIENCE AND THE CRIMINAL LAW Wilson Franck Junior1 Juliana Franck2 Recebimento em novembro de 2013. Aprovação em dezembro de 2013.

Resumo: O trabalho dos autores trata da recente debate envolvendo neurociência e dogmática penal, mais precisamente, acerca do resultado das pesquisas científicas em neurociência em torno da ausência de comprovação da liberdade de vontade e sua repercussão e problematização no âmbito da dogmática penal e filosofia do direito. Palavras-chaves: Neurociência. Direito Penal. Culpabilidade. Abstract: The work of the authors analyzes the recent debate involving neuroscience and criminal law, and the possible results of scientific research in neuroscience around the lack of evidence of free will and its repercussion and questioning under criminal law and philosophy. Keywords: Neuroscience. Criminal Law. Culpability.

1. Introdução. No ano de 2004 onze neurocientistas publicaram um manifesto na revista Gehirn&Geist declarando que a neurociência mudará os rumos do direito, especialmente o penal, pois recentes descobertas sobre o funcionamento cerebral levava-os a crer que poderiam, em um futuro próximo, fazer predições sobre os processos biológicos que determinam nossas mentes, consciência, e até mesmo os atos voluntários e a liberdade de ação. Alguns neurocientistas também afirmaram que o homem não age conforme sua vontade: é uma espécie de espectador de si mesmo, pois meramente "racionaliza" as "decisões" tomadas pelo seu inconsciente - as quais pensa ser expressão de sua própria vontade. Por esta razão, segundo afirmam alguns destes neurocientistas, conceitos como os de "responsabilidade pelo poder de agir de modo diverso", por parte do agente, estariam desde já refutados cientificamente: se as decisões são meramente frutos dos processos neurológicos que, em última instância, determinam a conduta humana, então

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Mestre e doutorando em Ciências Criminais pela PUC-RS, Porto Alegre-RS, Brasil. Email: [email protected] 2 Graduada em Direito pela Universidade do Vale do Itajaí – SC, Brasil. Email: [email protected]

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responsabilizar-se as pessoas declarando-as culpadas em razão de sua pretensa liberdade de escolha, não seria nada mais do que uma "doce ilusão". As afirmações - como as do neurocientista Wolf Singer - de que não é possível sustentar, diante de uma perspectiva neurobiológica, a hipótese de que, fundado na suposição de uma liberdade intrínseca de vontade, seríamos responsáveis por nossas ações porque temos o poder de agir de outra maneira, repercutiu no meio acadêmico das ciências jurídicas, levando alguns juristas a repensar certos conceitos tradicionais do direito. Até mesmo fala-se que a perspectiva de um agente carente de liberdade consciente de agir abalaria as distinções entre condutas voluntárias e involuntários, ações dolosas e não dolosas, imputáveis e inimputáveis - categorias centrais da dogmática jurídico-penal. Pilar de um Direito Penal de garantia e limite à violência estatal, também a concepção de culpabilidade como exigibilidade de conduta diversa não teria sentido diante da não consciência das verdadeiras causas que leva os agentes a delinquir. Mas semelhante opinião não é comum a todos os debatedores. Nas discussões que vem sendo travadas, é dito pelos juristas que as afirmações de alguns neurocientistas, por mais que revestidas de boa vontade, levam, juntamente com seu olhar crítico, a sérios erros categoriais no âmbito das duas ciências. Neurociência e direito seriam campos científicos distintos, com suas regras e metodologias próprias para delimitação de objeto, verificação de hipótese e estabelecimento de "verdade". Um campo não se confunde com o outro, e, embora possa haver entre eles alguma margem pra intersecção e diálogo, confundi-los seria cometer um erro categorial. Assim, aqueles que confundem a noção de campo científico e partem dessas premissas estranhas às do direito, como as "investidas" da neurociência, acabariam gerando confusão em uma ciência bem ordenada que, a não muito tempo, já "superou" a necessidade de uma conceituação empírica da culpabilidade - para muitos juristas, trata-se de um conceito normativo que ora poderá considerar os dados de outras ciências ou não, mas ainda dentro de seu próprio sistema, com regramentos próprios de delimitação e atribuição. Outros, como Claus Roxin, preocupados com uma possível instrumentalização da ciência jurídica e do sistema punitivo como um simples sistema fechado de respeito a formas e procedimentos próprios, formula uma teoria da culpabilidade apartir de uma função limitadora da aplicação da punição. Inspirado nisso, Manzano concede um

