Imagens em telas: o olham, elas?

September 13, 2017 | Autor: Rodrigo Contrera | Categoria: Painting, Francis Bacon, Egon Schiele, Lucien Freud, Figurativismo, Nenhum Olhar
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Imagens humanas: o que olham, elas?
Toda tela, toda escultura, toda demonstração artística que deixe algo a dever ao figurativismo que parece ainda chamar alguma atenção, mesmo após a morte do ser humano enquanto ente na arte e na filosofia. Mas o que essas figuras olham, afinal? O que dizem as dores de um Bacon, Freud e Schiele?
Bacon, Giacometti, Freud, Mueck, e muitos outros – alguns menos conhecidos, normalmente norte-americanos e hiper-realistas –, lotam exposições e chamam a atenção de todos – que quase sem exceção se deixam afetar pelas propostas desses caras que fundamentaram as bases sensitivas de uma arte que todos sabem em extinção. Afinal, quem mais se interessa pela reprodução do real hoje, em que programas de manipulação de imagens permitem fazer tudo, ou quase tudo, ou até mais do que tudo?
Mas as figuras nesses figurativistas, se guardam ainda algo de humano, também distanciam-nos de nós mesmos, ao revelarem camadas que muitas vezes não ousamos reconhecer. Como reconhecermos, sem com isso cairmos num buraco negro de sensações depressivas, que somos, em grande parte, hoje, no século XXI, como aquelas figuras isoladas de um Bacon, presas a estruturas que parecem surgir do nada, sem faces definidas, deturpadas no mais profundo de nossa carne, a tal ponto que, cortados e recortados, mal parecemos vazar sangue – como se estivéssemos mortos, em suma? Mortos em vida?
Pois todos sabemos: quando cortamos um animal vivo, ele sangra, ele vaza, suja tudo ao seu redor. Mas em Bacon, não. Pois ele adorava as carcaças de animais penduradas em açougues. Essas carcaças foram sua grande inspiração. Ocorre que as carcaças são de animais mortos. E ele pinta pessoas que – em suas telas e em sua vida – estão vivas! E elas não sangram! Elas se expõem como carcaças mortas de gente viva – e a mais viva para ele, o pintor. Amigos, amigas, amantes, o que de mais valioso ele assumia ter na vida.
Em Bacon, por vezes é difícil – sem nos concentrarmos em seus retratos – distinguir os olhos nessas figuras carnais, ainda mais os olhares que especialmente possamos nelas decupar. A carne parece dominar tudo, toda a paisagem humana que vemos, e por carne entendo que os braços se confundem com o colo, as axilas com as virilhas, os pés com as mãos, e o rosto acaba meio que sumindo em meio a tamanha balbúrdia de líquidos, órgãos e excrescências (lembremos que às vezes essas figuras fazem algo no mundo, como vomitar, por exemplo).
Cus (ânus) são figuras presentes em várias das pinturas do sujeito, que viveu a adolescência quase como michê e que quase como michê pavimentou sua carreira com os fatores de apaixonados que depois iria abandonar sem qualquer compaixão. Mas, que estranho, vaginas e pênis não são nele, em suas pinturas, tão comuns. Ao contrário de para um Schiele, que parece comprazer-se em dialogar com o sexo de figuras que nada possuem de tão carnais mas que se impõem também enquanto corpos.
Mas, tomando agora especialmente os retratos, em Bacon os olhos e os olhares das figuras pintadas parecem orientar-se para dentro. Não parecem nada enxergar fora delas. E quando parecem, parece que é mais para dizerem, a quem as está vendo, "olhem-me aqui". Pois em Bacon as figuras não parecem em relação, embora sua disposição no espaço, em relação a outros objetos presentes, normalmente outras figuras humanas, diga que essa relação existe, ali, de alguma forma. Elas normalmente estão de costas umas às outras, é certo, mas de alguma forma sentimos que existe algo, ali.
