Imaginário e representações: entre fios, meadas e alinhavos

August 1, 2017 | Autor: Regma Maria Santos | Categoria: Representações Sociais, Imaginário social
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Descrição do Produto

Produção: NIESC/CAC/UFG Núcleo Interdisciplinar de Pesquisa e Estudos Culturais Câmpus Catalão/UFG Departamento de História e Ciências Sociais Coordenação do NIESC: Prof. Dra. Márcia Pereira dos Santos

Coordenação do Departamento de História e Ciências Sociais José Luis Solazzi Coordenação do Curso de História Ismar da Silva Costa Edição:

ASPPECTUS Associação de Produção, Pesquisa e Edições Culturais Conselho Editorial Asppectus: Amálio Pinheiro Ana Carolina Rocha Pessoa Temer Kênia Maria de Almeida Pereira Lucimar Bello P. Frange Luiz Humberto Martins Arantes Marcos Antônio de Menezes Vanda Cunha Albieri Nery

Uberlândia-MG / Asppectus 2011

Copyright by Os Autores

Arte da Capa: Ronan Francisco Furtado Foto da Capa: Marlúcio Ferreira

Projeto Gráfico: Ronan Francisco Furtado

Revisão Editorial: Valdeci Rezende Borges e Regma Maria dos Santos Revisão Gramatical: Ione Mercedes M. Vieira

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (GPT/BSCAC/UFG)

1ª Edição: Agosto de 2011 I31

Imaginário e representações: entre fios, meadas e alinhavos / Regma Maria dos Santos, Valdeci Rezende Borges (organizadores). – Uberlândia, MG: Asppectus, 2011. 294p.

ISBN: 978-85-88025-12-7 Bibliografia.

1. Imaginário. 2. Representações. 3. História. I. Santos, Regma Maria dos. II. Borges, Valdeci Rezende. III. Título.

CDU: 821.134.3(81)

Asppectus – Associação de Produção, Pesquisa e Edições Culturais Av. Das Gameleiras 1533 – Bairro Jaraguá – Uberlândia – MG e-mail: [email protected]

Sumário

Apresentação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 7 Representações e práticas sociais: rediscutindo o diálogo das duas noções no âmbito da História Cultural Francesa . . . . . . . . . . . . . . . . 11

José D’Assunção Barros

O imaginário distópico e a sociedade de consumo . . . . . . . . . . . . . . .29 Rogério Bianchi de Araújo

O Brasil dos intelectuais. Construções imagéticas e representações simbólicas - 1870/1920 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .47 Maria Emilia Prado

Escavações no campo das letras: a reflexão de José de Alencar sobre a língua portuguesa, a literatura e a cultura brasileiras em “O nosso cancioneiro” . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .63 Valdeci Rezende Borges

A profissão de Jacques Pedreira de João do Rio: Anti-bildungsroman da República no Brasil e contranarrativa da nação . . . . . . . . . . . . . . . . .85 Virgínia Célia Camilotti

A natureza imaginada na obra de Carmo Bernardes . . . . . . . . . . . . . 109 Márcia Pereira dos Santos

Ser mulher nas crônicas de Lima Barreto . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 127 Getúlio Nascentes da Cunha

Santos – O Porto do Café: imaginário e representações . . . . . . . . . . . 141 Maria Izilda Santos de Matos

Fazer lembrar, fazer esquecer: imagens em comemoração da independência de Angola (2000) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 163 Nancy Alessio Magalhães e Leandro Santos Bulhões de Jesus

Territorialização e papéis de gênero: o caso do Reassentamento Córrego Prata (TO) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 177 Temis Gomes Parente

O martírio no imaginário cristão do século XIII e os mártires franciscanos de Marrocos de 1220 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 193 Teresinha Maria Duarte

Benzeções: a gramática e os gestos transcendentais da fé . . . . . . . . . 213 Maria Clara Tomaz Machado

Os limites do que nos era permitido saber . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 229 Beatriz Kushnir

Hábitos e modos de viver no Brasil dos anos de 1970 nas crônicas de Rachel de Queiroz . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 259 Regma Maria dos Santos

O que é a independência na música independente . . . . . . . . . . . . . . 271 Rubens de Freitas Benevides

Biografia dos autores . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 289

Apresentação

A proposta para a realização deste livro partiu do interesse dos integrantes do GRPesq/CNPq - NIESC - Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas e Estudos Culturais - , da Universidade Federal de Goiás, Câmpus Catalão, de apresentar algumas reflexões sobre a questão do imaginário e das representações, alinhavando pesquisas de seus membros e também de colaboradores externos, os quais, na grande maioria, participaram, ao longo dos últimos dez anos, das atividades propostas e desenvolvidas pelo grupo, como os simpósios e as publicações. As discussões aqui propostas coadunam com a perspectiva desse Núcleo de Pesquisa, que se dispõe a discutir sobre as relações tecidas entre memória e cultura, problematizando questões inerentes à história. O grupo imaginário social, enfocando vivências religiosas e práticas de sociabilidade expressas na cultura popular e nas produções intelectuais e artísticas, como no universo da música, do jornal, do conto, do romance, da crônica, dentre outros documentos e formas de linguagem. Nesse sentido, os artigos deste livro pretendem, juntando as pontas de várias meadas, abordar a constituição dos imaginários sociais, entendidos como imaginação e como conjunto de imagens presentes na produção das narrativas da história. Tencionam também enfocar os processos de instituição e constituição dos imaginários na modernidade em suas múltiplas e variáveis abordagens: nos hábitos, costumes e nas práticas políticas, sociais e culturais.

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de pesquisa também reflete sobre as representações da realidade inseridas no

Iniciamos esta coletânea com dois textos que pensam, na perspectiva teórica, conceitos-chave sobre os quais os demais artigos se debruçam. O primeiro deles, escrito por José D´Assunção Barros, discute, sob o ponto de vista da teoria da história, os conceitos de representação e práticas sociais na produção de pesquisas no campo da História Cultural, e o segundo, de Rogério Bianchi, trata da questão do imaginário por meio de uma visão antropológica e filosófica, enfatizando inquietações presentes nas Ciências Sociais. Os textos de Maria Emília Prado, Valdeci Rezende Borges, Virgina Camilotti, Márcia Pereira dos Santos e Getúlio Nascentes Cunha, articulam a preocupação de literatos e intelectuais dos séculos XIX e XX, no Brasil, sobre temas fundamentais: a ideia de nação, a cultura brasileira, a língua e a natureza, o papel social da mulher. Prado, num viés comparativo, confronta leituras sobre o Brasil, produzidas por intelectuais como Paulo Prado, Oliveira Viana, Afonso Celso e Tavares Bastos, entre os anos de 1870 e 1920, as quais construíram retratos do país, abordando temas como: raízes coloniais, composição étnica do povo, elites governamentais, organização do Estado, dentre outros. Borges, por sua vez, rastreia o pensamento e a prática arqueológica do literato José de Alencar, no ensaio “O nosso cancioneiro”, acerca da proposta de edificação de uma literatura brasileira distinta da portuguesa, focada na relação entre Imaginário e representações: entre fios, meadas e alinhavos

língua, linguagem e nacionalidade. Já, Camilotti, atendo-se ao início do século XX, recorre a João do Rio e

seu romance A profissão de Jacques Pedreira, para explorar duas leituras sobre aquele tempo; uma acerca da decadência da civilização e outra a respeito da república brasileira, questionando como as contranarrativas da nação rasuram identidades essencialistas. Santos debruça-se sobre a obra do literato goiano novecentista Carmo Bernardes, notório conhecedor da cultura local e da natureza do Cerrado, no intuito de questionar as representações que elaborou a respeito do mundo natural, marcadas por aspectos do presente, avaliações do passado e projeções do futuro. Articulamos, junto a esses, o artigo de Cunha, que discorre sobre a presença feminina nas crônicas de Lima Barreto e a representação ambígua que o autor delineou das mulheres e de seu papel social.

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Abordagens sobre o imaginário também se referem a territórios

e espaços delimitados. Maria Izilda Santos Matos escreve sobre Santos, cidade/porto, território de trocas, lugar de experiências e práticas cotidianas diversas, de projeções e intervenções, de edificação de imaginários e representações. Nancy Alessio Magalhães e Leandro Santos Bulhões de Jesus enfocam a questão da lembrança e do esquecimento num livro comemorativo sobre a independência de Angola. Temis Gomes Parente reflete sobre gênero e território no Reassentamento Córrego Prata, em Tocantins, focando vivências de mulheres atingidas pelo enchimento do reservatório de uma usina em Porto Nacional. Sob a perspectiva da religiosidade, apresentamos os artigos de Teresinha Maria Duarte, que trata do imaginário cristão sobre o martírio no século XIII na sociedade ocidental, a partir dos mártires de Marrocos, por meio de textos hagiográficos, legendas e crônicas franciscanas. Ainda na esfera da religiosidade, Maria Clara T. Machado investiga e reflete sobre a benzeção no Brasil contemporâneo, atendo às práticas culturais populares campesinas em migração para o mundo urbano, às mudanças e interações tecidas entre o sagrado e o profano, a partir de 1970, nas regiões de cerrado do Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba/MG. do atenção para as práticas políticas e também para o cotidiano e a cultura. Beatriz Kushinir enfoca a questão da censura política no país no período da ditadura militar, e Regma Maria dos Santos analisa, por meio das crônicas de Rachel de Queiroz, as transformações do cotidiano, dos hábitos e modos de vida nos anos de 1970 no Brasil. Ainda nessa perspectiva contemporânea, temos o artigo de Rubens de Freitas Benevides, que discute a produção musical independente no Brasil a partir da década de 1990 até o momento presente, observando e pondo em destaque os aspectos novos desse campo cultural. Dessa forma, esta coletânea agrega trabalhos realizados em investigações recentes por pesquisadores de diversas instituições de ensino brasileiras, os quais seguem perspectivas teóricas e abordagens variadas e específicas, como solicitado pelo objeto eleito. Pesquisas que se debruçam sobre ques-

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Dois textos remetem ao período recente da história brasileira chaman-

tões importantes para nossa sociedade, fazem avançar nosso pensamento social e contribuem com a proposta de alargar as trocas e os intercâmbios, os diálogos entre estudiosos que voltam sua atenção para o campo da cultura, das representações e dos imaginários. Agradecemos a todos os colaboradores por sua valiosa contribuição e convidamos o leitor a apreciar as ponderações que aqui vão.