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importante papel a outros ramos do saber quando incidem no âmbito do Direito Penal, especialmente no que concerne às relações humanas, culpabilidade penal e conduta. Diante disso, uma análise não somente das teorias da culpabilidade, mas também da própria ciência jurídica será necessária para a delimitação de possíveis incongruências teórica, partindo-se do pressuposto de que as afirmações a respeito da inexistência de comprovação científica da liberdade de vontade, levantadas por alguns expoentes neurocientistas, é correta. De qualquer sorte, antes de uma mudança nas opiniões tradicionais e a consequente revisão dos preceitos teóricos da filosofia do Direito Penal, devemos ter em conta que estas pesquisas científicas ainda são incipientes e controvertidas. Até o momento, a neurociência não conta com uma "teoria da mente" complexa, e até mesmo os métodos utilizados e a interpretação dada por alguns cientistas encontram fortes discordâncias no próprio meio científico. Isso leva a dogmática penal, de um modo geral, a ser cautelosa nas considerações que afirmam a inexistência de algum nível ou margem de liberdade, ou de controle da vontade, suficientes para fundamentar um conceito de culpabilidade que pressuponha a capacidade de entendimento e de controle da conduta conforme este entendimento. Não por outra razão, apontam alguns que o problema talvez seja meramente terminológico ou linguístico. Até mesmo neurocientistas, como Gazzaniga, que tem em conta a dimensão cultural da conduta humana e da própria responsabilidade, afirmam que apesar da condicionalidade da mente humana à regras físicas, isso não subtrai a necessidade de uma responsabilização. Nesse sentido então a intencionalidade, vontade, dolo, liberdade, seriam meramente conceitos que se valoram não de uma perspectiva subjetiva, senão que adquirem significado no jogo de linguagem, conforme as regras de compreensão, valoração e atribuição de sentido por parte da sociedade em geral. Afinal, como a história da dogmática nos revela, a parcimônia no trato de questões delicadas como as que envolvem violência e a consequente possibilidade de desestabilização social constitui uma característica bem marcada e compartilhada entre os juristas. Vejamos mais detalhadamente, portanto, em que consistem as pesquisas da neurociência sobre a vontade humana. 2. O que dizem os neurocientistas?

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Os avanços no conhecimento sobre as funções motoras e cognitivas do cérebro levam, conforme afirmam os neurocientistas, cada vez mais a se questionar a existência de livre arbítrio (ou liberdade de vontade), pois cada vez mais é possível compreender os aspectos emocionais, intelectuais e econômicos que envolvem a tomada de decisão3. Então, primeiramente, para aclarar as possíveis dúvidas que possam surgir a respeito dessa revolução, deve-se saber a que "predições", que dados empíricos, baseiam-se os questionamentos desses neurocientistas. Na década de 70, o fisiologista Benjamin Libet fez uma importante descoberta, que guiou os próximos passos no campo da neurociência. Durante uma cirurgia, ele estimulou o cérebro de um paciente acordado, mais especificamente a superfície cortical que representa a mão, e descobriu que havia um lapso temporal entre o estímulo cerebral do córtice e a consciência de certa sensação na mão4. Em 2008, utilizando já de uma técnica mais apurada (fMRI), John-Dylan Haynes expandiu o experimento realizado pela equipe de Libet e demonstrou que "picos" de uma disposição podem ser analisados na atividade cerebral até 10 segundos antes de se tornarem conscientes, podendo-se, até mesmo, premeditar a ação seguinte do cérebro em análise 5. Pontos de vista como os que pretendem reduzir o comportamento humano a aspectos meramente causais, chamados de "hard determinist" (determinismo em sentido firme) pelo neurocientista Gazzaniga, baseiam-se, conforme afirma, em quatro assunções: 1) O cérebro possibilita a mente; e o cérebro, por sua vez, é um ente físico; 2) O mundo físico é determinado; logo, também nossos cérebros são determinados; 3) Se nossos cérebros são determinados, e se o cérebro é o órgão necessário e suficiente para a possibilidade da mente (ou "que possibilita a mente"), então somos levados a crer que os pensamentos que emergem da mente são também determinados; 4) Portanto, a vontade livre é uma ilusão, e devemos revisar nossos conceitos sobre o que significa ser pessoalmente responsável por nossas ações6.

