«Imagens desbotadas [crítica a ‘A Sombra do Mar’ de Armando Silva Carvalho]», Colóquio/Letras, nº192, 2016, pp. 173-183.

June 3, 2017 | Autor: Pedro Serra | Categoria: Literatura Portuguesa, Poesia portuguesa contemporânea
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IMAGENS DESBOTADAS A Sombra do Mar de Armando Silva Carvalho PEDRO SERRA

O que move a poesia de Armando Silva Carvalho é a paixão pela vida. A actividade de quem se disponha a fazer da poesia uma forma de vida, a fazer do poético o incerto ponto da mais alta precisão da nomeação da vida, a fazer da forma estésica – sempre dinâmica – a excentricidade que toca a vida, lampejos descontínuos que nenhum furor apaixonado pode compor mas é contumaz na recomposição e descomposição, tem, no conjunto de poemas congregado sob o título A Sombra do Mar, uma das mais pungentes lições. Lição sem prédica, afastando, ou castigando mesmo, uma demasiado humana autocomplacência – pessoal ou biográfica, colectiva ou histórica –, exalando aquela rara e enrarecida inteligência poética que se espera de uma modernidade que ainda não chegou, nem talvez seja já esperada; lição marcada, ainda, por uma inesgotável jovialidade lúdica que transporta, é certo, desencanto e execração, envoltos numa tonalidade equívoca e esquiva, ‘riso que chora’. A passagem do tempo faria esperar uma “lição das coisas”, no fundo, “que fosse mais amável” (87). 1 Pertencer a uma genealogia de poetas que escrevem para continuar a escrever significa, também em Armando Silva Carvalho, uma interpelação da vida, a apóstrofe constante do começo de uma manhã de “tudo”, a escrita do mundo que é tanto miséria como milagre. Neste livro, a espera desse momento auroral acontece na lucidez cruciante – na “contabilidade” como propõe o poeta – de toda a espera: o esgotamento dela separa-se de si mesmo e devolve o olhar terrível; o olhar

                                                                                                               

1 A paginação refere-se a A Sombra do Mar, Lisboa, Assírio & Alvim, 2015. As citações, recortes de imagens e de palavras dos poemas de Armando Silva Carvalho são colocados entre aspas curvas duplas. Os títulos dos poemas são identificados por aspas curvas simples.

mesmerizante do “nada” que toma as rédeas, impõe a sua violência de lei sensível. Há que escrever de modo a continuar a escrever, arrolando a hipóstase de clássicos, românticos e modernos para, num gesto que é activa e precisamente poético, rompendo com eles e, de “costas voltadas” (cf. 17), não deixar de atender à linguagem vibrante destes “diabo[s] mais velho[s]” (cf. 41), destapar os sentidos para as misérias da sociedade que nos tocou viver – conservando em lugar fresco a possibilidade e necessidade de compaixão –, e também dobrar de modo ímpio a acção da poesia sobre a própria arte poética – afinal “lixo”, luxuoso dejecto. Sem patetismo ou niilismo, mas com ironia de acidez graduada,2 talvez mesmo com singular intensificação dos arremessos do melhor cinismo, o poema de Armando Silva Carvalho é este difícil “dardo”, uma difícil conversa com a vida3 – que é, como já alguém disse, o tempo da morte –, e A Sombra do Mar o museu de uma potência que tão só em contados instantes se actualiza, o livro é o lugar de arquivo de uma ‘vibração’, ‘ondulação’ ou ‘estremecimento’ – um ritmo e uma arritmia da linguagem – que ‘vem depois’ de uma biblioteca antecessora pessoal, aqui desvairadamente nomeada, sem ânimo de ser exaustivo: António Vieira, Antero de Quental, Camilo Pessanha, Camões, Carlos Drummond de Andrade, Cesário Verde, Clarice Lispector, Eugénio de Andrade, Ezra Pound, Fernando Pessoa, Guerra Junqueiro, Herberto Helder, Rainer Maria Rilke, Sophia de Mello Breyner Andresen ou T. S. Eliot. Na arte, como na vida, “Vamos vendo os amigos cada vez mais longe, / muitas vezes de costas” (48). Adensando o negrume pelo “nada” que “tudo” foi, no quase invivível intervalo do crepúsculo da poesia há uma energia que toca tudo aquilo que seja verdade. Porque assim é, na “fábrica” (cf. 77) d’A Sombra do Mar o poeta começa pelo meio, um ponto inane. Para dar forma sensível a essa

