Imaginação política pós-ditadura: uma leitura de \"A fúria do corpo\" de João Gilberto Noll e \"Em Liberdade\" de Silviano Santigo (Dissertação de Mestrado em Ciência Política, IUPERJ, 2006)

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Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro

Marcelo Henrique Nogueira Diana

Imaginação política pós-ditadura: Uma leitura de A fúria do corpo de João Gilberto Noll e Em liberdade de Silviano Santiago

Rio de Janeiro 2006

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Marcelo Henrique Nogueira Diana

Imaginação política pós-ditadura: Uma leitura de A fúria do corpo de João Gilberto Noll e Em liberdade de Silviano Santiago

Dissertação apresentada ao Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Ciência Política. Orientação: Prof. Dr. Luiz Jorge Werneck Vianna

Rio de Janeiro 2006

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Agradecimentos

Se algum mérito teve este trabalho, ele deve ser compartilhado com algumas pessoas e instituições que se aproximaram e tocaram nele em algum momento da sua reflexão e escrita. Agradeço ao meu orientador e amigo, Luiz Werneck Vianna, pelo apoio e confiança no trabalho que, em conjunto, secretamente eu desenvolvia. Ao professor, digo que reconhecemos o fim de uma tarefa, ao amigo, prometo o encontro para outras conversas. Minha gratidão também aos professores Ricardo Benzaquen de Araújo e Santuza Cambraia Naves por terem aceitado ler este texto e debatê-lo comigo. As suas críticas e sugestões foram fundamentais para amadurecer uma mão de idéias que ainda muito jovens apareciam aqui e ali. Agradeço ao IUPERJ, especialmente ao corpo de funcionários que mantém, sempre, a Casa em ordem impecável. Devo um muito obrigado a todos vocês. Também devo o meu agradecimento ao grupo de pesquisadores do CEDES, Centro de Estudos Direito e Sociedade do IUPERJ, pelas constantes conversas e atividades conjuntas. Guardo com carinho nossas confidências e discussões. À CAPES e à FAPERJ, que em momentos distintos beneficiaram-me com uma bolsa de estudo, agradeço o apoio recebido.

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Sumário

Introdução Morte e fantasmas em uma casa democrática ______________________ 8

Capítulo 1 Escritura e segredo: imagens da democracia pós-1964 no Brasil _____ 26

Capítulo 2 Ficção e Teoria Política: ética acontecimento A fúria do corpo _______ 44

Capítulo 3 Texto de um outro contexto Em liberdade ________________________ 65

Conclusão (exórdio de um epílogo) ______________________________ 82

Referências bibliográficas ______________________________________ 87

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Resumo

A proposta do trabalho é examinar o imaginário político brasileiro no período que denominamos pós-ditadura, termo que faz referência tanto ao regime ditatorial que teve início em 1964, quanto aos processos de abertura e transição que se desdobraram anos depois para refundar a democracia no Brasil. A análise de algumas idéias políticas como democracia, ética, liberdade, social e sociedade, presentes sobretudo nos repertórios de luta da esquerda, foram remanejadas para três obras literárias, significativas do ponto de vista do imaginário de um contexto pós-ditatorial; são elas: Fernando Gabeira, O que é isso, companheiro?; João Gilberto Noll, A fúria do corpo; Silviano Santiago, Em liberdade, sendo as duas últimas exemplares do que se poderia denominar como um imaginário radicalmente crítico da esquerda pós-ditatorial. Partindo desses diferentes imaginários resultados por um mesmo contexto, o que se tentou fazer foi o apanhado de uma tradição política nascente nesse período, porém também herdada da ditadura e remanescente dos enfrentamentos contra o Estado, interrogando, ao fim e ao cabo, o horizonte e os termos das suas idéias e imagens para a política e a democracia atualmente.

Palavras-chaves História do Brasil, ditadura, democracia; cultura, literatura brasileira, esquerdas

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Uma epígrafe e um comentário (à guisa de um prefácio)

“No devido tempo demandaremos o impossível a fim de arrancar dele aquilo que é possível. No devido tempo as ruas me chamarão sem se desculpar. No devido tempo terei razão em dizer que não há histórias... nos tumultos somente os fantasmas de outras histórias.” Handsworth Songs

A confirmação do tempo presente como nada além daquilo que ele é, presente, na presença de mais dois tempos que o diferenciaria e, por efeito, voltariam a lhe confirmar uma época, um nosso tempo, uma contemporaneidade presente a si mesma, pode, quem sabe, levar-nos a um equívoco quando indagamos a respeito da historicidade sobre este presente. Efetivamente, que poderíamos indagar sobre o tempo presente, da sua remissão a um passado herdado e testamentário, documental por excelência, limitado e arbitrário, em todo caso, ou a um futuro que se coloca, desde sempre, comprometido com a presença desse eterno presente, e talvez por isso mesmo se revele inviável como um tempo que anuncia o impossível e o porvir? Como poderíamos fugir do ardil dos três tempos, reservando ao contextual um espaço propriamente temporal, limitado e subversivo ao contemporâneo? Presente do nosso tempo, nossa época, sempre o arranjo de um contexto, pode o contextual ser expresso de uma maneira que, condicionado a alguma inscrição histórica, tem com a história, não obstante, um compromisso impontual, inadequado, disparate? Indagar o tempo presente poderia ser também indagar a presença deste

7 tempo, do nosso tempo, de um contemporâneo não contextual, um fantasma, como ausência ou ruptura de outros tempos que vibram entre a locução de um já morto e de um ainda vivo? Poderia a história – dado que a ela por disciplina foi delegada essa tarefa e essa investigação – ser a fonte principal para este exercício? O que dizer de outros campos de saber, como a filosofia, as ciências sociais, a psicologia, a literatura (incluindo aí o registro da crítica literária), como esses diferentes saberes poderiam interagir entre si ou, no mínimo, isoladamente, mas nunca exclusivamente, de modo a oferecer algum tipo de interpretação sobre o que se pode denominar – e desconstruir – como contexto histórico? Em que ponto presente, da nossa época, essa desconstrução do contexto histórico poderia nos ser efetivamente válida, pelo seu estilo de interpretação, sobre o que se anuncia, aqui, na nossa época, sob o nome de uma tradição política pós-ditadura? O que, em última linha, poderíamos designar no uso do prefixo pós a marcar a última experiência ditatorial no Brasil?

8 Introdução

Morte e fantasmas em uma casa democrática

“Meu sacrifício ficará para sempre em sua alma e meu sangue terá o preço do seu resgate. Lutei contra a espoliação do Brasil. Lutei contra a espoliação do povo. Tenho lutado de peito aberto. O ódio, as infâmias, a calúnia, não abateram meu ânimo. Eu vos dei a minha vida. Agora ofereço a minha morte. Nada receio. Serenamente dou o primeiro passo no caminho da eternidade e saio da vida para entrar na História." Carta testamento de Getúlio Vargas, escrita na noite do seu suicídio em 24 de agosto de 1954.

“Acontece que o caminho para o futuro desejado ainda passa, a meu ver, por um acerto de contas com o passado. Eu acredito firmemente que o autoritarismo é uma página virada na História do Brasil. Resta, contudo, um pedaço do nosso passado político que ainda atravanca o presente e retarda o avanço da sociedade. Refiro-me ao legado da Era Vargas – ao seu modelo de desenvolvimento autárquico e ao seu Estado intervencionista.” Discurso de despedida do Senado Federal do então Presidente eleito Fernando Henrique Cardoso, proferido em Brasília em 14 de dezembro de 1994.

Primeiramente: uma morte e uma herança. Morte de uma idéia ou alguém, morte de um projeto ou um legado, fato que se herda, morte disso. Desaparecimento ou banimento de algo – isso – que se dá na história, por algum acontecimento que atravessa a história. Por isso – por isso que se perde e por isso de que é feito história – a morte enquanto um fato incontornável, um irredutível ao qual nada se curva, onde tudo se passa aparentemente findo e acabado, posto como acertado contra o passado então perdido – um passado passado, uma página virada.

9 Contudo, uma vírgula, um parêntese e uma distância para que possamos encarar a morte e o seu sentido – ou a sua perda de sentido – mas sempre isso como o que anuncia a presença de um signo que surge e oferece alguma hospitalidade para a sua interpretação. Isso signo – cujo sentido hospedado em certas palavras de uso tanto correntes quanto escapáveis na malha do nosso cotidiano parece relembrar a incapacidade de fecharmos consenso quanto à realidade da morte e à tradição da herança. Propor, enfim a morte, a herança, o legado, a história, a tradição, a democracia e a política, palavras sobre isso que sempre parece guardar alguma arbitrariedade, e também por isso são constantemente solicitadas para uma interpretação que as aprofunde em algum sentido. A morte, precisamente por sua imprevisibilidade, não se permite registrar na escrita ou mesmo narrada – por ser ponto fora de foco, sem contexto aceitável – a não ser que se perca de vista a condição impossível e mesmo limite na qual ela aparece em vida para se manifestar. O ato feito de violência apresenta também este mesmo potencial: por suposto que seja impossível a sua antecipação, a sua previsão e mesmo a sua representação, impossível enfim o seu resgate, o seu narrar, o seu registro, só se é oferecido para interpretação no momento mesmo em que se faz anunciar. Ainda assim, podemos suspeitar que talvez não seja necessário viver cada dia como o último para que possamos falar da morte, pois algo se herda quando se morre – talvez se herde um fantasma. Alguma coisa acontece quando se morre – ocorre um fato que acontece – e é por isso que acontece que nos vêm lembrar os fantasmas. Isso não existe, no entanto parece assombrar, pois mesmo morto persiste na história. Falar disso, portanto, será falar antes de tudo de fantasmas – daquilo que aparece e é velado. Contudo, propor dissertar sobre fantasmas, acerca da morte e da violência de um desaparecimento e da sua assombração implica, também, em assinar estas palavras escritas em um contexto inacabado. Nesta hora devo assumir aqui ao leitor que tenho uma indisponibilidade cruel em narrar condições extremas, como

a

do

assombro

de

um

fantasma,

porque

para

falar

disso

irremediavelmente deve prevalecer uma mudança literária (se for preciso, o

10 silêncio como forma de narrar) que não estandardize a violência e o seu agravo, seus desníveis, ações e lacunas, em fetiches de morte. Porque não há fetiche, capital de troca, ou abstração na violência ou na morte. Há matéria em estado bruto, em condição de gasto, perda e desperdício que não se manifestam no mundo por uma permissão; aparecem sem que possamos ao menos esboçar um gesto de recusa, e que mereceriam, talvez, mais o esquecimento que a nossa lembrança. Claro e evidentemente tudo se relaciona com o compromisso daquele que escreve: se se busca sociologicamente dominar as probabilidades de violência, cercando seus agentes, seus ambientes, suas incidências, formando com isso tendências, gráficos, números, hipóteses e soluções, sobre sangue e cadáveres, com a perspectiva um tanto quanto racional de extirpá-la pela cura analítica do cientista, assim se procederá; porém, se se pretende abrir sobre o presente a própria ferida que foi encoberta pela palavra de especialistas, justificada de alguma maneira pelas suas orientações, há que se proceder talvez menos terapeuticamente e começar a encarar o presente da morte a partir do que ele infalivelmente é: sinais de sangramento e cicatrizes de um passado ainda aberto, hemorrágico. A partir de um outro ponto de vista, ao contrário do que propõem os especialistas clínicos, quero tentar falar do fato mesmo vertiginoso de violência e morte, o que na violência e na morte não são dados do presente, senão o próprio hiato de inflexão e dúvida entre o passado e o presente no seu imediato, a relação impossível que retorce a nossa aparente estabilidade cultural e de socialização. Ou, lidando com o mesmo dilema, como na sugestão de Maurice Blanchot, desativar a morte impossível:

“Onde morrer é, perdendo o tempo de nosso fim possível, engajar-se no ‘presente’ infinito da morte impossível de morrer, presente para o qual a experiência do sofrimento está manifestadamente orientada, ela que não nos deixa mais tempo de concluí-la, mesmo 1 morrendo, tendo assim perdido a morte como termo” .

A morte como uma herança sofrida, dessa árida finitude a respeito da qual nada se pode saber ou prever, a não ser o seu próprio acontecimento dado, de 1

BLANCHOT, Maurice. (2001), A conversa infinita. pp.89-90.

11 fato, por alguma ausência ocorrida. Isto nos coloca a pensar a morte na perspectiva do espectro – realidade aparente e existente que não se dá nem morta nem viva –, de um fantasma que nos visita sempre de maneira inesperada e – por seu sentido assombrado – alarmante e impertinente. Tomar a herança como tarefa da qual nada se escolhe ou se escapa, pois é desde sempre um fato que não se dá para renunciar, ainda que em algum momento pós-herdado queiramos renunciá-lo, superá-lo, gastá-lo em todos os seus sentidos até a exaustão e o esquecimento, porém, desde então, ele já se fez lá, sigiloso e irredutível, como fato herdado presente a nós. Como Freud terrivelmente nos lembra, a vida se faz entre esquecimentos mortais2. Herdamos a morte, porém, com essa herança, habituamos também a realizar um trabalho de afirmação do luto que busca superar a perda e colocar o ente perdido em uma tumba intrapsíquica, que pretenda significar a morte completa inscrita em epitáfio3. Contudo, para o melancólico, nesta tumba nada se esquece, pois tudo ainda está à deriva de um outro sentido, preso à possibilidade de uma interpretação diferente dos fatos que ocasionaram a morte – nele também está presente a reserva de interpretação que tranca o próprio segredo da vida. Podemos pensar que a melancolia e a aparição de fantasmas têm, como sugeriu Shakespeare antes de Freud, alguma semelhança com este luto não-resolvido sobre a morte de alguém. O melancólico recebe uma herança de algo ou alguém que ele ainda não se desligou completamente, isto é, ele tem a morte em volta de si mesmo, habitando o seu ego, sem reconhecer um acontecimento na história que foi dado pela ausência do seu ente querido. Ao não reconhecer a morte como acontecimento completo ele deixa qualquer trabalho de luto em suspenso4. Assim, pensando melancolicamente, o que sucede a partir dessa herança de perdas pode receber mais de um sentido, sobretudo quanto ao fato da ausência e o que se tirar a partir dele, ou seja, o que se tem com a herança. Há que se diferenciar, na suspeição desse signo – herança – o que pode vir a lhe 2

Cf. FREUD, Sigmund. (1975), “Além do princípio de prazer”. Idem. (1974), “Mal estar na civilização”. 3 Cf. AVELAR, Idelber. (2003), Alegorias da derrota. 4 Cf. FREUD, Sigmund. (1974), “Luto e melancolia”.

12 agravar um determinado sentido utilitário, como aquisição, um presente, ou se levado ao extremo o raciocínio liberal, uma mercadoria, uma propriedade, um fetiche que advém do que se perde, encobrindo, logo, aquilo que lhe é particularmente

irredutível

enquanto

herança:

o

desenrolar

do

seu

acontecimento primeiro como fato. Pretendo aqui fazer despertar este outro, último sentido que adensa e, talvez, complica o fato herdado. Que o vincula a um compromisso que nem sempre é atentado quando se assume a perspectiva liberal do mercado das heranças. A hipótese é a de que uma vez ocorrida a faticidade da morte, o que sobrevém, em um sentido tão ansioso quanto delicado, é o reconhecimento e a interpretação que se liga ao ausente, isto é, a convocação que é feita na sua sucessão testamentária no presente. A sua herança. Atentar para este sentido, fazê-lo despertar do seu puro sono de signo, entendê-lo habitar a palavra-signo herança, suscitando-lhe outros sentidos que aparentemente o cercam, dando-lhes um contorno que em todo caso é um risco, resgatar o seu traço pode, talvez, nos pedir a atenção para aquele outro sentido – que não deixa de ser também, de fato, o primeiro sentido da herança –, qual seja, a transmissão, o legado, ou em uma palavra, a tradição, que está colocada quando se tem uma presença manifestada pela sua própria ausência. Tanto ou quanto se herde, não importa o valor ou a estima que se tenha, ou se importa, pelo menos não qualifica a tarefa da herança, desde que ocorrida, ou desde que signifique herança, a convocação da herança, a sua tarefa, corre em direção a nós sem que dela possamos responder com um recuo ou um desinteresse, um lamento ou um remorso, pois na herança reside, ao menos, um paradoxo, de uma tarefa que não pode ser negada a não ser após tê-la de fato assumida, ou em uma ação, herdada. A herança como um irredutível que advém da morte irrecusável. De fato, ao interpretar a herança, de antemão já assumimos, anterior a qualquer aceno ou destino que se pretenda dar a ela, a sua presença dada em ausência de alguém – herda-se isso – o que repõe o dilema do herdeiro (“o que fazer com isso que herdei?”) precisamente no campo das singularidades, dos interesses, emendas sempre posteriores do fato mesmo de ter-se sido

13 convocado aqui no presente por uma herança – fato, por sinal, inescapável da história. Dispensar essa herança ou dar-lhe o rumo de uma determinada história, tirar dela um interesse ou um sentimento, não deixa de ser um a posteriori desse fato já herdado, isto é, indício de que o herdeiro já ocupa o seu signo; e é somente após entrar nesse signo, ou melhor, colocar-se contemporâneo a ele, que este herdeiro interpretará e corresponderá ao “que fazer com isto que herdei”. Toma-se a herança para se exceder da herança. Neste sentido, ainda que vários possam ser os destinos e os interesses que animam o fato herdado, seja qual for a interpretação que o encaminhe pela história, reside nele, antes de toda a sua historicidade, uma convocação da história; ou seja, como fato coloca-nos todos, entes herdeiros, em posição de testemunho ao herdado, assinantes contextuais do atestado mesmo da morte que repassa a herança. Por isso o dilema da herança é, ao mesmo tempo, embaraçoso e oportunista. Nele podem estar associados, num só fato, uma atitude de comparecimento, que não deixa de ser também o apelo de um passado em presença, porém, de igual via, sobrevém a necessidade de tomada de posição presente junto a ausência desse passado, uma posição que surge a contrapelo para interpretar aquilo que se perdeu. A herança nos predispõe, ao cabo e ao fim, em posição de último e de primeiro ente histórico – ultimato que não deixa de ser também uma intimidação diante da morte que se herda em vida5. Uma interpretação derivada sobre isso que é a herança, da presença do passado em ausência, que remonta, portanto, a um imperativo ético que se aponta diante deste fato, disso, eis o papel do herdeiro.

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Em uma interpretação sobre o conto fantástico e por sua vez mortal de Jorge Luis Borges, publicado em Ficções, Ricardo Piglia coloca a perda e o complô como peças chaves para se configurar um leitor de ficção, qualquer leitor. “Tlön, Uqbar, Ortis Tertius – el cuento de Borges que define su obra – comienza con un texto perdido, un artículo de la enciclopedia; alguien lo ha leído pero ya no lo encuentra. No es lo real lo que irrumpe, sino la ausencia, un texto que no se tiene, cuya busca lleva, como en un sueño, al encuentro de otra realidad. La falta es asimilada de inmediato a lo que ha sido sustraído. Hay algo político allí que remite al complot, a una lógica malvada y sigilosa que altera el orden del mundo. Alguien tiene lo que falta, alguien lo ha borrado. No es un enigma, ni un misterio; es un secreto, en sentido etimológico (scernere significa ‘poner aparte’, ‘esconder’). Una página – un libro – no está, la carta ha sido robada, el sentido vacila y, en esa vacilación, emerge lo fantástico”. Este fantástico, nos contos de Borges, quase sempre vem acompanhado pelo signo da morte, o impossível que se coloca no segredo da ficção. Cf. PIGLIA, Ricardo. (2005), El último lector. p.27.

14 Por esse sentido histórico e contextual da herança poderia ser de alguma valia a pergunta: o que é passado no plano dos acontecimentos para que algo seja herdado através da ausência? Poderíamos pensar que a herança, menos que uma simples e passiva transmissão de bens de semelhantes para semelhantes – e é preciso dizer aqui que a semelhança se dá sob a ordem do infinito6 –, possa vir a significar também um acontecimento? Temos indícios para suspeitar de que algo acontece pela herança; ou melhor: isso acontece, enfim se herda; ou para colocar os termos em associação: algo acontece então vamos à herança. Poderíamos começar pela sugestão sobre algo que acontece através – e esse através vem grafar no seu sentido um lugar de passagem, de transmissão do tempo, de sucessão, assim como de direção, de vocação, de iteração, a afirmar uma responsabilidade (mesmo quando ela se queira irresponsável) de quem se posiciona junto ao fato atravessado, herdado. Pois se a herança é o que deriva, isso que se coloca a aparecer, ou como um fantasma, acontece sem que dela possamos fazer um prenúncio ou uma anunciação antecipada da sua história, da sua vinda, do seu sentido, do seu desvio, da sua interpretação, não nos pareceria, de fato, todo incorreto dizer que o que acontece, desde sempre, na história, seja a herança disso que não podemos escapar e ainda assim acontece. Portanto, podemos arriscar e pensar que no signo histórico da herança contemplamos realizado um duplo da história: o fato da ação diante dela – a morte de algo para que se herde – e da interpretação a partir dela (mesmo que isso se dê pela falta de interpretação) de um “não saber o que fazer com isto que enfim herdei” que se coloca além da história, pois está no presente e no porvir da herança. Com isto, trato de levantar suspeita, por trás, ou mesmo à deriva de todos esses elementos, sobre o que pode vir a ser uma herança de luta política, ou melhor, um testemunho sobre a luta e sobre a morte em uma pós-ditadura. O que pode vir a testemunhar uma morte em um contexto político? Diante de qual rosto, físico, physis, fisionomia e fisiologia, ou mais nitidamente, diante de qual 6

BENJAMIN, Walter. (1994), “A doutrina das semelhanças” in Obras escolhidas I – Magia e técnica, arte e política.