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CRESPO, Eduardo Demetro. Libertad de voluntad, investigacion sobre el cerebro y responsabilidad penal. Aproximación a los fundamentos del moderno debate sobre Neurociencias y Derecho Penal. Barcelona, Abril de 2011. p. 04, 2013. Disponível eletronicamente em: 4 GAZZANIGA, Michael S. Who's in charge? New York: HapperCollins Publishers, 2011, p. 128. 5 GAZZANIGA, M. S. Who's in charge?, p. 129. 6 GAZZANIGA, M. S. Who's in charge?, p. 129.

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Mas o determinismo em sentido firme já está em parte superado pela ciência atual, que reconhece, contudo, o acerto da premissa número 1, que é consenso entre os neurocientistas. As restantes premissas, porém, não são unânimes no campo científico. Por exemplo, hoje sabe-se que os sistemas complexos (como a mente) não permitem ainda predições matemáticas exatas sobre estados futuros, o que reflete na afirmativa 2. Mas, quanto à afirmativa 3, ainda que se possa atualmente associar determinados centros neurais com processos de decisão e pensamentos específicos, não foram concebidas regras determinadas do sistema nervoso em ação7. Por exemplo, é possível, atualmente, associar o lóbulo pré-frontal lateral com a tomada de decisão, correta ou não. Lesões nessa zona afetam essa capacidade, como no clássico caso do doente estudado por Damásio, "Elliot", o qual, apesar de todo tempo que despendia divagando sobre uma questão, não conseguia chegar ao fim último do pensamento: a decisão. E isto não em questões complexas que demandassem grandes esforços, mas em decisões "simples", como a do dia de retorno a consulta psiquiátrica. Outro caso, como o de Phineas Gage, um ferroviário que em um acidente de trabalho teve a região pré-frontal medial de seu cérebro danificada, permitiu explicar e associar a inibição de comportamentos e a habitualidade na conduta social a danos nesta região cerebral. Todavia, alguns neurocientistas já começam a duvidar da ideia de que o papel da consciência na vontade seja uma ilusão. Na opinião de Gazzaniga, a análise da atividade cerebral no nível singular não leva em conta a dimensão social do comportamento humano e as propriedades emergentes (quebra da simetria nos cálculos) que se extraem da interação de muitos cérebros8. A mente humana para Gazzaniga é formada por um sistema descentralizado de funções cerebrais, responsável por um processo mental que resulta em uma capacidade específica. A fim de que sobrevivamos num ambiente altamente complexo, possuímos módulos cerebrais com capacidades específicas que, conforme a necessidade que a interação ambiente-indivíduo exija, são "ativados" e tomam maior atenção de nossa própria consciência. Esse modelo sistêmico permite que múltiplos processos simultâneos e inconscientes possam ocorrer sem que haja um controle por um

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GAZZANIGA, M. S. Who's in charge?, p. 130. GAZZANIGA, M. S. Who's in charge?, p. 133.