                                                                                                               

2 Cf. o relevo concedido ao modo irónico por Diogo Vaz Pinto em “Armando Silva Carvalho destaca-se na linha avançada da poesia portuguesa”, Ípsilon, 15 de Julho de 2015. 3 Cf. Para acomodar a questão da ‘vida’ no livro, Hugo Pinto Santos falou já de uma “biologia prodigiosamente escandida”. Cf. “A conversa do poema e da vida”, Ípsilon, 21 de Agosto de 2015.

inanidade, a figura do daltonismo, entre outras possíveis, faz conjunto com determinados valores plásticos como sejam o pálido, o branco ou o cinzento – plasticidade que nos devolve essa insipidez do corpo, do mundo e da escrita. É esta poesia ‘daltónica’, a que se congrega no livro de Armando Silva Carvalho. Poesia de “imagens desbotadas” (7), decerto síntese disposta no único poema sem título que funciona como epígrafe do conjunto. O meio insípido, proporia de modo intempestivo, é a condição de possibilidade desta poesia, o zero anestético que é potencialmente o ‘chão’ da vibração sensível do corpo, do mundo e da escrita. Seja o aceno das imagens “a meia haste”, seja a decapitação da “cabeça a meio da noite” (8), seja o sujeito lírico “meio cego a procurar um verso meu no meio da noite” (8), seja uma corporalidade sem firmeza – enferma, do lat. infirmus – de “saliências de carne, branda branca, / triste / triste e meio adormecida” (‘A toalha do banho’, 13), seja, enfim, o paroxismo de solidão na massa social do poeta: “Estou praticamente só no meio da praça” (‘No meio da praça’, 36). É desse meio que dimana tudo e o todo como “imagens desbotadas”. Um meio, reitero, que é uma superfície achatada, ou um “Chão seco, sem ondas, sem lugar sequer / para o meu arrepio de alma social” (idem, ibidem); superfície que funciona como análogo da própria inscrição da escrita: “no chão a palavra rasteja na secura / da tarde abandonada” (‘Vésperas’, 39); solo, ainda, que ampara a degradação temporal do sujeito: “É cada vez mais baixa / a minha idade. / Apanhá-la no chão será um dia” (‘Água arrepiada’, 63). Formula-se aqui, quero crer, a implicância do arquivo poético e crítico, um resto de hipótese de uma ‘aura’ – Baudelaire, Benjamin – para sempre diferida, como no-lo devolve a estranha declinação em futuro simples do indicativo do verbo ‘ser’. Avanço, pois, pelo meio, recortando agora a apóstrofe inicial a uma “pálida manhã”, ou a modelização de um sujeito poético que seja “cego manco, / descolorido na alma / e sem matizes nas vistas para a vida” (54) e que também se diz “cinzento em tudo, / que é a cor do meu fato e da minha idade” (ibidem), lugares do poema que tem por título ‘Daltonismo’ (cf. 53-54). Cegueira e amputação, com envio explícito e