15 corpo é afirmada essa luta, essa política, essa morte e esse testemunho? É possível retornar a esse corpo de luta, agora, na nossa época, já desencarnado, ruína do passado, de forma a interpretar o que nele se atesta, o seu passado, a sua herança, o fim e sua derrota? Seria pertinente, em um limite tanto e quanto possível, retirar dessa prova de testemunho algo além do que ela precisa efetivamente testemunhar, um simples (mas não tão simples) fato de prova? Como citar e interpretar isso, presente de um passado que se herda através da sua omissão e só se mostra em aparição? Estas questões nos ajudam a pensar os testemunhos de luta da esquerda ditatorial no Brasil a partir de 1964. Testemunhos que vieram a público, quase sempre na forma de livro, no momento da abertura “lenta, gradual e moderada” da sociedade civil para o regime democrático. Transição iniciada pelo governo Geisel que armou uma sinuca de bico acerca dos caminhos que deveriam ser tomados por uma esquerda arremessada em um novo contexto de confronto com a modernização autoritária promovida pelo Estado, incerta ainda quanto ao seu alinhamento na nova ordem capitalista. Qual a relação entre essa nova modernidade da esquerda brasileira e os testemunhos publicados em seu período pós-ditatorial? Introduzo a questão por observar que os testemunhos publicados sugerem, pelo menos em público, um mea-culpa de uma esquerda que passa a defrontar, diante de si, pela primeira vez, com a derrota de um projeto revolucionário alternativo à lógica do capital via mercado7. No mea-culpa das esquerdas de um possível pecado – julgamento, vale lembrar, sempre posterior ao contexto de luta – nessa precipitação pode residir um paradoxo que seria interessante explorar. O que seria o reconhecimento de um erro a posteriori ao seu próprio acontecimento? Quero dizer, como interpretar um erro no seu próprio acontecimento, é tarefa possível? Qual seria

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Diferencia a leogico da capital de mercado, da lógica do capital de estado. Uma boa análise sobre esta nova situação das esquerdas pós-ditatoriais, ou seja, a partir da década de 1970, pode ser buscada em Maria Paula Nascimento Araújo. (2000), A utopia fragmentada: as novas esquerdas no Brasil e no mundo na década de 1970. Também em Jorge Castañeda. (1994), Utopia Desarmada: intrigas, dilemas e promessas da esquerda latino-americana. Para alguns ensaios, feitos ao calor da hora, buscar: Luiz Werneck Vianna. (1986), A travessia: da abertura à constituinte

16 o sentido desse reconhecimento, arrependimento, desse ressentimento, confissão que afirma o erro da esquerda derrotada, porém abertura da ditadura? Estaria essa esquerda querendo se dirigir para o tribunal da história, na busca de um juízo final, que lhe revelaria os erros do passado e a absolveria de uma história equivocada, portanto livre de todos os seus crimes passados? Afinal de contas, ao se declarar testemunhando os seus próprios fracassos, esse engajamento particular da esquerda não poderia estar em vias de quitar as suas dívidas com um determinado futuro prometido, ao acertar-se com os seus erros, isto é, com o seu passado, predispondo-a, assim, a um futuro descompromissado? Apresentar essas perguntas pode contribuir para que se debata agora, aqui, contemporaneamente, alguns sentidos pouco atentados para a discussão da tradição de esquerda pós-ditatorial no Brasil. A formulação da questão tem claramente alguma inspiração na interpretação de Marx sobre a Filosofia da História de Hegel, ao apontar um contexto histórico que inscreve o acontecimento na história, em sua primeira vez, como tragédia e na sua reedição como farsa8. Pensando nisso, arrisco: estaria a democracia sob o signo da tragédia ou da farsa na história do Brasil? Poderíamos pensar a respeito de uma reedição que possa ter se tornado uma outra interpretação da esquerda sobre a derrota revolucionária, identificando o seu fracasso como a farsa de um projeto? O que vem a ser a farsa, nesse caso? Teria ela alguma semelhança com aquele fantasma que falávamos algumas poucas linhas atrás a respeito da tradição e da herança? De fato, poderíamos pensar que ocorre uma tragédia e uma farsa na tradição revolucionária da esquerda no Brasil quanto ao reconhecimento dos seus erros 8

“Hegel observa em uma de suas obras que todos os fatos e personagens de grande importância na história do mundo ocorrem, por assim dizer, duas vezes. E esqueceu-se de acrescentar: a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa. Caussidière por Danton, Louis Blanc por Robespierre, a Montanha de 1848-1851 pela Montanha de 1793-1795, o sobrinho pelo tio. E a mesma caricatura ocorre nas circunstâncias que acompanham a segunda edição do Dezoito de Brumário! Os homens fazem sua própria história, mas não a fazem como querem; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado. A tradição de todas as gerações mortas oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos. E justamente quando parecem empenhados em revolucionar-se a si e às coisas, em criar algo que jamais existiu, precisamente nesses períodos de crise revolucionária, os homens conjuram ansiosamente em seu auxílio os espíritos do passado, tomando-lhes emprestado os nomes, os gritos de guerra e as roupagens, a fim de apresentar-se nessa linguagem emprestada.” MARX, Karl. (1978), “O 18 Brumário de Luís Bonaparte” in Marx. p.329.

17 e na condenação da sua derrota no Brasil pós-64? Estaria a esquerda pósditatorial pronta a expurgar os seus fantasmas, herdados ainda de um período ditatorial? Diante de tais requisições bastante complexas, uma pausa para algum esclarecimento na procura de um chão firme. A herança, ainda que sustentada pela perda do objeto ou do ente, tem a sua vocação direcionada para o presente. Ela é, de algum modo, o que chama o presente a si, convocando o que dele diferente é, ou seja, o que não está presente. Por isso herdar implica, sobretudo, em um trabalho de luto, ou no mínimo, o reconhecimento de que algo que estava presente, contemporâneo a si mesmo, agora todavia não mais prossegue assim, dessa maneira. Na contenda com a ausência, um trabalho de luto torna-se fundamental para que se reconheça que a herança surge na história como parte dessa ausência, disso, do não-contemporâneo que todavia chega ao presente, e por isso ainda demanda alguma reverência (ainda que de forma irreverente) a ele. Portanto herdar impõe ao presente o reconhecimento de um passado perdido por conta mesmo daquilo que se herdou – só ocorreu a herança porque algo morreu –, ao que poderíamos designar sob o título de um herdeiro como este ser que lida com ausências. Herdeiros, aliás, somos muitos e de várias assombrações. Por isso seleciono aqui basicamente três herdeiros. Um primeiro herdeiro, o livro de Fernando Gabeira, O que é isso, companheiro?, compreendido o seu sucesso em 1979, pode ser caracterizado como um testemunho e uma herança. Um testemunho que atesta uma derrota, um erro e o fracasso de uma luta. E uma herança sobre o que permanece sendo a imagem de um tipo de luta social associada à revolução de classe no Brasil. Testemunho de luta e herança de um erro que no seu livro aparecem de maneira paradoxal, ironizada. Contudo, antes de aprofundar na análise do livro de Gabeira, algumas questões sobre a proliferação desses relatos e a interpretação dita não-oficial da história que eles afirmavam veicular, pois, questiono: o que seria o erro, senão a interpretação póstuma que surge e faz-se impor em relação a um

18 acerto de contas? Quais seriam os sentidos ao se retificar um erro passado se, na sua significação, sempre se faz acompanhar uma específica interpretação histórica? Poderia sobressair nessa interpretação algum indício de uma condenação anacrônica da sua história, que pretendesse acertar as contas com um passado que se deu por vencido e com a derrota que foi tomada por oficial, reconhecendo e testemunhando enfim apenas uma derrota, o seu erro? Não seria o caso de re-voltarmos para pensar que o erro pode ser o próprio signo de interpretação da história e por isso, estranhamente, só pode ser mantido em sigilo na narrativa que dela fazemos? Será que ao subscrever e decretar a derrota do passado, não estariam esses testemunhos, também, condenando a específica possibilidade de anunciação de um outro futuro? De um futuro que não se coloque de imediato comprometido com o seu presente herdado, com isso morto? A dedicação de um tempo merece ser dada ao passado, não porque nele estão bem guardadas as explicações de um contexto presente, mas porque, contemporaneamente, no presente pode estar a presença sob a ausência de outros sentidos inter-ditos pelo passado. Ou será que do erro confessado pela esquerda só podemos esperar um julgamento, um juízo final que, por fim, tome de assalto o seu sentido passado para endireitá-lo devidamente na marcha oficial da história? Seria possível testemunhar a história de um erro, narrar o irredutível que fundamenta um erro na história, que são as derrotas e as perdas que lhe fazem diferença e fragmentos? Será que em uma interpretação de história deva-se confundir o eventual com o acontecimento que, por fim, este último, é o que fratura e quebra a marcha única da história? Coloco em suspeita, de alguma forma, a narrativa de O que é isso, companheiro?, tendo em vista que nela a história parece ser convocada para confirmar o que foi feito passado – real e oficialmente – para narrar o que vingou, tomando o prejuízo de prenunciar outros sentidos passados que poderiam ser resgatados do passado inacabado. No testemunho de Gabeira o que retiramos de mais contundente é sempre a história do possível, da condenação de erros. Uma história irônica sobre si mesma, pois reconhece a superioridade do possível, diante da perda, da luta impossível de ganhar.

19 “Não havia derrota possível. Ou Ficar a Pátria Livre ou Morrer Pelo Brasil – como dissera no comício o Índio Robledo, coitado, que se abalou até São Cristóvão para quase nada. Índio Robledo era Cláudio Marzo que fizera o discurso em nome dos artistas, a Pátria ainda não estava livre, nem eu tinha morrido. A caminho de casa, entretanto, não suspeitava dos erros que estávamos cometendo, da apreciação desfocada. Perdemos uma batalha mas ganharemos a guerra. Nada de original nisto. Mais tarde vim a saber que todos falavam isto quando as coisas apertavam. O movimento de esquerda, segundo Gramsci, utilizava o mesmo mecanismo religioso. Sofremos na terra mas o reino dos Céus será nosso. Os cristãos ainda sabem explicar como se chega ao Reino dos Céus. Era dificílimo, para nós, na realidade, compreender como ganharíamos a guerra 9 perdendo todas as batalhas.”

Com base no testemunho de Gabeira, compreendo que também o presente inscrito na sua narrativa ainda se apresenta tal como aquele céu dos cristãos, pois nele – no contexto passado descrito a partir do texto – tudo se encontra explicado e narrado a partir de um pecado capital: a derrota para a qual a luta armada marchava, a revolução. A perda já é perda, não há interpretação. Nada ali está colocado além dessa expectativa, o que frustra a sobrevinda de um outro sentido para os fatos narrados pelo autor. Para que servem os testemunhos? Poderíamos dizer que são coerentes quando se tem como matéria de enredo o passado de uma luta política? Ao se distanciar dos eventos narrados, o testemunho que Gabeira nos diz enreda-se em posição anterior ao acontecimento passado dos fatos. O que é isso, companheiro?, título e ironia de um ex-combatente, no relato de Gabeira aponta, sob o signo da conspiração, para um já errado sentido presente em seu contexto de luta, ao reconfortar a interpretação que vem do passado e se enjaula em uma interpretação do contexto. Acredito que alguma crítica poderia ser feita ao livro, crítica que não é histórica ou preocupada com a inevitabilidade dos fatos, que não questiona a veracidade dos eventos testemunhados por Gabeira, mas se apóia sobre o que no seu testemunho possa passar por restrito no campo da imaginação das esquerdas; crítica que diz respeito exatamente à imaginação da esquerda pós-ditatorial, à criação dos contextos. Avesso do avesso, coloco sob suspeita a redenção do isso 9

GABEIRA, Fernando. (1980), O que é isso, companheiro?. p.66.

20 conspiratório que encerra “o que é isso, companheiro?”. O que vem a ser isso que conspira sobre o companheiro? Como é possível isso conspirar? Por quais efeitos e motivos isso conspira? Em algum sentido, no nosso estudo tratamos de solicitar isso, porém, conspirar contra isso que já conspira. Assumir isso sob um duplo sentido: da sua responsabilidade e da sua omissão, sobre isso, então, apresentado como conspiratório. Ironicamente, o que o testemunhodepoimento de Gabeira nos distrai de pensar é sobre o isso conspiratório. Dessa suspeita feita pelos patrulheiros da esquerda, que se isenta de ponto crítico de discussão, reponho a pergunta: mas que é isso afinal de contas que contra a esquerda conspira? O que é isso, companheiro? Apresento essas questões, sempre de maneira tão geral, já que essa literatura confessional, no período de abertura do regime militar, vingou e fez considerável sucesso ganhando um amplo universo de leitura – leitores e escritores – no Brasil a partir do processo de abertura política do regime de 1964. Também neste mérito, em um exame de época, Flora Süssekind ressalta a “marcante preferência do público literário brasileiro pelos tristes e detalhados relatos de torturas, perseguições policiais e confinamentos, em número crescente sobretudo depois do retorno dos exilados”10. Não apenas Gabeira, mas vários outros escritores, a maioria deles jornalistas, iniciaram um projeto de denúncia e informação supostamente não-oficial daquilo que a ditadura militar havia feito contra os revolucionários de luta armada no Brasil (mas não apenas). Talvez não seja excessivo lembrar que nem toda a militância de esquerda a partir do golpe de 1964 sentiu-se atraída pela luta armada como forma de oposição ao regime militar. O dado parece ser fato irrecusável da história. No 10

Continua a autora: “Esta ávida leitura da experiência carcerária ou da narrativa dos sofrimentos alheios parecendo apontar no sentido de um grande mea culpa da classe média que apoiou o golpe militar de 1964 e a subseqüente militarização da sociedade brasileira. E que, desencantada, começaria a se penitenciar ficcionalmente pela repetida leitura de suas conseqüências. Ou, caminho inverso, opção de leitura ligada a uma outra geração de leitores cujo conhecimento da história recente do país, fragmentário e contraditório, se procura ordenar e reinterpretar, nesse momento, com base em versões não oficiais a que se começa a ter acesso com o aparecimento de um volume maior de publicações de depoimentos, memórias e romances políticos. O que ocorre sobretudo a partir de 1975 e, de maneira ainda mais acentuada, depois da anistia, já no Governo Figueiredo.” Cf. SÜSSEKIND, Flora. (2004), Literatura e vida literária. p.74 et seq.

21 entanto, o sucesso mercadológico que os livros-depoimentos obtiveram no período de abertura do regime, marcando um projeto de transição democrática, vem nos despertar a dúvida: no contexto de abertura do regime militar, momento no qual o próprio regime detectava as suas crises e buscava algum apoio, por isso, junto a sua oposição, na tentativa de atrair, cooptar e anular esses dois antagonismos – os militares e a oposição, não apenas civil mas também militar – enfim, quando o antigo regime cogitava juntar-se à sua antiga oposição rumo a uma única abertura democrática (comandada, dirigida por ele) para o país, por que nesse contexto o que se vislumbrou como possível para a esquerda foi a narrativa dos erros, o impossível do seu passado dado como vencido e superado? Por que o erro foi decretado como registro final dos embates travados contra a ditadura e contra o capitalismo de mercado? Apresento essas perguntas porque um entreato poderia ser pensando aí, a partir desse momento, a respeito dos relatos que são publicados: pois não seria o herói martirizado, encarcerado e torturado, submetido a atrocidades em nome de uma revolução, o símbolo por excelência dessa luta derrotada que, enfim, com a abertura, teria por fim reconhecida a perda da sua razão histórica e, com isso, aceitaria os seus erros em nome de um compromisso presente de convergência e união? O que se testemunha, afinal, senão a perda a perda? No testemunho do espírito revolucionário, ainda iludido com o seu presente, porém apresentando-se como enganado quanto ao (suposto) sentido real da história – como Marx sugeriu sobre o sobrinho Bonaparte –, o testemunho de Gabeira parece a todo o momento conspirar exatamente contra o olhar de um outro devir na história, apontando erros como prova de acontecimentos, imputando à história uma ética posterior ou anterior, mas nunca presente a qualquer fato que desde então se propõe a narrar. Apesar do gesto inicial de soltar um grito contra o regime militar, pela arbitrariedade que o acompanhou e foi crescendo no tempo, chegando ao ápice entre 1968 e 1974, Fernando Gabeira faz do seu O que é isso, companheiro? um signo de perda e ironia da própria luta que relata. Condena a história por um obsessivo historicismo que se busca crítico, porém permanece no paradoxo da conciliação – projeta uma narrativa que vem reconfortar aquele erro detectado na história, pouco atentando para a necessidade de problematização da sua ironia e da sua farsa

22 no recuo de uma imagem historicizada, cortada. Tratando a literatura por um repertório de imagens, não estaria Gabeira propondo com o seu realismo passado por testemunho, ou o inverso, o testemunho passado por realismo, enfim, não estaria ele expondo aí, pelo seu sucesso de público, um cerramento da imaginação das críticas para aquele período pós-ditatorial? A partir dessas considerações, devo fazer uma outra confissão sobre o presente: ele poderia ser repassado também como uma re-volta – um tornar a ver sub-versivo; uma volta cujo movimento caminha pela suspeição dos sentidos sobre esse corpo gráfico de letras, vestígios de sentidos que assombram a volta do escrito mas nunca o encerram lá, onde ele já está feito. Sentidos que são ressuscitados pela sua ausência, posto que eles sempre habitam lá, em ausência, em presença espectral. Uma revolta sobretudo contra o passado, entendendo que nele é que se apóiam as muitas voltas. Não qualquer passado, mas um passado que se faz recente e até mesmo, com abuso ou não, não raras vezes repassado como exemplo de ética e de luta. A suspeita histórica poderia nascer da pergunta sobre contexto. Como se define um contexto? Qual a abertura e o limite que um contexto pode ter na expressão de formas passadas e presentes? Poderiam ser a ética e a luta signos contextuais? Qual a relação que pode ser estabelecida entre contexto e temporalidades históricas que nunca se fecham, sempre elásticas e indefiníveis quase que por natureza? A suspeita sobre a escritura do contexto pode nos levar a pensar um outro modo de habitar as narrativas históricas e, por que não, o próprio gestual histórico. Essa suspeita não se faz como mediação de um tempo passado que quer se comunicar no presente, porém exatamente o oposto: um tempo presente que recusa qualquer determinação que parta de um contexto único passado. Porque os contextos são partes mortas e escritas. Nesse sentido, ao invés do conhecimento histórico passado que se resgata no presente, temos como fio imaginativo o passado que precisamente por ser designado passado, não comparece como tempo presente, isto é, se expressa ausente como marca de um presente. Na inversão operada aqui no raciocínio histórico, o tempo presente somente se qualifica como tal, presente, pelo que lhe consigna uma

23 falta, pelo testemunho de uma herança, o bem excedente que sobreveio do passado e nos falta. Neste tempo presente atual que afirma o inadequado, a morte e o herdado, o impontual e a emergência de agoras11, enfim, nele o que se afirma então poderia ser a sua própria negação, isto é, aquilo que lhe falta e o diferencia em relação a um contexto passado. Sob a hipótese de que é sempre no presente que se inscrevem os contextos, ainda que esses possam estar referidos ao tempo passado ou mesmo, como álibi de adivinhação, ao futuro, o interesse pelo contexto não expressa como foco exclusivo a remontagem de um único tempo. Mesmo o passado tem o seu valor suplementar nessa escritura de contexto, uma vez que o objeto mesmo de construção não toma por tarefa o ressuscitar o passado em si, isoladamente, mas sim uma derivação através dele. Uma genealogia e uma imaginação, em todo caso. Adotemos, então, o contexto por uma desleal identidade histórica à própria escrita da história, com o descarte de uma prévia naturalidade intrusa à sua imagem de contexto. Assim podemos, a partir dessa perspectiva, pensar o contexto na imaginação histórica como rastro, espectro, escritura que se faz na presença de um presente ausente, passado, subtraído pela história, porém fantasmático, quase morto. Seria excessivo retomar uma das críticas que foi feita, à época do lançamento do livro de Gabeira e ainda hoje, a respeito do caráter democrático ou não da luta armada da esquerda no Brasil. O que me chama a atenção ao testemunho de Gabeira, por exemplo, não diz respeito ao julgamento de um passado, à ponderação dos seus acertos e possíveis erros, à sua qualificação revolucionária, democrática ou nacionalista, em virtude dos seus movimentos contra a ditadura militar. Na intenção que anima a minha escrita não há caminho correto, o que tenho é a necessidade de tocar o futuro por trás, isto é, apresentar um estudo dos textos sem aprisioná-los em um julgamento contemporizador dos seus efeitos e resultados, porém antecipá-los aos dias de hoje, transportá-los pelo rastro contextual, contemporâneo, e engatá-los em uma chave de leitura que os questione a partir de então. Este estudo tem a sua 11

BENJAMIN, Walter. (1994), “Sobre o conceito da História” in Obras escolhidas I – Magia e técnica, arte e política.

