Imagem e(m) movimento

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Publicado no catálogo de textos sobre “Morceau de Bravoure”, espectáculo da Companhia Nacional de Bailado em associação com a companhia de teatro Cão Solteiro e colaboração com André Godinho (Novembro de 2015)

Imagem e(m) movimento Daniela Agostinho

São dois tempos suspensos que nos interpelam no início deste Morceau de Bravoure: o do final de uma peça que o espectador não a chega ver, mas que é adiado até à exaustão, e o da marcha republicana de 11 de janeiro de 2015, organizada no rescaldo do ataque mortífero ao jornal Charlie Hebdo, que surge aqui por meio da fixação fotográfica. Desafiando as convenções de finitude que lhes é comum, ambos - peça acabada e imagem fotográfica - reclamam no palco uma vida póstuma através da perpetuação do movimento. A imagem da marcha, que pela evocação de Delacroix viria a adquirir a intitulação apócrifa de Le crayon guidant le peuple, situa-nos no tempo e no espaço de um determinado imaginário social da mobilização que é tanto hodierno como remoto. A memória visual de Delacroix, mas também de Géricault,

invocada pela bandeira e a disposição dos corpos no plano da composição, convive com as iconografias das mobilizações urbanas mais recentes numa temporalidade que é própria das imagens, em que figurações de várias épocas se sobrepõem e se actualizam, como sugeriu o historiador de arte Aby Warburg, que de forma seminal entreviu a continuidade entre imagens para além das épocas históricas em que foram produzidas. Qual partitura coreográfica impossível de cumprir, a imagem da população congregada na Place de La Nation, conduzida pelo “lápis da liberdade de expressão”, é aqui recriada pelo elenco através de um tableau vivant que procura dar corpo ao pathos da composição original, resgatando a sua energia cinética ao circuito de consumo mediático das imagens que rapidamente se deixam iconizar. Ao animar uma imagem estática, a figura do tableau vivant coloca em cena a polaridade entre imagem (tableau) e vida (vivant), procurando sobrepor dois planos aparentemente incomensuráveis. Mas esta polaridade é desde logo dinamitada pelo olhar coreográfico que subjaz à fotografia da marcha, produto de uma requintada organização visual do movimento.

A

mise-en-scène

da

estrutura

piramidal,

a

dramaturgia social dos corpos mobilizados, e o friso de

espectadores dentro da própria imagem concorrem para tornar visível a noção de coreografia como disposição e manipulação dos corpos - e também do olhar - num determinado espaço. A ontologia estática da imagem é assim contrariada pela sua dimensão coreográfica, pelo que a imagem fotográfica é já performática por direito próprio, ela contém movimento muito antes da sua translação em tableau vivant. Ao mesmo tempo, a imobilidade da imagem fotográfica dá-nos a ver o dispositivo através do qual qualquer movimento é sempre passível de ser apropriado e integrado numa coreografia (social, política) que constrange a liberdade de circulação. A imagem devém assim dispositivo do olhar que forja um lugar para o espectador e lhe dá a ver as precondições de possibilidade e de impossibilidade de mobilização num espaço e num tempo que se estende ao mundo fora da moldura. Mais do que metáfora ou inspiração do espectáculo, a imagem torna visível o contexto e os meios pelos quais a mobilização se tornará ou não possível em Morceau de Bravoure, bem como as condições de visibilidade através das quais essa mobilização se pode dar a ver. A imagem da Place de la Nation é assim enunciação da liberdade e das possibilidades de mobilização dos corpos, mas também dos

seus mecanismos de interferência, captação e constrição. Na fotografia, arrancado ao continuum do tempo, o movimento é sujeito à disciplina do olhar no campo da imagem, que o suspende e fixa de acordo com as suas próprias leis. Fora do campo da imagem, no palco como na vida, o movimento encontra novas forças que o distribuem e organizam. Tal como Artaud aspirava a dissolver a divisão entre teatro e vida, pondo a

descoberto

a

continuidade

entre

ambos,

também

a

continuidade entre imagem, palco e vida é aqui testada através de

um

espaço

comum

em

que

as

possibilidades

de

movimentação, participação e liberdade, entre o instantâneo e o coreografado, entre o caótico e o síncrono, podem ser articuladas, negociadas e postas em prática.

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