tópico à tradição, constituem variáveis de um poeta como “cómico forçado” (‘De costas voltadas’, 17), nos antípodas de quaisquer furores poéticos e a economia do estipêndio que os acompanha, isto é, da predicação por possessão divina: “Pouco dado a variações do entusiasmo, / mesmo o nietzscheano, mesmo esse, o supercolorido / da tragédia” (‘Daltonismo’, 54). Este fasto é antes fastio, pois para o poeta, na verdade, tudo é pobre, daí a dominante derrisão da comédia. Ou da prosa do mundo, tópico bem caro a Armando Silva Carvalho, neste livro tocando confrangedores limites de um ‘naturalismo’ impensado e malgré lui – “Nunca pensei fazer poemas destes, tão naturalistas” (‘De costas voltadas’, 17) a par de “Não pretendo ser autor naturalista” (‘Daltonismo’, 53) –, prosa mundana que, enfim, é amostragem daquela generalizada insipidez. Tudo tende, assim, para uma “brancura” de tonalidade baça: o poema é “um lugar em branco, afundado no mundo. / A luz que o ilumina ele próprio / há-de gerá-la. / Por mais negra que seja será dele” (‘Lugar em branco’, 57); por outro lado, a fantasmagoria que resta da aguda evanescência de uma temporalidade crónica e irredimível é ela própria subsumida por um alvor: “Nem passado ou presente / essas sombras transportam, a brancura da vida / depressa as assassina” (‘Outra vez a noite’, 69); enfim, e retornando à omnipresente manhã pálida, a descoloração de tudo é, também, sinal de indiferença e indiferenciação das formas: “A leitura branca da manhã, / a fria lucidez que traz as tardes / as nuvens indiferentes até que chegue / outra vez a noite” (idem, ibidem). Poemas, seja como for, de assumido excesso naturalista – a dominante cromática já aludida e a generalizada propensão para diferentes afecções escópicas são consequentes com este aporético naturalismo; como o também são as figuras que integram uma galeria de personagens de romance alfinetadas pela analítica social, ora derrisória ora misericordiosa, do sujeito do poema: “senhoras e donas” (cf. ‘Jazz’, 20), “velhos” (cf. ‘Os outros velhos’, 68), “o poeta com o seu eu absoluto” (cf. ‘Estrelas e mentiras’, 51), “jovens poemáticos” (cf. ‘Animais antigos’, 55), os “ricos” ou os “pobres”, o “atleta”, o “político”

ou os “emigrantes” (cf. ‘Cotações’, 56), a “velha das maratonas” (cf. ‘Sala de Espera’, 75); como o é, enfim, o espírito observador de entomologista que temos no poema ‘Insectos’ (cf. 86), ou a tarefa de inventariação botânica do poema ‘Jóias e Palavras’ (cf. 61) –, sem deixar de ser assolados por ontologias e epistemologia incerta. O ser e o conhecer são impossíveis ou, talvez melhor, impossuíveis: “Desde a verdade até a um lenço – tudo é impossuível” (19). A ontologia da “palidez” – do “baço”, do “cinzento” – tem, então, uma contrapartida epistemológica. O entre-dois sono/vigília do sujeito do poema determina-lhe uma cognição definida com o sintagma “custa a perceber” (8), por outras palavras, é “imprecisa” (ibidem). Assim, “ontem”/“hoje” (11), “século”/“dia” (ibidem), “ali”/“lá” (31), “mala”/“alma” (34), “dobradas”/“desdobradas” (35), “ata”/“desata” (36), “boca desbocada” (38), “cinzento”/“cinza” (53), “sós”/“sons” (67), “fasta”/“nefasta” (70), “resig[nar]”/“resina” (83), são binómios da fita de Moëbius que é o processo generalizado de descomposição sempre entrevisto.. Por outro lado, certas atracções paronomásticas, algumas delas de rara precisão, concorrem também para a figuralidade do trabalho de indiferenciação: distinguir entre “a sombra” ou “à sombra”, por exemplo. Mas mais ainda. O fecho do poema inicial do livro, destacado do corpo conjunto pela letra cursiva – as réplicas desta inscrição em itálico temo-las apenas, em corpo menor, na epígrafe em latim da composição ‘O peixe oficial’ (35), e na quadra inicial do poema ‘O maior artesão’ (79) –, antecipa uma casuística numerosa: “inábil manhã sem manha” (7). Entre “manhã” e “manha” a razão do tudo/nada de um til, no fundo o tudo/nada que define o potencial da “palidez”, da inanidade da vida e da arte de onde emana o espaço e o tempo. Situado, o poeta, nesse meio, é também num quase literal meio do conjunto poemático – o todo para que tende soma, ao todo, 54 poemas, de extensão variável mas predominando o poema que ocupa uma página – onde deparamos com duas notáveis composições que, dir-se-ia, funcionam como dobradiça temática do livro. A primeira delas tem por título ‘Um corpo’, admitindo envios, sem categórica caução referencial

