Imagem da Velhice: imperativo moral anti-envelhecimento para a modificação de um corpo sem memória

June 30, 2017 | Autor: Adri Lima | Categoria: Memoria, Biopolítica, Velhice, Comunicação E Consumo
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Imagem da Velhice: imperativo moral anti-envelhecimento para a modificação de um corpo sem memória.1 Adriana Lima de Oliveira2 Programa de Pós Graduação em Comunicação e Práticas de Consumo – ESPM/SP

Resumo A última década assistiu a transformação da velhice em um tema privilegiado, tanto nos debates sobre políticas públicas quanto na definição de novos mercados de consumo. A preocupação da sociedade com o envelhecimento deve-se, sem dúvida, ao fato de os idosos corresponderem a uma parcela da população cada vez mais significativa. E as mulheres mais velhas recebem essa pressão de maneira muito mais aguda. Com o objetivo de identificar os dispositivos encarregados de criar uma imagem contemporânea da velhice, ou, como denominamos, de imperativo anti-envelhecimento, trilhamos o mesmo caminho percorrido pela pesquisadora Dra. Laura Clarke que, durante 10 anos, estudou sobre a tensão entre ‘idade cronológica e idade sentida’, para olhar o cenário brasileiro e identificar esses imperativos que servem de justificativa para a modificação do corpo. A idade cronológica dissociada da idade mental evidencia a importância da gestão de si como mercadoria, um complexo sistema de cálculo simbólico numa escala temporal: onde você está hoje e onde você quer chegar. Palavras-chave: comunicação e consumo; velhice; biopolítica; memória.

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Trabalho apresentado no GT02 – Interfaces comunicacionais entre memória, história oral, cultura e narrativas.

Simpósio Internacional Comunicação e Cultura: Aproximações com Memória e História Oral, realizado na Universidade Municipal de São Caetano do Sul, São Caetano do Sul – São Paulo, de 27 a 30 de abril de 2015. 2. Mestranda do PPGCOM – ESPM/SP em Comunicação e Práticas de Consumo sob orientação da Profa. Dra. Tânia Cezar Hoff. E-mail do autor: [email protected]

 

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Introdução Para todo aquele que se depara com o tema da velhice, Simone de Beauvoir é a primeira leitura, ou mesmo, a mais citada. Portanto, rendendo homenagem a autora e sua obra, iniciamos esta reflexão inspirados na ‘conspiração do silêncio’ que, para a autora, caracterizava o tratamento dado ao tema na época de sua publicação3. No entanto, a última década assistiu a transformação da velhice em um tema privilegiado. Segundo Debert, [hoje] tanto nos debates sobre políticas públicas quanto na definição de novos mercados de consumo e novas formas de lazer, “o ‘idoso’ é um ator que não mais está ausente do conjunto de discursos produzidos” (2012, p. 11). Neste cenário, levantamos a hipótese que passamos da invisibilidade para a visibilidade do velho a partir de suas convocações contemporâneas mediadas pelas práticas de consumo orientadas para e pelo mercado. A indústria do envelhecimento conta com grande variedade de produtos e serviços nas áreas da saúde, bens e serviços de lazer, previdência privada, casas de repouso e serviços financeiros. Mas nenhum mercado está tão bem adaptado na formação de novos públicos, quanto o da beleza. Com o desenvolvimento da medicina estética e intervenções anti-envelhecimento, tem havido uma proliferação de produtos e serviços que visam alterar a aparência do envelhecimento facial e corporal. Segundo Laura Clarke, uma vez que as empresas farmacêuticas continuam a desenvolver produtos e os médicos e outros profissionais de saúde habilmente vendem esses produtos, parece inevitável que as rugas (marcador fundamental da velhice) adicionais serão redefinidas e novas falhas serão identificadas, potencializando seu valor comercial. Por conseguinte, a dimensão da insatisfação das mulheres com os rostos envelhecidos vai continuar a crescer para acompanhar o ritmo e o alcance do desenvolvimento da tecnologia médico-estética (2011, p. 100). Partindo da mesma premissa que intrigou esta autora para iniciar suas pesquisas sobre a ______________________ 3. O livro de Simone de Beauvoir A Velhice: Realidade Incômoda foi publicado no Brasil em 1970, tinha como objetivo quebrar a ‘conspiração do silêncio” que caracterizava o tratamento dado ao tema. (DEBERT, 2012, p. 11).

