“IMAGENS DO MUNDO E EPITÁFIOS DA GUERRA” –HARUN FAROCKI Cartografia de uma experiência estética num contexto histórico e social- Uma análise pessoal”

July 3, 2017 | Autor: Margarida Leão | Categoria: Artes
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“IMAGENS DO MUNDO E EPITÁFIOS DA GUERRA” –HARUN FAROCKI Cartografia de uma experiência estética num contexto histórico e socialUma análise pessoal”

MARGARIDA MARIA MOREIRA BARBOSA LEÃO PEREIRA DA SILVA

UC –PRÁTICAS DE INVESTIGAÇÃO 2 –DAD FEVEREIRO 2015 DAD-DOUTORAMENTO EM ARTE E DESIGN

FBAUP-FACULDADE DE BELAS ARTES UNIVERSIDADE DO PORTO

RESUMO Neste artigo pretende-se realizar a análise pessoal do filme “Bilder der Welt und Inschrift des Krieges”, 1988, de Harun Farocki (1944-2014), onde o realizador retoma arquivos visuais registados em várias situações, mas centrando-se nas imagens do campo de Auschwitz. A nossa análise visa a leitura histórica da imagem e/ou, mais exatamente, a possibilidade de sua apropriação subjetiva pelo espectador. Qual o papel da observação dos vestígios visuais de um acontecimento na formação, no presente, de uma imagem desse passado? presente, de uma imagem desse passado? Essa é a questão central da nossa reflexão. Como fio condutor para a análise do filme, permaneceu no nosso espírito a frase de Deleuze “ (…) a narração não passa de

uma consequência das próprias imagens

aparentes e de suas combinações diretas, jamais sendo um dado. A narração dita clássica resulta diretamente da composição orgânica das imagens-movimento (montagem), ou da sua especificação delas em imagem-percepção, imagens afecção, imagens ação, conforme as leis de um esquema sensório-motor” (Deleuze, 1990-39). Realizou-se também durante as várias visualizações do filme um mapa conceptual, (anexo I) que reflete o percurso do nosso pensamento ao longo da percepção que se teve do filme. PALAVRAS-CHAVE: pensamento, história, imagem, memória, camuflagem O facto central do filme “Bilder der Welt und Inschrift des Krieges” de Harun Farocki situa-se na noite de 4 para 5 de Abril, quando a atenção dos comandantes britânicos e americanos, em plena 2ª Guerra Mundial, se centrou na construção da fábrica de borracha e de combustíveis sintéticos ao lado de Auschwitz da companhia alemã, IG Farben. Os bombardeiros americanos B-17 atacaram a fábrica e, a partir desse momento, o campo de Auschwitz passaria a estar ao alcance dos aviões bombardeiros americanos que arrancavam do complexo de aeroportos na cidade de Foggia. Isso porque, tendo em vista melhorar o desempenho e registar as fases progressivas dos ataques, os B-17 tinham a tarefa de tirar fotografias aos alvos antes e depois dos ataques.

 

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Por isso, em algumas fotografias podiam ser vistos, ao lado da fábrica, o campo de Auschwitz, identificar os crematórios, as barracas, os comboios na rampa e mesmo os grupos de pessoas que lá estavam. Mas nada foi feito para destruir aqueles edifícios tão nitidamente visíveis nas fotografias. Nenhum esforço foi feito no sentido de obter informações complementares. Porquê? A partir desse momento, passaria a existir a possibilidade prática de bombardear as câmaras de gás o que, para além de causar muitos danos, poderia ter um grande significado moral e propagandístico. Em meados de 1944 (quando chegaram aos governos dos aliados os relatórios dos fugitivos de Auschwitz, Rudolf Vrba -1924-2006, e Alfred Wetzler, 1918-1988), começou a ser considerada a possibilidade de um bombardeamento eficaz aos crematórios nazis. Os comandantes das unidades de aviação mostraram as dificuldades de um ataque, alegando que sucessivos ataques intensivos às cidades e à indústria nazi causariam enfim o colapso da vontade de resistência alemã. Rudolf Vrba e Alfred Wetzler , são os heróis reais deste filme, depois da análise da força das imagens. Segundo a narradora, Ulrike Grote: “Três dias depois das primeiras fotos de Auschwitz dois prisioneiros conseguiram fugir. Queriam contar ao mundo a verdade sobre os campos”. Mas o grão das imagens que vemos só nos permite imaginar qual seria a realidade; são fragmentos de imagem precários, fracções pictóricas que guardam a memória do que não foi visto.