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"departamento central" em nossos cérebros. No entanto, o que explica nossa sensação de que somos seres com uma consciência indivisível, una, isto é, a sensação própria de que somos seres livres e que portanto fazemos nossas próprias escolhas sem termos de analisar as vastas informações analisadas por nossos diversos módulos cerebrais? De forma mais simples: por que temos a sensação de que há um "eu" com capacidade de decisão? A sensação de "consciência" é explicada pela neurociência moderna, como tantos outros fenômenos mentais, ancorada em um módulo cerebral específico, denominado "módulo intérprete"9. Através das informações que possui do estado cognitivo tanto da própria pessoa quanto das sugestões do ambiente a sua volta, esse módulo procura continuamente explicação para as causas e eventos de nosso mundo. Assim, este módulo está ativo o tempo todo, interpretando as informações do nosso ambiente e também de nossas reações fisiológicas para, ao fim, explicar tudo mediante uma "estória" que contamos a nós mesmos. No entanto, as narrativas são tão boas quanto as próprias informações coletadas, e só serão produzidas após a decorrência do fato em si e somente quando esta informação chegar à consciência 10 , por meio de um processo automático que cria a ilusão de unidade e propósito11. De qualquer modo, ainda não se sabe como o cérebro gera a atividade mental, pensamentos e emoções, mas é sabido que a atividade cerebral é a geradora, e não o contrário12. Estas constatações levam alguns a afirmar e contestar em absoluto a existência de livre arbítrio e do papel da "consciência" na nossa vontade, assim como os próprios fundamentos do nosso juízo de culpabilidade. Por isso Harris, por exemplo, critica duas concepções comuns sobre a liberdade de decisão: 1) que cada um de nós poderia ter atuado de modo diferente de como atuou no passado e 2) que nós somos a fonte consciente da maioria de nossas ações e pensamentos no presente13. É com base nelas que,

assumindo

que

criminosos

violentos

possuem

liberdade

de

decisão,

consequentemente os culpamos por suas ações. Dizer por isso que criminosos agiram com liberdade de decisão significa tão somente dizer que de alguma forma eles 9

GAZZANIGA, M. S. Who's in charge?, p. 73. GAZZANIGA, M. S. Who's in charge?, p. 103. 11 GAZZANIGA, M. S. Who's in charge?, p. 109. 12 CRESPO, E. D. Libertad de voluntad, investigación sobre el cerebro y responsabilidad penal p. 10-11. 13 HARRIS, Sam. Free Will. New York: Free Press, 2012, p. 06. 10

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poderiam ter se comportado diversamente, e não com base em influências diversas sobre as quais eles não exercem controle algum, mas porque eles, como agentes conscientes, eram livres para pensar e agir de outra maneira. Ora, significaria portanto dizer que eles poderiam ter resistido ao impulso de agir (ou afastar o sentimento e impulso conjuntamente) independentemente de se considerar todo o universo, ambiente e condições que os determinavam, o que inclui seus cérebros, no exato momento e estado em que se encontravam quando cometeram seus crimes14. Seguindo este raciocínio, para Harris, sem a "liberdade de decisão" o lugar da culpa desapareceria, e até mesmo assassinos psicopatas poderiam ser considerados vítimas de si próprios, pois teríamos de associar a conduta delitiva às causas que precedem qualquer decisão consciente, como traumas da infância15, por exemplo. Todavia, até mesmo Harris propõe algumas "alternativas" teóricas a fim de que a nossa noção de responsabilidade moral ainda exista mesmo que possamos explicar causas subjacentes ao comportamento humano. Basicamente: o julgamento sobre a responsabilidade deve considerar a complexidade da mente humana, e não a metafísica de suas causas e efeitos 16