 

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tensão entre ‘a idade cronológica e a idade sentida’, e a levou para um trabalho que durou mais de uma década, buscamos olhar para o cenário brasileiro e identificar qual a imagem da velhice e seus imperativos morais que servem de justificativa para a modificação do corpo. Este mesmo corpo que se constitui como uma das fronteiras definidoras de nossa subjetividade, mas que também, hoje em dia, em discursos formulados no âmbito da economia, da educação e das políticas públicas, aparece como alvo de estratégias convocatórias para seu investimento, capacitando-o, cognitiva e emocionalmente, para tornar-se competitivo em diversas arenas de disputa social (FILHO & COELHO, 2011). Neste sentido, a ‘estetização da vida’ (FEATHERSTON, 1990) própria da pósmodernidade, encoraja a variedade de experiências em um contexto no qual a idade cronológica é pura maleabilidade, receptáculo de um número praticamente ilimitado de significações e, por isso, um mecanismo eficiente na constituição de novos mercados de consumo e atores políticos (DEBERT, 2012). O corpo como prisão Debert, na tentativa de formular um cenário para as novas formas de gestão da velhice e o que ela chama de ‘reprivatização do envelhecimento’, atenta para um duplo movimento que acompanha sua transformação em uma preocupação social. De um lado, uma ‘socialização progressiva da velhice’, isto é, durante muito tempo considerada como própria da esfera privada e familiar, agora se transforma em uma questão pública, onde o Estado define e implementa um conjunto de orientações e intervenções. Assistimos também o surgimento de um saber específico – a gerontologia – profissionais e instituições encarregados da formação de especialistas sobre o envelhecimento. Como consequência, tentativas de homogeneização das representações da velhice são acionadas e vemos emergir uma nova categoria cultural: “os idosos, como um conjunto autônomo e coerente que impõe outro recorte à geografia social, autorizando a colocação de modos específicos de gestão” (DEBERT, 2012, P. 14).

 

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De outro lado, se a velhice era tratada como uma etapa da vida caracterizada pela decadência física e ausência de papéis sociais e, justamente essa imagem negativa foi responsável por garantir a legitimação de muitos direitos sociais, como a universalização da aposentadoria. Hoje, esse movimento de socialização não está ausente do que a autora chama de ‘reprivatização’, que transforma a velhice numa responsabilidade individual – “nesses termos, ela (a velhice) poderia então desaparecer do nosso leque de preocupações sociais” (id.ib.). O apelo a saudabilidade, a negação e o combate ao envelhecimento e o aparecimento de novos e variados procedimentos estéticos cirúrgicos e não cirúrgicos são alguns dos sintomas que marcam essa imagem do velho ativo e a noção do corpo como uma prisão que impede a auto expressão e, portanto, passível de transformação. Imperativo anti-envelhecimento O objetivo deste artigo é atentar para a tendência contemporânea de rever os estereótipos associados ao envelhecimento, substituindo as perdas (física, sociais etc.) pela narrativa de que os estágios mais avançados da vida são momentos propícios para novas conquistas, guiadas pela busca da beleza, do prazer e da satisfação pessoal (DEBERT, 2012). Neste cenário, o ponto de partida para a observação são as mulheres, por entender que estas reagem mais fortemente aos apelos de um mercado que propaga o ideal feminino como sendo jovem, tonificado, magro e, principalmente, sem rugas. Segundo Clarke: Enquanto os cabelos grisalhos podem ser facilmente mascarados com tintura; a flacidez, estrias e protuberâncias podem ser estrategicamente cobertas com roupas; no entanto, as rugas faciais têm sido um marcador físico do envelhecimento que é difícil, senão impossível, de esconder com mais de um produto de beleza (2011, p.69)4.