pelo uso do indefinido, para objectos como o corpo-amante, o poema como corpo, o corpo do sujeito lírico ou mesmo o corpo do leitor. A composição tematiza, do meu ponto de vista, a positividade da ficção, de qualquer destas ficções aludidas de modo enviesado: “É como se nada se perdesse / entre ti e mim” (49). Contacto, comunhão, enfim, a mimese da vida ou da arte como vibração – no poema, realidade vibrátil que nos é devolvida por vocábulos como “fogo”, “halo” ou “fulgor”, inter alia. É na matéria fingida que “a vida vibra” (‘Lugar em branco, 57). A ficção é a hipótese desta possibilidade, em rigor, levando a um limite radical a sua condição hipotética.4 Por outras palavras, não se obvia que tudo seja “impossuível”, como já vimos, lição de coisas em que o poema seguinte, titulado ‘Terra navegável’, reincide. Aí, lemos: “o que nos sobra é tudo o que vai daqui até ao mar” (50), a vida como navegação terrestre, isto é, um contínuo de deslocamentos catacréticos, administração vocabular de ‘restos’, ‘excrementos’ ou ‘limos’. Enfim, administração de uma porção finita de tempo – tempo que é, insista-se, a vida da morte; tempo que tem, no “mar”, uma sua figura principal. A morte, como o mar, ressonam: isto é, são repetição do sonu-, a vida é repetição, mania do corpo, figurações que dominam o conjunto. Pressão do “fora” – do mundo, da morte –, na paisagem espacial da página, a morte a contornar “tudo” (e “nada”). Do mar mortuário, enfim, dimana um ronco – dissonância, não harmonia – mas também o rancor: rancor e ronco a que o poema concede réplica. É neste sentido que também o poema, como um corpo e como o corpo, é uma “mania estéril”, isto é, uma repetição ou vício (cf. ‘Sala de espera’, 75). Gostaria, pois, de apontar uma contumácia dos versos congregados em A Sombra do Mar. Refiro-me ao problema de escala que lhes confere um modelo de alento particular, e talvez mesmo tenha efeito retroactivo sobre a poesia antecessora de Armando Silva Carvalho. O problema de escala, como proponho que se lhe chame, diz respeito à

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Cf. Karl Heinz Bohrer, “Instants of Diminishing Representation. The Problem of Temporal Modalities”, in Heidrun Friese, ed., Time and Rupture in Modern Thought, Liverpool, Liverpool University Press, 2001, p. 130.

tensão entre um poema que seja “curto” ou “maior”. Ora, diria que perante o processo de rarefacção da vida, como vamos lendo n’A Sombra do Mar, qualquer poema já foi curto, isto é, progressivamente se alonga. Ars longa, vita brevis: a arte alonga-se, abreviada a vida. Neste sentido, este livro baralha superficialmente aqueles poemas espinhados na vertical de livros antecessores, a começar por Lírica Consumível. Vejase, a título de exemplo, “Os Ovos d’Oiro”. 5 Isto é, fá-lo muito concretamente na superfície de inscrição, muito embora num eixo horizontal. Se num poema como o mencionado “Os Ovos d’Oiro” a precipitação vocabular interrompe sucessivamente um verso de fôlego e perfil eufónico – funciona como uma espécie de contra-versículo; versículo que foi, a partir desses idos de sessenta, musicalidade cara à poesia coeva, muito embora com modelos expressivistas diversos; mas Armando Silva Carvalho, consabidamente, sempre se situou num lugar avesso àquilo que “nunca soube imaginar: um extenso e demorado romantismo” (‘As florestas são do outro mundo’, 83). Ora, em A Sombra do Mar o horizonte, ou limite, do verso é, nalguns casos, forçado pelos limites da mancha gráfica. Verifica-se em oito poemas (cf. 9, 15, 17 [bis], 24, 27, 34, 36 e 80), pelo que faço uma selecção, destacando os seguintes três exemplos: “a outra, inaugural, vermelha, de Sophia, numa pausa em que a / [escrita” (‘Fruta e pequeno-almoço’, 15); “Desviar o horror para outro lado, pôr o sangue envelhecido num / [copo” (‘Cantos’, 27); e “entre a luz que se estranha no olhar e a matéria em aberto, desfraldada / [do corpo” (‘O maior artesão’, 80). Os limites da bibliografia, assim, determinam aquilo a que podemos chamar o afecto in-diferenciador e de indiferenciação que vai galopando na corrente sanguínea destes poemas, e que tem um correlato temático na inanidade inicialmente aludida. Singularizando, na página, “escrita”, “copo” e “corpo” por uma determinação arbitrária que devém necessidade, indiferencia-se esta focalização vocabular do uso da pausa versal que