Será isso um resquício das infinitas noitadas de Bacon em bares numa Londres assemelhada a um bas-fond paulistano, que eu também percorro pelas madrugadas, devidamente protegido, e em que vejo amigos, amigas, desconhecidos e sujeitos que de repente aparecem e que, de forma por vezes desesperada, buscam algum contato com alguém, nem que seja pela desculpa de um sexo fácil, meio que para comprovarem que não, não estão realmente sozinhos? E olha que eu sei de suas histórias, de muitas dessas figuras às vezes lamentáveis mas sempre tão humanas e por isso passíveis de compassividade, e por vezes sei também de seus dilemas, de suas vontades às vezes restritas a sexos impossíveis de prever que por vezes surgem apenas quando sob a influência de substâncias alucinógenas ou calmantes, como o álcool. Parecem divididas, muitas dessas figuras, desses seres humanos que prezo e que dizem tanto me prezar, mas em seu anseio por contato nem de longe perpassam qualquer mísera divisão. Elas querem. Serão as figuras de Bacon, por algum motivo, sucedâneas desses meus amigos de hoje, e diria, de sempre? O amor não morre.
Mas um grande amigo do Bacon tem, contudo, outra leitura do mundo sob o mesmo prisma. Refiro-me, claro, ao para sempre indomável Lucien Freud, neto do psicanalista mais famoso de todos os tempos, mas suficientemente orgulhoso para trilhar caminho próprio sob luz também própria, oferecida por ele sem cessar, sob o domínio de suas violentas idiossincrasias, que faziam dele, enquanto vivo, uma pessoa de olhar e vivência realmente perigosa. Freud, não custa lembrar, jamais deixou que seu sucesso e vida em meio ao que havia de mais chique na terra de Wilde o impedisse de pedir ajuda aos meliantes mais perigosos quando via seus interesses sendo desrespeitados. Um Chatô sem cangaço nem cagaço.
Mas então. Freud também é figurativista. E um dos bons. Que não pintava de quem não gostava. Mas que por vezes traía mesmo os de que gostava. Que buscava uma verdade. Mas uma verdade pela qual ele sentia atração. Nele, ninguém parece feliz. Nenhuma de suas telas expressa algo que vá para cima, que descole o ser de sua inexpressividade e patente tristeza em simplesmente ser. Até as crianças e cachorros em suas telas expressam uma certa angústia, como se não estivessem aguentando mais passar o tempo e quisessem realmente, o quanto antes, passar dessa para melhor. Vejam, para melhor. Há algo de cristão, quem sabe, nisto tudo. E Freud era agnóstico ou ateu, não me lembro bem. Depois consulto e corrijo isto aqui. Mas crente ele não era. Não mesmo.
Em Freud, porém, as figuras não parecem apenas falar consigo mesmas, olhar para dentro, apenas e necessariamente. Em Freud, as figuras parecem expor-se, parecem colocar-se sob escrutínio, como se quisessem falar com quem está fora delas mas ao mesmo como se estivessem cansadas demais para que isso possa eventualmente acontecer. Elas querem dividir conosco seus problemas, sem contudo se disporem a dividi-los necessariamente no sentido de se deixarem julgar por suas posturas práticas a respeito desses problemas. Elas já se cansaram de pensar, refletir e sofrer com esses problemas. Querem que sejamos suas testemunhas de existência, como se pudéssemos – e alguns de nós podemos – ficar sossegados, no nosso canto, aguentando o silêncio de quem preferiria, de verdade, estar morto a dividir conosco seu desespero que parece nem ter origem definida. Os cachorros parecem, nesse afã, estar mais à vontade na tarefa, é o que percebo, pois, sendo eles nas telas apenas reproduções do afã triste de existir, são quase uma reprodução exata e fiel do andar trôpego de cachorros reais que por vezes, porém, nos enviam de soslaio uns olhares mais recônditos, menos superficiais, mais ligados às suas próprias almas – que existem, e como.