Para Featherstone & Wernick (1995) o estudo da imagem do envelhecimento vem se movimentando gradualmente de uma posição marginal para uma posição central na disciplina de gerontologia social. Essa tendência reflete um entendimento global contemporâneo de que o processo de envelhecimento não pode ser adequadamente

 

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explicado apenas em termos médicos e biológicos, mas sim em um processo interativo que envolve fatores sociais e culturais. Neste sentido, a identidade não pode ser vista como estável, mas sim como forma interativamente construída, dinâmica, fluída e em movimento. Ylanne fala da noção de identidade enquanto performance, “um repetido e reiterado conjunto de ações que também implica a possibilidade de versatilidade e de mudança”5 (2012, p.04). Essa nova identidade social, baseada não mais no que o indivíduo é, mas no que ele faz, sugere que para amenizar os efeitos da idade é preciso um consumo disciplinar com vistas a uma juventude idealizada. Essa pedagogia do consumo é mais fortemente direcionada às mulheres, uma vez que são nelas que o marcador indelével da idade se manifesta: as rugas. O mito da beleza (Wolf, 1992) associado ao da juventude é mais insidioso do que qualquer mística da feminilidade surgida até agora. Foi a partir desse diagnóstico que o estudo de Laura Clarke (2011) definiu seus parâmetros de tempo: antes e depois do ‘Botox6’. Juntamente com outros procedimentos cirúrgicos, seu desenvolvimento e comercialização, mudou, literalmente, a face do envelhecimento. E no Brasil? Será que a realidade se apresenta similar? Obviamente conscientes do poder diminuto em perpetrar uma investigação de tamanha envergadura, aventou-se a possibilidade de trilhar os mesmos caminhos, através de entrevistas com médicos, mulheres e análise de revistas femininas objetivando apresentar um panorama da imagem da velhice e indicando os imperativos morais anti-envelhecimentos justificados para a modificação do corpo. E, ainda, considerando que todo discurso tem relação com a memória que acaba por constituir sua base de sustentação de sentidos, ________________ 4. “While gray hair can be easily masked with hair dye, and sagging flesh, stretch marks, and unsightly bulges may be strategically covered with clothing, facial wrinkles have long been a physical marker of aging that is difficult, if not impossible, to hide with over-the-counter beauty products.”. Tradução livre, minha. 5. (…) identity as a performance, a repeated and reiterated set of actions that also entails the possibility of versatility and change. Identities are thus not seen as what people are but what they do. Tradução livre, minha.

 

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problematizamos estes sentidos que se sedimentam e circulam nas práticas sociais como ‘evidências’ confirmadas como ‘naturais’. Os caminhos para uma investigação Para essa investigação partimos dos estudos da socióloga Laura Hurd Clarke publicados no livro Facing Age: women growing older in anti-aging culture, explorando as relações entre aparência, preconceito de idade, idade cronológica e idade sentida. E junto com ela, Guita Grin Debert e Mike Featherstone, considerando principalmente o contexto envolvendo o velho e o conceito de velhice. A ascensão de procedimentos estéticos cirúrgicos e não cirúrgicos foram projetados para diminuir a visibilidade das rugas ou adicionar volume ao rosto em áreas estratégicas, fazendo com que as pessoas pareçam mais jovens. Segundo a Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica7, com 1,5 milhões de cirurgias realizadas em 2013, o Brasil desbancou os EUA do primeiro lugar em realizações desse tipo de procedimento. O corpo valorizado, portanto, é o corpo jovem, aliás, a este respeito Debert destaca que na prática desenvolvida por geriatras e gerontólogos, a juventude não é mais uma etapa da vida, um momento de passagem em um contínuo que caracteriza o desenvolvimento biológico universal [...], transformaram-se em agentes ativos na proposta de práticas, crenças e atitudes a indicar que é um bem e pode ser por todos conquistado (2012, p. 33).