Regma Maria dos Santos Valdeci Rezende Borges

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Organizadores

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Representações e práticas sociais: rediscutindo o diálogo das duas noções no âmbito da História Cultural Francesa José D’Assunção Barros

“Representação” – palavra que nomeia noções as mais diversas nos mais variados campos de saber – tem se constituído, no âmbito da História e das Ciências Humanas, em uma arena na qual competem múltiplos significados. Pretendemos discutir o uso mais específico deste conceito quando contraposto a outro igualmente prenhe de significados – o de “práticas sociais”. Nossa esfera teórica de referências remeterá a uma corrente mais veu com especial vigor a partir da década de sessenta do século XX. Vale lembrar, ainda, que essas mesmas vertentes, que têm trabalhado de modo relevante com as noções de “práticas e representações” – notadamente, a História Cultural Francesa – apresentam, como marca importante, a interdisciplinaridade estreita com as Ciências Sociais, particularmente, com a Sociologia e a Antropologia, constituindo uma relação interdisciplinar que podemos exemplificar com a estreita colaboração entre três autores que bem representam cada um desses três campos: Roger Chartier, Pierre Bordieu, e Michel de Certeau. O objetivo deste texto será delinear de modo preliminar o próprio campo de ação e produção da História Cultural, discorrendo sobre seus objetos e aportes conceituais mais frequentes, e, a partir daí, examinar

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específica da chamada História Cultural – campo histórico que se desenvol-

em maior detalhe uma das várias perspectivas que surgiram a partir da História Cultural Francesa e que têm nos conceitos de “práticas” e “representações” o seu alicerce mais firme para a elaboração de pesquisas inovadoras no campo da História Cultural. Veremos, então, que, se as “práticas” referem-se aos fazeres, aos usos sociais, aos modos de agir, de isolar ou sociabilizar o outro, de constranger os indivíduos à ação ou à inação, de se apropriar da própria natureza ou de transformar os objetos materiais para recriar as condições da vida humana e social, já as “representações” remetem aos modos de ver e conceber o mundo, de entendê-lo e representá-lo stricto sensu, seja por meio de imagens, de esquemas mentais ou de grades classificatórias. É deste entrelaçamento entre “fazer” e “conceber”, um por dentro do outro, que emerge a urdidura social e cultural entre “práticas” e “representações”, conforme teremos a oportunidade de mostrar mais adiante. Antes de mais nada, convém lembrar que a nova Historia Cultural tornou-se possível na moderna historiografia, a partir de uma importante expansão de objetos historiográficos. Apenas para antecipar algumas possibilidades destes novos objetos, faremos notar que essa modalidade historiográfica abre-se a estudos os mais variados, como a ‘cultura popular’, a Imaginário e representações: entre fios, meadas e alinhavos

‘cultura letrada’, as ‘representações’, as práticas discursivas partilhadas por diversos grupos sociais, os sistemas educativos, a mediação cultural de intelectuais, ou a quaisquer outros campos temáticos atravessados pela polissêmica noção de “cultura”. É esta História Cultural – aqui entendida no sentido de uma História

da Cultura que não se limita a analisar apenas a produção cultural literária e artística oficialmente reconhecidas – que passou a atrair o interesse de historiadores dos mais diversos matizes teóricos, desde o último século, inclusive no seio da historiografia marxista. Neste aspecto, não estaremos, neste momento, utilizando a expressão “História Cultural” para nos referirmos a esta ou àquela corrente historiográfica mais recente (a “Nova História Cultural” francesa, por exemplo), mas, sim, para designar toda a historiografia que se tem voltado para o estudo da dimensão cultural de uma determinada sociedade historicamente localizada.

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Para compreendermos os progressos da História Cultural das últimas décadas no sentido da ampliação de seus objetos de estudo, devemos contrastá-la com a História da Cultura que era tão típica do século XIX, e que concentrava na História Intelectual quase todos os seus interesses relacionados com o campo da Cultura. Na verdade, a História Intelectual é apenas uma pequeníssima parte da História Cultural tomada em seu sentido mais amplo, embora fosse quase que exclusivamente para ela (e também para uma História da Arte pensada no seu sentido mais restrito) que os historiadores da Cultura se voltavam no século XIX. Estudava-se, então, a cultura renascentista (bem entendido, a cultura renascentista que, na sua época, era reconhecida como “alta cultura”), as obras de arte dos vários períodos, os grandes textos literários, os tratados filosóficos (domínio que é, ocasionalmente, chamado de História das Ideias). Os historiadores de então passavam ao largo das manifestações culturais de todos os tipos que surgem por meio da cultura popular, além de inclusive ignorarem que qualquer objeto material produzido pelo homem faz também parte da cultura – da cultura material. Além disto, negligenciava-se o fato de que toda a vida cotidiana está, de modo inquestionável, mergulhada no mundo da cultura. Ao existir, qualquer indivíduo já está, automaticaum intelectual, ou um artesão. A própria linguagem e as práticas discursivas que constituem a substância da vida social embasam essa noção mais ampla de Cultura. “Comunicar” é produzir Cultura, e de saída isto já implica a duplicidade reconhecida entre Cultura Oral e Cultura Escrita. Sem falar que o ser humano também se comunica por meio dos gestos, do corpo, e da sua maneira de estar no mundo social, isto é, do seu ‘modo de vida’. Apenas para exemplificar com uma situação significativa, tomemos um “livro”, este objeto cultural reconhecido por todos os que, até hoje, se debruçaram sobre os problemas culturais. Ao escrever um livro, o seu autor está incorporando o papel de um produtor cultural. Isto todos reconhecem. O que foi acrescentado pelas mais recentes teorias da comunicação é que, ao ler esse livro, um leitor comum também está produzindo cultura. A leitura, enfim, é prática criadora – tão importante quanto o gesto da escritura do

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mente, produzindo cultura, sem que, para isto, seja preciso ser um artista,

livro. Pode-se afirmar, ainda, que cada leitor recria o texto original de uma nova maneira – isto de acordo com os seus campos de “competência textual” e com as suas especificidades, inclusive, a sua capacidade de comparar o texto com outros que leu, e que podem não ter sido previstos ou sequer conhecidos pelo autor do texto original que está se prestando à leitura. Desta forma, uma prática cultural não é constituída apenas no momento da produção de um texto ou de qualquer outro objeto cultural, ela também se estabelece no momento da recepção. Este exemplo, aqui o evocamos com o fito de destacar a complexidade que envolve qualquer prática cultural, e elas são de número indefinido. Desde já, para aproveitar o exemplo acima discutido, poderemos evocar uma delimitação de História Cultural elaborada por Georges Duby (1990, p. 125-130). Para o historiador francês, esse campo historiográfico estudaria, dentro de um contexto social, os “mecanismos de produção dos objetos culturais” aqui entendidos como quaisquer objetos culturais, e não apenas as obras-primas oficialmente reconhecidas. O exemplo acima proposto autoriza-nos a acrescentar algo. A História Cultural enfoca não apenas os mecanismos de produção dos objetos culturais, como também os seus mecanismos de recepção, e já vimos que, de um modo ou de outro, a Imaginário e representações: entre fios, meadas e alinhavos

recepção é também uma forma de produção. Estabelecido isto, retomemos a comparação entre os atuais tratamentos historiográficos da Cultura e aqueles que eram tão típicos do século XIX. Ao ignorar a inevitável complexidade da noção básica que a funda-

mentava, a História da Cultura, tal como era praticada nos tempos antigos, era uma história elitizada, tanto nos sujeitos como nos objetos estudados. A noção de “cultura” que a perpassava era demasiado restrita, tanto que os avanços da reflexão antropológica a vieram desautorizar. Não que as produções culturais que as várias épocas reconhecem como “alta cultura”, ou que a produção artística, que está hoje sacramentada pela prática museológica, tenham perdido interesse para os historiadores. Ao contrário, estuda-se Arte e Literatura do ponto de vista historiográfico muito mais do que nos séculos anteriores ao século XX. Mas pode-se asseverar que a esses interesses mais restritos acrescentou-se uma infinidade de outros. Tal parece ter sido a prin-

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cipal contribuição do último século para a História da Cultura. Para além disto, passou-se a avaliar a Cultura também como processo comunicativo, e não como a totalidade dos bens culturais produzidos pelo homem. Este aspecto, para o qual confluíram as contribuições advindas das teorias semióticas da cultura, também representou um passo decisivo. Duas noções que se acoplam de forma mais habitual à de “cultura”, para constituir um universo de abrangência da História Cultural, como já pontuamos, são as de “práticas” e “representações”. “Práticas”, conforme veremos a todo instante, refere-se a ações e interferências no campo da Cultura realizadas por seres humanos em relação uns com os outros e na sua relação com o mundo, o que, em última instância, inclui tanto as ‘práticas discursivas’ como as ‘práticas não-discursivas’. Neste sentido, “práticas culturais” são, necessariamente, “práticas sociais”, pelo menos de acordo com a perspectiva que aqui estamos examinando. Do mesmo modo, vale notar que a tendência nas ciências humanas de hoje é muito mais a de falar em uma ‘pluralidade de culturas’ do que em uma única Cultura apreendida de forma generalizada. Em nosso caso, como estamos empregando a noção de História Cultural como relativa a um dos enfoques possíveis para o historiador que se depara com uma realidade social a ser decifrada, utilizaremos, ordenadora dessa dimensão complexa da vida humana. Trata-se, no entanto, de uma dimensão múltipla, plural, complexa, e que pode gerar diversas aproximações diferenciadas. Os objetos da História Cultural, face à noção complexa de cultura que hoje predomina nos meios da historiografia profissional, são inúmeros. A começar pelos objetos que já faziam parte dos antigos estudos historiográficos da Cultura, continuaremos mencionando o círculo das Artes, da Literatura e da Ciência – campo já de si multidiversificado, no qual podem ser observadas desde as imagens que o homem produz de si mesmo, da sociedade em que vive e do mundo que o cerca, até as condições sociais de produção e circulação dos objetos de arte e literatura. Fora estes objetos culturais, já de há muito reconhecidos, e que de resto sintonizam com a “cultura letrada”, incluiremos todos os objetos da ‘cultura material’ e os materiais (concretos