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Cf. Pedro Serra, “Os Ovos d’Oiro de Armando Silva Carvalho”, in Osvaldo M. Silvestre e Pedro Serra, Século de Ouro. Antologia Crítica da Poesia Portuguesa do Século XX, Coimbra/Lisboa, Cotovia/Angelus Novus, 2002, pp. 308-314.

antecede uma nova linha de uma só unidade linguística. Nos mesmos poemas a que pertencem estes exemplos, podemos ler, então: “e me põe a mastigar o sumo das sílabas / solares” (‘Fruta e pequeno-almoço’, 15); “No céu dos cantos que o terror inventou pelos séculos / e milénios” (27); e “Aos poucos o texto, o luxo artesanal e clássico, / desflorava-se” (‘O maior artesão’, 80). Neste caso, a pausa é sucedida por versos de um só vocábulo que singularizam, respectivamente, “solares”, “milénios” e “desfloravam-se”. A casuística afim é muito abundante no livro. Colocadas, assim, em lugar de destaque, nas respectivas páginas, as palavras singularizadas, estabelecem-se nexos vários entre “escrita”/“solares”, “copo”/“milénios” e “corpo”/“desfloravam-se”. Acaso e cálculo perdem, digamos, valor discreto, não tanto porque se não discriminem mas porque são colocados ‘em relação’. O problema aqui tão-só esboçado, claro está, não alude a uma questão apenas métrica, digamos – esta poesia sempre se foi fazendo emancipada da versificação, não seria despiciendo de resto seguir o envio ao ‘imagismo’ de Ezra Pound no poema ‘Cantos’ (26-27) – mas de um problema compositivo que dimana da condição do poema não como objecto mas como evento.6 A mobilização da atenção da leitura – a sua singularização por amplificação – é dada pela quebra da linearidade visual que sustenta o verso, linha que vive uma tensão irredutível entre ruptilidade e hipóstase do todo. A linha visual, como propôs Johanna Drucker, 7 enquanto evento não mimético ou referencial, determina a composição em função de um modelo disseminativo reticular. Qualquer ponto da linha – e do verso – é, assim, tangente de um todo, actuante, esse ponto, a partir da sua excentricidade. Para o que aqui, do meu ponto de vista, pode interessar, a página impressa supõe a comutação da linearidade pela ‘relação’, instaurando uma cinética espacial, um campo de forças. Resumo de tudo isto, assenta Drucker: “A linha quebra-se e

                                                                                                               

6 Cf. Robert Duncan, The H. D. Book, West Newberry (MA), Frontier Press, 1984, p. 261. 7 Johanna Drucker, “The Visual Line”, in The Line in Postmodern Poetry, Robert Frank e Henry Sayre, eds., Urbana · Chicago, University of Illinois Press, 1988, 180-181.