Nos estudos de Clarke (2011) podemos notar que antes dos procedimentos cosméticos cirúrgicos e não cirúrgicos decolarem, isto é, considerando o aparecimento do Botox como grande marco nesta divisão do tempo, envelhecer era um importante emblema ________________ 6. Toxina botulínica é um complexo protéico purificado, de origem biológica, obtido a partir da bactéria Clostridium botulinum. A forma cosmética da toxina botulínica é uma injeção não cirúrgica que temporariamente reduz ou elimina linhas de expressão, rugas na testa, pés de galinha perto dos olhos e bandas grossas no pescoço. É uma das formas mais importantes no campo do rejuvenescimento facial. Parecida com o lifting cirúrgico, esta é a forma mais popular de redução de rugas faciais. Botox é a marca americana da toxina botulínica e foi aprovado para uso estético em 2002. O Botox Cosmético foi aprovado em primeiro lugar no Canadá e na Nova Zelândia em 2001. No Brasil desde o ano 2000 o Botox foi aprovado para uso estético no tratamento das rugas de expressão. Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica. Disponível em < www.cirurgiaplastica.org.br >. MD Saúde. Disponível em < http://www.mdsaude.com/2010/10/botox.html >. Acesso em out/2014. 7. Fonte Brasil Post: . http://www.brasilpost.com.br/2014/03/25/selfies-cirurgia-plastica_n_5027454.html e Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica: http://www2.cirurgiaplastica.org.br/blog/page/2/ - Acesso em out/2014.

 

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moral. Ao contrário, em suas pesquisas mais recentes, o aparecimento das rugas significava envelhecimento interno, decadência e morte eminente. Como poderosas aliadas do mercado, surgem novas narrativas que se espraiam pelo sistema de comunicação: a terceira idade substitui a velhice, a aposentadoria ativa se opõe a aposentadoria, o asilo passa a ser chamado de centro residencial. E um novo consumidor é formado. Não se trata mais de olhar apenas para os problemas econômicos dos idosos, mas também para toda uma gama de serviços com o objetivo de proporcionar cuidados culturais e psicológicos, de forma a integrar socialmente uma população tida como marginalizada. (DEBRET, 2012, p. 61). Nesse sentido, é indiscutível os avanços de movimentos como grupos de convivência e universidade da terceira idade, reivindicando a criação de uma sociabilidade mais gratificante entre os mais velhos. Entretanto, esse novo mercado de consumo sugere que o corpo é pura plasticidade e que é dever de todos manter-se jovens. A velhice saudável se transforma em algo que deve ser conquistado a partir de um esforço pessoal. Para isso, temos a disposição produtos e estratégias que poderão ser adotadas para combater a deterioração física e a deficiência cognitiva. O mercado transforma-se no espaço de autorrealização, favorável ao florescimento de potencialidades individuais: a rede de discursos encoraja os indivíduos a conceberemse, desde cedo, como administradores de si mesmos. Essa fundamentação econômica de todos os comportamentos humanos é destaque nos estudos de Freire Filho: Somos instados a efetuar periodicamente, uma espécie de contabilidade existencial, em que apreciamos o mérito ou o valor de nossas ações com base em parâmetros da racionalidade econômica, como ‘eficiência’, ‘saldo de investimento’, ‘tendência de mercado’ ou ‘fatores de risco e de crescimento’. (...) Nem mesmo a sociabilidade doméstica escapa de ser reinterpretada a partir de princípios instrumentais. Desaparece o horizonte das interações familiares e o desfrute gratuito da companhia dos entes queridos, o prazer desinteressado em trocar experiências e afetos (2011, p. 29-30).

Esse culto à performance aparece, no entendimento das pessoas com idade avançada, mimetizado em saúde e auto estima. Uma vez que essa etapa da vida está relacionada a

 