“Once more, but in a different sense, filmmaking has to go underground, disperse itself, make itself invisible... Only by turning itself into "writing" in the largest possible sense can film preserve itself as [what Harun Farocki calls] "a form of intelligence.” (Elsaesser, 269-70) Para vivenciar estas imagens de Auschwitz, Farocki faz-nos passar de forma intensa e ritmada por meio de uma complexa montagem de sequências aparentemente não relacionadas: a obra de Alfred Meydenbauer (inventor da escala de quantificação do uso da  

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fotografia, a fotogrametria); as fotografias tiradas por oficiais SS em Auschwitz; outras tiradas em 1960 por soldados franceses desvendando as mulheres argelinas; desenhos do campo de concentração feitos por um dos prisioneiros (Alfred Kantor); uma modelo maquilhada em Paris; uma sala de aula numa escola de arte; imagens geradas pelo computador; as linhas de produção industriais automatizadas; simuladores de voo, para além do laboratório de pesquisa de água e seus movimentos em Hannover.

Figura 1 - Imagens do mundo e inscrições da -Guerraminuto 00:08:15

Figura 3 - Imagens do mundo e inscrições da -Guerraminuto 00.39.27

Figura 2 – Imagens do mundo e inscrições da Guerra minuto 00.35.33

Figura 4 - Imagens do mundo e inscrições da -Guerraminuto 00.53.37

A sequência de imagens sugere-nos que – seja científica, militar, forense ou estética – a função histórica da fotografia serve não só para registar e preservar, mas também para enganar, iludir, e até mesmo destruir, ou seja, ajuda a ofuscar a visão, associando à morte e destruição. Em outras palavras, torna-se invisível. Este aspecto da temática do filme é problemático (intencionalmente ou não) uma vez que um filme em geral, e em particular este filme, está sujeito ao mesmo regime visual, a fotografia. Mas se lembrarmos Foucault, encontraremos a visão de Farocki sobre a relação momento histórico / percepção futura desse momento, que através da apresentação das  

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imagens recria os dispositivos militares, arquitectónicos e fabris para investigar alguns momentos privilegiados da conjuntura histórica. Foucault afirmava: “...what defines a relationship of power is that it is a mode of action that does not act directly and immediately on others. Instead, it acts upon their actions: an action upon an action, on possible or actual future or present actions. A relationship of violence acts upon a body or upon things; it forces, it bends, it breaks, it destroys, or it closes off all possibilities.” (Foucault, 1981-340) Farocki faz a narrativa do filme através de uma voz feminina, objectiva e neutra (tanto na versão alemã como na versão inglesa), e podemos interrogar-nos sobre o porquê de uma voz de mulher. E porque razão é muitas vezes acompanhada pelo som minimalista de um piano? Observa-se que, muitas vezes durante o filme, um tom ficcional e subjetivo da narrativa se sobrepõe ao expectável tom objectivo. Será legítimo levantar a questão de que a palavra Inschrift (inscrição) está inteiramente relacionada com o controle representativo das mulheres, em todo o filme? Atente-se então neste relato do filme: “The woman has arrived at Auschwitz; the camera captures her in movement. The photographer has his camera installed, and as the woman passes by he clicks the shutter -in the same way he would cast a glance at her in the street, because she is beautiful. The woman understands how to pose her face so as to catch the eye of the photographer, and how to look with a slight sideways glance. On a boulevard she would look in the same way just past a man casting his eye over her at a shop window, and with this sideways glance she seeks to displace herself into a world of boulevards, men, and shop windows.” Narradora (em inglês)

Figura 5 - Imagens do mundo e inscrições da Guerra- minuto 00:38:02

 

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O poder da imagem daquela mulher é a realidade nazi ou o desafio que nos silencia, passados tantos anos? Não somente o que vemos, mas como o ver depois do facto? Como encadear nosso olhar com o do operador que tirou essa fotografia? É no próprio acto de fotografar que é construído o veio condutor entre a imagem de arquivo e o assassínio, entre o registo que conserva o vestígio de uma vida e a sua destruição, sendo a realidade reduzida ao estatuto de referencial. Conservar e destruir: a lei do arquivo e do esquecimento. Na Argélia assim como em Auschwitz, os acontecimentos (as atrocidades do exército francês e a exterminação programada pelos nazis), não foram inscritos na película. O primeiro gesto do cineasta consiste em abalar as nossas representações do acontecimento: nada de cadáveres nem de corpos torturados aqui, mas rostos de mulheres, muito vivas. “...A sua irrealidade é a irrealidade do aqui, pois a fotografia nunca é vivida como uma ilusão (…); e sua realidade é a do ter estado aqui, pois há, em toda fotografia, a evidência sempre estarrecedora do: isto aconteceu assim. (…) Seria, então, necessário vincular a fotografia a uma pura consciência expectatória e não à consciência ficcional, mais projectiva, mais “mágica”, do que dependeria, grosso modo, o cinema (Barthes, 1990, p. 36-37). A jovem e bela mulher de Auschwitz e as mulheres sem véu da Argélia, encaram seu agressor, e o seu olhar, como que consciente do seu destino, fixa a objectiva, e criam uma dimensão fundamental do acontecimento: recusam o “contracto de comunicação” que a situação lhes impunha e os seus olhares não as tornam vítimas, como queriam seus opressores, mas oprimidas insubmissas.