24 presença, pelo menos assim pretendida e buscada, em uma necessidade de afirmação do presente, mais do que qualquer outra coisa. Com isto em mente, o estudo da tradição não deve ser confundido – não deve porque seria empobrecê-lo – com um novo tipo de historicismo que não atenda às convocações que se coloca para a tradição no presente. Se assim julgássemos, partindo de um historicismo que buscasse nos textostestemunhos um reconhecimento do passado e não atentasse para uma antecipação do futuro presente neles, correríamos seriamente o risco de viver a falar de lamentos e remorsos (reais e literários). Quanto a isso, evito no meu texto qualquer concessão a um possível ressentimento, uma vez que o que pretendo expor aqui como problemática é menos a análise de pecados ou equívocos éticos ou sentimentais que a esquerda brasileira, após a abertura do regime militar, incorreu-se para se auto-analisar, do que a sua reanimação. Pois o que se propõe agora é o inverso: o erro, para fazer surgir uma outra imaginação, deve ser tomado anterior a qualquer pré-conceito de erro que se possa atribuir à sua história. Recusar o erro como uma herança programática, inscrita na escritura, é ceder espaço para o devir democrático que aí então pode se instalar. Talvez um dos mais importantes e principais atestados programáticos herdados do período de abertura tenha surgido daí para afirmar, abertamente, a urgência de democracia, a importância dos erros. Bastante já foi discutido a respeito da democracia e de democratização no processo político de abertura. Tanto se divulgou a palavra democracia sobre o contexto pós-ditatorial que logo ela já estava circulando na boca de todos, inclusive, se não muito estranho, no repertório dos representantes do antigo regime militar brasileiro e, por razões um pouco mais evidentes, na lavra de todos os setores que lutaram em resistência e oposição ao regime autoritário. Talvez por isso, pelo seu uso corrente cifrando um certo sentido histórico, seja possível e arriscado demandá-la algum sentido que a coloque no crivo das interpretações. A democracia foi um desses signos que, juntamente com a moeda, sofreu nos anos que se seguiram à ditadura a inflação de sentidos. Por isso se torna imperativo, neste momento, detectar um trajeto, uma genealogia, um caminho possível que possa fazer surgir do já lá adormecido da palavra

25 democracia, tal qual a recebemos hoje, em discursos políticos feitos pelos interesses os mais distintos, um outro sentido que não a derrota e a conspiração que a marcaram nos seus testemunhos pós-ditatoriais. Ou seja: como programa, a democracia pós-ditadura poderia ser filiada também a uma estratégia, por onde pode-se depreender enquanto signo e regime de interpretação que são lançados sobre a coisa democrática. A proposta da dissertação é o de conjurar alguns sentidos silenciados na casa democrática. Tarefa difícil e sem previsão de um único sucesso garantido, mas que pode ter como mérito, talvez, levantar pistas que nos mostrem alguns caminhos de interpretação aberta e critica de qualquer vir a ser único da democracia.

26

Capítulo 1

Escritura e segredo: Imagens da democracia pós-1964 no Brasil

“Interpretar as interpretações dá mais trabalho do que interpretar a própria coisa, mas escrevemos mais livros sobre livros do que sobre os assuntos mesmos; comentamos-nos uns aos outros. Há excesso de comentadores mas escassez de autores. A principal ciência do século consiste em entender os sábios; não está nisso o fim último de nossos estudos? Nossas opiniões sustentam-se mutuamente, uma serve de degrau à outra e assim acontece que quem sobe mais alto e maior reputação adquire não tem em verdade grande emérito, pois não fez senão superar de um átimo o que vem logo abaixo.” Michel de Montaigne

Em O que é isso, companheiro? a democracia parece emergir burlada, como aquilo que conspira contra o presente da narrativa de Fernando Gabeira. Mantido em segredo, o signo democrático ocupa um posto de sigilo – e ainda de asfixiante vigília, do ponto de vista do narrador – que determina a origem da derrota que o legara, que o firmara na criação do enredo do livro. Figura de complô, rede de intriga porém já sem nenhum mistério, a democracia parece dar o tom da ironia histórica do Gabeira Narrador sobre o Gabeira Personagem, apresentados ambos junto aos fatos do Gabeira Autor, no testemunho despojado d’O que isso, companheiro?. Uma ironia e um despojarse sempre póstumos à própria interrogação do presente. Isso que estranha e que aparece estranhando o companheiro à esquerda – que por isso questiona

27 o seu companheiro – recoloca o paradoxo da história junto aos fatos narrados, e força o testemunho a prestar reverência ao seu próprio presente narrado. Todavia, algum silêncio entre os tempos deve ser rompido aí, nessa interrogação, para que se instale a nossa suspeita sobre algo que foi dado por natural, porém cujo caminho poderia ser feito de uma maneira diferente. E de igual ponto, talvez esteja no silêncio testemunhado de Gabeira o estalo de um grande desafio histórico e contemporâneo a respeito da democracia no presente pós-ditadura. Quero dizer, a democracia no testemunho de “O que é isso, companheiro?” é tomada como intriga, totalidade a partir da qual todo o enredo é armado. Mas como entender democracia em um contexto que se fecha como realidade democrática? A partir de quais estratégias, interpretações, leituras, inscrições, registros, habilidades, por meio de qual tecnologia do saber, da linguagem e da palavra, democracia, já colocada como signo histórico, ganhou voga e se naturalizou dentro do discurso pós-ditatorial? Poderíamos hoje, em meio a um discurso de firmamento democrático, procurar outros sentidos que habitam, acomodem e façam morada no seu signo? – Isso demanda algum tipo de desconstrução, inserido em um contexto espectral maior, acerca daquele – disso – único sentido que conspira na coisa democrática: por quais desconstruções, por quais reconfigurações, a democracia obsedou, adormeceu, vacilou, tornou-se espectro, assumindo a sua presença como não-presença em um programa, fantasmagoria a contemplar de fato os discursos pós-ditatoriais? Por que ela se tornou assim espectro incontornável no contexto presente? Teríamos rompido efetiva e imaginariamente no tempo do contemporâneo o legado de uma direita e de uma esquerda ditatorial? Lanço alguma suspeita sobre o que, pela sua presença mais evidente, manifestação colocada fora de suspeita, oferece permissão para detectar, neste contexto assim fechado e mantido em sigilo, um determinado sentido obrigatório do isso democrático. Concedo à sua aparência uma ocorrência de fato, que nos convide a entrar na casa-signo democracia com alguma outra interpretação. Ou em outras palavras, precisamente porque a democracia acontece, é presente, nela podemos investir algum tipo de desconstrução. Uma

28 desconstrução, em todo caso, que não se coloque por negá-la – pois assim, não faria aqui no papel nada além que um mero exercício de oposição ingênua e negativa ao nosso habitat, o que não espero ser caso. Assumo, convicto, que justamente por acreditar no acontecimento mesmo da democracia, por vislumbrar no seu contexto alguma pertinência presente, é que vejo imperativo hoje (re)voltar a ele pelo signo democracia para fazer surgir daí, do seu sentido mais evidente e ainda assim calado, a possibilidade desconstrutora de outros sentidos de um restrito programa democrático. A tarefa será ler na escritura democrática o que permanece em suspenso, desconcertá-la diante de sua própria espectralização, por fidelidade à sua presença e importância, por confiança a ela. Para iniciar, parto da idéia de que a democracia recebeu, se muito, um sentido de abertura que foi acompanhado de uma impressão sobre o político e o social, o Estado e o mercado no Brasil. Essas afirmações se deram, com alguma força, a partir da década de 1980. Estado e mercado são signos, aliás, que não poderiam ser totalmente dispensados dessa excursão interpretativa sobre a democracia pós-ditatorial – e infelizmente não teremos meios para arriscá-la com a seriedade que mereceria. Pois não está colocada como tarefa crítica neste trabalho, retorno para relembrar, uma preocupação histórica em sentido estreito, isto é, historicista, que pretenda interpelar o passado para que dele se possa apontar culpas ou atribuir responsabilidades sobre o tempo presente. Não coloco a história, ou em outras palavras, não atribuo aos historiadores qualquer prerrogativa mais lúcida que lhes confira o poder mediador de advogar contra ou a favor dos problemas de um passado. Seria mesmo abusivo e contraproducente requisitar dos historiadores, dotados de um saber especializado, pode-se concordar, no entanto igualmente subscritos na história e portanto inscritos em qualquer temporalidade que dela se faça, o dever e o direito de responder a respeito dos erros de qualquer passado. Pode-se esperar isso de qualquer pessoa, e não apenas do historiador, figura em si que mereceria uma história. Seria também importante para este estudo fazer um registro sobre a predominante vertente narrativa dos testemunhos pós-ditatoriais, que assume a

29 derrota e o fracasso das ações de guerrilha e de confronto contra o regime militar como signo de luta, sob um tom mórbido e nem por isso menos cruel e furioso. Este tom está na lamentação melancólica das memórias de luta. Sobretudo em relação ao fracasso da revolução de guerrilha, mereceria mais alguma atenção essa literatura a fim de interrogá-la a respeito da afirmação do erro em história. De uma maneira sumária, um traço semelhante que identifica essa literatura de derrota12 está narrativa que explode o presente, fragmentando-o em um estado de niilismo e de “estupidez torturada”, ao representar “figuras tristes e intumescidas” recém egressas da esquerda. A tortura migrada e feita literária talvez subescreva sob o signo da farsa a sua própria tragédia de subversão – se entendermos o ressentimento como uma volta burlesca na história, uma mímica de contextos diferentes: farsa. Importante para nós, nesse caso, quase que por uma trapaça do tempo, é considerar o mesmo tipo de crítica que Walter Benjamin pondera em relação à elite intelectual de esquerda do entreguerras na Europa. Na sua análise, “... esse radicalismo de esquerda é uma atitude à qual não corresponde mais nenhuma ação política. Ele não está à esquerda de uma ou outra corrente, mas simplesmente à esquerda do possível. Porque desde o início não tem outra coisa em mente senão sua autofruição, num estado de repouso negativista. Transformar a luta política de vontade de decisão em objeto de prazer, de meio de produção em bem de consumo – é este o artigo de maior sucesso vendido por 13 essa literatura.”

Pode-se mesmo suspeitar na trama dessas narrativas confessionais no Brasil pós-1964 sobre aquilo que elas passam como uma impossibilidade perdida, um trauma sobre o impossível, pois desde então, quando principia a narrar, configura essa perda, esse impossível, essa derrota e o seu erro como eixo narrativo para o futuro, no porvir da sua história (da sua tradição?)14. Todas as

12

Cf. FRANCO, Renato. (1998), Itinerário político do romance pós-64. Especialmente o capítulo “2° Movimento – o romance da cultura e da derrota (1969-1974)”. 13 BENJAMIN, Walter. (1994), “Melancolia de esquerda” in Obras escolhidas I – Magia e técnica, arte e política. pp.75-76. 14 Um inventário dessa literatura pode ser buscado em: AVELAR, Idelber. (2003), Alegorias da derrota. A ficção pós-ditatorial e o trabalho do luto na América Latina. DALCASTAGNÉ, Regina. (1996), O espaço da dor: o regime de 64 no romance brasileiro. PELLEGRINI, Tânia. (1994), “Brazil in the 1970’s: Literature and Politics”. Latin American Perspectives. SANTIAGO, Silviano. (2002), “Poder e Alegria: a literatura brasileira pós-64 – reflexões”; “Prosa literária atual no Brasil” in Nas Malhas da Letra. SCHWARZ, Roberto. (1978), “Cultura e Política: 1964-

30 linhas são escritas em negativo. No entanto, essa perda e esse erro podem ser modos conspiratórios da esquerda sobre si mesma, em um contexto novo, diferente. No memorialismo que se coloca comprometido com o erro, o impossível aparece na conspiração, nomeado pela perda. Ou, em outras palavras, a perda está cogitada como o possível da história, daí o sentido fatalista dessas narrativas – numa tradução de que o possível foi o que se constituiu, a vitória do real sobre o que se deu como perdido. Os testemunhos conspiratórios abstêm-se de encontrar por algum sentido secreto na história do que foi e daquilo que errou na revolução. Como se a impossibilidade, enquanto horizonte político, pudesse ser disputada na história dessas narrativas e entregue ao vencedor como reconhecimento da sua realidade (superioridade), ou seja, o que se encontra com essas narrativas é justamente o que prevalece, o que compõe os argumentos, a injunção de um contexto a um historicismo para a absolvição do impossível, para decantá-lo no possível do real.

Antes de testemunhar a morte de uma esquerda, participando do cerimonial de desencarnação do seu inquieto espírito revolucionário, contestador e insurgente, aderindo à massa daqueles que bradam o começo de novos tempos hoje, seria talvez necessário realizar o trabalho de luto dessa idéia para arrancar, através dela, o que permanece freqüentando, enquanto espectro, os atuais discursos sobre o político. Aceitar a realidade desse espectro só se torna possível e pode nos doar algum sentido se, ao menos, renunciarmos o assombro que nomeia a sua ausência, ou mesmo assumir este assombro com todas as conseqüências que podem, a partir dele, nascer, ao juntarmos o que há de morto e ainda assim o que permanece como presença viva sob a forma de uma herança que não se reduz a um historicismo contextual.

Reconhecer um acontecimento, como a derrota ou erro, não é de forma alguma condenar uma morte ou recusar o real, fechar um contexto ou abrir outro. Contra isso, o espectro vem burlar essas oposições de um real único, dado pelo que foi possível. Nesta linha, o que se coloca aqui como tarefa de injunção 1969” in O pai de família e outros estudos. SÜSSEKIND, Flora. (2004), Literatura e vida literária: polêmicas, diários & retratos. FRANCO, Renato. (1998), op.cit.

31 entre esses dois termos, passado e presente, possível e impossível, demanda talvez primeiramente que nos interroguemos radicalmente sobre isso que arma um contexto real e possível, que alia e funda essa interpretação que diz respeito à derrota das esquerdas. Por isso, tanto hoje quanto nas décadas de 1970 e 80, a nostalgia e a celebração descomprometida de uma democracia podem ser tão insólitas e tenebrosas quanto a assinatura do seu óbito – não há nada para ser comemorado hoje, posto que tudo permanece ainda em suspeição.

Diante do memorialismo e ressentimento expressado nas histórias da esquerda na pós-ditadura, pergunto: como julgar os erros do passado sem incorrer em alguma atitude arbitrária e imoderada de enforcamento do presente, no cadafalso do moralismo e do sentido anacrônico? Como se constroem os contextos de julgamento, de interpretação sobre um erro que fez história? Em um sentido muito particular, o que sobrevém justamente da interpretação do seu contexto de erro? Seria esta interpretação historicamente possível? Qual seria a principal tarefa de desconstrução de sentidos em uma interpretação de contexto? Ou melhor, seria uma interpretação de contexto algum tipo de desconstrução de sentido que apresenta a inscrição de outros?

Do ponto de vista das desconstruções, a interpretação de um acerto de contas do erro poderia ser tentada também em uma leitura errante, que solicite a força democrática no lugar de manifestação do signo de uma transição à democracia, sob alguma imaginação em que a forma e o conteúdo que diferenciam um contexto e uma história não representem apenas a totalidade de discurso, mas sejam duplos de uma mesma história a ser combatida, retrucada e restaurada em sua cena de conflito. Sobre este problema de fundo e de forma que pode restringir a democracia na transição, Luiz Werneck Vianna escreve:

“A transição não se resume a garantir instituições políticas democráticas. Ela é isto e mais a via de reformas substantivas no campo econômico e social que rompe com a modernização reacionária. [...] Somente um processo ininterrupto de transição, que

32 institucionalize democraticamente o país e realize o programa mudancista, pode ajustar contas com o passado e escancarar uma 15 perspectiva para o futuro” .

Esse embate histórico em torno do gesto democrático e o ânimo “mudancista” pode estar hoje na promessa de uma história crítica e desconstrutora sob um intempestivo ético. Nela sucede a espera, em segredo, de um leitor, qualquer leitor, porque clama incessante a sua presença. E quando esse leitor se apresenta não é mais do que em sua história, desatento às intenções da obra, acordado em um presente escrito que já lhe aparece ausente, quase morto ainda vivo. Neste presente suspenso, de contexto irredutível, fantasmagórico, a única forma de o leitor recuperar algum sentido político seria, enfim, junto ao intempestivo de uma promessa, na espectralidade presente da escritura. Termo nietzschiano, o intempestivo designa isso que se move contra o tecido do presente, isto é, atuando “contra o nosso tempo, por conseguinte, sobre o nosso tempo e, esperamos, em benefício de um tempo vindouro”16.

Também essas considerações sobre escritura podem nos trazer alguma imaginação política que se desdobram desse intempestivo ético, fiança do leitor ou do escritor ao escrito, à história, que intervém no próprio ato de inscrição que declara a escritura, o seu mundo, a sua origem. No intempestivo ético a obra histórica não tem um contexto único e fechado, visto que pelo próprio fato literário inscrito já sem presença ela experimenta a impossibilidade de alguma vez ser no presente, isto é, de ver resumida simultânea e instantaneamente a sua significação absoluta em um agora imediato ao leitor. Sua existência padece fulminada pela sua historicidade, inaugurada desde sempre pela sua história. “Se a escritura é inaugural, não é por ela criar, mas por uma certa liberdade absoluta de dizer, de fazer surgir o já lá no seu signo, de proceder aos seus augúrios.”17 Por isso a escritura está aberta a um devir que por aí informa a sua história deslocando-a.

15

VIANNA, Luiz Werneck. (1985), “Identidade política e transição”. Presença – Revista de Política e Cultura. p.37. 16 NIETZSCHE, Friedrich. (2005), “II Consideração Intempestiva sobre a utilidade e os inconvenientes da História para a vida” in Escritos sobre história. p.70. 17 DERRIDA, Jacques. (2005), “Força e significação” in A escritura e a diferença. p.26.

33

“É um milagre: o instante, aparecendo e desaparecendo como um relâmpago, vindo do nada e retornando a ele, volta no entanto como um fantasma a perturbar a paz de 18 um instante posterior.”

Esse instante fantasmático pode ser a melhor expressão, por enquanto, de uma “metafísica da presença”, que turva as oposições e exclusões entre presente e ausente19. O espectro na história seria o que desafia essa realidade clara, limpa, sem furos, passada pelo historicista. Por renegar nela e para ela o assombro da sua não-presença e o elogio da sua restrita efetividade, a crítica historicista recusa trazer para o presente aquilo que lhe falta, que excede e de alguma forma ainda suplementa à história, ao passado, ao presente – aos tempos. É com referência a esse assombro que a imaginação de um intempestivo arma-se face à história – uma face porém já estranha, alterada, inteiramente outra, borrada pela sua própria manifestação. Devo ressaltar este aspecto intempestivo sobre a história, a sua importância para o discurso e o método dessa dissertação, porque me posiciono a ler a história pela ameaça de um passado inacabado e junto a um futuro que alça a sua condição cumulado sobre os restos de um presente não formulado. Sob a lente do intempestivo, a proposta de (des)(con)figuração do presente seria uma legenda crítica para a história, para a armação do seu contexto – uma interpretação de contexto, porém impossível de se completar; por ser leal às suas quadras, porém crítica quanto à sua impossibilidade; tendo em vista que a crítica do presente e do futuro não é feita apenas pelo apego a uma determinada imagem do passado, mas pela própria maneira atual que selecionamos o contexto presente, ou seja, que imaginamos essa imagem. Turva-se esse contexto rígido ou determinado para que o presente a-presente, abalado, junto a ele, os seus pontos fracos, os seus interstícios, os instantes de uma história marginal pelas quais este presente pôde-se impor e fazer-se surgir contexto – sob essa perspectiva, a pergunta que daí deriva para a história pode ser invertida de “como um contexto abrange o presente?” para “como um

18 19

NIETZSCHE, Friedrich. (2005), op.cit. pp.70-71. Cf. DERRIDA, Jacques (1994). Espectros de Marx.

34 aspecto presente faz o surgir o seu contexto?”. Notem que o espectro pode ser esperado aí. O que desvia de uma e outra indagação pode ser o tempo presente que direciona o nosso raciocínio histórico, questionando se este mesmo raciocínio deve, de imediato, estar comprometido com apenas uma imagem do passado repassado. Se o olhar historiador se posiciona em um presente, sem que com ele possa terminantemente se comprometer, já que o seu presente nada é senão o próprio tempo do incapturável, inenarrável, como instante que recebe a visita de um fantasma, resta saber como ele poderia interrogar o passado sem restringir, dessa maneira, a sua abertura e chegada a um contexto presente. Quanto a isso, Nietzsche propõe o pensar a história como uma espécie de genealogia sobre o presente. Uma genealogia, como sabemos, nunca se fecha, não pode ser terminada, já que a sua definição está aberta a uma sucessão de acontecimentos que somente podem ser inscritos sob o signo de história quando acontecem no presente. O que define a genealogia, então, pode ser a sua própria inconclusão junto ao presente. Uma genealogia dos erros e derrotas da esquerda seria, por isso, acima de tudo, um interrogar sobre essa esquerda, não sob o critério arqui-teleológico do que vingou, sobre o que foi possível, o que venceu, mas talvez pelo que desviou, excedeu, tornou-se irredutível; ou, em um outro sentido bem mais amplo, o que errou e sofreu fracasso junto à história. Errou não por uma condenação, mas por um contexto que prescindiu alguma impossibilidade. Sob essa perspectiva pode-se interpretar as margens de uma pós-ditadura contra o contexto que emerge presente – um contexto que quer ser contemporâneo a si, preocupado com o obsessivo e insistente ato de imaginação da perda de um impossível –, recusando, com isso, olhar para a história de uma maneira já enviesada com base no que foi, no que foi possível, no que é presente, mas ressaltando por um esforço tenaz aquilo que lhe falta, que subscreve e excede o presente e ainda assim lhe caberia 20.

20

NIETZSCHE, Friedrich. (2005), Op.cit. p.70.

35 A entrega da impossibilidade, a solução do indecidível, assim como o desencanto da promessa e os desgastes da herança figuram entre os principais enredos de testemunhos pós-ditatoriais no Brasil. Sobretudo a partir da abertura política e da volta dos exilados na década de 1980, esses testemunhos marcam uma outra época, todavia que se vive ainda no presente. Mais: os signos narrativos são apresentados sob fortes alegorias, cujo julgamento sobre a herança falida ou a revolução perdida está indicado no reconhecimento de um termo, um fim então possível sobre o que foi feito na história. “A revolução foi o impossível – e dele erramos”, dizem essas narrativas. Contudo, numa suspeita direcionada a essa perda sobre o impossível, volto a Blanchot para aguçar que “o pensamento do impossível, se fosse aceito, seria, no próprio pensamento, uma espécie de reserva, um pensamento que não se deixa pensar no modo de compreensão apropriadora, o impossível não está aí para fazer capitular o pensamento, mas para deixá-lo anunciar-se segundo uma outra medida diferente 21 daquela do poder.”