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em algumas ocasiões, a expressão empregada no singular, “cultura”, como

ou não) oriundos da “cultura popular” produzida no nível da vida cotidiana mediante atores de diferentes especificidades sociais. De igual maneira, uma nova História Cultural interessar-se-á pelos sujeitos produtores e receptores de cultura – o que abarca tanto a função social dos ‘intelectuais’ de todos os tipos (no sentido amplo, conforme veremos adiante), até o público receptor, o leitor comum, ou as massas capturadas modernamente pela chamada “indústria cultural” (esta que, aliás, também pode ser relacionada como uma agência produtora e difusora de cultura). Agências de produção e difusão cultural também se encontram no contexto institucional: os sistemas educativos, a imprensa, os meios de comunicação, as organizações socioculturais e religiosas. Para além dos sujeitos e agências que produzem a cultura, estudam-se os meios pelos quais esta se produz e se transmite: as práticas e os processos. Por fim, a ‘matéria-prima’ cultural propriamente dita (os padrões que estão por trás dos objetos culturais produzidos): as “visões de mundo”, os sistemas de valores, os sistemas normativos que constrangem os indivíduos, os ‘modos de vida’ relacionados aos vários grupos sociais, as concepções relativas a estes vários grupos sociais, as ideias disseminadas por meio de correntes e movimentos de diversos tipos. Com um investimento mais próximo à Imaginário e representações: entre fios, meadas e alinhavos

História das Mentalidades, podem ser estudados ainda os modos de pensar e de sentir considerados pela coletividade. Esses diversos objetos da História Cultural – distribuídos ou parti-

lhados entre os cinco eixos fundamentais acima citados (objetos culturais, sujeitos, práticas, processos e padrões) – têm constituído um foco especial de interesses da parte de vários historiadores do século XX. Visualizado esse campo de interesses, sobre o qual têm se constituído a História Cultural, como um campo de saber mais especializado dentro da História, em sentido amplo, será possível examinar, a seguir, dois dos seus conceitos fundamentais: o de “práticas” e “representações”. ***

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A contribuição decisiva de autores, como Roger Chartier, para a História Cultural está de modo preciso na elaboração dessas noções complementares e que, de certo modo, conservam entre si uma espécie de relação dialética em que as “práticas” redefinem constantemente as “representações”, e vice-versa. De acordo com esse horizonte teórico, a Cultura (ou as diversas formações culturais) poderia ser examinada na esfera produzida pela relação interativa entre esses dois polos. Tanto os objetos culturais seriam produzidos “entre práticas e representações”, como os sujeitos produtores e receptores de cultura circulariam entre esses dois polos, que, de certo modo, corresponderiam, respectivamente, aos ‘modos de fazer’ e aos ‘modos de ver’. Será imprescindível clarificar, nesse passo, essas duas noções que, hoje, são de importância primordial para o historiador da Cultura. O que são as “práticas culturais”? Antes de tudo, convém ter em vista que esta noção deve ser pensada não apenas em relação às instâncias oficiais de produção cultural, às instituições várias, às técnicas e às realizações (por exemplo, os objetos culturais produzidos por uma sociedade), mas também em respeito aos usos e costumes que caracterizam a sociedade examinada pelo historiador. São práticas culturais não apenas a feitura de um livro, uma técnica artística ou uma modalidade de ensino, mas também os modos como, em e andam, conversam ou discutem, solidarizam-se ou hostilizam-se, morrem ou adoecem, tratam seus loucos ou recebem os estrangeiros. Será possível compreender isso a partir de um exemplo concreto. Para este fim, acompanharemos as “práticas culturais” (e, neste caso, as “práticas sociais”), que se entreteceram no Ocidente Europeu durante um período situado entre a Idade Média e o período Moderno, no que concerne à aceitação ou rejeição da figura do “mendigo”. Entre o fim do século XI e o início do século XIII, os pobres e, entre seus vários, o mendigo, desempenhavam um papel vital e orgânico nas sociedades cristãs do Ocidente Europeu. A sua existência social era justificada como sendo primordial para a “salvação do rico” (MOLLAT, 1989, p. 73). Consequentemente, o mendigo – pelo menos o mendigo conhecido ou familiar à comunidade – era bem acolhido na sociedade medieval. Toda co-

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uma dada sociedade, os homens falam e se calam, comem e bebem, sentam-se

munidade, cidade ou mosteiro, queria ter os seus mendigos, pois eles eram vistos como laços entre o céu e a terra – instrumentos por meio dos quais os ricos poderiam exercer a caridade para expiar os seus pecados. Essa visão do pobre como ‘instrumento de salvação para o rico’, antecipemos desde já, é uma ‘representação cultural’. A postura medieval em referência aos mendigos gerava ‘práticas’, ou seja, costumes e modos de convivência. Tal como mencionamos atrás, fazem parte do conjunto das “práticas culturais” de uma sociedade também os ‘modos de vida’, as ‘atitudes’ (acolhimento, hostilidade, desconfiança), ou as normas de convivência (caridade, discriminação, repúdio). Tudo isto, conforme veremos, são práticas culturais que, além de gerarem, eventualmente, produtos culturais no sentido literário e artístico, geram, também, padrões de vida cotidiana (“cultura” no moderno sentido antropológico). No século XIII, com as ordens mendicantes, inauguradas por São Francisco de Assis, a valorização do pedinte pobre recebeu ainda um novo impulso. Antes, ainda havia aquela visão bastante difundida de que, embora o pobre fosse instrumento de salvação necessário para o rico, o mendigo, em si mesmo, estaria naquela condição como resultado de um pecado. O seu sofrimento pessoal, enfim, não era gratuito, mas resultado de uma determinação oriunda do Imaginário e representações: entre fios, meadas e alinhavos

plano espiritual. Os franciscanos apressaram-se em desfazer esta ‘representação’. Seus esforços atuaram no sentido de produzir um discurso de reabilitação da imagem do pobre, e mais especificamente, do mendigo. O pobre deveria ser estimado pelo seu valor humano, e não apenas por desempenhar um importante papel na economia de salvação das almas. O mendigo não deveria ser mais visto em associação a um estado pecaminoso, embora útil. Tais ‘representações’ medievais do pobre, com seus sutis deslocamen-

tos, eram complementares a inúmeras ‘práticas’. Desenvolviam-se as instituições hospitalares, os projetos de educação para os pobres, as caridades paroquiais, as esmolarias de príncipes. A literatura dos romances, os dramas litúrgicos, as iconografias das igrejas e a arte dos trovadores difundiam, em meio a suas práticas, representações do pobre que lhe davam um lugar de relativo conforto na sociedade. Havia os pobres locais, que eram pratica-mente adotados pela sociedade na qual se inseriam, e os “pobres de passa-

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gem” – os mendigos forasteiros que, se não eram acolhidos em definitivo, pelo menos recebiam alguma alimentação e cuidados por um certo período de estadia, antes de serem convidados a seguir viagem. Daremos agora um salto no tempo para verificar como se transformaram essas práticas e representações com a passagem para a Idade Moderna. No século XVI, o mendigo forasteiro seria recebido com extrema desconfiança. Ele passava a ser visto de maneira cada vez mais excludente. Suas ‘representações’, em geral, tendiam a estar inseridas no âmbito da marginalidade. Perguntava-se que doenças estaria prestes a transmitir, se não seria um bandido, por que razões não permaneceu no seu lugar de origem, por que não tinha uma ocupação qualquer. Assim mesmo, quando um mendigo forasteiro aparecia em uma cidade, no século XVI, ele ainda era tratado e alimentado antes de ser expulso. Já no século XVII, ele teria a sua cabeça raspada (um sinal representativo de exclusão), algumas décadas depois, ele passaria a ser açoitado, e já no fim desse século, a mendicidade implicaria a condenação1. O mendigo, que, na Idade Média, se beneficiara de uma representação que o redefinia “instrumento necessário para a salvação do rico”, era agora penalizado por se mostrar aos poderes dominantes como uma ameaça contra o sistema de trabalho assalariado do Capitalismo, que não poderia máquinas e teares, e nem permitir que se difundissem exemplos e modelos inspiradores de vadiagem. O mendigo passava a ser representado, então, como um desocupado, um estorvo que ameaçava a sociedade (e não mais como um ser merecedor de caridade). Ele tornara-se, então, assimilado aos marginais, aos criminosos – sua representação mais comum era a do vagabundo. Algumas canções e obras literárias iriam representá-lo com alguma frequência dessa nova maneira, os discursos jurídicos e policiais fariam isto sempre. As novas tecnologias de poder passariam a visar a sua reeducação, e, quando isto não fosse possível, a sua punição exemplar. Novas práticas iriam substituir as antigas, consolidando novos costumes. 1

Estas mudanças de práticas foram examinadas por Michel Foucault em obras como O nascimento da clínica e Vigiar e punir, e Fernando Braudel as sintetiza em um passo de Civilização material, economia e capitalismo. Em O capital, Marx também examina as rigorosas leis contra a pobreza ‘não inserida’ no novo sistema de trabalho assalariado produzido pelo Capitalismo.