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aposentadoria e, portanto, sem ligação estreita com o mercado de trabalho, a competição passa a ser a forma de relacionar-se consigo mesmo e com o seu corpo. Neste cenário, a imagem da mulher na mídia apela para a confiança, o glamour e o sexualidade, sugeridos como competência do jovem e não da idade ou do envelhecimento (CLARKE, 2011, p. 106). A rotina da beleza, portanto, é legítima, positiva e necessária. A cultura de consumo anti-envelhecimento ampliou o discurso de que a juventude é uma mercadoria, ao mesmo tempo, fácil de adquirir, vital para a sua visibilidade social e, consequentemente, valor cultural, e, portanto, não limitado a uma idade cronológica (id., p. 127). O ato de controlar a idade virou um campo de batalha do mercado contra o tempo. A imagem da velhice: #tocomtudoemcima Evidentemente a imagem da velhice tem se alterado nestas últimas décadas e o envelhecimento se tornou um novo mercado de consumo. Muitos autores já trataram desse assunto, principalmente no que se refere a investigação e análise dos discursos da mídia. “No Brasil não temos revistas voltadas para a velhice ou para a aposentadoria, mas não está ausente dos grandes periódicos o tratamento dessa questão” (DEBERT, 2012, p. 209). Desta análise podemos depreender, de maneira muito sintética, que a imagem (construída) do velho contemporâneo, invariavelmente apresentado como indivíduo independente e ativo, capaz de encontrar uma série de atividades novas e atraentes nessa etapa da vida, contrasta com o combate ao envelhecimento que as revistas propõem ser iniciado em fases prematuras da vida. Para tratar desse assunto iniciamos a pesquisa com a perspectiva dos médicos8, mais especificamente nas disciplinas de cirurgia plástica e dermatologia, questionando o por quê dos procedimentos cosméticos cirúrgicos e não cirúrgicos tomarem vulto, principalmente entre as mulheres e, ainda, a importância da aparência na sociedade brasileira. Quanto a demanda, as mulheres, sem dúvida, são as que mais procuram este tipo de tratamento, tanto o estético não cirúrgico, considerado menos invasivo, quanto o

 

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cirúrgico. A idade varia, mas, geralmente a partir dos 50 anos. O procedimento mais procurado, como esperado, é o Botox. Sem dúvida ele mudou a face do envelhecimento: “As pessoas já não sentem mais a idade que tem [...] Mudou porque ficou mais fácil de aplicar e a recuperação é muito mais rápida” (Dermatologista, 59 anos). Se o público estava faminto por novas maneiras de desafiar o envelhecimento e as indústrias farmacêuticas de criar um mercado para a aceitação social de procedimentos cosméticos, tudo isso se infiltra em nosso dia a dia a partir de anúncios e programas com linguagem comum e ativamente endossadas por celebridades midiáticas, particularmente aqueles dos países ocidentais (CLARKE, 2011). Considerando o papel da publicidade na relação comunicação e consumo, e em proporcionar visões de identidade (família, gênero, idade etc.), o desenvolvimento de seu trabalho envolve a criação de (novos) nichos de mercado, onde a imagem das minorias possam circular livremente (SASSATELLI, 2007). Para Featherstone (1995) a imagem do corpo e do rosto do velho é visto como ‘prisão’. E, podemos ver isso claramente, nas palavras do cirurgião plástico: “As pessoas não querem ficar velhas, porque velho é considerado usado, antiquado, coisa do passado... A velhice não é vista como experiência [...]”. Desta forma a aparência torna-se cada vez mais importante, tanto para a comunidade médica quanto para a sociedade em geral que recorrem aos apelos do mercado como uma ferramenta de diagnóstico para a saúde e um importante indício a um estilo de vida socialmente aceitável. Essa distorção entre aparência e essência se torna ainda mais emblemática na contemporaneidade pois, como acreditava Simone de Beauvoir, na maior parte das vezes os indivíduos de mais idade só se sentem velhos por meio do olhar dos outros, sem ter experimentado grandes transformações interiores ou mesmo exteriores. Velho, para quase todos, é sempre o ‘outro’. Se o olhar do outro é tão importante, podemos imaginar quando essa avaliação é feita e corroborada por um especialista. Para os médicos entrevistados, a grande ambição “é ________________ 8. Foram entrevistados um cirurgião plástico de 72 anos, casado e uma dermatologista de 59 anos, também casada. Ambos trabalham no serviço público e possuem um consultório particular em SP. Período: out/2014.

 