Mas é preciso voltar um pouco. Retornar a uma época que prenunciava essa devassidão interna. À época de um Schiele, de que minha ex-esposa gostava tanto e eu nem sabia realmente por quê. Um Schiele agrada. E ninguém em sã consciência pode hoje qualifica-lo de pornográfico ou especialmente fissurado na carne mais abjeta só porque ele não tinha o pudor de desenhar pênis tais quais eles são, vaginas da mesma forma, até mesmo ânus e pelos, muitos pelos. Os pelos por vezes parecem, em suas belas telas e magníficos desenhos, ser os reais protagonistas de tudo, como que estabelecendo que o contato entre os corpos não se dá realmente de forma direta, mas sempre mediada por tufos de matas densas, pretas, escuras, translúcidas ou loiras, como muitos dizem preferir. Mas não são os pelos os protagonistas mais relevantes desta trama, tecida com base no reconhecimento.
Os olhares em Schiele são, com raras exceções, se é que elas realmente existem, voltados especialmente para fora. Há neles um clima de provocação, pois mesmo quando não aparecem o clima da cena é de exibição pura e simples, buscando um contato visual focado especialmente no desconforto (atualmente quase inexistente) do despudor, do "eu sou assim mesmo". Não consideramos, por exemplo, desconfortáveis as figuras especialmente esqueléticas de – geralmente – homens que não parecem nada fazer à nossa frente. É possível até ver suas costelas e mesmo veias, mas esses troncos de esqueletos expressam uma saúde patente na autoaceitação de que são mesmo normais, nada doentes, nada pálidos, mas assim mesmo. Ou peguemos as figuras mais rechonchudas que ele por vezes deixa jogadas no chão mostrando as partes pudendas. Contrariamente a outros semelhantes, Schiele não ressalta seus excessos como se o fossem, mas ao contrário: como se não pudessem ser algo menos do que são, normais. As figuras estão também quase sempre à vontade, e nada deixam a desejar em termos de prazer àquelas outras que parece só se sentirem à vontade satisfazendo seus sexos insaciáveis.
Por vezes as figuras de Schiele mexem umas nas outras, até nas virilhas ou mesmo sexos, mas nada de exclusivamente sexual nelas parece poder ser inferido – embora SEJA sexual, embora SEJA realmente o que parece. Pois, apesar de tudo, elas como que brincam com elas mesmas, como crianças que o Schiele também pinta e que assumem características eternas de quem parece que jamais irá crescer. As figuras pintadas por Schiele são eternas crianças sem a ingenuidade que as caracteriza – e que se perde cada vez mais – mas com uma displicência que as aproxima daquilo que nunca mais serão. Mas não são crianças, claro. São adultos.
Schiele é um sem-vergonha. Suas figuras como que dizem, ao nos verem, "olha aqui minha vagina", "olha aqui minha pica", mas sem o menor intuito exibicionista, embora sacana. Como quando a mulher faz para você querendo transar. Como quando o homem aparece de repente diante de uma garota qualquer e sente que está sendo visto só por ela. Sim, pode parecer assédio. Na época do Schiele nem pensar em existir assédio, caramba.
Curioso nesta nossa viagem que tudo tenha começado, cronologicamente falando, com um sujeito solar que não se contentava em restringir-se à moral comum, expressa em imagens (Schiele), passando por um imoral que não conseguia enxergar o outro como ele de fato era mas que o transformava numa essência carnal da qual ele insistia que ele não iria se libertar (Bacon) para desaguar num amoral que, sem poder contato real com o semelhante, ou que podia alcançar níveis extremos de contato sem se envolver, preferia deixar o seu amigo infenso, completamente imerso em sua inexpressividade, para dela se beneficiar em honra a uma arte que o dominava completamente (Freud). Haverá figurativistas tão extremos hoje? Com certeza. Mas não venham me falar de gordos idiotas (Botero) ou maluquices próximas a um academicismo anacrônico e amarfanhante de almas (esses exagerados norte-americanos, um dos quais está no meu perfil do twitter (@rcontrera)). No futuro tentarei me desfazer (na cabeça, que não páro de pensar) dos que restam e descansam em meio a nós e a nossas angústias que tanto nos dividem e fazem-nos andar por aí, lépidos como Baudelaires, sem túmulos mas com inúmeras contas nas redes sociais. Que – aliás – permanecem mesmo após morrermos.

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