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desprezar braços humanos de custo barato para pôr em movimento suas

O exemplo discutido acima, embora tenha requerido uma digressão de alguns parágrafos, pretende contribuir para uma melhor compreensão acerca desses dois conceitos que são tão falados, mas nem sempre tão bem compreendidos. Chama atenção para a complementaridade das “práticas e representações”, e para a extensão de cada uma dessas noções. As práticas relativas aos mendigos forasteiros geram representações, e as suas representações geram práticas, em um emaranhado de atitudes e gestos no qual não é possível distinguir onde estão os começos (se em determinadas práticas, se em determinadas representações). Poderemos dar outros exemplos mais breves. Um livro é um objeto cultural bem conhecido em nosso tipo de sociedade. Para a sua produção, são movimentadas determinadas práticas culturais e também representações, sem contar que o próprio livro, depois de produzido, irá difundir novas representações e contribuir para a produção de novas práticas. As práticas culturais que emergem na construção do livro são tanto de ordem autoral (modos de escrever, de pensar ou expor o que será escrito), como editoriais (reunir o que foi escrito para constituí-lo em livro), ou, ainda, artesanais (a construção do livro na sua materialidade, dependendo de estarmos na era dos manuscritos ou da impressão). Da mesma Imaginário e representações: entre fios, meadas e alinhavos

forma, quando um autor se põe a escrever um livro, ele se conforma a determinadas representações do que deve ser um livro, a certas representações concernentes ao gênero literário no qual se inscreverá a sua obra, a representações concernentes aos temas por ela desenvolvidos. Esse autor também poderá se tornar criador de novas representações, que encontrarão, no devido tempo, uma ressonância maior ou menor no circuito leitor ou na sociedade mais ampla. Com relação a esse último aspecto, já vimos que a leitura de um li-

vro também gera práticas criadoras, podendo produzir, ao mesmo tempo, práticas sociais. Será o livro lido em leitura silenciosa, em recinto privado, em uma biblioteca, em praça pública? Sabemos que sua leitura poderá ser individual ou coletiva (um letrado, por exemplo, pode ler o livro para uma multidão de não-letrados), e que o seu conteúdo poderá ser imposto ou rediscutido. Por fim, a partir da leitura e difusão do conteúdo do livro,

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poderão ser geradas inúmeras representações novas sobre os temas que o atravessam, que, em alguns casos, poderão passar a fazer parte das representações coletivas. A produção de um bem cultural, como um livro ou qualquer outro, está necessariamente, inscrita em um universo regido por estes dois polos que são as práticas e as representações. Os exemplos são indefinidos. Cantar músicas em um sarau era uma prática cultural da qual participavam os trovadores medievais, que, desta forma, contribuíam para elaborar por meio de suas canções uma série de representações a serem reforçadas ou difundidas (o amor cortês, a vida cavaleiresca). Um sistema educativo inscreve-se em uma prática cultural, e ao mesmo tempo, inculca naqueles que a ele se submetem determinadas representações destinadas a moldar certos padrões de caráter e a viabilizar um determinado repertório linguístico e comunicativo que será vital para a vida social, pelo menos tal como a concebem os poderes dominantes. Em todos esses casos, como também no exemplo do mendigo desenvolvido antes, as práticas e representações são sempre resultado de determinadas motivações e necessidades sociais. As noções complementares de “práticas e representações” são bastante úteis, porque, por meio delas, podemos examinar tanto os objetos culturais envolvem a produção e difusão cultural, os sistemas que dão suporte a eles e aos sujeitos, e, por fim, as normas a que se conformam as sociedades quando produzem cultura, inclusive mediante a consolidação de seus costumes. Abrange-se, conforme se vê, todo aquele espectro de interesses da História Cultural que já foi delineado no início deste ensaio. De alguma maneira, a noção de ‘representação’ pretende corrigir aspectos lacunares que afloram em noções mais ambíguas, como, por exemplo, a de “mentalidades”. Vimos, pelos exemplos acima, que as representações podem incluir os modos de pensar e de sentir, inclusive coletivos, mas não se restringem a eles. Quando um pintor produz a sua representação de uma catedral, com tela e tintas, ou quando um escritor descreve ou inventa uma catedral por meio de um poema ou de um romance, temos, em ambos os casos, representações, embora não coletivas ou não exclusivamente cole-

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produzidos, os sujeitos produtores e receptores de cultura, os processos que

tivas. Tal como assevera Jacques Le Goff (1994, p. 11), o campo das representações “engloba todas e quaisquer traduções mentais de uma realidade exterior percebida”, e está ligado ao processo de abstração. O âmbito das representações, ainda conforme Le Goff, também pode abarcar elementos associados ao Imaginário – noção que se torna mais bem compreendida, quando adentramos a História do Imaginário. As representações do poder – como, por exemplo, a associação do poder absoluto ao Rei-Sol, a visualização deste poder, em termos de centro a ser ocupado ou de cume a ser atingido – associam-se a um determinado imaginário político. Deve-se ter notado que – ao nos referirmos atrás a “representações”, “práticas”, “mentalidades”, “imaginário” –, em todos os casos, preferimos utilizar a expressão “noção” em vez de “conceito”. As “noções” são ‘quase conceitos’, mas ainda funcionam como tateamentos na elaboração do conhecimento científico, atuando à maneira de imagens de aproximação de um determinado objeto de conhecimento (imagens que, a rigor, ainda não se acham bastante delimitadas). Muitas vezes, as noções são resultados de uma descoberta progressiva, de experiências, de investimentos criativos de um ou mais autores que podem ou não ser incorporados de modo regular pela comunidade científica. Mentalidades, Imaginário e Representações são Imaginário e representações: entre fios, meadas e alinhavos

noções que ainda estão sendo experimentadas no campo das ciências humanas – e no campo mais específico da História, tais expressões passaram a frequentar mais habitualmente a palheta teórica dos historiadores há apenas algumas poucas décadas (“mentalidades” é expressão forjada a partir da historiografia francesa da década de 1960; “imaginário” é uma palavra que, apenas há pouco, migrou para o campo histórico, importada de campos como a psicologia e a fenomenologia). Com o tempo, uma “noção” pode ir se transformando em “conceito”, à

medida que adquire uma maior delimitação e em que uma comunidade científica desenvolve uma consciência maior dos seus limites, da extensão de objetos à qual se aplica. Os “conceitos”, pode-se dizer, são instrumentos de conhecimento mais elaborados, longamente amadurecidos, o que não impede que existam conceitos com grande margem de polissemismo (como o conceito de “ideologia” ou, tal como já explicamos, como o próprio conceito de “cultura”).

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“Práticas” e “representações” são ainda noções que estão sendo elaboradas no campo da História Cultural. Mas, tal como já ressaltamos, elas têm possibilitado novas perspectivas para o estudo historiográfico da Cultura, porque, juntas, permitem abarcar um conjunto maior de fenômenos culturais, além de chamarem atenção para o dinamismo e reciprocidade desses fenômenos. Por outro lado, citamos atrás algumas ‘representações do poder’ que produzem associações com um determinado imaginário político (centralização, periferia, marginalização). Quando uma representação liga-se a um circuito de significados fora de si e já bem entronizado em certa ‘comunidade discursiva’2, ela começa a se avizinhar de outra categoria importante para a História Cultural, que é o “símbolo”. “Símbolo” é uma categoria teórica já há muito tempo amadurecida no seio das ciências humanas – seja na História, na Antropologia, na Sociologia ou na Psicologia. Não é mais uma ‘noção’, mas, sim, um ‘conceito’ que pode ser empregado “quando o objeto considerado é remetido para um sistema de valores subjacente, histórico ou ideal” (LE GOFF, 1994, p. 12). Alguns símbolos podem ser polivalentes. A serpente, por exemplo, pode ser empregada como símbolo do ciclo, da renovação (sentido inspirado pela mudança de peles que ocorre em ciclos no animal serpente), mas também remetem ao universo bíblico). Aquilo que os historiadores da cultura têm chamado de campo das representações pode abarcar tanto as representações produzidas em nível individual (as representações artísticas, por exemplo), como as representações coletivas, os modos de pensar e de sentir (a que se referia à antiga noção de “mentalidades”), certos elementos que já fazem parte do campo do imaginário e, com especial importância, os “símbolos”, que constituem um dos recursos mais importantes da comunicação humana. As representações podem ainda ser apropriadas ou imprimidas de uma direção socialmente motivada, situação que leva a outro conceito fundamental para a História Cultural, que é o de “ideologia”. A ideologia, de fato, é Isto é, uma comunidade de falantes, como os praticantes de uma determinada disciplina, como os integrantes de uma sociedade, ou mais especificamente, os integrantes de determinados grupos socioculturais.

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pode ser empregado como símbolo da astúcia, da maldade (sentidos que

produzida a partir da interação de subconjuntos coerentes de representações e de comportamentos que passam a reger as atitudes e as tomadas de posição dos homens nos seus inter relacionamentos sociais e políticos. No exemplo do mendigo, vimos como as suas representações sociais e deslocamentos no universo mental dos homens medievais atendiam a determinados interesses sociais ou a determinadas motivações coletivas. Podemos assegurar que aquelas representações estavam sendo apropriadas de forma ideológica. A difusão de uma franca hostilidade com relação ao mendigo do período moderno e a impregnação de novas tecnologias de exclusão nos discursos que o tomam como objeto (a sua classificação como vagabundo, a raspagem da cabeça) acabam fazendo com que, sem querer, a maioria das pessoas da sociedade industrial comece a pressionar todos os seus membros a encontrar uma ocupação no sistema capitalista de produção e trabalho. Isto é um processo ideológico. Por vezes, a ideologia aparece como um projeto de agir sobre determinado circuito de representações no intuito de produzir determinados resultados sociais. Georges Duby, por exemplo, examina, em uma de suas obras, como uma antiga representação do mundo social em três ordens – oratores, bellatores, laboratores – é reapropriada ideologicamente a determinada altura Imaginário e representações: entre fios, meadas e alinhavos

da sociedade feudal, sendo possível identificar as primeiras produções culturais da Idade Média em que aparece este novo sentido ideológico acoplado ao circuito de representações da sociedade tripartida (DUBY, 1971). A ideologia surge, desta forma, como um projeto de agir sobre a so-

ciedade (este é, aliás, um outro sentido empregado para ‘ideologia’, que, conforme veremos adiante, é um conceito polissêmico). Outros exemplos similares ao estudado por Georges Duby são propostos por Jacques Le Goff (1994, p. 12) para o mesmo período, conforme poderemos examinar na passagem reproduzida abaixo: Quando os clérigos da Idade Média exprimem a estrutura da sociedade terrena pela imagem dos dois gládios – o do temporal e o do espiritual, o do poder real e o do poder pontifical – não descrevem a sociedade: impõem-lhe uma imagem destinada a separar nitidamente os clérigos dos leigos e a estabelecer entre eles uma hierarquia, pois o gládio espiritual é superior ao gládio material.

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Quando estes mesmos clérigos distinguem nos comportamentos humanos sete pecados capitais, o que eles fazem não é a descrição dos maus comportamentos, mas sim a construção de um instrumento adequado ao combate contra os vícios em nome da ideologia cristã.