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fazer você aparentar [se apresentar] bem para a sua idade”. Isso reforça a ideia de um estado físico e mental permanentemente jovem e ativo. Mas, e as mulheres? Como elas encaram a velhice e a importância da aparência física em suas vidas? Conversamos com mulheres da classe C/D entre 45 e 70 anos9. A primeira questão foi a pressão social sobre a aparência feminina e uma das entrevistadas de 71 anos, classe C respondeu: “Hoje em dia acho que é mais ou menos igual (para homens e mulheres). Mas a mulher ainda é mais pressionada”. Nota-se que a questão da ‘escolha’, atrelada aos conceitos de cuidado de si e autoestima, se apresentam como verdade nas palavras desta outra de 63 anos, classe C, casada: “Claro que tem (pressão). Mas a gente (mulher) tem que se cuidar... para se sentir bem, ter autoestima”. Essa constatação do ‘fazer isso por mim e não pelos outros’, ampliada pela análise das revistas femininas, reflete a imagem e o texto de muitos anúncios promocionais de produtos da indústria de cosméticos. Retomando os dizeres de Clarke (2011) “a rotina de beleza, portanto, é legítima, positiva e necessária”. (p. 116). Da mesma forma a noção de ‘invisibilidade’ do idoso é ofuscada por outros conceitos como ‘acesso’ e ‘gestão de si’. Nas palavras desta mulher de 71 anos, classe C: “Não dá para falar que hoje uma pessoa de 60 anos é idoso, é muito diferente de antigamente. Hoje, com 60, você está na flor da idade. Só fica velho se você se entregar... tem muita coisa para a terceira idade”. E a linha que separa beleza e saúde, mais uma vez, se revela tênue, como demonstra esta mulher de 63 anos, classe C: “O que é mais importante: a saúde ou a beleza? Eu, por exemplo, cuido das duas coisas... A mulher começa a olhar no espelho e vê que ‘as coisas estão caindo’, isso é muito ruim...”. O contexto é claramente mercadológico, o corpo se transforma em uma plataforma maleável, passível de ser modificado pelas novas tecnologias que estão acessíveis, mas ________________ 9. Foram entrevistadas três mulheres: Classe D, 45 anos, solteira; Classe C, 63 anos, casada e Classe C, 71 anos, viúva. A escolha por trazer uma pessoa ‘mais jovem’, especificamente a de 45 anos, foi justamente por tentar entender a questão da gestão da aparência e a rotina de beleza imposta desde cedo. Período: out/2014.

 

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variam em serviço e qualidade dependendo do quanto você pode pagar para isso. Conforme as palavras desta mulher de 45 anos, classe D: “Se eu tivesse condições eu faria uma plástica, não para os outros, mas para mim mesma. Não quero ‘parecer’ para os outros, é uma decisão minha.” A aparência é moeda valiosa para a interação social, como nos mostra esta mulher de 71 anos, classe C: “Eu não faria uma plástica. Acho que, nesta idade não preciso mais. Mas eu me cuido, não quero parecer uma pessoa descuidada”. A maioria das pesquisas sobre o tema envelhecimento na contemporaneidade, já indicia que ‘o velho não se sente velho por dentro’, isto reflete apenas a inabilidade do corpo de representar adequadamente a idade interior (FEATHERSTONE, 1995). Debert, ao tratar dos conflitos éticos envolvidos, no que ela chama de reinvenção do envelhecimento, mostra o paradoxo que acontece justamente no momento em que o idoso se constitui como ator político e o envelhecimento em um novo mercado de consumo, onde a denúncia feita por Simone de Beauvoir da ‘conspiração do silêncio’, ganha atualidade: “A visibilidade alcançada pela velhice é, antes, um compromisso com um tipo determinado de envelhecimento positivo” (2012, p. 23). Esse discurso aparece nas palavras da mulher de 45 anos, classe D: “Mas é preciso parecer bem em todos os sentidos. Os médicos mesmo (sic) dizem que a partir dos 35 você já precisa se cuidar. Isso não é beleza, é saúde”. Somente o signo da beleza seria muito pouco para sustentar o atual discurso do anti-envelhecimento; este precisava ser reforçado com um argumento tão forte e poderoso que seria difícil de refutar, neste caso, a saúde. A prevenção é um bem colocado a disposição da sociedade para garantir uma vida digna e positiva. Não atender a esse chamado, seja por quais circunstâncias forem, é ‘escolher’ o lado mais difícil, e portanto, de sua inteira responsabilidade. Nas palavras da mulher de 63 anos, classe C: “(...) Sei lá, minha cabeça é jovem, é o meu jeito de ser... mas isso é um conflito: na minha cabeça eu tenho 35, mas a minha cara é de 63. É muito difícil, mas eu sei me colocar no meu lugar”. Este lugar é determinado pelo acesso aos mais diferentes tipos de canais de comunicação que tratam do estilo de vida e comportamento da mulher. Nesta fase da