Assim como o espectro post mortem que assombra quem sobrevive, a impossibilidade

desafia

o

poder

porque

é

incessante,

inapreensível,

incapturável por ele. Não há termos para se opor o possível ao impossível. Talvez mesmo não se deva tratá-los enquanto termos opostos – arriscando que, sim, podem-se marcar por palavras feitas em desvio, assim como real e ficcional, cujo traçado de fuga apaga a própria linha de oposição. É em desvio que esses termos se chocam; desvio que pode gerar enorme desencontro entre as duas palavras, mas que se se chocarem não se anularão, posto que a diferença de uma para outra vem para recuperar o infinito daquilo que é, impossível. Por isso o impossível se nomeia infinito, por isso que escapa sem que haja meios de escapar. Reservando ao impossível aquele irredutível histórico e voltando os olhos para as narrativas de derrota da esquerda, o erro revolucionário e a passagem democrática não somente foram lidos como perda, mas como mudança. Mas para quais caminhos leva a mudança? A literatura de testemunho esquivou-se 21

BLANCHOT, Maurice. (2001), A conversa infinita. vol I. A palavra plural. p. 87.

36 abertamente de reconhecer esta herança pós-ditatorial no presente, uma herança de derrota, perdas, não de vitórias ou transições, permitindo com isso que se decifrasse o presente sob o signo de uma transição, indiferente quanto à própria positividade que é possível interpelar dos fatos e dos erros. Uma observação deve ser feita: não é tarefa fácil ou mesmo sem grandes arbitrariedades reconhecer no nosso presente democrático isso que se apresenta sob o espectro pós-ditadura, pois, por ser espectro, figura sem tempo, o presente ainda nos parece indefinido, estranhamente não assumido, de algum modo continuado em relação ao contexto de transição do autoritarismo para a democracia. Incerta de um presente, a história de uma pós-ditatorial no Brasil parece aguardar a sua vez, suspensa ainda sobre si mesma – ainda uma transição, ainda ressentimentos sobre o ocorrido. Esse ainda – inscrição de uma temporalidade – marca uma teleologia histórica na qual a transição nos levaria para um caminho correto de um fim. Mas será que a anistia democrática poderia ser suficiente para esconder os restos de história

que

ainda

vivemos

no

tempo

de

uma

contemporaneidade?

Intempestivo seria aquele olhar que aspira ver no presente aquilo que vem para lhe exceder – o suplemento que um determinado contexto presente optou por silenciar. Portanto, nesta dissertação, ao considerar uma interpretação de contexto, agi com “algum grau de ruminação na história”, em que o modo crítico passasse por “coveiro do presente” a desenterrar da história assentada um imperfectum que nunca poderia ser acabado, uma “força plástica” que fosse “incorporando o que é estranho e passado, curando feridas, restabelecendo o perdido, reconstituindo por si mesmas as formas partidas”22. Esse olhar tenta vislumbrar no terreno constitutivo do presente aquilo que lhe falta, que lhe data. Aos tempos de “democracia”, em que “governo de coalizão”, “governabilidade”, “estabilidade” e “desenvolvimento” são termos quase sempre tomados sem crítica, atemporais, sem rastreamento das suas procedências, das suas relações de poder, a crítica que coloca em desacordo o presente com isso que lhe excede e o define assume um compromisso impontual com a

22

NIETZSCHE, Friedrich. (2005), Op.cit. p.73

37 história, firmando-se nela por um contrato anacrônico, desleal e errante23. Olhar que não enxerga o continuar do tempo, mas antes rastreia historicamente as faltas, os agoras, a sucessão de vários tempos. Levanta um contexto que não identifica no possível a contemporaneidade de uma história presente, já que rastreia a partir de um outro contexto, estranho ao próprio presente, por isso intempestivo e impossível – a falta que vem a ser o suplemento para se ler a sua história. Essa falta que compõe e excede a história, impedindo-a de ser contemporânea a si, sugere um “pós” que marca os diferentes contextos históricos, o realizado e o seu duplo ausente. Daí nossa denominação pósditadura, “palavra que designa a diferença em dois tempos”24. Sob essa perspectiva, proponho a leitura de uma memória que atualiza uma ausência, apresentando nomes e faltas, avanços e recuos de uma imagem de democracia. Esclareço para o leitor que essa outra imagem da história nasceu, para os propósitos deste texto, da dúvida sobre um desenvolvimento econômico que geralmente aparece para a opinião pública desvinculado e mesmo em oposição a conceitos políticos operantes, até a década de 1970, como tradição nacional ou

tradição

política



como

se

as

transições

viessem

substituir

terminantemente, não sem alguma banalidade, as tradições. A esse respeito, Luiz Werneck Vianna pode ser novamente chamado aqui. Vamos a ele: “Assim é que a transição, se estimula o avanço do processo de democratização e da legitimação racionallegal, longe de se tornar o contexto favorável para que boas causas gerais cumpram um papel benfazejo, vem criando um cenário de antagonismo e de impasses entre os atores envolvidos. A transição, além de ter desvelado a falência do Estado e de suas políticas públicas, em função da obra predatória do regime militar, que submeteu as instituições políticas e a política social à lógica da modernização econômica acelerada, implicou a liberação de demandas represadas pelo autoritarismo de classe, grupos e regiões. Quer pela escassez de recursos, quer pela ausência de uma estratégia de planejamento que encontre suporte na estrutura dos 23

Renato Lessa e Renato Janine Ribeiro parecem insistir cada vez mais, cada um em seu estilo e filosofia, na atenção a essa gramática política e social pós-ditatorial. Cf. LESSA, Renato. (2006), Presidencialismo de animação, e, Outros ensaios sobre a política brasileira (1993-2006). RIBEIRO, Renato Janine. (2000), “A sociedade contra o social ou A sociedade privatizada” in A sociedade contra o social: o alto custo da vida pública no Brasil. 24 AVELAR, Idelber. (2003), Alegorias da derrota.

38 partidos, nos empresários e sindicatos, tais demandas não têm como serem satisfeitas, enquanto a mobilização por elas não cessa de crescer. Daí que, quanto mais se amplia o processo de democratização, mais se esvazia a crença nas instituições da democracia política, a essa altura já considerada por vastos setores da opinião pública como inoperantes para a resolução de questões substantivas. (...) Boas causas gerais, nessa situação, na medida em que revelam dissídios até então ocultos, destravam conflitos e interesses impedidos de manifestação, denunciam como precários os fundamentos da obra que se presumia ‘mais duradoura que o bronze’, como a Federação e a unidade territorial, podem traduzir em resultados perversos. Não apenas pela conflagração da pauta política imediata, mas, sobretudo, pela carência de um ator que a hierarquize e tente dar soluções a seus problemas típicos a partir de uma síntese construída desde baixo e por meio de recursos democráticos, que realize as diferentes matrizes ideais presentes em nossa formação e as expectativas atuais de modernização e de justiça, que se vêm acumulando no curso dessa longa transição em que 25 ainda se vive. (...) Não há síntese sem ator.”

Ora, esta ausência de um ator, esta síntese inter-ditada é a tradução da história em espectro que compõe o contexto presente da transição: a inexistência de um ator, ainda presente na fala de Werneck Vianna, pode ser a indefinição que reitera a falta de uma interpretação, de uma escrita que se coloque em horizonte aberto, a fim de interpretar as tradições herdadas no Brasil – porém sempre uma interpretação das interpretações, como sugere Montaigne. É com relação a isso que temos caracterizado o “pós” como um problema de tradição política no Brasil. Esse “pós” é o artigo póstumo da história que pode engajar o presente sob re-volta – resgate em desvio – contra um passado redutor. Nessa interpretação das interpretações ensaia-se, assim, o tempo da impossibilidade. De igual modo, o espectro pode ser, por excelência, aquele que rompe com o historicismo, que comunica o ausente e o presente em uma dimensão que já não é de pura experiência histórica, muito embora não poderia deixar de sê-la, por se originar dela, e todavia também não é transcendência, tendo em vista que a sua presença é fato histórico real que acontece e se manifesta no presente – fazendo história. No intervalo, o espectro se inscreve, por ser de alguma forma coisa inteiramente outra, na presença intermediária entre dois 25

VIANNA, Luiz Werneck. (2006), “Sobre a transição inconclusa” in Esquerda brasileira e tradição republicana: estudos de conjuntura sobre a Era FHC – Lula. pp.20-21.

39 mundos e ainda assim exterior e interditado de permanecer em um único desses mundos. Talvez seja o imediatamente outro, falando pela voz de um mesmo parente, presente. Um fantasma: “ser sem ser, presença sem presença, ele afirma o outro no seu mais invisível horizonte, uma relação sem relação”. Na própria presença inacessível, esse outro sem horizonte, porque anunciador de todos os horizontes, “faz relação na sua não-relação” e “contato na própria inacessibilidade de sua aproximação”26. Os fantasmas fazem moradas nessas escrituras suspensas, que não podem ser focadas meramente como meios de expressão, por meio de conceitos operatórios

de

explicação

e

demonstração

de

realidades

presentes,

rigidamente contextuais, intermediários fixos entre supostos dois (quantos?) mundos, pois eles revelam a própria dobra implicada nestes pretextos, o sujeito por excelência da perda, de um irredutível, disso que se manifesta no assombro. Um espectro: intempestivo, impossível, irredutível, todos termos intermináveis, que apresentam uma dispersão no presente, sem projeto, sem passagem, que não caminham em direção a nenhum futuro. “O Outro: não somente ele não cabe no meu horizonte, mas ele mesmo é sem horizonte”27. A derrota também merece ser tratada como experiência irredutível, irrecuperável, sem moralidade, única (quase) sem alteridade. Por ela só tocamos na ruína, alegoria, fragmento, margem de uma realidade que herdada literariamente só se deixa inscrever pelo irredutível. Alguma coisa deve ser guardada sobre este ponto, sobre isso – o fantasma – que a escritura não oculta, assim como não lhe é possível transcrever; perto disso que realiza a dobra de toda expectativa sob a força intempestiva da sua inscrição. Como máquina que faz alegoria do escrito, o espectro da escritura é a sua dobra e a sua perda. Jacques Derrida aposta que é a sua alternativa. Outra aposta. Também Walter Benjamin, ao estudar a cena teatral do drama barroco alemão, recupera o desperdício dos emblemas, a perda das referências e o apagamento dos sinais na volúpia enérgica dos sentidos na criação do autor e nos propõe algo. 26 27

BLANCHOT, Maurice. (2001), op.cit. p.130. passim Ibidem, p.123.

40

“A função da escrita por imagens, do Barroco, não é tanto o desvendamento como o desnudamento das coisas sensoriais. O emblemático não mostra a essência ‘atrás da imagem’. Ele traz a essência para a própria imagem, apresentando-a como escrita, como legenda explicativa, que nos livros emblemáticos é parte 28 integrante da imagem representada.”

Essas legendas se aplicam justamente nessa dobra que a escritura tece: a exaustão de sentidos implicados por uma inclusão de sentido. Legendar é assim inscrever, criar um duplo da imagem que solicita sentido a ela em sua marcada diferença, fazer ler lá no escrito uma dobra imaginária de repetição do sentido na diferança29. Por conta desse duplo na escritura, a inscrição oferece uma imagem para ler um outro sentido. E “só a inscrição – embora esteja longe de o fazer sempre – tem poder de poesia, isto é, de invocar a palavra arrancando-a do seu sono de signo.”30 Existe aqui uma sugestão para que se veja o passado em desvio de uma realidade presente pré-dada, de um possível histórico que se faça predador de um presente contextualizado. Isto porque o passado nos re-volta precisamente pela sua não-determinação como um tempo único e fechado, centralizado em apenas um sentido, mas antes, colocamos-nos a lê-lo pelo seu próprio desamparo de sentido, pelo que passado presente e futuro subscrevem como conceitos de experiência histórica e humana, na trama das escrituras – políticas e históricas. Por isso levantamos a suspeita sobre um contexto de reflexão de uma tradição política pós-ditadura. A realidade dessa reflexão não se deixa ver, inscrever, metrificar, qualificar, senão arbitrariamente, em uma certa desconstrução de sentido. Se o postulado da memória pode ser também o lastro de uma afirmação ética que se dá no presente, no fato, no acontecimento mesmo que se anuncia, devemos ter em mente que, por este fato, tanto a ética dos algozes, quanto a ética do martírio serão insuficientes por si mesmas para sustentar qualquer 28

BENJAMIN, Walter. (1984), Origem do drama barroco alemão. p.207. DERRIDA, Jacques. (2005), “Força e significação” in op.cit. 30 DERRIDA, Jacques. (2005), “Força e significação” in op.cit. p.26. 29

41 posição radicalmente crítica junto à história. Nem o suplício ou a culpa, nem a justificação ou a expiação são chaves justamente históricas para se ler a derrota sem recorrer a um historicismo restrito. Há que se ter em mente o perigo a que todos esses ressentimentos a respeito do erro, do pecado, da decadência podem levar para a política, jogando-a para o campo da teologização – com a proposta de buscar e encontrar Deus, sentido, ordem onde tudo isto está ausente. Penso que se creditarmos ao discurso da diferança, no desvio singular que toda leitura oferece, um certo papel, uma ética de leitura, de testemunho, de escritura, de experiência e história, dificilmente encontraríamos uma origem em polêmica – visto que estariam todas as origens em polêmica – Ou não estão? Aprofundando essa percepção, numa leitura de Freud, Derrida resgata a idéia de corte, separação provocada por um evento traumático, para repensar as cenas de linguagem na escritura. O traço produz o momento da remissão de contextos – o agora de uma remissão que somente faz morada quando traçada e que, ainda assim, ou por ser assim, a marcar algo que de si é, diferança, por já se adiantar à possibilidade de um sentido porvir. A leitura, o trânsito, a circulação e a experiência dessa escritura, em Derrida, sugere uma outra idéia de testemunho que não tem por parte apenas aquele que narra e escreve, mas também quem ouve e se inscreve junto a essa narração. Todos são emblemas, ler é legendar. A crise do testemunho, a partir desse olhar, não atinge somente aquele que escreve e narra, fala e se esforça por dar voz ao passado esfacelado, mas também, sob outro registro, quem acompanha, escuta, lê e reinscreve a história sob a condição do presente. Aquele que (testemunha) recolhe os cacos, os detritos, os fragmentos da história e, sob a dimensão de uma leitura, coloca-os todos em um lugar de memória (testemunhando). Nesse outro que escreve, que toma a cena da escritura – nem o mesmo que sofreu, nem o quase que se calou, mas um outro, sempre um outro que escreve, que entra em cena – as palavras da memória revezam umas com as outras, nunca encontrando uma solução comum, sempre desviando de uma escrita para outra, da fala original para a legenda, desvio que retoma uma outra tomada reflexiva sobre a história, que ousa esboçar uma história indecidível, crítica,

42 intempestiva. A diferança extravasa o presente, incidindo nele como impossibilidade. Ao arriscar pensar essa crise na escritura e na metáfora – crítica alegórica e de matéria da escrita – tenho em vista também o apelo da história e da memória nos testemunhos de imaginação da literatura pós-ditadura. O sentido dessa imaginação não estaria preso somente em um mundo que se colocou como o possível, de projeção viável. Intempestivo, o que se busca aqui diz respeito a algo que extenua ao máximo a viabilidade do inviável, que reserve ao impossível o que constrange o possível. Para tanto, o registro de inscrição dessa imaginação está no ato de perda do sentido ganhando-o, no emblema mesmo do real derivado através da escritura – através não como puro meio, mas sobretudo como imagem que perpassa por si mesma, no seu infinito reflexo de imagens, do foco infinito de um jogo de espelhos. Algo semelhante pode expressar esse pós que dobra a expressão ditadura em outras temporalidades. Um pós nunca findo, pois sempre atravessado, engajado em um presente que re-volta – resgata em desvio – o seu específico passado. Através dele se ensaia o tempo de uma outra possibilidade contextual para as democracias e suas ditaduras. Pensar uma tradição pelos seus rastros e pela omissão é considerar, sob algum sentido, aquele pensamento da conspiração e da promessa desabitando o signo do erro julgado no seu ter-sido errado. A partir de documentos de ficção, inscrições legendadas sobre o real, o que aparece na proposta dessa dissertação é, antes de tudo, uma leitura que enfoca ao mesmo tempo o testemunho e a herança prometida pela passagem histórica: a inscrição da morte e do espectro, do luto e da melancolia, da história e da sua ética em dois escritos literários, A fúria do corpo, de João Gilberto Noll e Em Liberdade, de Silviano Santiago. A seleção de ficções, como tema de imagem e imaginação, está vinculada ao que irá ser discutido no segundo capítulo dessa dissertação, a respeito da Literatura e da Ciência, especialmente da Ciência Política. Por ora adianto o seguinte ponto, como um convite e um encerramento a respeito da discussão

43 sobre literatura e experiência de perda: a literatura, como sugere Derrida, por lidar com a sua perda, teria para si o direito de dizer tudo a seu respeito. Esse dizer tudo, no entanto, investe menos na realidade histórica que suporta o seu discurso, mas sim na cacofonia própria que cede voz ao todo. Uma inversão de falas é feita nesse específico método discursivo sobre a literatura. O fragmento de voz fade-out é recebido não como parte de um contexto previamente dado, que precisa ser investigado e explicado com devoção à estrutura que o informou, porém enquanto ponto fulminante do todo no que ele tem de mais organizado e arranjado. O fragmento como experiência dissonante. Sua polifonia tem por ação desestabilizar as relações imediatas de um suposto discurso positivo, único, fechado, centrado em vias de construção, deixando emergir da não-fala, dos ruídos ou mesmo do ambiente poluído de sons, de surdez gritante, a fala errante, repetitiva em seus cacoetes, anônima, que explode no ouvido quando se faz a ouvir. Pensamos a escritura assim: o outro sentido da escrita que se perde ao (se) inscrever. Atravessando a escritura reside o duplo da afirmação e do erro.

44

Capítulo 2

Ficção e Teoria Política: ética acontecimento A fúria do corpo

“Uma das palavras chaves da minha ficção é o convite ao acontecimento. É a narrativa como acontecimento. Ela não apenas reflete alguma coisa do real. Mas ela própria consagra o instante da leitura, convida o leitor a revivenciar esse mistério da condição humana que não é apenas prazer, é também às vezes, por exemplo, tocar fundo num lado escuro, numa aberração... Neste sentido, minha ficção é bastante teatral, talvez litúrgica.” João Gilberto Noll

Uma pergunta, ou várias, todavia por agora, nessa linha, a sua vez, uma primeira pergunta pode ser colocada para falar a respeito de literatura e de democracia: de que forma, sob qual fundo, a literatura poderia cruzar o caminho da reflexão política? Por quais sentidos a experiência literária poderia ser uma mediação pertinente para pensar as formas da política? E para pensar, ainda, a disciplina da Ciência Política? São perguntas que colocam cara-a-cara um outro olhar – porque se trata sempre de encarar uma correspondência, uma leitura, um retorno, um movimento de volta, uma revolta – para a escritura da Ciência Política contemporânea. Ainda assim, poderia se tratar também, pela mesma pergunta, mas subvertendo-a por um outro sentido: apoiada em quais sentidos a Ciência Política (re)volta contra a literatura?

45

Sabemos que as perguntas são, acima de tudo, inter-rogações de diferentes, o esboço de gestuais entre a súplica e a dúvida. E por isso vou ao extremo e indago: por que suplicamos, com alguma reserva de dúvida, por algum sentido possível da experiência literária que possa vir a habitar o território da Ciência Política? Por que duvidamos sobre a possibilidade nunca irrelevante da Ciência Política expressar(-se) pela literatura? Aprofundo a questão: de a Ciência Política expressar-se enquanto literatura, e, enfim, literatura? Imprensar-se literatura? O que vem a distingui-las, ambas, porém não somente ambas, para que neste momento precisemos colocá-las, não sem alguma sombra de dúvida, em posição de suplício, de joelhos, em oração para se curvarem diante dos pés uma da outra? Que relação está incluída neste dobrar-se entre elas? Quais os seus sentidos? Partindo de um possível núcleo comum de reflexão – programático, e voltaremos a isso mais adiante –, poderíamos arriscar algumas respostas provisórias, correspondências, coisas postas aqui no papel quanto ao problema geral que anima a Ciência Política tal qual praticada predominantemente hoje. Mas antes, uma reserva: haveria um problema geral, uma intenção especial, da literatura com a Ciência Política? Por quais critérios, de fato, poder-se-ia fazer alguma distinção entre as duas, Ciência Política e literatura, marcadas geralmente por grafias diferentes, e mais do que isso, ressaltadas por uma inscrição maiúscula e uma outra minúscula? Seria o caso de inverter essas grafias, apagar essas marcas, e colocar a ciência política em minúscula e a Literatura em maiúscula? Seria justo reduzirmos ambas a alguma grafia minúscula ou maiúscula comum, de forma, enfim, que se neutralizassem as suas diferenças? Como fazer habitar de sentidos essas disparidades que não se conciliam tão somente por um gesto de compaixão generosa na incisão de grafias maiores ou menores que as comunicam? Reporto-me com essas perguntas para uma confissão: muito embora a crítica literária, a teoria política e a sociologia, a história e a filosofia, todas essas disciplinas do saber apareçam no meu texto aqui e ali sucessivamente, não reside em um único desses saberes o meu projeto de escrita. De alguma forma

46 este projeto sem morada fixa está perdido em um ponto além do que eu poderia me aproveitar dessas disciplinas. É essa confissão e são essas questões que me acompanharão neste capitulo e no seguinte, não na intenção exclusiva de serem respondidas, mas para ampliarem o espaço do possível no diálogo entre elas. Se ler é solicitar sentidos, cedê-los alguma hospitalidade em um programa, uma marca já dada para inscrição – a força animadora do sentido, da interpretação – então podemos pensar que o leitor, mais que qualquer escrita, está inapelavelmente intrincado com as desconstruções – posto, ainda, que ler é solicitar sentido do escrito, demandar da marca isso aí que se faz marcar, animá-la, desconstruí-la. Para isso, para isso o que acontece, o acontecimento, às desconstruções agitam e correspondem, porém sob vários leitores, circunscritos e infinitos leitores, o que nos leva a pensar, de igual ponto, que seria mais justo com isso e com leitores, enfim, com a desconstrução, falarmos de desconstruções – porque tratamos de estilos, estratégias, singularidades, pessoas que atuam sobre isso. Atuam nisso, quer saibam ou não31. Desse modo, pensar uma interpretação é perceber nela o que desconstrói, fazer isso acontecer, habitar isso com sentido, é demandar e oferecer uma posição imperativa do leitor – isso que lhe exige responsabilidade. Em algum sentido, a ética da desconstrução, se houvesse uma e não muitas, mas todas irredutíveis entre si, acontece aí, nessa responsabilidade não-antecipada do leitor sobre a escritura, na legenda, citação que somente se faz citação porque se deixa marcar pelas mãos do leitor na sua presença em repetição sobre a escritura. E não nos desvencilhemos, o leitor é quem cita, pois aí, onde tudo acontece, também aí será pedida, mais do que antes, a condição do leitor; uma condição incondicional, posto que não se dá a não ser pelo que acontece – e, por isso, “o sentido deve esperar ser dito ou escrito para se habitar a si próprio e tornar-se naquilo que a diferir de si é: o sentido”32. Assim é o leitor que sobre a marca de uma experiência literária, textual, ficcional, corresponde àquilo que 31

Para toda a discussão que envolva desconstrução e modos de habitar o texto, sou devedor dos textos de Jacques Derrida. 32 DERRIDA, Jacques. (2005), “Força e significação” in A escritura e a diferença. p.24.

