Imagens devocionais: uma mediação entre o fiel e o sagrado (séculos XIV e XV)

Share Embed


Descrição do Produto

REVISTA DO CFCH • UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO ISSN 2177-9325

• www.revista.cfch.ufrj.br

Edição Especial JICTAC 2014

Imagens devocionais: uma mediação entre o fiel e o sagrado (séculos XIV e XV) Patrícia Marques de Souza. Bacharel em História – UFRJ Orientação: Profª Drª Maria Beatriz de Mello e Souza. Instituto de História, UFRJ

Palavras-chave: Imagens. Iluminuras. Livros de Horas. Devoção Leiga. Espiritualidade Cristã.

O presente trabalho se propõe a analisar as funções simbólicas e devocionais das imagens presentes em um gênero de livro destinado à leitura privada dos leigos cristãos e de grande popularidade na Baixa Idade Média: os Livros de Horas. A metodologia de trabalho se dará pela análise iconográfica de duas iluminuras que retratam suas proprietárias rezando perante a sua figura de devoção, a Virgem Maria, que carrega o menino Jesus em seu colo (ver figuras 1 e 2). Para que a análise iconográfica das iluminuras seja possível, primeiramente, devemos atentar para a especificidade das imagens medievais. Seria correto falar de imagens e não de obras de arte na Idade Média, pois a origem do termo imagem vem do latim imago e é capaz de expressar todas as acepções desta palavra ao longo da Idade Média (BELTING, 2010). Este termo latino é de rico e variado valor semântico, além de ser o fundamento da antropologia cristã, pois se refere às palavras de Gênesis 1, 26: “O homem é feito a imagem e semelhança de Deus”. É a Encarnação de Jesus que legitima para muitos teólogos, a representação de Cristo e a produção de imagens religiosas. Não seria possível compreender o Ocidente medieval sem considerar a relação dos cristãos com as imagens. Considerando que a imago deveria tornar o invisível, tangível devemos entender as imagens de devoção como um elo de conexão do humano com o divino. Assim, o leigo poderia ter uma via de acesso mais direta e individual a Deus. Portanto, devemos considerar estas imagens como objetos artísticos que possuíam além de função estética, uma função prática: suscitar a memória, a meditação e a 1

REVISTA DO CFCH • UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO ISSN 2177-9325

• www.revista.cfch.ufrj.br

Edição Especial JICTAC 2014

devoção dos fiéis através de uma dimensão afetiva e de identificação (BASCHET, 2008). As imagens medievais eram antes de tudo, funcionais. Serviam. Tinham uma função prática, antes de sua função estética. Também é preciso entender que em sua grande maioria, as imagens medievais eram fixas no suporte para qual foram concebidas (esculturas, miniaturas, vitrais, afrescos, mosaicos) e que tratam a relação entre a figura e o espaço de uma forma diferente de como estamos familiarizados desde o Renascimento. A imago especialmente a iluminura, constrói o seu espaço a partir de um conjunto de figuras que se superpõem sobre uma superfície de inscrição: não visam o realismo da representação, mas o uso simbólico de seus elementos (SCHMITT, 2002). O Livro de Horas, objeto de estudo desta pesquisa, é fruto de profundas mudanças que ocorreram na espiritualidade cristã entre os séculos XIII e XV. É um dos exemplos de práticas monásticas e de devoção privada que foram incorporadas pelos leigos (VAUCHEZ, 1995). É neste contexto de crescente laicização do cristianismo e de expansão do culto à Virgem que surgem os Livros de Horas. Sendo o gênero de livro de maior produção durante a Baixa Idade Média, os Livros de Horas são livros de orações feitos por leigos, nos ateliês urbanos e destinados a ricos comanditários. No seio de uma sociedade profundamente cristã e que era marcada pela necessidade, cada vez mais crescente, da individualização das práticas religiosas, os fiéis eram estimulados a adquirir um livro devocional que os ajudassem a conquistar a sua salvação, como os Livros de Horas (WIECK,1997). Frequentemente, eles poderiam ser o único livro presente em um lar. E por isso, são considerados por especialistas, como um exemplo de best-seller medieval (HAMEL, 2006). Estes livros de orações eram divididos em diferentes ofícios que invocavam, principalmente, a Virgem Maria. Os textos eram escritos geralmente em latim, porém poderiam apresentar o Calendário e algumas orações em língua vernácula, como o francês e o inglês, por exemplo. Uma característica importante do Livro de Horas é a simultaneidade entre textos e imagens. No que se refere à decoração dos Livros de Horas, é importante definir o termo histórico iluminação. A palavra iluminura tem sua origem no latim illuminatio, utilizado desde o século XI que significa iluminar, trazer à luz. Portanto, nos manuscritos iluminados, iluminura serve para designar as imagens contidas nos livros 2