 

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pesquisa, fomos atrás de revistas femininas que pudessem nos dar uma pista sobre a imagem da mulher mais velha e os discursos do anti-envelhecimento. Como no Brasil não dispomos de nenhuma revista direcionada ao público mais velho, fizemos uma seleção de 7 exemplares segmentados para o público feminino nas seguintes categorias: (1) Celebridades [revista Caras], (2) Variedades/Novela [revista Ana Maria e tititi], (3) Feminina [revista Claudia], (4) Jovem [revista TPM], (5) Adolescente [revista Capricho] e (6) Geral/Sênior [revista Seleções, a única considerada pelos jornaleiros como uma revista para ‘pessoas mais velhas’]. Todas as edições são de outubro de 2014. Em 7 revistas, foram encontradas 33 marcas, sendo o segmento de cabelo o que mais recebeu anúncio em todas elas. A perfumaria também é destacada pela quantidade de anúncio da marca O Boticário, presente em quase todas as revistas. Mas uma segunda marca chama a atenção ao analisar as revistas, trata-se do DIVCOM10 Pharma que publicou 5 produtos diferentes: 3 da linha IMECAP (rejuvenecedor, hair e celulite), 1 LIPOMAX (shake emagrecedor) e 1 Varicell (varizes). Muito presente nas revistas Caras, tititi e Ana Maria, no entanto nenhuma referência nas revistas Seleções, Capricho e TPM. Interessante notar que nenhum dos anúncios era sobre creme ou similar ‘anti-rugas’, somente o produto IMECAP Rejuvenescedor [Divcom] – cápsulas de vitamina e minerais - prometia “cuidar da sua pele desde as camadas mais profundas até a superfície”. As palavras-chave encontradas nestas publicações podem ser agrupadas em três frentes: primeiro ‘a beleza como sinônimo de saúde’. Neste caso temos alguns textos retirados dos anúncios que exprimem e reforçam este conceito: ‘A beleza inspira’ e a ‘A vida é linda’ (O Boticário); ‘O essencial para uma vida melhor’ (Medley). O segundo é o uso freqüente de ‘palavras no imperativo’, como recurso próprio da linguagem publicitária: ________________ 10. Fonte: Site institucional da marca http://www.divcom.com.br/divcom/produtos/imecapreju. Acesso em out/2014.

 

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‘Descubra-(se)’ e ‘Surpreenda-(se)’ (produtos para cabelo). E, por fim, confirmando a tendência neoliberal da promoção do capital humano, a ‘gestão de si’ pode ser encontrada em frases como ‘o tempo passa do jeito que você quiser’ (IMECAP), ‘você tem o tratamento completo para as dores nas pernas’ (Varicell). Mas uma frase, precedida de hashtag11 foi a mais emblemática: #tocomtudoemcima.

Site www.tocomtudoemcima.com.br. Acesso em out/2014.

O site é um dos canais de comunicação da empresa Divcom e funciona como especialista em dicas de saúde, beleza e bem estar. A eficiência desta estratégia está em criar, o que Aidar Prado denomina como ‘analistas simbólicos’, prontos para te ‘ajudar’ na administração da vida: (...) onde você está hoje em termos de administração de sua vida (...) e aonde você quer chegar? Esse ‘lugar’ almejado é construído a partir de serviços e produtos disponíveis no mercado. Trata-se de um lugar idealizado, projetado com base numa certa concepção de vida e do mundo desejado, do corpo próprio e dos sentidos de futuro disponibilizados a cada um pelos sistema de mercadorias. (2013, p. 10).

Essa racionalidade instrumental está ancorada na figura do especialista que tem como ________________ 11. Hashtag é um símbolo (#) que classifica ou categoriza a palavra ou frase que o acompanha. Usado inicialmente para facilitar a busca de informações pela internet, foi gradativamente se tornando popular no mundo off line e incorporado aos anúncios impressos.