, o que não implica necessariamente na abolição do sistema de justiça criminal tão

somente por considerarmos o ser humano como um "fenômeno natural"17. 3. A reação dos juristas Vejamos, agora, desde o ponto de vista dos juristas, o impacto das pesquisas neurocientíficas e suas possíveis implicações no campo da ciência jurídica, especificamente em matéria criminal, sobretudo sobre as bases e fundamentos do conceito e juízo de culpabilidade. Uma dessas reações é a de que haveria um erro categorial, isto é, uma confusão entre conceitos formulados por campos de saber distintos. Mas em que pese a independência metodológica das distintas ciências, acaso não deveria o direito penal ter em maior atenção às criticas externas ao seu campo de saber? Afinal de contas, se um ramo científico de nossa sociedade se levanta contra o que consideram serem as bases de nossos sistemas teóricos de imputação de responsabilidade, será que não há em verdade uma dúvida generalizada (ou ao menos uma incerteza compartilhada) sobre o que se 14

HARRIS, S. Free Will, p. 17. HARRIS, S. Free Will, p. 18. 16 HARRIS, S. Free Will, p. 49. 17 HARRIS, S. Free Will, p. 70. 15

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está a falar quando nos referimos ao agente culpável? Será que, nossa harmoniosa e independente ciência jurídica, fundada em uma compreensão autossuficiente de si, não construiu um castelo de leis assentados em premissas incompreensíveis para outros ramos do conhecimento? E, porque não, até para a sociedade em geral? Pois, se assim for, estas objeções neurocientíficas talvez sejam muito pertinentes. Em verdade, já há quem considere como profícua a possível aproximação destas duas ciências. Em nosso meio, o jurista Fernandez considera como "imperiosa" e "incontornável" a abertura da ciência do direito a outras áreas do conhecimento. A desvinculação em relação à realidade social e outros ramos do conhecimento teria gerado, para este autor, o reforço da crise de legitimação do próprio direito18. Entre nossos juristas brasileiros, Queiroz também tece algumas considerações. Dentre elas, afirma que as perspectivas trazidas a lume pela neurociência importam em uma reviravolta em nosso modo de pensar, pois, a rigor, delinquentes, advogados, promotores e juízes não sabem porque agem e nem poderiam agir diversamente. "Daí não fazer sentido a ideia de culpabilidade (mas não só ela), visto que não seria razoável exigir-se do agente dito culpável um comportamento diverso, isto é, conforme o direito. Estar-se-ia a exigir algo neurocientificamente inexigível"19. Mas, há muito tempo, os principais modelos dogmáticos desvincularam o fundamento da responsabilidade penal na capacidade do agente de agir de outro modo diverso, no momento do fato. Conforme esclarece Sánchez, os avanços no conhecimento neurocientífico somente problematizam modelos que se baseiam em um ser humano com capacidades de distinguir decisões racionais e processos emotivos 20 .Na opinião deste jurista, seguir defendendo a existência de um "reduto para a liberdade" ou de uma liberdade relativa, soluções característica da época do pós-guerra da doutrina alemã, também já não seriam mais possíveis21. Tratar-se-ia, em suma, de uma questão metodológica. A partir dessa lógica, há três posicionamentos

possíveis:

1)

o

direito

penal

deve

construir

suas

bases

independentemente dos conhecimentos neurocientíficos; 2) O direito penal deve 18

FERNANDEZ, Athualpa; Fernandez, Marly: Neuroética, direito e neurociência: conduta humana, liberdade e racionalidade jurídica. Curitiba: Juruá, p. 25-26, 2008. 19 QUEIROZ, Paulo. Curso de direito penal: parte geral. 8ª ed. Salvador: JusPODIVM, 2012, p. 436. 20 SÁNCHEZ, Bernado Feijoo. Derecho penal y neurociencias:? Una relación tormentosa? Barcelona, Abril de 2011, p. 16. Disponível em: 21 SÁNCHEZ, B. F. Derecho penal y neurociencias , p. 21-22.