REVISTA DO CFCH • UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO ISSN 2177-9325

• www.revista.cfch.ufrj.br

Edição Especial JICTAC 2014

manuscritos. Mas não apenas isso: o fundo dourado assume um valor simbólico além de seu valor material. O ouro, material mais caro e valorizado no Ocidente, se remete à figura do próprio Cristo associado desde o século IV com o Sol, a luz do mundo, como consta nos Evangelhos. Os materiais nobres utilizados na iluminação dos livros manuscritos, como as folhas de outro, por exemplo, estão presentes nas imagens que serão analisadas a seguir. A primeira delas é a iluminura da Margarida de Cleves rezando perante a Virgem Maria e o Menino Jesus (figura 1). Neste exemplo, temos a proprietária do livro ajoelhada perante suas figuras de devoção. Neste caso, Margarida parece estar falando diretamente com a sua intercessora, que está em um espaço arquitetônico, que sugere ser uma espécie de retábulo com fundo dourado. O filactério sugere um diálogo: como se as preces da proprietária estivessem sendo ouvidas pela própria Virgem. O interessante desta iluminura é que a Margarida não reza perante uma imagem, mas diante da própria Virgem coroada e de seu filho, que pareceram tomar vida. A imagem não representou Maria e Jesus no sentido habitual do termo, mas os presentificou, segundo o conceito de imagens epifânicas (SCHMITT, 2007).

Figura 1 - Margarida de Cleves rezando perante a Virgem e o Menino. As Horas da Margarida de Cleves. f 19v- 20r. Holanda. c. 1395-1400. 13,2 cm x 9,3/9,6 cm. 283 fls. Fonte: Museu Calouste Gulbenkian, MS L.A. 148. Lisboa.

A segunda análise iconográfica será referente à iluminura da Maria Borgonha (figura 2). Neste exemplo, a função de mediação das imagens também é exemplificada. No primeiro plano, a proprietária foi representada segurando o seu próprio Livro de Horas, que foi retratado como um objeto precioso e sendo delicadamente utilizado. Em seu colo há um cão, símbolo da lealdade. Além disso, foi pintado um rosário, 3

REVISTA DO CFCH • UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO ISSN 2177-9325

• www.revista.cfch.ufrj.br

Edição Especial JICTAC 2014

instrumento de prática devocional mariana que se fortaleceu no século XV. Esta prática foi adaptada das orações muçulmanas trazidos pelos cruzados e pregada pelo dominicano, Alain de la Roche. O rosário faz a correspondência entre os mistérios de Maria e os mistérios principais da vida de Jesus: a Encarnação, a Paixão e a Ressurreição. Além de lembrar quinze episódios da vida mariana e os dividir em três momentos: gozosos, dolorosos e gloriosos, na qual é necessário o recital de até 150 Ave Marias, intercaladas com quinze Pater Noster. A difusão desta prática se deu através das Confrarias do Rosário. Conforme é sugerido na iluminura, é a partir da utilização de objetos devocionais, como o Livro de Horas e o rosário, que Maria de Borgonha foi capaz meditar e se conectar com a Mãe de Deus. Através da janela aberta, vemos outra dimensão: agora, a proprietária do livro reza perante a própria Virgem e o Menino Jesus enquanto anjos seguram candelabros. Sua corte também demonstra a devoção e o respeito à Maria. O espaço arquitetônico onde o evento ocorre é o interior de uma catedral gótica, local onde o mundo espiritual se revela aos homens.