A ideologia, poderíamos mencionar, corresponde a uma determinada forma de construir representações ou de organizar representações já existentes para atingir determinados objetivos ou reforçar determinados interesses (e para, enfim, impor certas práticas). O nível de consciência ou de automatismo como isto é feito é questão aberta, e que dificilmente poderá ser um dia encerrada. Também se discute se ideologia é uma dimensão que se refere à totalidade social (uma instância ideológica) ou se existem ideologias associadas a determinados grupos ou classes sociais (ideologia burguesa, ideologia proletária). Na verdade, ideologia é um conceito que tem sido empregado por autores distintos com inúmeros sentidos no campo das ciências humanas, e, por isto, um historiador que pretenda utilizar o conceito deve se apressar a definir com bastante clareza o sentido com o qual o está utilizando. Na acepção mais restrita que empregamos acima, a ideologia está sempre associada a um determinado sistema de valores. A social’ exercido sobre os membros de uma sociedade, em geral sem que estes tenham consciência disto e, muitas vezes, sem que os próprios agentes implicados na produção e difusão de imagens que alimentam o âmbito ideológico tenham eles mesmos uma consciência mais clara dos modos como o poder está sendo exercido. Cabe precisamente aos historiadores da cultura examinar as relações ideológicas, para que não realizem uma História da Cultura meramente descritiva, como aquela que propunha Huizinga em um famoso ensaio do início do século XX, ao afirmar que o objetivo fundamental da História Cultural é meramente morfológico, “ou seja, a descrição de padrões de cultura ou, por outras palavras ainda, pensamentos, sentimentos e a sua expressão em obras de arte e de literatura” (BURKE, 1992, p. 15). É também esse mesmo tipo de História da Cultura que foi elaborado por Jacob Burckhardt

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ideologia, de acordo com esse uso, tem a ver com ‘poder’, com ‘controle

no século XIX, ao procurar recuperar aquilo que chamou de “espírito da época” na sociedade renascentista (BURCKHARDT, 1992). Esclarecidos os conceitos fundamentais que acabam permeando qualquer reflexão encaminhada pela História Cultural – ideologia, símbolo, representação, prática – poderemos voltar ao horizonte teórico inaugurado por Chartier dentro do enfoque histórico-cultural – e que tem nas noções de “práticas” e “representações” dois dos seus alicerces fundamentais. De fato, a história cultural, tal como a entende o historiador francês, “tem por principal objeto identificar o modo como em diferentes lugares e momentos uma determinada realidade cultural é construída, pensada, dada a ler” (CHARTIER, 1990, p. 17). As representações, acrescenta Chartier, inserem-se “em um campo de concorrências e de competições cujos desafios se enunciam em termos de poder e de dominação” – em outras palavras, são produzidas aqui verdadeiras “lutas de representações” (CHARTIER, 1990, p. 17). Estas lutas geram inúmeras ‘apropriações’ possíveis das representações, de acordo com os interesses sociais, com as imposições e resistências políticas, com as motivações e necessidades que se confrontam no mundo humano. Estamos aqui bem longe do modelo de História da Cultura Imaginário e representações: entre fios, meadas e alinhavos

proposto por Huizinga. O modelo cultural de Chartier é atravessado pela noção de “poder” (o que, de certa forma, faz dele também um modelo de História Política). Para encaminhar a interação entre cultura e poder, tem a sua entrada

uma outra noção primordial. “Apropriação”, junto às noções de “representação” e de “prática”, constitui precisamente a terceira noção fundamental que conforma o viés de História Cultural desenvolvida por Roger Chartier – que, nos dizeres do próprio historiador francês, procura compreender as práticas que constroem o mundo como representação (CHARTIER, 1990, p. 27-28). A perspectiva cultural desenvolvida por autores como Roger Chartier

e Michel de Certeau, enfim, constitui um dos eixos mais influentes para o atual desenvolvimento de uma História Cultural, ao lado de outras perspectivas importantíssimas como a da Escola Inglesa (Thompson, Hobsbawm

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e Christopher Hill) e da abordagem polifônica da cultura (Bakhtin e Ginzburg). Estas e outras possibilidades da História Cultural entre práticas e representações, são tão importantes como a proposta por Chartier, e cada uma delas mereceria, portanto, um estudo em maior profundidade3.

Referências BARROS, José D’Assunção. O campo da História – especialidades e abordagens. Petrópolis: Vozes, 2004. BRAUDEL, Fernando. Civilização material, economia e capitalismo. 3 v. São Paulo: Martins Fontes, 1997. BURCKHARDT, Jacob. A civilização do Renascimento na Itália. Lisboa: Presença, 1992 [original: 1860]. BURKE, Peter. História Cultural: passado, presente e futuro. In: BURKE, Peter. O mundo como teatro. São Paulo: DIFEL, 1992. CERTEAU, Michel de. L’invention du quotidien. Paris : Union Générales d’Editions, 1980. ______. A operação historiográfica. In: CERTEAU, M. de. A escrita da História.Rio de Janeiro: Forense, 1982. p. 65-119.

CHARTIER, Roger. A História Cultural - entre práticas e representações. Lisboa: DIFEL, 1990. DARNTON, Robert. História Intelectual e Cultural. In: DARNTON, R. O beijo de Lamourette. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. p. 175-197. DUBY, Georges. Problemas e Métodos em História Cultural. In: DUBY, G. Idade Média, idade dos homens – do amor e outros ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. p. 125-130. ______. As três ordens ou o imaginário do feudalismo. Lisboa: Edições 70, 1971 [original: 1978].

Um exame mais atento destas várias perspectivas poderá ser encontrado em José D’Assunção Barros, O campo da História – especialidades e abordagens, 8 ed. Petrópolis: Vozes, 2011. A obra também objetiva examinar diversas outras modalidades da História, como a História Social, a História Política, a Micro-História, e muitas outras.

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CHARTIER, Roger; CERTEAU, Michel de. Lectures et lecteurs dans l’ancien regime. Paris: Minuit,1987.

FOUCAULT, Michel. O nascimento da clínica. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1980. ______. Surveiller et punir – Naissance de la prision. Paris: Gallimard, 1975 [Vigiar e punir, história da violência nas prisões. Petrópolis: Vozes, 1977] ______. A arqueologia do saber. Petrópolis: Vozes, 1972. LaCAPRA, Dominick. Rethinking History: texts, contexts, language, Nova York: Ithaca, 1983. LE GOFF, Jacques. O imaginário medieval. Lisboa: Estampa, 1994. MARX, Karl. O capital. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. 2 vol. MOLLAT, Michel. O pobre na Idade Média. Rio de Janeiro: Campus, 1989.

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WHITE, Hayden. A meta-História. São Paulo: EDUSP, 1992.

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O imaginário distópico e a sociedade de consumo Rogério Bianchi de Araújo

Introdução Procurei, neste texto, fazer uma abordagem antropológica e filosófica acerca do papel do imaginário na construção de categorias de pensamento por meio das experiências estéticas. A elaboração de imaginários textuais ou visuais implica a compreensão da realidade por outras óticas não convencionais, que diferem profundamente da ótica científica. mentar às inquietações próprias das Ciências Sociais, ao alertar para uma sociedade em que a ética de consumo prevalece em relação às éticas de caráter mais sociais ou universais. A Antropologia do imaginário nos mostra que talvez precisemos buscar o abstrato, o lúdico, o subjetivo, para que possamos pensar o real de uma forma mais crítica ou criativa. O campo do imaginário é um campo vasto. Hoje, o impacto do uso da imagem nas Ciências Sociais é tão forte quanto fora aquele promovido pelo gravador. A linguagem imagética tem mais expressividade e força metafórica; ela condensa, tornando a percepção dos fenômenos sociais mais sensível, já que é mais alusiva, mais elíptica e mais simbólica. Deve-se desenvolver conhecimentos para ler, mas, principalmente, para ler bem uma imagem, descobrindo um sentido na sua construção; essa 29

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Enfatizo o imaginário distópico, não de maneira cética, mas comple-

é uma exigência necessária à prática audiovisual em Antropologia, ainda que possa parecer difícil ou supérflua. Como pensar nas práticas de consumo de forma crítica e questionadora? Numa sociedade em que a sedução do consumo é franca e direta, pouco espaço sobra para reflexões mais elaboradas de nossa condição. Num contexto histórico, em que se apregoa que os ideais, utopias, ideologias estão mortas, parece mesmo que não há mais história. O cinema distópico por meio de suas imagens dramáticas e seu imaginário fascinante de construção de futuros caóticos, leva-nos a lugares longínquos para tentar enxergarmos o que está ao nosso redor. O imaginário do cinema distópico convida-nos a vivenciar experiências desagradáveis para, quem sabe, repensarmos a realidade, além de nos provocar questionamentos com que já não mais nos preocupávamos. O imaginário distópico incomoda e nos faz sair da inércia em que nos encontramos. Numa época de imagens e estética em abundância, esse novo instrumento é um ferramental significativo para o campo das Ciências Sociais e sua prática. O casamento dessas duas linguagens – antropológica e imagética – não é tarefa simples. Ler imagens quer dizer classificar seus significados, ler seu sentido (o trajeto do olhar, as impressões visuais globais, as Imaginário e representações: entre fios, meadas e alinhavos

rupturas ou contradições entre o que é percebido e o que é compreendido).

A ambientação distópica Segundo Bauman (2007), vivemos a era da incerteza, que traz consigo

algumas características muito peculiares. Passamos de uma fase “sólida” da modernidade para a “líquida”, isto é, as organizações sociais já não mantêm mais a sua forma por muito tempo. Há uma separação e iminente divórcio entre o poder e a política, que provoca a redução da segurança comunal e o colapso do pensamento a longo prazo. A responsabilidade em resolver os dilemas gerados por circunstâncias voláteis e instáveis é agora dos indivíduos. Sugere-se que, no fundo de todas as outras (numerosas) diferenças, está a nova “liquidez”, isto é, a incapacidade endêmica de nossa sociedade, e de qualquer parte dela, de manter sua forma por algum período de tempo.