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adequar seus fins e instrumentos à neurociência (como alguns neurocientistas propõem); 3) Deve haver congruência entre o Direito e os conhecimentos neurocientíficos sem que se perca de vista os valores fundamentais do Estado Democrático de Direito22, o que não implicaria necessariamente na modificação do modelo de fundamentação do direito penal. Para além das questões epistemológicas e daquelas que dizem respeito ao objeto e campo das ciências, partindo-se do pressuposto de que o Direito, enquanto instância reguladora de conflitos, está baseada - tem de estar, necessariamente - em algum tipo de racionalidade, ainda que seja possível discutir qual seja, haverá a possibilidade de diálogo entre os campos do saber, mesmo que se diga que são campos distintos ou até mesmo antagônicos. Assim o Direito, ainda que não se restrinja ou se subordine ao campo das ciências naturais, poderá enriquecer-se de um diálogo sincero e eticamente comprometido. Haveremos de investigar se há boas razões para isso e, em caso positivo, caberá a estudiosos interdisciplinares a tarefa de fazer as ligações entre os diversos saberes. Para Manzano, por exemplo, o direito penal não pode viver à margem dos conhecimentos científicos que incidem em seu objeto de regulação: a conduta humana. A compreensão dos mecanismos psicofísicos da ação humana, para ele, permite uma melhor eficácia reguladora das condutas do direito 23 . Assim, esse diálogo permitirá uma melhor precisão conceitual dos fins e fundamentos do direito penal. Na culpabilidade, poderá ser aprimorada uma melhor determinação dos limites da imputabilidade, pois, para se responsabilizar alguém, são necessárias certas capacidades psíquicas e cognitivas, que a partir de agora poderão ser mais facilmente esclarecidas pelos conhecimentos científicos. Uma aparente intersecção de conhecimentos já é visualizada por alguns penalistas, como Hassemer, que, apesar de suas duras críticas às manifestações neurocientíficas, argumenta que não há um conhecimento suficiente que possa justificar o juízo de que um ser humano possa atuar de outro modo na situação fática. O autor faz referência à verdade processual, argumentando que a liberdade necessária ao Direito é aquela que se

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MANZANO, Mercedez Pérez. Fundamento y fines del derecho penal: una revisión a la luz de las aportaciones de la neurociencia. Barcelona, 2011, p. 07-08. Disponível em: 23 MANZANO, M. P. Fundamento y fines delderecho penal: una revisión a la luz de lãs aportaciones de laneurociencia. p. 08.

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pode verificar no âmbito processual, e não a empiricamente constatável, pois, a constatação de uma "possibilidade de agir de outra maneira" não seria nada mais que uma "mentira vital" dos penalistas 24 . Essa "verdade" processual teria seu próprio caminho, traçado à luz da lei: o artigo da legislação Alemã, v.g., não exige para a culpabilidade a constatação da liberdade e capacidade de atuar de outro modo em uma determinada situação, senão a ausência de perturbações que fundamentariam a inimputabilidade. Vejamos o parágrafo 20 do StgB (Código Penal Alemão): "Whoever upon comission of the act is incapable of apprecianting the wrongfulnes of the act or acting in accordance with such appreciation due to a pathological emotional disorder, profound consciousness disorder, mental defect or any other serious emotional abnormality, acts without guilt"

De maneira similar, assim trata o nosso Código Penal: Art. 26. É isento de pena o agente que, por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento"