separa-se de si mesma”.8 Tudo isto pode servir de apoio para chamar a atenção para algum aspecto compositivo de uma “degolação poética”, o poema como forma activa que replica aquela imagem do fruto na boca: “esse desfazer do eterno sob o céu rapidíssimo da boca” (‘Fruta e pequeno-almoço’, 16). Ou, enfim, da nomeação como provisória eternidade das coisas, do mundo: “Um nome é uma vida, um sangue, um coração absoluto, / o estremecer de alguma eternidade” (‘Alguma eternidade’, 84). Instanciação do poema como ‘decapitação’ que bloqueia um qualquer embalo melódico do verso, acaba por ser a verberação da tal “lição de coisas” pouco amável. Isto é, acaba por ser banal e topar-se, em rigor, com os limites banais da linha versal na página impressa. É a tensão, não propriamente dialéctica, entre banalidade e singularização que o exemplário recortado nos devolve. Banalidade e singularização que também vibram na sintaxe dos poemas nos fólios do livro, muitos deles dispostos na sucessão consecutiva por uma espécie de leixa-prem vocabular ou imagético (cf., por exemplo, ‘Chuva doméstica’ e ‘A toalha de banho’).9 Posto que se trate da poesia como conversa com a vida, isto é, posto que se trata, n’A Sombra do Mar, da poesia como acção, este vitalismo supõe movimento. Ora, neste sentido, a dominante aquática da imagética do livro – motivema que foi destacado pela imediata recepção crítica10 – tem, do meu ponto de vista, uma valência cinética, cinemática mesmo. O meio aquoso, recordemos, é especialmente produtivo para a descrição analógica do cinema. Num lugar notável, assenta Deleuze: “A água é a quintaessência do meio no qual podemos extrair movimento do objecto que se moveu e mostrar a mobilidade do próprio movimento. Daí a importância da água como elemento visual e aural nas experiências

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Idem, ibidem, 180. Eu traduzo. ‘Movimento’ e ‘fractura’ são os termos fortes com que Ana Marques Gastão arranca a sua leitura do livro de Armando Silva Carvalho. Cf. “O envangelho (vivo) das mãos”, Relâmpago. Revista de poesia, Lisboa, Fundação Luis Miguel Nava, Abril de 2015, pp. 101-105. 10 Cf. Hugo Pinto Santos, op. cit., loc. cit. 9

rítmicas” 11 . A tópica é já trivial, num certo sentido, no imaginário crítico: o cinema sensibiliza e conceptualiza o movimento e, neste sentido, uma temporalidade moderna entendida como espacialização do tempo. A catalepsia convulsiva pré-moderna – o barroco, recordemos, supôs um regime cataléptico da imagem12 – foi subsumida pela moderna alucinação do movimento. No poema ‘A Água’, o efeito radicalmente deletério dessa temporalidade secularizada é-nos proposto nos seguintes versos: “Gostava que a idade fosse o espelho / que convertesse a água num filme recuperado” (9-10). Temporalidade que vota a mimese a uma alegorese generalizada, no fundo: “A verdade é só uma, o que tu foste ontem / já não te conhece” (‘Chuva doméstica’, 12). Consabida condição da subjectividade moderna na bela lição demaniana: “a alegoria designa sobretudo uma distância em relação à sua própria origem, e, renunciando à nostalgia e ao desejo de coincidência, estabelece a sua linguagem no vazio dessa diferença temporal”. 13 Neste sentido, A Sombra do Mar colige passagens que nos devolvem um sujeito pouco dado a epifanias, como de resto sempre foi o caso de Armando Silva Carvalho. Domina, no volume, indo ao encontro do já dito, o que poderemos chamar metafísica do “corpo hirto”, para aproveitar uma imagem do poema ‘A prosa do terror’ (32). Generalizada disjunção do corpo, do mundo e da escrita de um contacto com o instante, que sempre depende de uma economia da prognose. Como no poema sobre a piedade kitsch da peregrinação a Fátima, o importante não é o “milagre” mas sim a “espera”: “Não é tanto o milagre, mas a espera dele, / essa prestação que tão certeira fere / as contas da alma e os transportes do corpo”

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Gilles Deleuze, Cinéma I. L’image-mouvement, Paris, Les Éditions de Minuit, 1983, 112. 12 “A catalepsia convulsiva das imagens barrocas, onde residia grande parte do seu potencial dramático e efeitos, foi aniquilada pela imagem móvel do cinema, que tería que procurar, como já dissemos, novas estratégias expressivas” (Román Gubern, La imagen pornográfica y otras perversiones ópticas, Barcelona, Anagrama, 2005 [1ª ed.: 1988], 88. Minha tradução). 13 Paul De Man, “A Retórica da temporalidade”, O Ponto de Vista da Cegueira, Miguel Tamen, trad., Lisboa, Cotovia, 1999, 227.