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Bauman faz a crítica não tanto ao consumo (afinal, essa é a eterna necessidade de todo ser humano), mas ao consumismo: a tendência a perceber o mundo como, basicamente, um enorme recipiente dos potenciais objetos de consumo e de moldar todas as relações humanas conforme um determinado padrão. Assim, o outro (parceiro, amigo, vizinho, parente) é “bom”, desde que traga satisfação e possa (ou deva) ser descartado quando a satisfação acabe ou se mostre não tão boa quanto se esperava ou quanto a que outra pessoa talvez pudesse fornecer em seu lugar. Outros seres humanos se tornam descartáveis e facilmente substituíveis - como os bens de consumo são ou deveriam ser. Afinal, não fazemos juramento de eterna fidelidade a celulares, televisores, computadores, carros, geladeiras e outros bens de consumo. Quando eles param de funcionar ou são superados por ofertas novas e mais atraentes, separamos-nos deles com pouca tristeza e sem escrúpulos. Na verdade, tendemos a comemorar a substituição. Mas, segundo Bauman, esse “padrão consumista” é contrário aos princípios que conduzem nossos relacionamentos amorosos. Assim como devolvemos uma mercadoria imperfeita à loja, exigindo nosso dinheiro de volta, tendemos a ter esse comportamento ante a qualforma prática os problemas, quando os justificamos como consumidores que somos. As relações humanas tornam-se superficiais, descartáveis e fugazes. Sob a pressão do consumismo, as relações amorosas se transformam em episódios amorosos: tornam-se frágeis, quebradiças, não confiáveis, antes uma fonte de medo ao invés de alegria. O progresso ora considerado utopia, manifestado com extremo otimismo, agora caminha em direção oposta. Representa uma ameaça antiutópica que não traz paz nem sossego, mas crise e tensão. Traz exclusão, competição e, ao invés de um sonho acordado, um pesadelo acordado. Fica cada vez mais difícil a possibilidade de uma segurança existencial que se baseie em alicerces coletivos e ações solidárias. Estamos num período e contexto históricos marcados pela fragmentação e atomização da realidade, consequentemente, incerta e totalmente imprevisível. Flexibilidade, hoje, é palavra de ordem.

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quer mínima desavença e inquietação, queremos resolver rapidamente e de

Bauman pondera que as pessoas caíram num grande descrédito quanto à perspectiva de mudança. Cada indivíduo é abandonado à própria sorte, e as pessoas são vistas como meios para atingir fins individualistas. Os vínculos humanos se afrouxam e, por conseguinte, há um enfraquecimento da solidariedade e das virtudes morais. Esse quadro é o que Bauman chama de “globalização negativa”. Para esse sociólogo polonês, estamos num contexto em que há um embate entre a figura do jardineiro e a figura do caçador. Os jardineiros são os construtores de utopias. Eles sabem que tipos de plantas devem e não devem crescer no lote sob seus cuidados. Hoje se fala em “a morte da utopia”, “o fim da utopia” ou “o desvanecimento da imaginação utópica”. Isso demonstra que a postura do jardineiro cede espaço para a do caçador. E em que consiste o caçador? Bauman entende que o caçador não dá a menor importância para o equilíbrio das coisas. Sua única preocupação é buscar outra “matança” para encher suas bolsas. Seríamos agora todos caçadores, convocados a agir desta maneira sob o risco de sermos expulsos da caçada. Segundo Bauman, num mundo povoado de caçadores, há pouco espaço para devaneios utópicos. Há um arrefecimento dos projetos utópicos e, mesmo que alguém assumisse a tarefa, talvez não tivesse força suficiente Imaginário e representações: entre fios, meadas e alinhavos

para tocar tal empreitada. Hoje, a visão utópica esmoreceu e desperta pouco interesse. É comum

associar este aparente desinteresse ao colapso dos Estados comunistas iniciado em 1989. O fracasso do comunismo soviético implicou o fim da utopia. Enquanto o século XVI nos deu o termo “utopia”, o século XX nos deu a “distopia” ou utopia negativa. O movimento da utopia para a distopia é a marca da sociedade contemporânea. Ao passo que as utopias buscam a emancipação ao visualizar um mundo baseada em ideias novas que têm por característica comum serem negligenciadas ou rejeitadas, as distopias procuram demonstrar tendências contemporâneas que podam a liberdade humana. Qual a diferença fundamental entre o utópico e o distópico? O utópico

remete à ideia alargada de utopia como representação e projeção factível de uma situação futura, na qual os valores, regras e instituições estejam acordados com aquilo que se considera ideal; o viés da distopia inverte a pers-

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pectiva utópica, uma vez que o futuro é previsto como pior que o presente, decorrência nefasta de um projeto coletivo. Mas a distopia é importante. Ela traz um incômodo e uma mensagem intrínseca de fazermos algo. Uma propensão à ação. É nesse sentido que o imaginário distópico tem um papel relevante. Serve como alerta e como crítica.

A sociedade de consumo vista como distopia Ao longo da história, a utopia foi, por muitas vezes, apropriada por líderes políticos, intelectuais, religiosos e muitos aventureiros. Por isso, ela recebeu a companhia, no século XX, de sua antítese: a distopia. A distopia ou a utopia negativa (o mau lugar) é atual, porque reflete o pesadelo em que vivemos. Ela também é chamada de antiutopia, ou seja, a anulação da fronteira entre o ser e o dever ser, entre a realidade e o ideal. As sociedades distópicas são, essencialmente, aquelas nas quais o Estado absoluto controla a vida e as mentes de seus cidadãos. Podemos arriscar a assegurar que a distopia, hoje, é a metáfora do capitalismo financeiro e a nova sociedade de consumo generalizado. Críticos do pós-modernismo e da contemporaneidade alegam que esta identidades e no reforço do consumismo no novo estágio do capitalismo. O indivíduo transforma-se também em mercadoria e se despersonaliza. Assim, a sociedade contemporânea é marcada pelo excesso de superficialidade. Ao não aceitarmos o homem como criador de sua vida, teremos de atribuir essa criação a uma vontade consciente dissimulada. Quem é este criador oculto? Talvez o “Deus Mercado”. Supõe-se que o mercado regularia a vida das pessoas e a sua existência individual e coletiva. Esse princípio, marco das últimas décadas, representa a revalidação política e social do ideário liberal, que tem como consequência imediata a revalorização da subjetividade em detrimento da cidadania. Há uma distorção do papel da cidadania diante das formas repressivas de felicidade “oferecidas” à maioria da população por meio do consumo compulsivo de mercadorias. Os sujeitos são transformados em objetos de si mesmo. Tornam-se receptáculos

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época caracteriza-se pela utilização da força da imagem na construção de novas

passivos de estratégias de produção, como consumidores, e de estratégias de dominação como cidadãos de democracias de massa. A subjetividade sem cidadania conduz ao narcisismo e ao autismo. Ao seguir nesta toada crítica, admitimos que a proposta do atual momento de globalização abandona a perspectiva da união de todos os trabalhadores do mundo, para a realidade de vivermos em um mundo dominado pelos ideais neoliberais de um só capital e com a proposta explícita de sedução e “facilidade” em consumirmos produtos do mundo todo. Esses ideais partem do princípio de que o crescimento econômico ilimitado, o livre comércio e a flexibilização das relações de trabalho proveriam todos os habitantes da Terra de uma era de abundância e bem-estar. As leis do mercado substituiriam as Escrituras Sagradas, e o mercado ganharia, definitivamente, uma dimensão mítica. Para os neoliberais, não há alternativa viável ao sistema de mercado capitalista. Bloch, quando escreveu O princípio esperança, já apontava para a invenção de um novo divertimento, ou seja, o consumo. Para ele, a rua do comércio está carregada de sonhos. Uma vitrine pode alimentar vários de nossos desejos, numa espécie de fábula. Em lugar da liberdade para comprar, o que surge é a liberdade resultante do comprar. O eu transmuta-se em mercaImaginário e representações: entre fios, meadas e alinhavos

doria (apresentar mais do que ser). Não é como se deseja a si mesmo, mas como os outros desejam que você seja (quem se põe à venda tem de agradar). Em cada canto, a vitrine forma sonhos desejantes e cria uma imagem sedutora capitalista, que surge entre o homem e a mercadoria. Os anúncios comerciais são como chamarizes, fazem da mercadoria, por mais secundária que seja, uma magia que soluciona toda e qualquer coisa, basta comprá-la. Mania de transformar-se; desejo de colocar uma máscara; pois a máscara possibilita ao burguês aparentar o que quer ser. A consequência negativa é que as grandes revoluções políticas dos séculos XVIII e XIX causaram alguns transtornos e angústias de toda ordem ao indivíduo, sobretudo a angústia psicológica. É um paradoxo, pois a riqueza material da humanidade foi elevada a níveis extraordinários. Esse fato é caracterizado pela falência do projeto burguês de promoção da igualdade de condições a todos e que, mais tarde, se caracterizou como uma falácia.

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Segundo Lipovetsky (2007), o hiperconsumo é a fase iniciada nas últimas décadas do século XX, em que o consumo se associa de forma cada vez mais forte a critérios individuais. Entramos numa fase do capitalismo em que o bem-estar imediato (e pouco durável) tornou-se uma verdadeira “paixão de massa”. Nenhum outro discurso acerca da felicidade – seja na religião, na ciência ou na filosofia – tem mais apelo, atualmente, do que aquele que promete prazeres imediatos e instantâneos. O discurso da lógica do consumo tem como referência a busca da felicidade. Trata-se de uma felicidade mensurada por objetos e signos de conforto e bem-estar, fundamentada nos princípios individualistas. A estética se sobressai em relação à ética e cria-se uma nova forma de vínculos emocionais entre indivíduos e mercadorias. As marcas ganham vida e se personalizam. O produto transforma-se num conceito e num estilo de vida associado às marcas, que são representadas por slogans em marcas de alcance mundial. A ansiedade pelo consumo cresce juntamente com a necessidade de consumir. O hiperconsumismo passa a ser visto como uma forma de lutar contra a fatalidade natural da vida, como um antidestino. É a sociedade de consumo assumindo a forma da distopia contemporânea. Vivemos, hoje, uma nova forma de consumo, assinalada pela oferta incessante de produtos em escala e intensidade absurdas. Nesta sociedade guém é mais capaz de estabelecê-la com nitidez. Nesse universo, as referências se evaporaram e o apelo do consumismo tomou conta do cotidiano de todas as classes sociais indistintamente. Isso faz gerar uma forma inédita de relacionamento do indivíduo consigo mesmo e com o outro. O hiperconsumo teria encurtado as diferenças entre as classes sociais, mas, ao mesmo tempo, passou a se nutrir delas, pois afirma-se que, ao estimular a compulsão pela compra como objeto de desejo, a sociedade de hiperconsumo leva as pessoas com menos renda a se tornarem, na ausência de meios materiais, consumidoras apenas potenciais – só “na imaginação”. A consequência disso é a delinquência, violência, criminalidade. Os homens encontram-se rodeados por objetos e suas relações sociais são impregnadas de uma publicidade cotidiana, que alimenta os sonhos mais taciturnos. Nessas novas relações sociais, começamos a priorizar os objetos