Assim, uma alternativa apontada é entender que a premissa de que partem esses dispositivos legais revela um princípio normativo de atribuição de responsabilidade a adultos e pessoas mentalmente sãs25. A legislação seria simplesmente atribuição geral de responsabilidade normativa, que por sua vez é objeto de uma convenção social dos sujeitos de direito a fim de estabelecer uma base de responsabilidade para seus comportamentos antijurídicos. Aqui, à Lei caberia determinar cuidadosamente aqueles danos apontados pela neurociência que seriam capazes de causar ações delitivas por parte de seus portadores26. Tal concepção de culpabilidade, derivada, portanto, de um consenso social, é também defensável desde uma perspectiva neurocientífica27, como nas opiniões de Gazzaniga e Harris. Portanto, desse ponto de vista, os conhecimentos neurocientíficos só tem a acrescentar (ou diminuir) as causas de exclusão de imputabilidade. Por outro lado, no marco de um Direito Penal funcionalista, ora como limitação, ora como própria necessidade de manutenção do sistema, as constatações neurocientíficas 24

HASSEMER, Winfried. Neurociencias y culpabilidad em derecho penal. Barcelona, Abril de 2011, p 11. Disponível eletronicamente em: . 25 CRESPO, E. D. Libertad de voluntad, investigacion sobre el cerebro y responsabilidad penal, p. 476. 26 CRESPO, E. D. Libertad de voluntad, investigacion sobre el cerebro y responsabilidad penal, p. 478. 27 CRESPO, E. D. Libertad de voluntad, investigacion sobre el cerebro y responsabilidad penal, p.478.

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devem ser analisadas considerando os fins da pena, que demanda uma análise própria, detida e cuidadosa de cada sistema, o que ultrapassa os limites propostos neste trabalho, que é apresentar as principais ideias da neurociência acerca da liberdade humana e sua repercussão no campo jurídico, isto é, na opinião dos juristas. 4. Conclusão. Com independência do que irá suceder, diante do atual paradigma complexo da ciência, cujo contato interdisciplinar impõe respostas cada vez mais sofisticadas, parece inevitável que os juristas tenham de enfrentar os questionamentos que se impõem a partir de outros campos do saber, sem que seja possível se falar, de antemão, quais serão os caminhos que o Direito irá traçar para si próprio, nem as estratégias que os juristas adotarão para os novos desafios das ciências. Quanto a isso, caberá apenas a História nos responder. 5. Referências ALEMANHA, Criminal Code. 13 november 1998. Federal ministry of justice, 2001. Disponível em: . Acesso em: 19 mai. 2014. BRASIL. Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal, disponível eletronicamente

em:

. Acesso em 19 mai. 2014. CRESPO, Eduardo Demetro. Libertad de voluntad, investigacion sobre el cerebro y responsabilidad penal. Aproximación a los fundamentos del moderno debate sobre neurociencias y derecho penal. Barcelona, Abril de 2011. Disponível eletronicamente em: DAMÁSIO, Antônio. R. O erro de descartes: emoção, razão e o cérebro humano. 2. ed. São Paulo: Schwarcz, 2010. FERNANDEZ, Athualpa; Fernandez, Marly: Neuroética, direito e neurociência: conduta humana, liberdade e racionalidade jurídica. Curitiba: Juruá, 2008. GAZZANIGA, Michael S. Who's in charge? New York: HapperCollins Publishers, 2011.

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HARRIS, Sam. Free Will. New York: Free Press, 2012. HASSEMER, Winfried. Neurociencias y culpabilidad en derecho penal. Barcelona, Abril de 2011. Disponível eletronicamente em: . Acesso em: 19 mai. 2014. MANZANO, Mercedez Pérez. Fundamento y fines del derecho penal: una revisión a la luz de las aportaciones de la neurociencia. Barcelona, 2011. Disponível em: NEUROCIENAS Y DERECHO PENAL: Nuevas perspectivas em el ámbito de la culpabilidad y tratamiento jurídico-penal de la peligrosidad. Organizador: CRESPO, Eduardo Demetrio. Madrid: BdeF, 2013. QUEIROZ, Paulo. Curso de direito penal: parte geral. 8ª ed. Salvador: JusPODIVM, 2012. SÁNCHEZ, Bernado Feijoo. Derecho Penal y Neurociencias:? Una relación tormentosa? Barcelona, Abril de 2011. Disponível em:

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