47 dizia logo acima, responde por uma re-volta – responsável e subversiva – sobre o escrito. Reside aí, nessa convocação do leitor junto ao escrito, o prenúncio de alguma atuação política da leitura – o que torna essa associação entre literatura e política tão responsável quanto corriqueira. Responsável porque o pensar a experiência literária se torna muito sensível ao pensar o espaço do político. Não pretendo fazer aqui uma transposição convicta e grosseira junto ao que se poderia designar como fato literário, experiência literária, literatura e escritura, sobre o que especifica e programa o regulamento das instituições de saber e de poder. Há que se ter, aliás, um pouco mais de clareza e suspeição sobre raciocínios que advogam reflexões neste sentido. Os campos da literatura e da política se diferenciam em vários aspectos, e por se diferenciarem é que entre eles podem ser confabulados alguns diálogos, alguma conversa que se coloca infinita, ou quase mesmo inconversável (e quase desconversa sobre tudo). Por serem campos singulares é que a possibilidade do diálogo se faz presente. Portanto, não apresento como proposta de leitura entre esses dois campos a busca de lições sobre o que a literatura passa de político ou, o oposto, o que no político se faz passar de literatura. Há que se ter reservas e generosidades com essas diferenças, singularidades que se não atentadas produzem, nada menos, que um diálogo de iguais – uma conversa solitária. Ainda assim, essa conversa quase inconversável suspende um paradoxo em termos. Como convidar dois signos tão distintos para um conversa? Como fazer a literatura dialogar com a política e como fazer a política acercar-se da literatura? Para início, vamos aceitar, como uma espécie de convite mais do que uma premissa, a sugestão de Compagnon: “a literatura é uma inevitável petição de princípio”33. Uma petição de princípio, de fato, poderia soar um tanto pesado para quem se propõe e defenda a literatura como não-princípio, aberta, obra mesma do gênio em sua forma pura e quase rebelde. A literatura então como algo difícil de associar com aquilo que possa vir a comparecer enquanto um princípio para a literatura. Nessa perspectiva, a favor da literatura, ou

33

COMPAGNON, Antoine. (2001), O demônio da teoria: literatura e senso comum. p.46.

48 também para a política, estaria identificada a arte como forma pura. Dando linha ao argumento, uma petição de princípio poderia passar a idéia de que haveria apenas um único sentido para o fazer literário; donde surge a recusa daquela afirmação que supõe a literatura sem-princípio, notoriamente denominada artística – com a recusa de qualquer principio. Essa mesma afirmação de Compagnon poderia nos levar a pensar o fazer literatura como desígnio de um princípio, a refletir um princípio histórico latente que confirmasse e questionasse, na literatura, um mundo exterior ao literário, para onde deveriam ser dirigidas as nossas reflexões. Quero dizer, afirmar que a literatura é uma inevitável petição de princípio, poderia jogar para a literatura questões externas ao “fato literário”. Por ora, fiquemos com esses dois sentidos que habitam lados diametralmente opostos dessa mesma sugestão de Compagnon, agora como antes já colocada no plano da citação e da interpretação sobre a literatura. Reservemos-nos também para que outros sentidos possam ser tentados em torno dessa sugestão, acirrando o conflito das interpretações. Com essa expectativa, voltemos à citação, interrogando-a sobre os seus sentidos. “A literatura é uma inevitável petição de princípio”. O que seria um inevitável para a literatura? A que corresponde o literário diante do inevitável? Sob quais sentidos a literatura poderia colocar-se para si mesma uma inevitável petição de princípios? Seria a crítica literária quem atribuiria esse princípio para a literatura? O que faria de uma crítica literária diferente de uma obra literária? Sob qual registro atua uma crítica em se tratando de uma experiência literária? Essa crítica literária poderia ser, ela também, identidade de uma obra de literatura? Seria a crítica, literária? Estas questões, obviamente, demandam uma resposta e uma conjuntura. Afinal de contas, “uma inevitável petição de princípio”, por si mesma, já postula um princípio inevitável. Qual o sentido dessa citação de Compagnon? Provisoriamente, assumo que se trata de uma contradição em termos. Um aparente paradoxo. Uma petição de princípio, de fato, é sempre um acontecimento, uma solicitação de sentido, ou como dizia antes, uma

49 desconstrução sobre isso, que acontece, que se coloca antes de tudo junto ao inevitável. Uma petição de princípio de alguma forma nunca é um solicitar voluntarioso. Afinal de contas, quem roga o princípio? Pode-se supor que esta petição de princípio para a literatura se coloca como um requerimento para a literatura

precisamente

porque

sobre

ela

habita

uma

ausência

de

requerimentos. Quero dizer, não seria porque não tenha um requerimento que, para a literatura, torna-se inevitável uma petição de princípio? O inevitável não poderia ser a expressão de um irredutível – e nesse caso o que se solicita, isso, não está presente, ou pelo menos não está aí, na literatura, então a petição, o requerimento e a interrogação própria da sua não-presença? Afinal, só pedimos presença do que não está ainda presente. Algo indica que uma petição, se interrogada assim, em nada teria a ver com um elemento qualquer predeterminado para a literatura – anteriormente já dado para o fato literário, passado e presente nela – pois é por pedir uma petição que à literatura vem corresponder essa inter-rogação de princípio, a presença em ausência de qualquer princípio para o seu fazer. Algo aproxima esse aspecto da literatura de uma proposição ética para a política. O que pode ser difícil de assumir na ética em política é, aí mesmo, justamente aí, um aí sem lugar, estranho a qualquer lugar, porém aí, desde sempre seu lugar de origem, porém nunca antes determinado, que mesmo não se pode determinar, por ser aquilo que pode vir a ser precisamente um comportamento ético, e não uma moral, pois é isso que demanda da interrogação “sobre o que fazer com isso?” o sentido de uma ética e uma atuação política, e não uma moral. Aí mesmo, um aí sem lugar exposto, como dizia antes, por ser aí e não aqui, já marcado, já prenunciado, mas sim aí, aí onde se toca no porvir, então, onde tudo pode acontecer, porque o aqui desde sempre acontece, mas aí, aí onde se anuncia o acontecimento mesmo, que se coloca urgente uma decisão, uma interpretação, uma posição que em todo caso é uma posição ética a ser assumida – é aí que a ética pode ocorrer, porque indispensável, incontornável, posto que não há como escapar. Existem coisas que são requeridas daí, demandadas sobre isso e portanto dispensam – ou mesmo nem poderiam dispensar, porque não há nada para se dispensar, posto que isso já acontece, o sentido já é chamado, pois ele é o acontecimento

50 que desde então vem acontecendo e do qual não há como se escapar, porque não se anuncia, singularmente se manifesta. Enfim, sem que se possa desviar, mesmo querendo desviar-se, aí, como as desconstruções, queiramos ou não, não prefigura qualquer relativismo ético ou restrição moral. Junto a esta desconstrução reside uma ética. Não habita no aí um relativismo temporal, cultural, social, histórico, antropológico, etnográfico, comprobatório, posto que ele não é regra, nada se encaixa aí, nele não se manifestam os termos de uma comparação, porque o aí-leitor não se opõe ao aqui-escrito, que já corre para se comparar. Aí de onde se lê é diferente, em todo caso, daqui que já está escrito, que já faz algum sentido, pois aí apresenta-se como uma desconstrução feita, feita aqui, impressa porém ainda assim aberta, não aqui, mas aí, no espaço do porvirleitor onde tudo acontece. Não se demanda da ética uma anterioridade ao requerimento ético – um ainda, ou um já, que expressam um quase e um desde sempre posterior a qualquer fato, anterior mesmo ao acontecimento. Nesse aí, vazio e ao mesmo tempo perto de qualquer processo, discurso e história, pode vir a habitar, de fato, uma ética, um sentido, um leitor. As desconstruções, assim, não são apenas acontecimentos de um texto, um programa, um discurso, mas parecem ser, talvez, ou acima de tudo, o que está aí, o que acontece aí, ela mesma prova de acontecimento, da presença do leitor. Voltemos então à citação de Compagnon com uma outra interpretação – “a literatura é uma inevitável petição de princípio” – a fim de deslocarmos o possível paradoxo dessa petição. Essa inevitável petição de princípio pode expressar, antes de tudo, uma efetiva não-presença de princípio – o que em todo caso não deixa de estar relacionado com esse pedido insistente de sentido, porém que o solicita em um outro lugar que não na literatura, ainda que seja pela escritura – a interrogação, a petição inevitável e irredutível que se manifesta ao se ver habitada de sentido, ao se ver habitada por um leitor. A petição inevitável de princípio pode existir na literatura, assim como na política, porque falta a ambas um sentido único que reserve apenas um sentido, apenas uma ação para elas. Por diferir de si o que é, por não centrar apenas em um

51 sentido sobre o que é, é que a literatura e a política podem se antecipar a qualquer conteúdo moral e requerer o sentido singular de quem lê ou de quem age junto ao acontecimento escrito e junto ao acontecimento político. Só há petição de princípio onde ele se faz necessário, porém ausente, impróprio. Enquanto espectro. A “petição de princípio”, por isso, pode ser tanto incerta quanto inevitável. (Poderia alguém levantar a suspeita, todavia válida, porém acidentada, sendo também ela alvo de suspeita: de que modo a petição inevitável de um princípio para a literatura poderia corresponder, de tal forma, aos seus princípios? Ou seja, a que importaria para a literatura uma petição inevitável de princípio? Antecipadamente, o leitor que levanta e formula essa suspeita teria já, diante de si, instalado o sentido de um não-princípio literário, que absurdamente satura, por completo, responsável por sua não-responsabilidade, algum princípio literário, algum esboço real de um sentido literário que possa daí acontecer. Em algum sentido, o que provoca o susto nessa interrogação, pertinente ao seu modo, porém infecunda por ela mesma, não é tanto o abismo ou o precipício de um começo literário, condição, aliás, geralmente comum e presente para a invocação de todo e qualquer sentido que se possa expressar literariamente; antes, o assombro parte de uma vacuidade de sentido, de um nada absoluto que se assombra por detrás de tal formulação, que anula e mata quem quer que leia. Algo que beira ou o conformismo – seria ele possível? não seria ele um outro sentido inscrito sobre o escrito também? – ou ainda a não possibilidade do outro, do outro sentido que vem sempre daí, da reserva de um porvir, do leitor. Neste caso, quem suspeita nada fala, nem nunca nada virá a falar, dificilmente irá escrever, pergunto mesmo se a suspeita é viva, porque o que pretende suspeitar – a inevitabilidade de uma petição de princípio – sugere anular qualquer possibilidade de sentido, qualquer possibilidade mesma da existência de um sentido devir. Ou seja, se irresponsabiliza diante de sua própria não-responsabilidade, pairando então junto ao nada que se diz pretensamente absoluto. Um nada vazio por nada, mas que já se arroga dizer alguma coisa. Seria isto possível?)

52 Este acontecimento ético, do presente que se enuncia em relação a um porvir, nos arremessa direto para a experiência literária de João Gilberto Noll. Primeiro romance do autor, publicado em 1981, A fúria do corpo manifesta um sentido literário que pode ser também um sentido para a história, para os fatos que acontecem, para o político, por recusar na sua narrativa qualquer precedência entre quem narra, atua e assina, diferindo essas vozes apenas no próprio devir dos acontecimentos. Na sua experiência literária acontece uma espécie muito sensível de deus – porque há deuses de várias espécies. Um deus que não se guarda como o criador prévio e impositivo do mundo, mas que nega a si mesmo – sempre contra-ditório – qualquer título de divindade. Um deus que nasce da própria negação. “O meu nome não. Vivo nas ruas de um tempo onde dar o nome é fornecer suspeita. A quem? Não me queira ingênuo: nome de ninguém não me chame como quiser, fui consagrado a João Evangelista, não que o meu nome seja João, absolutamente, não sei de quando nasci, nada, mas se quiser o meu nome busque na lembrança o que de mais instável lhe ocorrer. O meu nome de hoje poderá não me reconhecer amanhã. Não soldo portanto à minha cara um nome preciso. João Evangelista diz que as naves do Fim transportarão não identidades mas o 34 único corpo impregnado do Um.”

Noll suspende, na escritura, a palavra possível dada ao autor, enquanto narrador de alguma história, para fazer chocar, diante dessa suspensão, a própria origem de qualquer fato narrado, ela mesma uma origem que nunca se deixa afirmar senão em ausência, que se manifesta e acontece como origem pela sua reação a algum fato que venha lhe determinar – seja ele literário, histórico, político, social, cultural, humano, animal, mitológico, ritual. Na origem subtraída do seu passado está a negação do autor-narrador como deus, origem perdida de qualquer ato criativo sobre a história. Começo rasurado por sua faticidade, pela sua própria existência como origem, que antes de tudo não se coloca original, porque algo chama a suceder para que ela permaneça o que é, origem; porém, dado o acontecimento, nada mais surge de original, tudo se repete, cita-se, desdobra-se, faz-se marca, porque se deixa marcar: para isso ser origem algo já habita desde sempre na sua repetição, diferenciando-lhe e 34

NOLL, João Gilberto. (1997), “A fúria do corpo” in Romances e contos reunidos. p.25.

53 negando qualquer precedência como original, identificando-se como outra cópia que se difere de qualquer origem não copiada. Poderia uma essência original deixar-se copiar? Vários autores interpretam essa intervenção, na primeira frase do romance, como alguma remissão ao regime ditatorial, que teria instalado no país um estado tal de censura e paranóia que a ninguém estaria reservada a primazia do nome. Não se trata de uma interpretação incoerente. No entanto, acredito que nesse mesmo começo, início do romance, pode estar sob abrigo um outro sentido que indica a própria reencarnação do deus-narrador na história, isto é, ao se negar como origem de todas as coisas, nome que se repete, e suplantar a sua escrita pela afirmação da subtração, o narrador torna-se ele também figura de interpretação, dada a errar, perdida em um mundo de sentidos que lhe foram negados em sua originalidade. Perde sua origem precisamente nessa sua outra aparição já não-original da cópia, decaída. Contudo, este mesmo ser decaído está prenhe de criatividade, nele está a possibilidade de disseminar vários nomes, diferentes odores, sob cores e sons os mais diferentes possíveis. Ao deus de Noll foi dado o sexo e não há nenhuma confissão a se fazer. “Não me pergunte pois idade, estado civil, local de nascimento, filiação, pegadas do passado, nada, passado não, nome também: não. Sexo, o meu sexo sim: o meu sexo está livre de qualquer ofensa, e é com 35 ele-só-ele que abrirei caminho entre eu e tu, aqui.”

Tropos tanto impessoal quanto ainda possivelmente pessoal, o sexo é aquele que afirma, diz sim, não por uma insurreição abusada contra o não, mas porque com ele-só-ele está a possibilidade de qualquer criação, disseminação de sentido, de lugares, de identidades entre eu e tu, aqui e aí. Disseminação, como não poderia deixar de ser, dispersa e ab-usada – desde sempre marcada, predisposta naturalmente ao toque – que se manifesta de maneira tanto singular quanto caótica. Criação dada pelo acontecimento, ela mesma acontecimento, isso dado e negado, identidade sem nome, erótica, sem origem 35

NOLL, João Gilberto. (1997), Op.cit. p.25.

54 nenhuma a não ser o seu fato, acontecimento, inapelavelmente não dado, não criado, e por isso mesmo portador de todo acontecimento e criação. Poderíamos pensar com Noll que precisamente porque não há hesitação quanto ao sexo que o sexo faz acontecimento, já que fazer sexo implica no seu único acontecimento, na sua responsabilidade e na sua ética que está onde nada está determinado e onde tudo se faz como se por um caminho incerto que demanda alguma posição. Em outras palavras, é justamente porque não ocorre nenhuma lei anterior ao sexo, que identifique o sexo – o que do sexo é e o não é – que dele pode-se criar história, tirar algum sentido, porque por ele é que os sentidos aparecem. A ele não é dado nome, mas apenas o acontecimento que tenta nomeá-lo36. 36

“Inadvertidamente, o dedo de Werther toca o dedo de Carlota, seus pés, sob a mesa, se encontram. Werther poderia abstrair-se do sentido desses acasos; poderia se concentrar corporalmente nessas débeis zonas de contato e gozar daquela fração de dedo ou de pé inerte de uma maneira fetichista, sem se preocupar com a resposta (como Deus – é esta sua etimologia – o Fetiche não responde). Mas precisamente: Werther não é perverso, é amante: cria sentido, sempre, em toda parte, de um nada, e é o sentido que o faz estremecer: ele está no braseiro do sentido. Todo contato, para o amante, coloca a questão da resposta: pede-se à pele que responda. (Pressões de mãos – imenso repertório romanesco – gesto tênue no interior da palma, joelho que não se afasta, braço estendido, como se nada fosse, ao longo de um encosto de canapé e sobre o qual a cabeça do outro vem pouco a pouco repousar, tal é a região paradisíaca dos signos sutis e clandestinos: como uma festa, não dos sentidos, mas do sentido.)” Talvez nem fosse o caso de destacar o que reside de perverso neste fragmento de Barthes, senão me parecesse fundamental ressaltar o sentido oposto do que pode ser o per-verso para o amante. Um movimento através, alterado, saturado de significado, isso que passa por mil e uma interpretações. Como algo que acontece por alguma coisa, feito por um verso, e por isso mesmo posterior a este signo, adúltero de qualquer verso, por ser o perverso sempre o mesmo que (se) faz e (se) deixa fazer interpretações. Atinei para esta possibilidade do amante – como aquele que nada faz, no sentido da fabricação; o amante como quem é do encontro; amor como signo, não como algo pré-dado às conseqüências de qualquer fato que o nomeia e o expressa (algo indica que não é absurdo aproximar o conceito de fato derridiano daquele de signo em Barthes); o amante como isso que não está predeterminado a acontecer, acontece porque não é esperado a acontecer, que beira o fútil e o tedioso – na canção do grupo Legião Urbana, “Se fiquei esperando o meu amor passar”, última faixa do consagrado disco As Quatro Estações. Cf. BARTHES, Roland. (2003), Fragmentos de um discurso amoroso. pp.85-86. LEGIÃO URBANA. “Se fiquei esperando meu amor passar”. As Quatro Estações (EMI, 588236, faixa 11, 1989). “Se fiquei esperando meu amor passar Já me basta então que eu não sabia amar E me via perdido e vivendo em erro Sem querer me machucar de novo por culpa do amor Mas você e eu podemos namorar E era simples: ficamos fortes Quando se aprende a amar O mundo passa a ser seu

55 O ponto crítico a ser ressaltado quando me coloco a ler assim A fúria do corpo, de João Gilberto Noll, tem alguma relação com o que se poderia chamar de originalidade da arte – de uma ética artística. Isto pode ser traduzido também, em termos emblemáticos para a experiência literária, como encontrar a autenticidade do escrito, da memória herdada de uma história, ali onde ela se marca ausente. A vida – devir do corpo – é colocada diante da história como que para desafiá-la, fazê-la retornar para um lugar de origem que só pode fazer-se na afirmação sem nostalgia de alguma suposta origem. Porque nostalgia pressupõe passado: mas qual o passado de uma ética? Qual a saudade que preside um “tempo antigo” de lutas políticas? Busca-se incessantemente, por meio de repertórios críticos os mais variados – alguns deles mais ou menos reflexivos pela sua própria crítica – referendar o inscrito gráfico a uma escritura criptografada em algum real mais urgente que o escrito. O corpo, por outro lado, é aquilo que manifesta a ficção e o extravio de qualquer origem que se queira intencionalmente persistente em ato de memória, de escrita da tradição. A imagem que vai lá, que acontece na ficção, está ligada a este espaço do impossível, como sugere a imagem de um mendigo, que ao fim pode ser um bom lugar para se olhar a imagem do autor narrador personagem de Noll, que Quando se aprende a amar O mundo passa a ser seu Sei rimar romã com travesseiro Quero minha nação soberana Com espaço, nobreza e descanso Se fiquei esperando meu amor passar Já me basta que estava então longe de sereno E fiquei tanto tempo duvidando de mim Por fazer amor fazer sentido Começo a ficar livre Espero. Acho que sim De olhos fechados não me vejo E você sorriu pra mim ’Cordeiro de Deus que tirai os pecados do mundo. Tende piedade de nós. Cordeiro de Deus que tirai os pecados do mundo. Tende piedade de nós. Cordeiro de Deus que tirai os pecados do mundo. Dai-nos a paz.’”