(‘Contratos à luz das velas’, 73). O que nesta poesia se entende por ‘vida’ é, como já disse, a vibração de uma “espera”. Um movimento vibrátil que não é exterior à palavra: é na e pela palavra que a ‘vida’ se torna presente: “O brilho é sempre o mesmo, mas é apenas delas, das palavras” (‘Jóias e palavras’, 62). É aqui, enfim, que a mediação da inanidade perfaz o seu trabalho. Por um lado, é pela palavra que à ‘vida’ pode advir a conjunção consigo mesma: “É aqui que o tempo e o espaço se conformam” (idem, ibidem). Por outro lado, há um modo depreciado de existência que anestesia a possibilidade de afecção do mundo, o contacto com os instantes “gratuitos”, “fabulosos e “singulares”, como lemos no poema ‘O sons’ (66-67). É talvez mesmo o melhor exemplo que se pudesse pensar: “Os sons. Que sons? E quem consegue ouvi-los?” (66) Ouvir, enfim, sentir, é lance ou lançamento de precisão imprecisa: “Como se lança um dardo desportivo, assim foi a conversa do poema e da vida” (‘A prosa do terror’, 29). ‘Desportivo’ o dardo, mas sempre mobilizado por uma precisão violenta: “É a violência do ofício que me orienta o sangue” (‘Linda mentira’, 77). Como resumo de tudo isto, é no ‘Lugar em branco’, o poema, que “Então a vida vibra” (57). Aquele “transporte” do corpo, do mundo, da escrita, é um transe, sim, mas “impossuível” como víamos mais acima. Definido pela “espera” – de verberação crística –, o poeta oficia a violência de um quotidiano efémero, de uma realidade que se perde no poema e, ainda, de uma poesia que a si mesma se nega: “Tu sempre preferiste a espera do cordeiro / e o sacrifício espelhado no rosto” (‘Dias e noites’, 41). A contumácia da poesia modula uma consciência marcada pela bílis negra, uma melancolia rancorosa, consciência instalada na dúvida do seu próprio movimento. Por um lado, “as insistentes palavras / parecem desistir enquanto avançam” (‘Poemas que foi curto’, 74), agonismo verbal que vai inflacionando o passado – “As palavras crescem sempre mais e mais / atrás dos anos” (‘Jóias e palavras’, 61) –, isto é, vai acumulando detritos – “Como rodilhas de som. / Como sacos de lixo. Ou então, e simplesmente, / de merda” (‘A toalha de banho’, 14), ou, no poema ‘Primeira glosa’, “balde vazio a quem se volta as costas por coisa

indesejada, / nada por nada é simplesmente nada / a vida é o entulho” (21). Também aqui se amplia a dimensão da “degolação poética”. Para que aconteça, a poesia ‘volta as costas’, só no avanço aporético contra o passado é possível que aconteça. Uma lição de vida que é também uma lição poética que Armando Silva Carvalho retoma de Eugénio de Andrade – a ecolália dos versos deste poeta ressoa em motivemas vários: ‘mãos’, ‘frutos’, ‘água’, inter alia –, aquela que, pelo ‘voltar das costas’, afere Álvaro de Campos por aquele “balde vazio”. Lemos, assim, no poema ‘De costas voltadas’: “Andei a reler o Campos, mas não sei subir à sua metafísica. / O homem estragou de vez a vida a muita gente. / O Eugénio é que dizia: / com o Pessoa só de costas voltadas” (17). O corpo, o mundo, a escrita acontecem, no fundo, neste modo de “transporte” que é avançar voltando as costas. Esse acontecimento e a sua “impossuível” conjunção dispõe o corpo, o mundo e a escrita como formas de ‘sujeição’, isto é, fazem comunidade enquanto “ferida”, vocábulo que encontramos e, por catacrese, nomeia a violência gerativa e regenerativa que tem uma economia trágica, ou não fosse, enfim, o avesso de uma economia: como é, em suma, o desejo. Daí que o acontecimento poético seja dito como “decapitação”, acto de ‘degolar’, ou possa ter a sua redução fenomenológica figurada por aquela “delicada nervosa faca de papel” (cf. ‘Sem cabeça’, 8). Ecolália conspícua de um exemplário de língua portuguesa que congregássemos, lembraria, a título de exemplo, a lição drummondiana do desligamento do poeta – homenagem a Manuel Bandeira –, isto é, da “circulação do poema / sem poeta”14. Drummond que é uma figura tutelar, a mais de um título, neste livro e, enfim, na poesia de Armando Silva Carvalho. Concluo, destacando uma outra estimulante conjuração do arquivo literário português, ou melhor, luso-brasileiro. Assim, Armando Silva Carvalho cita o já mencionado Padre António Vieira, concretamente um lugar do Sermão da Primeira Dominga do Advento, de 1655: “As pedras também morrem, disse eu / depois de Vieira” (43). Vir depois, condição