Figura 6 - Imagens do mundo e inscrições da Guerra- minuto 00:08.15

 

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Essa liberdade, essa humanidade, que os opressores gostariam de lhes retirar mas que resiste nos seus olhares, é também o que, hoje, nos é legado do acontecimento: a capacidade de olhar de, igual para igual, a Morte. E esse legado permanece para ser visto, revisto, pelas gerações que se seguem como testemunha de um momento que recriando um passado, se transforma em testemunha, como afirma J. Silva Ribeiro: "...imagem do cinema além de ser um testemunho veicula a memória de uma realidade que mais tarde servirá de estudo para as gerações vindouras. Não é por acaso que surgem arquivos cinematográficos, do qual é exemplo em França "Les Archives de la Planète", iniciativa do banqueiro Albert Kahn." (Ribeiro, 2006) O filme de Farocki trabalha com várias dimensões de uma só vez, especificamente através da sua análise dos múltiplos significados de "Iluminismo". Em alemão, poderia sugerir "lançar luz sobre o caso", ou "o caso". Câmaras e metralhadoras e bombas foram instaladas a bordo dos aviões. As fotografias preservavam e as bombas destruíram. As ações ocorriam simultaneamente, em todas as escalas, de ambos os lados. Ao longo deste filme, não cessa a ligação entre as tecnologias que preservam e as que destroem, e a fotografia é assim vista como testemunha de um mundo que destruía. Poderíamos pensar que encontraríamos uma certa compreensão para os factos abordados e, quem sabe, uma pequena lição útil para o futuro. Mas uma frase da narradora vem quebrar este pensamento, que diríamos racional, pois observamos que, em contacto com o que se desenrolava em Auschwitz, um grupo de prisioneiros consegue deixar um rasto visível graças a cálculos matemáticos…. “Bloquear o acesso! Mais uma vez os números. As cifras são mensagens codificadas de presos dum grupo de resistência em Auschwitz. Marcaram uma insurreição. No 7 de Outubro 44, os homens do comando especial atacaram os guardas da SS com martelos, machados e pedras. Com cargas explosivas de pólvora que mulheres da fábrica de munições “Union” tinham levado, incendiaram um crematório. Conseguiram o que toda a maquinaria de guerra dos aliados não conseguiu, inutilizaram uma instalação de guerra. Nenhum dos revoltosos sobreviveu. Na aerofotografia verifica-se a destruição parcial do crematório. Desespero e coragem heróica fizeram destes números uma imagem” (frase final da narradora do filme ““Bilder der Welt und Inschrift des Krieges”)  

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A diferença está no facto de os analistas estudarem as fotografias de reconhecimento aéreo com a mentalidade de especialistas em gestão, e Farocki que nos convida a ver através de uma espécie de filtro pós-moderno e auto-reflexivo de dúvida. Depois de visto o filme não se poderá mais ver uma imagem e aceitá-la de per si. É tudo uma construção “Os nazistas não notaram que seu crime era fotografado, e os americanos não notaram que o fotografavam. As próprias vítimas nada notaram. Conforme registrado em um livro de Deus” (Farocki, 2007, p. 78)

 

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ANEXO 1

 

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BIBLIOGRAFIA BARTHES, Roland, A retórica da imagem. In: O óbvio e o obtuso. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990. DELEUZE, Gilles, (1990) “A Imagem – Tempo –Cinema 2”, São Paulo, Editora Brasiliense. ELSAESSER, Thomas, "Working at the Margins: Two or Three Things not Known about Harun Farocki," Monthly Film Bulletin 50: 597 (October 1983): 269-70. FAROCKi, Harun, Films. Dijon: Théâtre Typographique, 2007. FOUCAULT, Michel (1981) "The Subject and Power". In J. Faubion (ed.). Tr. Robert Hurley and others. Power The Essential Works of Michel Foucault 1954-1984. Volume Three. New York: New Press, (2000) p. 340. RIBEIRO, José da Silva, 2005, Antropologia Visual, práticas antigas e nova perspectivas de investigação. Revista Antropologia, vol. 48, nº2, S.Paulo FILMOGRAFIA FAROCKI, Harun (1989). Bilder der Welt und Inschrift, 01-13.30

 

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