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de consumo, foi suprimida a fronteira entre o necessário e o supérfluo, nin-

em detrimento dos outros. Tornamo-nos cada vez mais funcionais, operatórios e utilitaristas, impulsionados pelas leis do valor de troca. Abundância de objetos, equipamentos, utensílios é sinal de prosperidade e faz brilhar os olhos mais famintos. Há 50 anos, o consumo era algo relativamente modesto na vida das pessoas. Vivia-se com muito pouca coisa, hoje, as pessoas foram levadas a serem “escravas” do consumo. A sociedade de consumo cresce, paradoxalmente, com o crescimento das desigualdades. No entanto as pessoas mais desfavorecidas também são hiperconsumidoras, embora apenas na cabeça. Se não se tem os produtos de consumo, fica-se excluído da sociedade. O hiperconsumidor é alguém em busca de si mesmo, alguém que não vive o dionisíaco, apenas o consome. O sistema de hiperconsumo hedonístico desregulou totalmente o sistema de educação. Os pais têm hoje medo de frustrar os filhos, e essa é uma consequência do hiperconsumo. Os valores hedonistas, o culto da felicidade, tornaram-se centrais, e ser feliz significa a satisfação completa dos desejos de consumo. Tudo é consumível para satisfazer a todos os gostos e preferências, e o prazer torna-se a medida da felicidade. O consumo virou uma espécie de terapia cotidiana, faz esquecer, transcender, como uma forma de Imaginário e representações: entre fios, meadas e alinhavos

expulsão da angústia e da ansiedade. A marca fundamental da sociedade da abundância não é a apropriação

do necessário, mas é a posse do supérfluo que orienta todo o sistema. A publicidade engaja-se nesse processo com a intenção de acelerar o consumo do supérfluo e do descarte do que não é mais atraente, além de alimentar o círculo vicioso da sociedade da abundância. Em suma, a sociedade de consumo precisa dos seus objetos para existir e sente, sobretudo, necessidade de destruí-los. A sociedade do descarte, que começou a ficar evidente durante os anos 60, significa também ser capaz de atirar fora valores, estilos de vida, relacionamentos estáveis, apego a coisas, edifícios, lugares, pessoas e modos adquiridos de agir e ser, as pessoas foram obrigadas a lidar com a descartabilidade, a novidade e as perspectivas de obsolescência instantânea. Baudrillard (1972) alega que a análise marxiana da produção de mer-

cadorias está ultrapassada, porque o capitalismo, agora, tem preocupação

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predominante com a produção de signos, imagens e sistemas de signos e não com as próprias mercadorias. A busca pela democratização do consumo se sobressai em relação às contradições e desigualdades sociais, numa espécie de ideologia democrática global. Reina o princípio da satisfação das necessidades, e todos os homens parecem ser iguais neste caminho, porque no nível do consumo não existe distinção de classes. Segundo Baudrillard, todo o jogo político do consumo tem uma poderosa função ideológica de reabsorção e supressão das determinações objetivas sociais e históricas da desigualdade que consiste em ultrapassar as contradições ao promover o equilíbrio por meio do consumo. A “Revolução do Bem-Estar” toma o lugar da revolução social e política. O princípio do crescimento não se vê abalado com qualquer retórica da igualdade/desigualdade, já que o que alavanca a sua dinâmica é a abundância de mercadorias geradora de empregos e geradora de riquezas. O aumento da produção ocuparia o lugar da redistribuição. Cria-se um discurso de que, na escala da produção, os que se encontram nas escalas mais baixas serão contemplados com uma melhoria significativa, desde que a economia cresça a níveis consideráveis. É muito mais fácil discutir números na sociedade da abundância do que a analisar em termos de estruturas, mas o fato é que o encontra-se logicamente dela separado por toda a estrutura social. O crescimento em si é função da desigualdade, é um elemento estratégico, que mascara princípios democráticos igualitários, mas que mantém e até mesmo legitima uma ordem de privilégio e de domínio, é um forte álibi que tem a função de dar viabilidade ao sistema. A lógica social do consumo segue a lógica da produção e da manipulação dos significantes sociais. O consumidor em si não se vê como condicionado por um sistema, mas antes como um ser livre e que tem aspirações. No entanto o processo de produção das aspirações não é igualitário, e isso se agrava nas classes sociais mais baixas, que veem na compulsão do consumo uma compensação ante a falta de realização na escala social vertical. Não existem limites para as “necessidades” do homem como ser social, e é nesse ponto que a publicidade mostra suas garras, ao criar uma exigência de di-

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crescimento não nos aproxima nem nos afasta da abundância, porque ele

ferenciação e, consequentemente, um crescimento das “necessidades”. Não se distinguem mais com clareza as necessidades mais “racionais” tais como a instrução, a cultura, a saúde, os transportes e os lazeres, das necessidades derivadas do crescimento. As necessidades da ordem da produção e não as necessidades do homem é que constituem o objeto de satisfação nesse tipo de sociedade. O homem dotado de necessidades é impelido a satisfazê-las por meio da aquisição de objetos, mas como o homem parece ser insaciável, nunca vê suas necessidades plenamente satisfeitas, pelo contrário, parece ser ofensivo declarar que se já está plenamente satisfeito. A sociedade da abundância imprime uma nova situação objetiva regulada por nova moral, não constitui um progresso. Traz consigo um novo tipo de condutas, de constrangimentos coletivos e normas. Está longe de inaugurar a sociedade ideal, introduz apenas um diferente tipo de sociedade. Tudo se cumpre na orientação positiva do sujeito para o objeto da necessidade. A violência na sociedade da abundância se dá com a negativa do desejo. Um potencial de angústia que se aguça com a ruptura da lógica ambivalente do desejo e a perda da função simbólica. Com o consumo, encontramo-nos numa sociedade de consumo generalizada e totalitária, que não dá trégua e atua em todos os níveis: econômico, saber, desejo, corpo, signo e pulsões, Imaginário e representações: entre fios, meadas e alinhavos

tudo produzido como valor de troca num processo incessante de diferenciação. Diante de tantas pressões, o indivíduo desintegra-se. Toda a negatividade do desejo vai impor-se na somatização incontrolável da violência. A multiplicidade de fenômenos discordantes tais como a abundância, a euforia e a depressão, em conjunto caracterizam a sociedade de consumo.

A função do imaginário distópico Segundo Durand (1997), o imaginário é o “conjunto das imagens e

das relações de imagens que constitui o capital pensado do homo sapiens” (DURAND, 1997:14) o grande e fundamental denominador em que se encaixam todos os procedimentos do pensamento humano. Parte de uma concepção simbólica da imaginação, que postula o semantismo das imagens, que conteriam materialmente, de alguma forma, o seu sentido. Em

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Durand, não existe verdadeira diferença entre simbólico e imaginário, uma coisa contamina a outra, tanto que sua investigação se dá sobre a imaginação simbólica. A imaginação contribui, significativamente, para a compreensão e a superação da realidade. Além de permitir atingir o real, ela possibilita enxergar aquilo que ainda não se tornou realidade. As imagens são construções que têm por base as nossas experiências visuais anteriores. Como o nosso pensamento é de natureza perceptiva, tendemos a produzir imagens em abundância. Elas são, dessa forma, parte integrante do ato de pensar. É comum opor o imaginário ao real, ao verdadeiro. O imaginário seria uma ficção, algo sem consistência, algo totalmente distinto da realidade econômica, política ou social, considerada palpável e tangível. Essa tradição é quebrada, principalmente, a partir dos anos 1930 e 1940, com a obra de Gaston Bachelard, o Bachelard da “psicanálise do fogo”, dos sonhos, das fantasias, das construções do espírito. Ele procurou demonstrar que as construções mentais poderiam ser eficazes em relação ao concreto. Na esteira de Bachelard, surgiu Gilbert Durand que trabalhou na confluência da tradição literária romântica e da Antropologia, tendo escrito uma obra-prima: As estruturas antropológicas do imaginário. A sua reflexão recuperou o que tinha pela eficácia do imaginário, das construções do espírito. Bachelard e Durand aliam imaginário ao vivido. O imaginário apresenta um elemento racional, ou razoável, mas também outros parâmetros, como o onírico, o lúdico, a fantasia, o imaginativo, o afetivo, o não racional, o irracional, os sonhos, enfim, as construções mentais potencializadoras das chamadas práticas. De algum modo, o homem age porque sonha agir. É fato que a prática condiciona as construções do espírito, mas não se pode ignorar que estas também influenciam as práticas. Em suma, o imaginário é, ao mesmo tempo, impalpável e real. Ele contamina tudo. Encarna uma complexidade transversal. Atravessa todos os domínios da vida e concilia o que, aparentemente, é inconciliável. Mesmo os campos mais racionais, como as esferas política, ideológica e econômica, são recortados por imaginários.