56

“espichava uma palavra até não poder mais pra que ela não morresse em vida [...] até que a palavra não agüentava mais e apagava mas vinha outra sabe? vinha outra palavra sim, e essa era mais forte, resistia mais, eu dizia, vamos dizer, cruz cravo credo e ia segurando a palavra assim por um tempo maior do que eu tinha e todas as agruras eram suplantadas pelo ar que eu respirava através das palavras se espichando, se espichando até que sobrasse o esquecimento de tudo o que não fosse: subordinação absoluta ao nada, sem pensar que exerço a profissão de me-dá-me-dá, nada, só nada. Sou um desterrado pois não? Sou um asceta exposto ao riso alheio, isso sim quem sou. Mas permaneço, eis a minha verdade, permaneço enquanto os homens aí pensam que a razão está com eles. Não me importo não, o banquete é só meu, quem quiser entrar que entre e dissolva nisso que não é de ninguém, 37 só isso: porra nenhuma.”

A palavra, o discurso, o testemunho, a experiência do narrar e viver é o que se desconstrói nesta fala mendiga, ambulante, arejada, ociosa de coisa nenhuma. O autor narrador personagem oferece ao leitor o escrito para adentrar nesse mundo alternativo, diferente, desviante daquele sedimentado e de objetos sólidos. A experiência da palavra, origem de qualquer sentido, exprime-se rarefeita na boca bêbada do mendigo, à semelhança de um escrito poroso38. Essa experiência apresenta-se mais vertiginosa ainda, pois um pouco mais a frente o narrador trava contato com uma outra realidade, de que falava sozinho, “que não há nenhum mendigo na minha frente nem dos lados nem atrás, era eu que falava a imagem fantasma, ah se eu não pudesse mais exprimir o que quer que seja, puro silêncio cercado de deserto por todos os lados, talvez só aí recuperasse alguma coisa mais digna mas não, aprendi a falar ainda no útero e me parece 39 agora todo silêncio inatingível” .

Esta mensagem cifrada desde a origem, a qual a crítica literária geralmente empenha esforço – forçando o “real” do literário – por decifrar, mesmo que tenha sua relevância – e na minha opinião ela é realmente importante – de outro modo pode correr o sério risco de enfraquecer-se senão atentar para a solicitação de sentido que é a própria chave de interpretação de um signo.

37

NOLL, João Gilberto. (1997), Op.cit. p.33. Cf. SANTIAGO, Silviano. (2002), “O Evangelho segundo João” in Nas malhas da letra. 39 NOLL, João Gilberto. (1997), Op.cit. p.33. 38

57 Nela, assim penso, deve gritar o silêncio, e a escritura é assim tomada em seu momento mais vago, ocioso, errante. A fúria do corpo expressa essa crise dos valores materialistas: o desperdício e a materialidade juntos em uma mesma experiência. Essa própria experiência é por si traumática, visto que ela fura, no plano real da experiência, quadros teóricos sustentados em outra ocasião. Por isso a crise do materialismo não é estranha à arte materialista da história – a arte pop de Andy Warhol não é absolutamente cínica – porém se dá no interior dessa mesma arte, na inflexão que ela origina entre o materialismo e o seu outro, seus devires, seu fantasma. A arte sensorial, miserável, dispendiosa em sua experiência, acontecimento frívolo na sua aparência, não nega o materialismo em sua realidade, mas antes vem para ressaltá-lo em convulsão contra o seu oposto, o dispêndio. Pensando com o campo da literatura, isso parece dizer que mesmo que uma experiência literária tenha como compromisso firmar um mundo contínuo entre a fala e a letra, em todo caso, no interregno desse discurso, na pausa da sua enunciação, na sua ante-sala, coxia do seu espetáculo, o espaço de diferença está em seu propósito cada vez mais em expansão, em evidência para o público, demandando daí, do público, e não da literatura, um sentido de leitura. Por isso uma inevitável petição de princípios é o que qualifica a literatura, porque somente junto à margem de um devir – a literatura possibilita essas margens – sobrevém alguma petição. Podemos pensar que é este propósito literário que demanda o absolutamente despropositado, o improvável e o impossível que compromete o leitor para que ele compareça e faça a sua leitura sobre o escrito. Nesta experiência literária, a perda é colocada para desescrever, pois se fia no devir de um prometido, de um fantasma, daquilo que se joga como fracasso no mundo. No entanto, aprofundemos o paradoxo, pois pedir esta promessa pode ser também se descomprometer de qualquer promessa. A promessa, na política, não está referida apenas a um programa. Muito antes, pois por outra mão, ou às vezes sendo mesmo necessário desviá-la a tal ponto de uma rota viável para guiá-la e deixá-la realizar-se na contramão do que está exposto, habitá-la de sentido além do dito, do apresentado, do marcado e do pré-definido

58 habitualmente, irrompendo na promessa impossível de cumprir, para sempre promessa. Caminho que, em todo caso, pode se mostrar perigoso ou, no mínimo arriscado, mas que no seu despontar tem apenas a urgência da promessa, da fundação de um outro lugar no discurso. Promessa então que se faz por uma falta presente, por um espectro que visita nossa imaginação. Uma alegoria que todavia legenda o político – inventando-lhe outros significados. O texto literário propõe uma imagem de pensamento que nenhuma ciência política poderia propor – pelo menos não a Ciência Política consagrada no segundo pós-guerra assim não propôs, e ainda não se predispõe com generosidade a propor. Ao invés de discutir esta teoria política consagrada, colocando-a sob o ponto crítico de uma reflexão meta-teórica que se especialize nem um além dela mesma, ressaltando seus avanços e recuos por meio de uma análise empírica dos seus sucessos e retrocessos históricos, interessa-me neste momento convocá-la no papel para despertar a sua fala diante do texto literário. Posso dizer que é para essa teoria política – de toda forma podemos falar também de uma tradição política ligada a essa teoria política, mas não, antes de tudo me vem a mente essa Ciência Política – para essa Ciência Política dedico este feixe de encontros arriscados e todavia sedutores entre a experiência literária e a imaginação política. Por ela existe esta intenção e interpretação que se dedica a travar um contato e destravar um conflito que é feito ao se romper as barreiras (e os berreiros) do cativado diálogo interdisciplinar. A narrativa de João Gilberto Noll caminha para esta reserva sobre o possível que a imaginação pode oferecer. O passado pode ser uma imagem reconfortante – e neste caso posso falar que o reconforto caminha em direção oposta à conjuração, pois dele nada se tem a não ser o que já se colocava, ainda que perdido, mas imediato ao antes. Nele – no conforto do passado – procede-se por uma moral, um costume ou um hábito, mas não por uma ética, por suposto que o ser ético age onde não havia ação prevista, seja justamente o não ser nada e fazer sentido. De igual ponto, a conjuração, ou melhor dizendo, as conjurações podem ser expressões desse real não-imediato, isto é, desse outro sentido que não se mostra puramente limpo para o leitor. Conjurar

59 os espectros seria, em algum sentido, na escritura de um contexto, lastimar pelo que é porém de uma maneira insurgente e, em algum sentido extremo, desafiador de um comprometido. Nas conjurações são interpelados o passado e o presente, não pelo encaixe e sucessão de um sobre o outro, mas precisamente pelo que escapa entre esses tempos, pelo que ressuscita o sentido na linguagem mesma que o exorciza. O conjuro pode ser a aposta de uma outra imagem, enquanto uma chance e uma ameaça, além da possibilidade de um devir presente já comprometido. Se pensarmos sobre este conjuro furioso que é manifestado pelo corpo no livro de Noll, lançamos mão de um outro sentido sobre o acontecimento na história e uma outra visão de ética. O devir ético, aquilo que vem requisitar um comportamento ético, guarda, de fato, alguma semelhança com esse descontrolado devir-acontecimento do desejo, erótico e em alguma medida político. O limite do corpo, em A fúria do corpo, seria manifesto menos por um prazer controlado, desejado, mas por uma in-citação excessiva, desmedida, desejante, furiosa sobre as vicissitudes de um cotidiano precário e tedioso. O romance de Noll muito rasteiramente poderia ser taxado de pornográfico pois, como a diferir ética de moralismo, não há precedência do desejo, procedência do desejante, o desejo é presente, presença em si, em força, figuração intempestiva, vida que não se afirma subsumida ao limite da morte, mas avista este limite sem restrição, barrando-se mesmo a presença desse limite na expectativa da sua dilatação. Existe um corpo que se joga entre essas duas fronteiras num incessante alargamento do real, do possível e do próprio corpo, uma vez que acontece uma sucessão vertiginosa que atravessa todos esses estados sobre a sua escritura. O corpo não é só linguagem, não é só voz, não é só letra, tatuagem, portador material do anúncio da escritura, cujo gesto, cujas nuanças e inscrições colocam-se desdobradas sem origem, apoiadas em um espaço fragilmente narrado, do sexo sem nome. O corpo e o seu acontecimento é o próprio limite da vida, entendendo por isso que através dele a vida se estende e se prolonga, desperta ou encerra-se. Nele faz-se sentido. “... li a eterna inscrição obscena [no muro], abri a braguilha, comecei a mijar sobre a inscrição carecendo de estar mijando num enorme terreno baldio esquecido de todos os habitantes da Cidade, eternamente vazio,

60 mijava não ali mas no enorme terreno baldio quando vi na pálida luz da lua que a cabeça do meu pau tinha inchado e avermelhado a ponto de arrebentar, e olhando a cabeça do pau inchada e avermelhada tive a dura verdade do meu destino de agora em diante: era foder com a carne do mundo, doente, podre, fedorenta, mas extrair dela o único prazer verossímil, foder, esporrear, chupar o cu, o grelo, sorver a excreção quente da boceta, era essa a única verdade brutal possível naquela 40 dor toda.”

O desejo, enquanto acontecimento, não seria uma intenção, não pode ser intenção, algo útil e bem dirigido – coisa bem intencionada. Assim como a ética, ele é anterior a qualquer intenção, inconseqüente pois com o seu devir desejante. De fato, numa leitura junto ao Anti-Édipo de Deleuze e Guattari, o desejo tem na intenção a sua última conseqüência, quase o seu esfalecimento e captura, seu dobrar-se diante de uma realidade que pode ser apresentada como para matá-lo, recalcá-lo, nomeá-lo, transformá-lo em simples ato de intenção e satisfação. “É um produto factício do recalcamento. Este não pode agir sem deslocar o desejo, sem fazer levantar um desejo de conseqüência, prontinho para o castigo, quentinho para o castigo, e pô-lo em lugar do desejo antecedente sobre o qual ele incide em princípio ou na realidade”, repressão que nomeia, “ah, então era isso!”41. O desejo enquanto intempestivo de toda impossibilidade, irredutível a uma realidade, a um nome, a um corpo, e ainda assim porém um desafio – e neste desafio, cria-se um duplo – sobre o nome, o real e o possível. Distende todas essas oposições sem poder anulá-las. O nome, dado sempre social, origem que nasce sob perspectiva de um outro que a diferencia, é fundamental e atua identificando máquinas desejantes cintilantes, vibrantes, furiosas, para que possam ser capturadas pela relação dos jogos humanos. “Não que o desejo seja a-social, ao contrário. Mas é agitador: não há máquina desejante que possa ser colocada sem explodir setores sociais inteiros”, assim como o desejo explode no corpo, na máquina boca, na máquina genital. “Apesar do que pensam certos revolucionários, o desejo é em sua essência revolucionário – o desejo, não a festa! – e nenhuma sociedade pode suportar uma posição de desejo verdadeiro sem que suas estruturas 40 41

NOLL, João Gilberto. (1997), op.cit. pp. 76-77. DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Felix. (1976), O Anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia. p.150.

61 de exploração, de sujeição e de hierarquia sejam comprometidas. Se uma sociedade se confunde com essas estruturas (hipótese divertida), então, sim, o desejo a ameaça essencialmente. Portanto, é de importância vital para uma sociedade reprimir o desejo e, até mesmo, achar algo melhor do que a repressão, para que a repressão, a hierarquia, a exploração, a sujeição sejam desejados. [...] o desejo não ameaça uma sociedade porque é desejo de deitar com a mãe, mas porque é revolucionário. E isso quer dizer, não que o desejo é outra coisa diferente da sexualidade, mas que a sexualidade e o amor não vivem no quarto de dormir de Édipo, eles sonham mais com uma grande amplidão, e fazem passar estranhos fluxos que não se deixam estocar em uma ordem estabelecida. O desejo não ‘quer’ a revolução, ele é revolucionário por si mesmo e como 42 que involuntariamente, querendo o que quer.”

Desejo e ética, intempestivo e espectro retornam novamente para uma mesma idéia. Habita nela alguma juventude histórica. Seguindo de perto uma das reflexões de Nietzsche sobre o intempestivo na história, esta força jovem não é aspecto puramente cronológico, mas também de atitude e de uma outra condição. A força da juventude não se prende em um passado de morte, muito embora ele ainda exista como espectro histórico, mas se volta subrepticiamente, sem grande alarde, mas também com repercussões locais, quase corporais, para o presente, numa tentativa de arrombamento com a história. A ética do acontecimento – pois somente nele pode-se ter algum tipo de vínculo ético – exclui por completo a determinação moral – e não ética – de um contexto, atuando então sobre este contexto e transformando o que poderia ser apenas uma citação histórica em presente vivo. Nietzsche aposta que esta vida expressa uma juventude, uma alegria primaveril. Para essa condição jovem, a fundação de uma memória de luta permanece extraviada não em favor de uma ideologia da conservação, da restauração, mas para a eclosão do conflito, para o contexto ainda sem o tempo. Ou melhor, ela é colocada como promessa: aposta de um presente com um outro presente. Por isto, uma pergunta: qual o tempo que marcaria uma promessa? Pergunta que nos leva a pensar que a promessa de uma fundação altera a disposição do tempo histórico, passado presente futuro, em outras variações. Cria-se um outro sentido para os tempos, pois neles afiança à realidade o 42

Ibidem, pp.151-152.

62 improvável. O intempestivo seria aquele que foge do tempo, por aquilo que excede o presente, sondando uma condenação todavia recusada pelo fio (um outro fio, fulminado de sentidos) de fidelidade ao passado. Exceder-se é o testemunho que se joga no intempestivo. Algo indica que essa crise da reflexão histórica pode nos levar a ler o testemunho da esquerda guerrilheira, atraída pelo conflito aberto pela ditadura para lutar por uma causa de oposição ao capitalismo e numa reação à vida cultural burguesa, com uma crítica diferente daquela do historicismo de Gabeira. O erro ganha o estatuto de história, deixando de ser, como o corpo, apenas resultado, produto: o erro está no acontecimento histórico nunca vista. Isto, em algum sentido, porque o pensamento de esquerda de toda ditadura e do seu pós, por não encontrar mais diante de si um inimigo comum que atrelasse as várias oposições de regime em um mesmo lado comum de batalha, sofre com o queda da sua imaginação erótica, histórica, política e então se impõe condenada ao historicismo. Ou dito em outras palavras: a perda da luta ditatorial parece ter implicado em perda de história pós-ditatorial. A ação de luta e oposição cede seu espaço para a realização de consensos e comemorações. Nas palavras de Silviano Santiago, “A passagem do luto para a democratização, alicerçada pela desmemoria dos radicais da atualidade, foi dada por passadas largas que uns, e muitos julgam até, precipitadas e prematuras. Para eles, a anistia no Brasil, concedida a todos e qualquer um por decreto-lei, não deixou que o país acertasse contas com o seu passado recente e negro. Desde então, sem planos para o futuro, estamos mancando da perna esquerda, porque o passado ainda não foi devidamente exorcizado. Nesse sentido e dentro do pessimismo inerente à velha geração marxista, a aposta na democratização, feita pelos artistas e universitários entre os anos de 1979 e 1981, abriu o sinal verde para o surgimento nas esquerdas de uma ‘cultura adversária’. [...] É inegável que os resultados obtidos pelas passadas largas, precipitadas e prematuras, dadas principalmente pelos jovens, artistas e universitários, redundaram em questionamentos fundamentais da estrutura social, política e econômica brasileira. Ao encorajar o ex-guerrilheiro a se transformar de um dia para o outro num cidadão, os desmemoriados ajudavam a desmontar no cotidiano das ruas o regime de exceção, chegando a ser indispensáveis na articulação das pressões populares ‘pelas diretas já’. Ao redimensionarem o passado recente, também redirecionam o gesto punitivo para a formação cultural

63 do Brasil, estabelecendo estratégias de busca e afirmação de identidade para a maioria da população, que vinha sendo marginalizada desde a Colônia. Ao questionarem o intelectual pelo viés da sua formação pelas esquerdas dos anos 1950, induziram-no à autocrítica e tornaram possível a transição da postura carismática e heróica dos salvadores da pátria para o trabalho silencioso e dedicado de mediador junto às classes populares. Ao atacarem a televisão e a música popular, com suas regras discutíveis e eficientes de popularização dos ideais democráticos, conseguiram motivar os desmemoriados estudantes, também desmemoriados, a irem para as ruas e lutar a favor do 43 impeachment do presidente Collor.”

Levando adiante as palavras de Silviano Santiago de 1998 para hoje, pareceme ainda – um ainda que não nega mas que se repete – que para ser efetivamente crítica, a história, ou em sentido mais amplo, o trabalho intelectual dedicado à história poderia ser proposto de maneira a pensá-la menos pelos termos de um suposto passado, que retroativamente se apresenta no presente, porém torcer, nesse passado, uma crítica que envolva sob algum sentido a formação cultural de um presente que se joga como futuro. Uso com reserva o termo futuro, pois quando o pronuncio, neste momento, não estou falando nada além do que uma temporalidade formalizada no presente. Por isso, talvez, fosse o caso de se pensar em um porvir inadequado ao presente, portanto impontual com o futuro, no qual os signos da política e da democracia pudessem se arranjar e acontecer sem uma imediata causalidade referida a um passado morto e estacionário. Atuar junto a uma crítica sobre esse passado que está morto faz surgir imagens de um tempo de promessas e de profecias, anúncios interditados que, não obstante, nunca poderiam mesmo ser antecipados ou condenados como errados. Estes anúncios não se antecipam ao presente justamente porque eles imaginam a matéria do presente, acontecimentos dele; podemos pensar mesmo que esses anúncios, feito singulares agoras, arredios aos ainda, são o que acontece contemporaneamente, como aquilo que é no que está presente44. 43

SANTIAGO, Silviano. (2004), “A democratização no Brasil (1979-1981). Cultura versus Arte” in O cosmopolitismo do pobre: crítica literária e crítica cultural. pp.148-149. 44 BENJAMIN, Walter. (1994), “Sobre o conceito da história” in Obras escolhidas I – Magia e técnica, arte e política. p.232.

64

Como Silviano Santiago apontou, também o trabalho de relato autobiográfico a respeito da herança de luta das esquerdas comparece, em um momento de abertura, problematizado tanto do ponto de vista regressivo da experiência recente dos “anos de chumbo”, quanto do reverso intempestivo da reflexão de um esquerda pós-ditatorial. Pode ser problematizado também sob a ótica de um outro momento, no qual manchetes superfaturadas com alguma expectativa de espetáculo sobre a corrupção e mentiras políticas de Governo não fluam na contramarcha desses tempos de celebração democrática – uma euforia nunca gratuita – como experimentado no Brasil nas duas últimas décadas. Passado pouco mais de quatro décadas, podemos então constatar ainda que o legado que a ditadura militar deixou no Brasil após o golpe de 1964 é assunto controverso e persiste como emenda de um debate pouco atentado. Para mim, permanece prometida, como suspeita, uma alegação: restos de história são abusivamente dispensados quando se trata o presente sob a cifra de uma transição, e o trabalho impuro de catá-los no presente, sob a condição de arruinados, ainda repugna e provoca náuseas à nossa contemporaneidade. Eis aí, o trabalho de nossa época.

65

Capítulo 3

Texto de um outro contexto Em liberdade

“O historicismo se contenta em estabelecer um nexo causal entre vários momentos da história. Mas nenhum fato, meramente por ser causa, é só por isso fato histórico. Ele se transforma em fato histórico postumamente, graças a acontecimentos que podem estar dele separados por milênios. O historiador consciente disso renuncia a desfiar entre os dedos os acontecimentos, como as contas de um rosário. Ele capta a configuração em que sua própria época entrou em contato com uma época anterior, perfeitamente determinada. Com isso, ele funda um conceito do presente como um ‘agora’ no qual se infiltraram estilhaços do messiânico”. Walter Benjamin

O intelectual – não apenas o universitário, mas também o trabalho intelectual que é dedicado às artes, letras, ciências, filosofias, que tomam a vida e a morte, o ser humano e a sua ecologia, como signos que inscrevem um pensamento, uma atitude, um acontecimento – enfim, esse acontecimento intelectual pode ser reconhecido, talvez, como a própria presença, algumas vezes anônima e descuidada, outras mais significativas e pessoais, de uma inadequação pessoal e profissional sobre um contexto presente. Algo sugere de fato que o intelectual seja uma personagem contemporânea ao seu próprio enredo, contextual em seu discurso. Contudo, em uma análise sobre o escritor e a sua assinatura – situação recorrente e marcante do intelectual em tempos de mercado – solicito algumas palavras de Jacques Derrida que problematizam essa aspiração intelectual que se deseja a si mesma contextual e única.