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Carlos Drummond de Andrade, As impurezas do branco, posfácio de Betina Bischof, São Paulo, Companhia das Letras, 2012, 94 [1ª ed. 1973].

do moderno, é a colocação de um sujeito que, no poema em causa, ‘O Norte’, perfaz um exercício de memória afectiva, concretamente dos “lugares do amor”, experiência situada – vivências num espaço ‘doméstico’ que tem como índices “Guimarães”, “Braga” e “Porto” – e, por isso mesmo, aninhando nela a melancolia da perda. O registo não deixa de ter algo de ‘naturalista’ – biografemas sem encadeamento narrativo, instantâneas de formas de sociabilidade, educação sentimental e erótica, experiências vinculadas a um espaço social e físico dadas em modo suspensivo –, mas mediado pela bílis negra – a atrabilis – que ‘esfriou’ ao ponto de sobrevir, processo anestésico, como uma forma de estatuária invidente e muda (cf. o poema ‘Estátuas’, 89). ‘O Norte’, ainda, dissemina os termos formais da perda, sempre jogada na relação “tudo”/“nada” que percorre o livro: “Foi tudo ou quase” (42), “tudo / e quase nada” (43) e “tudo ou quase tudo” (ibidem). Ora, o saldo que fecha o poema, do meu ponto de vista, é anfibológico. Por um lado, as “pedras” do jesuíta luso-brasileiro podem ser a síntese imagética do vivido como a priori ontológico. Por outro lado, a composição admite que também sejam as “pedras” de Vieira – a literatura, enfim – o que “pesa” – tem um volume, uma espessura –, por premonição, nos “lugares do amor”: isto é, podem funcionar como vanitas ou desengano. Enfim, as “pedras também morrem” poderá ser a catacrese da própria morte da morte: se para a escatologia do Padre António Vieira a finitude (a morte) das pedras – o mundo aparece/desparece, passa/não passa, etc. – é a contraparte da eternidade (a vida) do verbo divino, para o poeta moderno tudo isto são só “trôpegas palavras” (cf. ‘Os loucos’, 24) ou “literatura” (cf. ‘Palácio’, 64-65). Em síntese, “Tudo é só uma palavra: tudo” (58). Verso do poema ‘Contabilidade’, com um arranque em diálogo explícito com Álvaro de Campos, também com Antero de Quental, contrasta estas contas com aquela “conta” do juízo final, que nunca passa, do sermão vieiriano. Também teremos, enfim, a palavra “morte” perdida de númeno ou fenómeno (cf. ‘Os loucos’, 24). Daí, pois, um “horror de morrer” que é sempre “Desviar o horror para outro lado” (‘Os cantos’, 26-27). Não andaremos longe de uma fórmula como a do já referido Paul

de Man: “a morte é um nome deslocado para um embaraço linguístico”.15 Isto é: a “morte” não é tanto a antecipação de um absoluto – o poeta, insista-se, é pouco caro ao ‘melodrama’ do “poeta com o seu eu absoluto” (cf. ‘Estrelas e mentiras’, 51-52) –, mas antes um momento diferido em que agoniza a aparição/desaparição do mundo, a sua própria condição de possibilidade.

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Paul de Man, “Autobiography as De-Facement”, in The Retoric of Romanticism, New York, Columbia University Press, 1984, 81.

«Imagens desbotadas [crítica a A Sombra do Mar de Armando Silva Carvalho]», Colóquio/Letras, nº192, 2016, pp. 173-183.

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