Figura 2 - Maria de Borgonha rezando. Livro de Horas de Maria de Borgonha. c. 1470-1480. Em Latim. Uso de Roma. Österreichische Nationalbibliothek, Viena.

Nesta iluminura vemos um nível de intimidade sugerido entre Maria de Borgonha e a Virgem. É como se a apreciação das iluminuras, a memória auditiva dos sermões, a leitura de textos e a recitação de orações marianas se combinassem em um momento único e privado de contato entre as duas. 4

REVISTA DO CFCH • UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO ISSN 2177-9325

• www.revista.cfch.ufrj.br

Edição Especial JICTAC 2014

Nos dois exemplos estudados acima, foi possível utilizar o conceito que o historiador Schmitt (2007) propõe: as figuras humanas assumiram a forma de uma aparição, de uma epifania. Elas não são apenas uma representação, mas uma presentificação da Virgem e do Menino Jesus. Estas iluminuras são exemplos do caráter de mediação que as imagens devocionais poderiam apresentar na Idade Média. A partir do século XIV, os leigos adotaram definitivamente a prática monástica de ter imagens e livros devocionais, como os Livros de Horas. A partir de então, a espiritualidade laica combinava a recitação de orações com a apreciação de imagens privadas e portáteis, e possivelmente, leituras e a meditação silenciosa. Estimulados pela Igreja, sobretudo pelas ordens mendicantes (franciscanos e dominicanos), as imagens materiais deveriam auxiliar o fiel a se identificar e a se comover com as passagens dos evangelhos, sobre infância de Cristo, a vida de sua mãe e dos santos. As imagens foram consideradas mais eficazes que os textos para passar os ensinamentos da doutrina cristã, para lembrar a história sagrada e para estimular à devoção e até mesmo uma mudança de comportamento. Enquanto as imagens fossem contempladas, era esperado que o fiel pudesse internalizar os ensinamentos e as boas ações do Cristo e repeti-las. Com a aquisição de imagens privadas, o fiel teria a possibilidade de um contato mais íntimo com as figuras representadas. Em suma, para compreender as funções simbólicas e devocionais das iluminuras, é preciso considerar a sua capacidade de suscitar a participação afetiva do espectador.

Bibliografia BASCHET, Jerôme. Iconographie Médiévale. Paris: Editeur Gallimard, 2008. BELTING, Hans. Semelhança e presença: Aa história da imagem antes da Era da Arte. [s.n.]. Rio de Janeiro, 2010. BÍBLIA SAGRADA. Edição Pastoral. São Paulo: Editora Paulinas, 1990. HAMEL, Christopher de. A history of illuminated manuscripts. Londres: Phaidon Press, 2006. HARTHAN, John. Books of hours and their owners. Londres: Thames and Hudson 1977.

5

REVISTA DO CFCH • UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO ISSN 2177-9325

• www.revista.cfch.ufrj.br

Edição Especial JICTAC 2014

MARROW, James. As horas de Margarida de Cleves. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1995. SCHMITT, Jean-Claude. O corpo das imagens: ensaios sobre a cultura visual na Idade Média. Tradutor José Rivair Macedo. São Paulo: EDUSC, 2007. VAUCHEZ, André. A espiritualidade da Idade Média Ocidental. Tradução de Lucy Magalhães. Rio de Janeiro: Zahar, 1995. WIECK, Roger S. Painted prayers: the book of hours in Medieval and Renaissance Art. New York: The Pierpont Morgan Library, 1997.

6

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.