66 “Por definição, uma assinatura escrita implica a nãopresença atual ou empírica do signatário. Mas, dir-se-ia, marca também e retém seu ter-sido presente num agora passado, que permanecerá um agora futuro, logo, um agora em geral, na forma transcendental da permanência. Essa permanência geral está de algum modo inscrita, presa na pontualidade presente, sempre evidente e sempre singular, da forma da assinatura. Nisso consiste a originalidade enigmática de todas as rubricas. Para que a vinculação à fonte se produza, é preciso pois que seja guardada a singularidade absoluta de um acontecimento de assinatura de uma forma de assinatura: a reprodutibilidade pura de um evento puro. Existe alguma coisa assim? A singularidade absoluta de um evento de assinatura produz-se alguma vez? Há assinaturas? Sim, claro, todos os dias. Os efeitos da assinatura são a coisa mais corrente do mundo. Mas a condição de possibilidade desses efeitos é simultaneamente, ainda uma vez, a condição de sua impossibilidade, da impossibilidade de sua pureza rigorosa. Para funcionar, isto é, para ser legível, uma assinatura deve ter uma forma repetível, iterável, imitável; deve poder destacar-se da intenção presente e singular de sua produção. É a sua mesmidade que, alterando sua identidade e sua singularidade, constitui 45 seu selo.”

O acontecimento, o fazer acontecer constitui a principal marca e impressão que um intelectual pode deixar em registro e consignar-se como um pensador contextual e presente na sociedade. O intelectual, por considerar essa relação entre contextos e acontecimento – a uma filosofia do acontecimento que nada mais seria que uma filosofia da história em sentido extenso –, dedica-se e desdobra o seu discurso de engajamento junto a um tempo presente. Qualquer silêncio neste ponto é signo de suspeita. Mais do que um ponto ético, o que salta aos olhos primeiramente dessa identidade entre acontecimento e assinatura intelectual é a busca de sentidos – sentidos não poucas vezes investidos pelo signo de uma verdade essencial, única e autoral, descoberta disso que a assinatura de quem afirma e quer registrar. Contudo, instalar uma suspeita sobre essa busca é, ao mesmo tempo, dar atenção e investir em uma crítica sobre o comando intelectual. Dito em outras palavras: instalar uma desconstrução.

45

DERRIDA, Jacques. (1991), “Assinatura acontecimento contexto” in Limited Inc. pp.35-36.

67 Antes,

um

esclarecimento

sobre

esta

desconstrução.

O

tarefa

da

desconstrução não prescinde da busca de sentidos que armam um acontecimento eventual como fazendo história – reconhecer e narrar certas idéias e ocorrências em encadeamentos de sentido que recebem a menção honrosa de história. No entanto, esta é apenas uma parte incompleta do sentido ou da desconstrução, já que o trabalho dessa última com os sentidos encaixa-se deslocando a própria intenção do sentido, revirando o suplemento em torno da própria busca inscrita de sentidos, um além que desde sempre está colocado ali, por quem assina. Não há sentido sem a sua busca. Dessa maneira, as desconstruções se filiam à busca dos sentidos, nem tanto por uma fidelidade única de rota, uma obsessão meticulosa sobre formas e etapas de um método, porém mais propriamente na fiança e salvaguarda de algum, qualquer sentido, naquilo que está presente em ausência no próprio ato que inicia a busca, na origem do gesto perdido desdobrado sobre o texto. Suas dúvidas e suspeitas não são puramente de um ali sobre o já escrito. Pelo contrário, a assinatura do intelectual – persona que busca sentido e por isso lê desconstruindo o já escrito, não por uma evolução crítica que receba uma teleologia – e evolução – mas com atenção mesmo ao que é dado ler, ao que pode ser solicitado em uma profundidade ou não do escrito, já que surge daí, do seu lugar de leitura, qualquer sentido, quaisquer desconstruções.

Na

desconstrução a assinatura se situa nas escrituras – ao reafirmar-se sobre a sua própria contextualidade, o intelectual traduz a sua busca de sentido, inscreve-se na escritura. Em outras palavras, legenda a sua interpretação que nasce de outras interpretações. Por isso na leitura assim como no trabalho intelectual, aquilo que desconstrói é o que acontece, ou o que acontece são as desconstruções, tendo em vista que toda intenção original de um texto está, desde sempre, no interior do seu gesto, mantido em segredo em relação ao duplo do seu devir, demandando então algum sentido de interpretação que se faz ao mesmo tempo sobre e através dele. Uma relação que se estabelece entre o segredo intocado pela escrita e o que está velado na sua repetição; o nascimento do sentido ali onde se apresenta a morte na escritura, ou uma origem suspensa sobre esse mesmo

68 segredo. Neste aspecto, ler pode ser, talvez, uma relação de decriframento que nunca acaba, infinita enquanto história, pois não se posiciona em um único lugar, corrente exclusiva e necessária porque passa a história, porém reflexão de singularidades deixadas em um já lá perdido na escritura. Neste interesse por ler o que está morto faz-se história, repete-se a história entre contextos, desconstruindo-a nesta repetição. Requisitar algum sentido lá onde ele está inscrito de maneira apenas clandestina poderia ser o trabalho que inscreve as interpretações. A partir disso pode-se pensar que a desconstrução está focada precisamente no apanhado desses rastros, desses traços em linguagem perdida, criptografada, nos quais as palavras de sustentação do real e do ficcional, por exemplo, são incapazes de permanecer integralmente em um mesmo lugar. Essa força hieroglífica – de um manuscrito sagrado e perdido, da assinatura de um sentido porvir – de alguma forma está profundamente associada, em toda a sua ambigüidade, às escrituras, ao fato literário, assinado, impresso, marcado, que não mais significa em si, pois desde então partiu-se para um lá leitor. Ou a escritura que ocupa o posto de legenda, que se deslocou do seu gesto de origem e inundou-se em seu próprio silêncio, aguardando a reanimação do leitor. Estas palavras inscritas são solicitadas justamente para iluminar o mapa de leitura, podendo nesta solicitação deslocar qualquer sentido único que se queira indevassável. Assim, as desconstruções propõem alguma forma de leitura, com qualquer força sobre o sentido. Leituras e sentidos em todo caso que já não conseguem ser meramente exegéticos, fidedignos à origem de um lado de cá do escritor. A palavra inscrita não apresenta nenhuma segurança original, fidedigna ao próprio ato singular e único que a registrou, pois o seu único sentido, o primeiro sentido do escrito, está fixo e abandonado através do texto. Este abandono do signo, da marca, da grafia, é precisamente o que desvirtua todo projeto exaustivo de concentração de recursos interpretativos que pretenda assegurar uma escritura unicamente autoral. O seqüestro aí será sempre inevitável.

69 A partir disso, a escritura se desdobra – ela implicada na dobra – de um texto e de um contexto que no entanto não estão predeterminados somente pelo presente já perdido da sua intenção inicial de sentidos. Ela se localiza em um devir leitor. Quando não se têm mais cercas, quando a condição da literatura é uma inevitável petição de princípios, a palavra interdita na sua violência original qualquer impulso tanto de liberdade quanto de exaustão: ela própria é cerca e presa dessa sua armadilha de inscrição. Desautoriza e excita, em um jogo criminal e erótico, a interpretação. A perda da experiência da escrita, ou melhor, a impossibilidade de transmissão da experiência vivida por meio de uma inscrição repõe na cena da escritura a sua própria melancolia como fio narrativo. Contido, a melancolia que reaparece não é puramente temática, nem de estilo literário, mas condição sob a qual está gravada a marca sobre o branco. Esta escritura melancólica está mais a serviço da d-inscrição do luto que do sentimento de luto, pois ela não é tanto inscrição que provoca o luto, mas matéria pela qual a luto acontece. E a linguagem pela qual se exprime essa conexão entre o luto e a escritura tem a sua uma inevitável expressão lacônica, originalmente marcada pela falta46. Melancólica, noturna, porque vive sempre na ausência de um sentido, sob o fervor de uma dança macabra; improvável, impossível de redimir a luta que a funda, a escritura sofre e “de-scribe”47. “O improvável não é somente aquilo que, permanecendo no horizonte da probabilidade e de seus cálculos, seria definido por uma probabilidade relativamente baixa. O improvável não é muito pouco provável. Ele é infinitamente mais que o mais que provável: ‘quer dizer, aquilo que é’. No entanto, aquilo que é permanece o improvável. (...) Se entre a possibilidade e a impossibilidade há um ponto de encontro, o improvável 48 seria este ponto...”

A escritura tanto em sua voltagem ficcional como em seu calibre científico tem por capacidade se entreter não apenas do dito – embora este possa vir a aparecer como recurso, suplemento, evasão, infusão da palavra – mas se 46

BENJAMIN, Walter. (1984), A origem do drama barroco alemão. pp.142-143 BLANCHOT, Maurice. (1995), The writing of the disaster. p.7. 48 BLANCHOT, Maurice. (2001), A conversa infinita. pp.84-85 47

70 entreter também a partir de uma teoria da leitura e, como tal, pelo silêncio de quem lê e instala suspeita, busca sentidos49. Negando-se fechar em um enunciado isoladamente ficcional, assim como em uma realidade exterior concreta, a experiência literária não poderia se exprimir a não ser através do improvável que difere estes dois lugares do discurso que, aliás, definem a possibilidade da suspeita. Portanto, uma tentativa de explicação que buscasse compreender o dado científico, sociológico ou histórico – todas nomenclaturas metafísicas – teria o fracasso como resultado, tanto quanto aquela que ingenuamente buscasse a análise formal da escritura. Esta discussão é relevante já que de algum modo a questão de força – que remete a uma relação política – da escritura não está somente em uma análise sociológica da sua experiência. Tampouco também poderia estar apenas conservada em uma análise formal das “técnicas literárias”. Ao invés disso, apresento uma suspeita sobre a qual toda a pretensão de uma fiel exegese seja por demais redundante para que com ela possamos obter nada além que o nada que já vem se instalar. Por isso, ler envolve aquele desígnio intempestivo, cujo desenlace se dá inapelavelmente neste silêncio sem espera – e produto de toda espera – que separa as escrituras e define o epitáfio das palavras, do seu sentido, que faz falar sobre o que é. Solicitar a história sob o intempestivo coloca a própria idéia de experiência histórica, a representação dos eventos, a contextualização dos discursos, a narração de uma experiência e a sua autoria em questão. Posto que intempestiva seja precisamente esta experiência que não se faz por lembrada, mas por sofrida e re-voltada, cujo núcleo escapa a toda tentativa de inscrição, a memória também se encontra despojada de um referente histórico único, tendo como experiência incessante o seu esquecimento. Escrever envolve uma carga de ímpeto, de sofrimento e evasão, renúncia e responsabilidade que, como bem disse Blanchot, “chega a ser um atentado à felicidade”.

49

PIGLIA, Ricardo. (2005), op.cit. p.28.

71 Por essa via, o diário Em liberdade de Graciliano Ramos, ficção de Silviano Santiago, publicado em 1981, mostra-se atento, e em certo ponto previsto, quanto à possível decepção do leitor a respeito do cotidiano narrado. Aliás, é precisamente sobre essas decepções que a escrita íntima de Graciliano, personagem de Silviano, se volta. Na dobra entre expectativas leitoras de um passado perdido e um presente aparentemente comprometido, Santiago se volta sobre a perda, o inacabado diário de Graciliano Ramos, para lançar a sua escritura. Trata-se, antes de tudo, de uma peça de ficção que, no entanto, não se mostra ficcional, pois suplementa as Memórias do Cárcere. Mesmo o nome próprio autoral apresenta um duplo: quem escreve? qual seria o tempo da obra? Há uma ausência do porquê se escreve. “O único motivo – pelo menos o mais forte – que vejo no momento para poder deitar minhas frases no papel é que quero não sentir o meu corpo. Quero que todo o meu eu seja – agora e hoje – apenas um emaranhado pesado, denso e consistente de frases. Elas camuflam um corpo dolorido que não quer pensar nas dores sofridas que castigam os sentidos e a memória. Escrevo para não deixar que o meu corpo doente e massacrado exista, prossiga, influa, direcione, convença-me finalmente da sua importância e da sua riqueza para 50 mim.”

O corpo é deixado de lado na escritura do diário, porém ele persiste como espectro que afugenta o autor para a escrita. A escrita é tomada pelo ato intempestivo do autor-personagem em não ceder às adversidades, ao seu corpo, ao sofrimento passado atrás das grades. Graciliano escreve para voltarse para si, em liberdade. Esse diário que nada descreve, pois corre as linhas sem motivo, não quer se retratar com a realidade, com o passado, com a memória. Foge de tudo, concentrando-se em si mesmo. Não marca pretexto, por isso afirma-se como texto, espécie de cópia verdadeira. “Não há adjetivos. Apenas a afirmação magnífica da necessidade de existir, viver, deixar escorrer energia e força no presente, sem interferência do passado e sem 51 compromisso com o futuro.”

50 51

SANTIAGO, Silviano. (1994), Em liberdade: uma ficção de Silviano Santiago. pp.22-23. Ibidem, p.40

72 Podemos pensar que na escrita do diário Em liberdade, Graciliano, personagem de Silviano, está a todo o momento às voltas com os espectros da prisão, de um passado que não é irreal, já que seria inútil negá-lo, mas especialmente recusado como alimento para escrita, como tomada de cena que deva reivindicar uma marca na tessitura presente. Esta reescrita do passado, afirmada por início na concepção de um diário, expressa uma ambigüidade que antes de burlar a experiência da escrita pós-confinamento, colide-se com ela para justamente desviar quem escreve das cadeias de um passado que, por ser passado, se coloca em liberdade. O constante incômodo de Graciliano com aquelas personagens que, na fala, pretendem reenviá-lo para a prisão, é resultado dessa ambigüidade da liberdade de um ex-preso. Conjurar o seu passado passa a ser ao mesmo tempo uma atitude cheia de riscos e libertadora. Sem ser possível negar a materialidade da sua vida, Graciliano se volta contra as abstrações, as idealizações, os encarceramentos efetuados pela fala do outro (expectador) diante da sua experiência. Uma outra cena, porém, funda a escritura da liberdade em seu diário, na intimidade. Por perceber que precisamente essa sua relação com o outro em liberdade é ambígua, ou seja, se a prisão não pode ser desmontada em um plano material, ela precisa ser recusada por outra via, de um ponto de vista moral, da marca, do inscrito. Ela deve ser redimensionada sempre em contexto presente, na busca de outros sentidos. Por isso, por este contexto mutante, a recusa de Graciliano apresenta o seu diário Em Liberdade. “Livrar-me do raciocínio que considera a experiência da prisão como positiva para a luta política não significa cair em raciocínio oposto: aceitá-la como negativa para a minha individualidade no campo social. Nem positiva para mim enquanto homem político, nem negativa para mim enquanto cidadão. [...] Qualquer lamento individual coletivo, por causa da cadeia, só serve para perpetuar, já no lado de fora, a permanência das grades na janela, ou o eterno compromisso do corpo com o ambiente 52 concentracionário.”

52

Ibidem, p.57.

73 Sua escrita não pode ser uma inscrição condenada; não pode ser não porque não lhe seja possível. Ela quer saber do impossível em liberdade, ousa mesmo errar e se fragmentar sobre o presente imprevisível. Recusa ver no assombro do passado qualquer materialidade única, da prisão, porque se assim fosse, condenar-se-ia em um desvio nostálgico da dor, ressentido, no retorno para um estado passado que de maneira alguma é visto como bem vindo, uma boa experiência, sem rastros de trauma. Neste ponto, sobre a detenção, Graciliano não recusa a sua experiência, mas a sua moral. Ele não nega as grades, o frio, o vexame e os maus tratos sofridos, mas conjura todas essas experiências quando pretendem assombrá-lo em liberdade. Seu nome autoral não quer prisão – ele próprio, ficção de Silviano. A memória do diário não nega o seu passado – não poderia negá-lo tendo em vista que é ele quem a alimenta, pressiona e força, por ele foi preciso escrever – mas a todo o momento realiza um trabalho intempestivo de desvio do presente na própria escrita, no que temos de mais material sobre a experiência da prisão, a fim de não aposentar o presente de um outro futuro. A escrita revela o seu duplo. Nem utopia nem futurologia, sem ponto localizado e sem projeto de futuro; nem carregada melancolia nem puramente testemunho, um discurso sem reverberação do seu passado, o diário Em Liberdade é uma afirmação crítica de inflexão do passado e ao mesmo tempo uma imaginação de memória encadeada em liberdade. “A liberdade circunstancial que experimento desde ontem é muito menos importante que a liberdade que descubro escrevendo estas páginas. Não estou preso, é claro; mais importante: não sou preso. Tiro o meu corpo da prisão dos homens e retiro a minha vida da cadeia divino-humana dos poderosos. Terei forças para continuar enfrentando os homens humanos que constroem celas e os homens divinos que tecem 53 destinos?”

O caráter de denúncia, como aquele no qual incorre Gabeira, por exemplo, é negado a esta escrita de Graciliano/Silviano precisamente porque, junto a um fato do passado, afirmativamente negado, o desejo de enfrentar o outro, de 53

Ibidem. p.31.

74 aproximar-se do impossível já não é mais parte de um projeto utópico, autoral, compartilhado, mas um ato de reserva entre o dito e do não-dito, do possível e do impossível, do escrito e do vivido, do desvio sobre uma incessante afirmação do passado e da sua invenção em contexto presente. O diário dobrase sobre a sua própria escrita, inaugurando uma história alternativa. Um espaço do entre, diferença que se repete aberta pelo intempestivo. A ficção de Silviano elide todos esses aspectos sem tecer uma determinação específica de um deles sobre os outros. O diário, como gênero literário, torna-se também a experiência registrada de um presente elástico e ativo. Folha em branco na qual se descreve o presente juntamente com a história. O próprio romancetestemunho-diário já não tem um autor que o assina, que o nomeia, ou pelo menos que aceita um único registro de nomes que salte sozinho para uma realidade a se contar. A história é narrada de maneira cortada e cruzada. Neste diapasão o romance cambaleia vertiginosamente para um outro tipo de “experiência literária”. O entre-lugar da escritura desvia da localização de um meio-termo contemporizador, visto que, ainda que ela registre sinais de referência, símbolos de ligação, redes de semelhança, estas nunca são estáveis, localizáveis, mas surpreendentemente ágeis em suas rotas. Este entremeio se qualifica pelo não-lugar em imprevisível rotação, saltando do utópico para o mais concreto e carnal do personagem, numa furiosa transmutação dos seus caminhos. Na ficção de Silviano Santiago, percebemos que as oposições que se armam no passado devem ser vigorosamente repassadas pelo olhar leitor, o único que é capaz de agir com ética, e negar o reconforto com a prisão, o vexame e a derrota. Como um diário, a experiência passada só faz sentido se inscrita em um contexto presente – que novamente fará texto passado, pedindo novamente uma reinterpretação presente, permitindo à história um porvir do qual não seria possível a ela escapar. Qualquer ética presente deve se dar neste espaço não-narrado, do porvir de um presente, posto que somente no presente, no vazio e no inesperado do presente, no seu acontecimento, que uma ética pode ser esperada. Ela se firma àquele intempestivo do desejo, que não precede ou antecede a qualquer razão conseqüente que não a própria razão ética. Não há ética de leitura anterior ao escrito.

75

Junto a essa escritura pós-ditatorial – sobre qual pós-ditadura se fala efetivamente a ficção de Silviano, aquela do Estado Novo ou a mais recente do regime de 1964? – talvez seja possível arriscar alguns traços sobre o que então se situa na berlinda de uma tradição política de esquerda hoje no Brasil. Armado sobre o que se pode entender como um contexto pós-ditadura, pretendia-se expor aqui, inicialmente, os caminhos e descaminhos da esquerda no reconhecimento do seu papel e atuação no processo de transição do regime militar para o retorno democrático. Contudo, fui assaltado pela marcha de eventos, certamente, recentes, porém não totalmente descontextualizados, que colocaram em exame a amplitude e o horizonte limitado do que poderia se chamar transição democrática, essa iniciada a partir do nosso último período autoritário. De alguma forma, parece ainda predominar, no repertório de imagens da esquerda brasileira, a personagem do operário ou do trabalhador que, dada a sua condição social presente, subtraído dos meios de produção, resguardaria e seria uma espécie de salvaguarda contra a capitulação das forças críticas ao sistema hegemônico liberal e capitalista de mercado existente contemporaneamente. A pós-ditadura do regime militar de 1964, por suas específicas razões e mudanças realizadas no país, com sua avalanche modernizadora para a construção de um mercado consolidado e ainda prescrevendo a fórmula democrática para levar adiante esta modernização, violentando a oposição que insurgia contra isso, apresentou-se para mim, tão urgente, como inscrevendo a voz de outras forças sociais insurgentes no Brasil contemporâneo. Os novos sentidos de uma história pós-ditatorial parecem recusar, de maneira explosiva ainda que frágil e localizada, aquela forma passiva de modernização54. Enquanto se fala, ainda hoje, de corrupção e futebol, poucas vezes podemos ser levados a perceber, com devida atenção, que junto a estes eventos a crítica de uma inadequação política vem surgindo nem tanto do parlamento ou dos dribles da vitória ou da derrota, senão dos subúrbios e da hegemonia de uma

54

Cf. Luiz Werneck Vianna. (1997), A revolução passiva: iberismo e americanismo no Brasil. Marcelo Ridenti. (1993), O fantasma da revolução brasileira.