 

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objetivo fim orientar as estratégias para regimes de visibilidade condizentes com um mercado que, ao mesmo tempo que coloca à disposição e facilita o acesso a uma grande variedade de produtos e serviços, também convoca para uma mudança (de vida) desde que sejam visíveis e adequadas a um padrão determinado. Mais uma vez, trago as palavras de Aidar Prado, “a aporia dessa sociedade está justamente em exigir que todos sejam diferentes, desde que essa diferença não implique uma discussão que conduza à revolução, à mudança do sistema” (2013, p. 19). Conclusão No contexto em que os velhos são apresentados ou a velhice é abordada como situação de fato, torna-se relevante um olhar atento às formas de produção de conteúdo através de dispositivos midiáticos segmentados (principalmente) para o público feminino. Considerando a vigilância com a idade fator determinante nesta relação produção e consumo, este trabalho pretende evidenciar as diversas manifestações de visibilidade e convocações na sociedade contemporânea. E, ainda, refletir sobre essas convocações manifestas na forma de discurso que dissocia a ‘idade cronológica da idade sentida’ fazendo surgir um ‘corpo sem memória’, onde as marcas indeléveis do tempo são vistas como ‘morte eminente’ e, portanto, devem ser apagadas a qualquer custo. Chama a atenção não haver propaganda de cremes cosméticos para o rosto (rugas), enquanto vemos uma variedade de outros produtos, como maquiagem e cabelo. Acreditamos que esse fato pode ter correspondência com o tipo de mídia, ou seja, a promoção deste tipo de produto está associada ao ritual (principalmente, o antes e o depois) e isso pode ser realçado em comerciais eletrônicos (TV) e nas próprias lojas, com a estratégia de ‘experimentação de produto’. A importância da ‘gestão de si’ como a pedagogia do mercado contemporâneo, mostrase como imperativo para uma vida melhor e, portanto, a responsabilidade passa a ser do sujeito. ‘Só fica velho quem quer’. Isso é reforçado pelo sentimento de inadequação entre a idade cronológica e a idade mental. Mais uma vez surgem estigmas retóricos

 

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como ‘ser velho e estar velho’. Mas, quando começa a velhice? Não é um consenso. Como nos ensina Gisela Castro: A velhice é uma categoria muito imprecisa. É importante entendê-la como uma construção sociocultural e não apenas como uma fase da vida. (...) A juventude passou a ser encarada como um valor. Quando todos querem imperiosamente ser considerados jovens, o envelhecimento é encarado como um problema. Combater os sinais da velhice torna-se dever moral, imperativo categórico do bem viver. Isso vale principalmente para as mulheres que são muito mais cobradas. (Entrevista Jornal O Globo, 03/12/14).

Esperamos ter contribuído com um tema tão instigante quanto o da velhice, afinal o critério da idade afeta a todos nós, e não considerar os processos naturais do envelhecimento faz com que se perpetue a ‘conspiração do silêncio’ onde aparência se torna mais meritória e significativa que a experiência.   REFERÊNCIAS CLARKE, Laura Hurd. Facing age: women growing older in anti-aging culture. Rowman & Littlefield Publishers, Inc. 2011. DEBERT, Guita Grin. A reinvenção da velhice. 1ed. 2 reimp. – São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo: FAPESP, 2012. FEATHERSTONE, Mike and WERNICK, Andrew. representations of later life. London: Routledge: 1995.

Images

of

Aging:

cultural

FEATHERSTONE, Mike. Cultura do consumo e pós-modernismo. Tradução: Júlio Assis Simões. São Paulo: Estúdio Nobel, 1990. FILHO, João Freire Filho e COELHO, Maria das Graças Pinto. A promoção do capital humano: mídias, subjetividade e novo espírito do capitalismo. Porto Alegre: Sulinas, 2011. PRADO, José Luiz Aidar. Convocações Biopolíticas dos dispositivos comunicacionais. São Paulo: EDUC: FAPESP, 2013. SANTAELLA, Lúcia. Corpo e comunicação: sintoma da cultura. São Paulo: Paulus, 2004. SASSATELLI, Roberta. Consumer Culture: history, theory and politics. Sage Puclications Ltda, 2007. YLANNE, Virpi. Representing Ageing: images and identities. Palgrave Macmillan, Inc. 2012. WOLF, Naomi. O Mito da Beleza: como as imagens de beleza são usadas contra as mulheres. Tradução Waldéa Barcellos. Rio de Janeiro: Rocco, 1992.

 

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