76 elite pós-ditatorial amedronta pela crescente violência urbana. O medo dá nome às classes. Discutir em espaço público corrupção é papel, deve-se ressaltar, de qualquer político profissional ou cidadão com interesse bem compreendido sobre o que rege ou como deveria reger a máquina pública do Estado. Sob algum ponto, talvez por implicância, ou por excesso de informação – aquele excesso de informação que leva à rotinização de um problema, de um discurso e da sua pragmática, desencantando a própria racionalidade possível que poderia habitar aí, transformando-a em modo comum de governar e de discutir a política –, portanto, talvez insensível mesmo diante do que se diz e fala sobre a política parlamentar no Brasil, dado o excessivo bombardeamento de informações que recebemos de várias mídias – internet, jornais impressos, noticiários, programas especiais de TV e rádio, revistas especializadas, panfletos, cartazes, outdoors – enfim, talvez absurdamente cansado da repetição sem nenhuma diferença dos argumentos éticos porém moralmente predeterminados a que se referem estes discursos sempre polêmicos, mas estranhamente tão pouco substantivos, eu tenha me dirigido para o isso inexistente expressado em meio a todas essas informações: o questionamento efetivo de um horizonte político para as esquerdas em um contexto pósditatorial. Tenho alguma convicção de que nesse horizonte, ainda que venha a ser crítico quanto aos abusos do Estado por governantes e máquinas partidárias que dele se ocupam, enredam-se eventos que displicentemente apresentados por uma tônica espetacular, deixam, porém, ausente, intencionalmente ou não, e ainda desligado, o que poderia ser um problema pós-ditatorial para as esquerdas no que se refere à questão da sociedade que se formou a partir de 1964. Para mim permanece a promessa sobre a qual se pode pensar uma tradição política crítica, ou de esquerda, que jogasse o impossível sobre o pensamento e reformulasse o que possa vir a ser as margens de uma pós-ditadura. Manifestações ocorridas como aquelas entre maio e junho de 2006 em São Paulo, antes de revelarem a hegemonia de um modo operante do Estado de

77 Direito racional-legal, assentada e legitimada em instituições de convicções democráticas, podem repercutir para reacender as discussões sobre o que seria, efetivamente, o resgate de uma tradição política de esquerda, ou crítica, pós-ditadura. O colapso dos repertórios de esquerda no Brasil, tanto aqueles associados ao ideário soviético, quanto ao que se aglutinou junto ao PT na defesa de um sociologismo democrático, parece não mais atentar para a história de que a sociedade democrática não se dá naturalmente, isto é, que nela estão presentes conflitos e distensões que, se dadas a se condicionar umas às outras, sempre prevalecendo a de maior força política e imaginária, em nada se diferenciaria do que poderíamos chamar de um corporativismo sociológico. Renato Janine Ribeiro, a meu ver, faz o apontamento desse registro ao destacar a sutil mas contundente diferença que se realiza, nos repertórios de políticos e da opinião pública, em geral, quando se fala de social e sociedade no Brasil55. Ribeiro parece colocar em exame precisamente essas diferenças que se dão no social, mas que todavia reverberam tradições políticas distintas de leitura e interpretação. E neste caso, dificilmente conseguiríamos diferenciar o repertório da esquerda em relação a qualquer outro repertório para abordar os problemas que aqui no presente estão localizados. Por isso as ficções 55

“Numa sociedade democrática atual, o espaço público se delineia no conflito dos inúmeros discursos que o atravessam e constituem – incluindo os que tratam diretamente da política e da economia, mas também todos os que dizem algo sobre e para a sociedade, até mesmo, não raro, os religiosos. Ora, o que justifica reduzi-los para sobressair a voz da economia? Por que acreditar que ela fale por último, que seja a sua decisão soberana, como na sociedade prédemocrática de século XVII, a voz de Roma (que, uma vez falasse, encerrava a causa e a discussão) ou o estrondo dos canhões, dos quais se dizia que constituíam a definitiva, dos reis? Terá sucedido ao dogma religioso a à força armada, como discurso irretorquível, o da economia? Mas a irretorquibilidade não é justamente, algo que nega, de forma radical, a democracia, na qual todas as posições – e por isso mesmo todas as falas – se espera que sejam retorquíveis ou cambiáveis? Com esse discurso se transmite, implícita ou subliminarmente, a convicção – pouco contestada – de que a sociedade é ativa enquanto economia, e passiva enquanto vida social. remetem-se à carência, à passividade, assuntos importantes como a saúde, a educação, a habitação, o transporte coletivo. Ao modo de tratálos, confere-se o selo do fisiologismo e do clientelismo. Aos profissionais dessas áreas se paga mal e se põe sob suspeita. [...] A cisão entre o social e a sociedade, essa subordinação da vida social à econômica, cresce no discurso. Hoje está mais forte do que no regime militar. Não estranha então a desconfiança de muitos ante o discurso que a imprensa e a área econômica – quer no empresariado quer no governo – reiteraram ao longo da década de 1990, segundo o qual a privatização das empresas estatais ineficientes seria o primeiro passo para o resgate da dívida social. Elas foram privatizadas, e o débito social só aumentou. O problema é que, antes mesmo de se proceder à privatização de uma estatal ou outra, o discurso dominante em nossa imprensa já tinha privatizado a ‘sociedade’”. RIBEIRO, Renato Janine. (2000), “A sociedade contra o social ou A sociedade privatizada” in op.cit. pp.23-24.

78 selecionadas para este trabalho não falam do seu período histórico, se é que existiria um período histórico que pudesse unir o horizonte dessas três ficções; mas sim vêm sugerir por antecipação o que a nos pode mais ser lido hoje, contemporaneamente. Por esse modo, é como se essas escrituras tivessem a magia de tocar o futuro por trás, encostá-lo no presente da sua inscrição e suspeitá-lo fora da matéria que o enredou em um historicismo contextual. A história é suplemento nessa literatura. De alguma forma, surge como promessa a afirmação de um outro sentido, ainda sob a casa democrática, para a interpretação do contexto presente de transição pós-ditatorial. Pois bem, pensar a promessa, a sua presença no esboço de uma tradição política, não leva necessariamente a pensar um enredo ou um ator messiânico privilegiado que viesse fundar esta promessa. Antes, muito pelo contrário, a partir do momento em que esta promessa se coloca como acontecimento conjuntural, identificado a um grupo ou a um ator político por excelência, o que podemos antever, antes de tudo, é uma deturpação no princípio dessa promessa. A realização da promessa seria apenas um outro sentido, duplo sentido em si, que orientaria o gesto de uma tradição. A partir do momento em que este gesto suspendido e sujeito, portanto, a imprevisibilidades e figurações desconhecidas no mundo dos fatos, a partir do momento em que este gesto que anuncia o tempo de cumprimento dessa promessa for fechado, não mais se poderá falar de um gesto levantado, uma identidade mesma, em configuração, pois pode-se suspeitar que acima de todos esses devires, o discurso que apela já está de uma forma ou de outra referindo-se cada vez mais a si. O promessa, quando realizada, torna-se narcísica. Mas, de igual modo, o que não pode ser dispensado, sob o risco de uma dispersão tal que nos impeça qualquer leitura, é precisamente o aceno que toda promessa, enquanto sentido histórico e sentido messiânico, espectral e transparente a todo horizonte, vincula sempre um outro sentido ao seu devir, e assim infinitamente. O tempo da promessa não está em um Estado ou governo que assume um órgão político, em uma única história ou contexto, assim como não pertence àquele a quem se dirige a promessa. Ele deve estar, ao contrário, perdido. O tempo da promessa é um tempo, em vários tempos, inscrito na

79 história, pois visa a um acontecimento urgente, porém também acena para um outro tempo, invisível e intocado, o qual deve permanecer como fonte de imaginação. Assim a promessa ativa uma outra forma de pensar a política, que considera, além das instituições, a filosofia. Acima da filosofia, a vida. Uma cidadania existencial56 é o que se propõe aí. Repensar a tradição de esquerda hoje, sob o risco de uma contemporaneidade – afinal sempre se corre este risco, transformar o futuro em forca e o passado em algoz – pode ser, talvez, questionar a própria esperança que reencarna de tempos em tempos um corpo político. Mas este não é um problema cadente apenas na tradição de esquerda. Repercute também no pensamento de uma direita que não se interroga – dificilmente alguém em conservação deixa-se ser rogado – sobre o seu repertório quanto às imagens de que lança mão em discurso. Nestes repertórios, ora Mercado, ora Estado, aparecem como entidades abstratas, predeterminadas, cuja lógica se orienta antes de tudo por uma regência interna do que pela contextualização de imagens. O Nacional em contraposição rígida ao Universal, o local em resistência ao global, ou ainda, como em uma sugestão de Renato Janine Ribeiro, o Social em relação subalterna ou dispendiosa na contramarcha econômica da Sociedade. Esses repertórios podem estar dominados pelo alivio contextual, do historicismo, ou, o que poderia dar no mesmo, do desmemoriado, como na sugestão de Walter Benjamin57, de uma pós-ditadura. O contrafactual da promessa, talvez, não esteja também na ordem do existente – em pensamento e em realidade – mas do corte sobre o aparente e a intervenção sobre o que é real: o desejo de realização da promessa. Isto é, a promessa como sedução, flerte erótico da história com um outro porvir. Contudo, essa intervenção, se realizada, tomada como possível, nada mais 56

“Assim, num momento em que é bastante debatido, dentro e fora do Brasil, o conceito de cidadania, Noll nos obriga a debruçar-nos sobre a significação dessa palavra para além da dimensão apenas sociopolítica, em direção a uma reavaliação mais plenamente existencial dela.” Cf. TREECE, David. (1997), “Prefácio” in NOLL, João Gilberto. Romances e contos reunidos. p.8. 57 BENJAMIN, Walter. (1994), “Sobre o conceito da história” in Obras escolhidas I – Magia e técnica, arte e política. p.232.

80 seria que não um milagre, um atendimento de corte incisivo e extraordinário que recompensa na promessa aquilo que lhe falta. Há uma chance e uma ameaça nisso, pois este milagre antecipa-se ao alongamento da própria imaginação, antevendo o que nela está carente e precário, colocando o futuro antecipado, ou seja, subtraindo da promessa precisamente aquele sentido do qual falávamos acima, a intenção que anima a tradição, seu toque erótico. Por isto o debate sobre tradição, não raras vezes, pode ser utilizado tanto pelos panfletários de uma moral social quanto pelos reacionários que desejam recuperar uma ancestralidade perdida. Tanto a inocência quanto a perversão estão vertidas a favor ou contra o interpelo da tradição, o luto penoso que acompanha uma herança, sem, no entanto, que se atente para o segredo mais autêntico do signo prometido. Não se pode recusá-lo, pois ele é o que acontece. O que quer dizer, por um lado, que não importa o enredo, o pré-texto inscrito nas escrituras que herdamos, se ele é comunista ou capitalista, se ele é neoliberal ou social-democrata, se ele é machista ou feminista, nazista ou humanitário, essas são dimensões que apenas inscrevem a promessa sob um certo e, às vezes, cruel registro. Esses pretextos, porque são anteriores a qualquer texto, tendo em vista que não se dobram a ele, apontam na promessa, ou melhor, retiram da promessa a necessidade de um milagre que poderia se expressar no mundo ou pela catástrofe ou pela salvação: nos dois casos, o que fica claro é o sentido predeterminado que direciona a promessa e do qual é preciso suspeitar. Qual o erro de uma revolta, quando a história segue aberta? O que é um pecador, quando deus está morto? Suspeita-se de uma moral em todo caso estranha a qualquer imprevisibilidade sobre o prometido. Talvez aí, precisamente, resida o imperativo ético em relação à tradição política, isto é: quando não nos resta mais a certeza do messias, quando a salvação ou a redenção foram descomprometidas de qualquer religião, mas não do pensamento e da aposta, o que sobressai nessa cena política é o próprio acontecer ético, o devir ético alcançado pelo presente já sem pressuposto para uma convenção ética. Ou seja, só se demanda um comportamento ou uma ação ética onde, precisamente, não pode haver, não habita, não reside junto ao pedido nenhuma possibilidade ética. A ética é feita,

81 então, no seu acontecer; de forma alguma na sua impossibilidade, na sua promessa que nunca foi prometida. A promessa só é feita ética onde nenhum deus se faz presente – e por favor, que tenho eu a ver com igrejas ao falar de deuses! Eles estão aí, em miniaturas ou nas multidões, espreitando com seus moralismos uma vida pagã. Por isso não seria de todo incorreto pensar, pelo menos em um certo sentido dessa reflexão, que por trás de uma promessa comprometida, por trás de todo milagre prometido, por trás de toda teleologia forçosa e bárbara que se encosta nestes signos de devir – democracia, ética, morte, promessa, política, espectro, história –, eles só se deixam contaminar se, de fato, depositarem certa unicidade de sentido a apenas um desses horizontes, sem atentar para os outros horizontes não existentes alternativamente, porém em ausências. Há, além disso, sentidos re-voltados pelo intempestivo da história, que recria a história, mas que não raras vezes troca a sua força pelo medo, ou pela conspiração de um passado que não foi benquisto e desejado. Talvez aí, no leitor e na esperae possibilidade de leitura, possa habitar o imperativo ético na política. A promessa de uma outra ética (des)(com)prometida.

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Conclusão (exórdio de um epílogo)

“O que foi escondido ninguém escondeu O que foi prometido ninguém prometeu Nem foi tempo perdido Somos tão jovens...” Legião Urbana

Revoltemos. Ainda que uma parte da crítica literária tenha assumido, quando da publicação dos testemunho e das experiências de luta da ditadura em ficção, uma linha de leitura que se voltava mais para o estudo de estética narrativa e para a invenção de novas formas de narrativas – carregando para as análises uma certa crítica de intervenção social ou extra-literária – tentei, no entanto, expressar-me partindo de um outro ponto de vista marginal a essa temática. Não tinha o interesse em buscar naqueles livros a afirmação de novos parâmetros para a crítica literária que era produzida então, porém apenas ressaltar alguns ponto aqui e ali que poderiam ser significativos, em um certo sentido, seriam hospedes de possíveis significações que, a meu ver, podem ainda estar presentes hoje na nossa imaginação política. É dessa forma que na dissertação a metáfora e o signo do texto literário foram pensados particularmente na escritura dessas obras, realizando uma genealogia histórica por meio dos sentidos das ficções.

83

Como numa dupla tentativa de interpretá-las, foi possível também interpretar um presente contextual que então estava alçado junto a essa interpretação. Por esse caminho, o que tentei realizar, ao reler os textos sob a informação de um passado, foi chegar junto a eles e a partir daí tentar extrair tanto a sua distinção entre fundo e forma, contexto e narrativa histórica, experiência literária e tradição política, quanto a experiência literária própria que cada um inventou. Propus-me a revoltar contra um passado sob o posto de um tempo presente que por ser aberto e fluido, nunca cessaria de seqüestrar e estancar barreiras contextuais. Por este modo, os livros foram considerados em contexto, não por um apoio de época em que os mesmos foram publicados, mas pela habitação de imagens que eles ainda sugerem no presente da nossa literatura de ficção. Porque ler estes textos, hoje, poderia encaminhar também para um movimento de revolta – de um tornar a ver subversivo, sob marcada diferença, na busca sentidos então que são ressuscitados pela sua ausência, posto que eles sempre existiram lá, em ausência, porém de forma espectral nos textos aqui abordados. Por isso, pela ausência e presença de sentidos nestes vários textos, promovi o debate das suas escrituras. Falo de escritura porque, peculiarmente, na sua abertura temática, encontro criptografada alguma mensagem que não se perdeu no tempo, tábula morta e sagrada que, no entanto, ressurge sob a forma de um espectro. Uma realidade presente-ausente que comunica as passagens. Na escritura podem-se explorar alguns signos mortos que, na insustentável leveza do espírito, alcançam um outro sentido, menos pré-determinado, aberto a outra contemporaneidade. Códigos, rótulos, significados, passagens e horizontes, todos esses planos podem ser lidos, então, na realidade espectral da escritura, partindo do endereço póstumo da sua mensagem. O espectro de um contexto – de uma inscrição histórica –, sua escritura, repousa enfim em uma dimensão em que os laços de sentido são mais frouxos e assentados, e não nos é preciso entendêlos completamente; por isso se pode falar abertamente sobre o que se lê. Afinal, onde está a ética literária, senão no além-escrito.

84 Trazer a referência da escritura para essa literatura pelo que ela tem de mais comum, a despeito da diversidade das suas matérias e das suas proposições, é de alguma forma chamar a atenção do que, agora, possa ser fundamental na sua solicitação: qual a possibilidade mesma do fato literário, do sentido narrativo de uma experiência? Solicitar a morte e a herança, a história e o intempestivo, a estética e a política, o real e o ficcional, faz com que primeiro dirijamos esforço em localizar as suas relações, desnudando também a própria construção em que se assentam os discursos. Neste sentido, o trabalho da desconstrução não se coloca na missão de limpar assepticamente o edifício metafísico ocidental das impurezas das palavras, do equívoco dos sentidos, como um tipo de filosofia da linguagem, sobretudo apoiada na lógica, tentou fazer. Antes, tenho a convicção de que este texto inquieto que desconstrói absorve muito da impureza que tal esforço necessariamente

deixa

como

rastro;

porque

é

como

rastro

que

a

desconstrução inicia a sua suspeita, quando começa por deixar em aberto um significado de um signo – sem instalar o sentido dessa relação. Nesse solicitar contextual sugerido pelo rastro e levantado por uma suspeita, algo sofreu remoção, as idéias relacionadas no pensar a inscrição de algum modo (des)(con)figuraram-se em razão de um outro lugar, em uma outra relação de força, ou mesmo despontaram-se como rastros de uma outra vontade sistema, deslocadas em um entre-pensar e um quase-marcar que é história. Neste abalo, desconstrói-se a história no presente, por um rastro na escritura que desloca as idéias de um lugar central e as rebenta juntas em imprevisível desacordo. Porém, ainda assim, essa escritura em nada seria válida para nós se não se inscrevesse e se deixasse inscrever junto a uma volta ao seu passado. Isto a coloca também dentro do amplo problema das historicidades, isto é, ainda que se faça contexto do período de uma obra ou de uma palavra, ou talvez precisamente porque se faz contexto desses signos, que na escritura germina e padece qualquer estratégia de historicidade. Entendo por isso que o contexto não se faz pela história, assim como a história não ocorre apenas por contextos. Por registrar esse duplo na escritura dos contextos, o que poderia

85 ser também o duplo na escritura da história, seu passado e seu presente, tenho em conta o contexto como rastro, traço, imagem fantasma, sinal de ausência que desde sempre lança um artigo póstumo de historicidade. O contexto como emenda de um texto, forjado a posteriori, que por uma solicitação de sentidos presentes pode demandar outros sentidos passados, porém, postumamente. A história solicita e abusa dos sentidos às vésperas do seu próprio contexto, já não marcado pelo dado prévio, mas sobretudo pela iminência de um acontecimento fora do tempo, fulminado de historicidade. A suspeita sobre o contexto como rastro assim deixado apresenta também uma imagem contra-reveladora que mantém em suspenso qualquer possibilidade de associação e identidade única e fechada a um período (texto?) histórico. Nessa solicitação da história, entre a sua escrita e o seu contexto, que envolve ao mesmo tempo análise e citação, a desconstrução pode ser encarada como modo de saber, relação de poder da escritura como alegoria. Em O que é isso, companheiro? pode-se detectar uma dupla chave para essa remissão: por um lado teríamos a escritura mesma, colocada ali, ausente, lacônica e ao mesmo tempo rude e violenta. Contudo, essa conspiração do testemunho de Gabeira poderia nos oferecer (e não oferece) algo além – além disso que conspira – pois ali, desde então, isso acontece na conspiração, o acontecimento mesmo, de fato, conspiração – a pura escritura que, desde que se colocou para o leitor, conspira isso contra ele. Em síntese: tira isso dele. Como interpretar uma história assim? Como ler isso, em um contexto histórico? Como testemunhar isso que foge, fantasma? Ao caminhar em uma leitura da ação que conspira, da força e do efeito que habitam nela mesma, então expressadas, tramadas, elas mesmas, em efeitos de conspiração, pode-se lançar, na reserva dessa conspiração, uma suspeição última, delimitadora, sobre que viria a ser o isso que conspira. Poder-se-ia, de fato, designar isso, uma conspiração? Tentei saber, em algum sentido longínquo, o traço de imagem mordaz disso que conspira, assumindo que a reflexão sobre isso parte de uma precariedade histórica e presente. De modo que fui encontrar isso não em Fernando Gabeira, porém na experiência literária de João Gilberto Noll e Silviano Santiago.

86

Primeiramente a contrapartida dessas duas experiências literárias não foi dada a ler, neste trabalho, como provas de um passado a ser decifrado, de uma linguagem ou mesmo uma relação estética a ser decodificada em seus planos e investimentos, senão pela hospitalidade de sentidos que elas poderiam trazer como espectro de imaginação. Ou seja, se pudéssemos ampliar a noção de testemunho, de modo a incluí-lo no conjunto das invenções humanas, muito mais que do puro testamento, as obras de João Gilberto Noll e de Silviano Santiago poderiam ser incluídas neste conjunto. Um testemunho que designa a incompletude de um único sentido. Faço essas considerações intempestivas sobre a história na busca de uma reserva ao que se poderia denominar contexto de luta das esquerdas. O que precisamente vem marcar um contexto de luta? Sendo esse contexto referido a um contexto de luta das esquerdas, o que o distinguiria de um outro contexto, seja de luta, transição ou pacificação entre a esquerda e outras forças políticas expressas ou não nele? O que passa desapercebido, inatentado – um crime e uma afirmação –, ou mesmo invisível quando designamos um acontecimento histórico pelo seu contexto (sobretudo se esse acontecimento é de uma experiência reconhecidamente de lutas e rupturas)? Seria o contexto a resolução de forças? Serviria ele como escritura histórica para a identificação de uma luta? Não poderia concluir esta dissertação a não ser ao modo de interrogação de um outro prefácio sobre ela. Um exórdio relançado de um começo, daí, para o leitor.

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