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sido deixado de lado pela modernidade e indicou como o real é acionado

O imaginário, como evocador e mobilizador de imagens, utiliza o simbólico para exprimir-se e existir, assim como o simbólico pressupõe a capacidade imaginária. Ele tem a incumbência de colocar-se sob a forma de apresentação de algo ou incentivar o aparecimento de uma imagem e uma relação que não são dadas diretamente na percepção. O imaginário estimula a percepção a criar novas relações inexistentes no real. Ultrapassa um processo mental que vai além da representação intelectual ou cognitiva. Como processo criador, ele reconstrói ou transforma o real, não de forma concreta, mas no sentido de uma tradução mental dessa realidade exterior. Quando ele se liberta do real, é capaz de inventar, fingir, improvisar e estabelecer conexões entre coisas, supostamente, inconciliáveis. O imaginário também é capaz de prevenir situações futuras ao antecipar um provir não suspeitado ou previsto. Dirige-se à consecução de um possível não realizável no presente, mas que pode vir a ser real no futuro. Apoia-se no real para que esse se veja abalado e deslocado, isto é, que sofra um processo de transfiguração, tendo como fundamento último o real de um passado ou de um futuro. Imaginário não significa ausência da razão, mas apenas a exclusão de raciocínios demonstráveis e prováveis, os quais constituem o fundamento da imaginação científica. Imaginário e representações: entre fios, meadas e alinhavos

Bloch distingue a imaginação da fantasia: a primeira tende a criar um imaginário alternativo a uma conjuntura insatisfatória; a segunda nos aliena num conjunto de “imagens exóticas”, em que procuramos compensar uma insatisfação vaga e difusa. Só a imaginação permite à consciência humana adaptar-se a uma situação específica ou mobilizar-se contra a opressão. O ato de imaginar aclara rumos e acelera utopias. Estamos sempre nos deparando com a intenção de refazer percursos, numa busca incessante das rachaduras e fendas que fomentam as utopias sociais. Como ativadora do campo do imaginário, a imaginação não pode prescindir de um código operacional de comunicação, ao qual compete perfilar vozes que simulam harmonias no conjunto. Quando o significado não é reconhecido no processo de decodificação, o símbolo cai no vazio, não se efetiva a troca imaginária. Mas os símbolos não são neutros, uma vez que os indivíduos atribuem sentidos à linguagem, embora a liberdade de fazê-lo seja limitada pelas normas sociais.

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No extremo oposto, a sociedade constitui sempre uma ordem simbólica, que, por sua vez, não flutua no ar — tem que incorporar os sinais do que já existe, como fator de identificação entre os sujeitos. Num ambiente de exacerbação de “realismos”, o que mais vigora é o imaginário distópico. Distopias são, frequentemente, criadas como avisos, ou como sátiras, mostrando as atuais convenções sociais e limites extrapolados ao máximo. A distopia apresenta alguns traços que lhe são característicos: costumam explorar moralmente os dilemas presentes que refletem de maneira negativa no futuro, oferecem crítica social e apresentam as simpatias políticas do autor, exploram a estupidez coletiva, o poder é mantido por uma elite pela somatização e consequente alívio de certas carências e privações do indivíduo, possuem discurso pessimista, não raro, “flertando” com a esperança. Como exemplo clássico de distopia, destaco As viagens de Gulliver, de Jonathan Swift, escrito em 1726. O mais importante nesta obra é o comentário geral que o autor faz sobre a vida humana, observada sob vários pontos de vista. Primeiro, sob a persperctiva de um Ser de forma agigantada frente os pequenos habitantes de Liliput e que, sob esta ótica, vê a humanidaAgora, um Ser muito pequeno vê a humanidade grotescamente grande. No terceiro momento da obra, o que impera é o senso comum, pois a imensa maioria da humanidade demonstra ser louca e pervertida. No quarto momento, talvez o mais emblemático da obra, há uma clara distinção entre a utopia e a distopia, pois os animais, no caso cavalos, são vistos como seres muito mais racionais do que a raça humana inteira1. Gulliver ficou encantado com o tipo de vida desses animais, conviveu com eles durante vários anos e foi-lhe muito difícil voltar à humanidade e seu modo de vida anterior apontado como irracional e bestial. Na “Parte I”, a raça humana é visualizada em miniatura, mas, logo, mostra a sua ambição e crueldade. Na “Parte II”, a raça humana é grosseira A expressão “raça humana” é usada por Swift. A Antropologia usa como referência a expressão “espécie humana”.

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de ridiculamente pequena. No segundo momento inverte-se a perspectiva.

e repugnante, e seu principal interesse é o dinheiro e a briga pelo poder. Na “Parte III”, vê-se o dom da razão desperdiçado, a triste visão antiética de que o crime compensa, além de caracterizar a piora constante da natureza humana. O autor vê-se completamente desestimulado quanto à suposta integridade e sabedoria humana, passa a desconfiar do que fez avançar, o que motivou as grandes empreitadas e revoluções no mundo. Na “Parte IV”, os yahoos são os seres humanos (sujos, gananciosos, perversos, lúbricos e estúpidos); os houyhnhnms são os animais racionais. O personagem de Gullliver é impelido a informar sobre a Inglaterra para os houyhnhnms e descreve uma tenebrosa realidade. Em suma, nessas quatro visões do autor, a raça humana é concebida com aspecto extremamente desagradável. O que chama a atenção na obra de Swift, e a configura como uma distopia literária, são os passos dados nas viagens de Gulliver, o qual começa a primeira de forma entusiasmada, cheio de esperança no encontro com novos habitantes e culturas diferentes, mas que vai, aos poucos, se desencantando com tamanhas desventuras e barbáries humanas a ponto de, na última de suas jornadas, estar profundamente desgostoso de ter que reviver a sua estada entre os seus semelhantes. Não consegue mais apreciar as virtudes dos indivíduos. Passa a considerar os seres humanos como completos idiotas e Imaginário e representações: entre fios, meadas e alinhavos

sente-se também como tal. Em vez da definição de animal racional, Swift propõe entender o homem apenas como um animal capaz de pensar. Esse imaginário distópico de Swift é bastante presente hoje. Vivemos

um período em que os meios de comunicação predominam. Há um bombardeio de imagens e estéticas superficiais. As pessoas correm alucinadamente de um lado para o outro. O tempo destinado à literatura e às experiências estéticas mais “nobres” está cada vez mais exíguo. Parecemos fazer parte de um imenso vídeo-clip que sobrepõe imagens, umas às outras, de forma avassaladora. Por isso, entendo que, se Bloch coloca a música como a arte utópica transgressora da realidade por excelência, creio que o cinema faz hoje esse importante papel. Mas não é o cinema utópico que predomina. Como as imagens falam por si só, é a distopia no cinema que causa maior impacto e repercussão. Isso parece ser fruto de uma época niilista, mas, como diz Vattimo (1987), é aí que vigora o nosso poder de efetiva eman-

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cipação. Em outras palavras, é a distopia que alimenta a utopia. No tempo do homem transformado em coisa, quando as utopias não movem mais fantasias, o que resta ao diretor de cinema, ao poeta, ao romancista etc. é “ao menos acusar a distopia”. A imagem representa, restitui uma presença. Ela é simbólica por natureza e por função e tende a libertar um significado e, ao mesmo tempo, uma participação afetiva. Por isso, no cinema, existe uma unidade profunda entre sentimento, magia e razão. Magia e sentimento são também meios de conhecimento. Einsenstein demonstra que o sentimento não é uma fantasia irracional, mas um momento do conhecimento. Ele não opõe a magia ao irracional. O cinema, tal como a música, contém a percepção imediata da alma por si própria. Como a poesia, desenvolve-se no campo do imaginário. As fantasias do homem estão diretamente ligadas ao mundo no qual ele vive. Por isso, com o impacto causado pela tecnologia, ciência e globalização, o imaginário de hoje é muito diferente do universo dos seres fantásticos, das lendas e do folclore. A partir da ausência, seja da razão ou da comunicação, foi criado todo um imaginário hoje considerado “infantil”. Com o passar dos séculos, a humanidade avança em todos os campos do conhecimento. O Iluminismo e o predomínio da razão desencantam esse houve uma migração para outras possibilidades, mais adequadas para nosso contexto. Em nossa sociedade, quase todo o mistério é revelado. Onde está o espaço do imaginário? Se antes a falta da ciência provocava a imaginação, agora é o excesso dela que povoa nossas histórias mais fantásticas. Está em franca ascensão o imaginário distópico, que faz a crítica ao excesso e à falta de limites. No imaginário contemporâneo, seres de natureza fantástica foram praticamente excluídos do pensamento em prol de outros, que habitam um mundo cada vez mais urbano, científico, tecnológico e sitiado. Como exemplo característico de discussão sobre a distopia e a mercantilização das relações humanas, a partir do imaginário distópico do cinema na sociedade de consumo, destacaria o filme As invasões bárbaras (CAN, 2003), dirigido por Denys Arcand. Entre outros prêmios, ganhou o Oscar de melhor filme estrangeiro em 2004, além de ter sido indicado na categoria

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imaginário antes constituído. O antigo imaginário não desapareceu, mas

de Melhor Roteiro Original. As invasões bárbaras surgiu em um momento muito particular, em que as questões ligadas às ciências, às técnicas, ao desenvolvimento e progresso e ao consequente enfraquecimento da solidariedade, à exacerbação da sociedade de consumo e desprestígio da subjetividade humana trazem muito incômodo. Trata-se de um marco para aqueles que não conseguiram assimilar totalmente a quebra das ideologias. O filme é, basicamente, a construção da cerimônia do adeus de um intelectual cínico, que flertou com todas as mulheres e todos os ideais da revolução esquerdista do século XX. À beira da morte e com dificuldades em aceitar seu passado, Rémy (Rémy Girard) busca encontrar a paz. Para tanto, recebe a ajuda de seu filho ausente Sébastien (Stéphane Rousseau), sua ex-mulher e velhos amigos. O filme deixa transparecer o fim de uma utopia, pois Rémy, pensador socialista e pai de Sébastien, o jovem milionário capitalista, está convencido de que a civilização ocidental está com os seus dias contados. A certa altura, Rémy se pergunta, com seus amigos, se houve algum “ismo” em que não se engajaram, passando pelo marxismo, leninismo, maoísmo, trotskismo, entre outros. “Só faltou o cretinismo”, lembra alguém. Existem outros diversos exemplos de filmes que podem ser utilizados como referências para ilustrar essa análise distópica da realidade da sociedaImaginário e representações: entre fios, meadas e alinhavos

de de consumo, tais como: Pequena Miss Sunshine (EUA, 2006), O show de

Truman (EUA, 1998), O homem que copiava (BRA, 2002), Um dia de fúria (EUA, 1993), Clube da luta (EUA, 1999), entre outros. São filmes que im-

portunam e fazem refletir sobre as incongruências do mundo ao qual estamos inseridos. O imaginário distópico nos ajuda a “viajar” por outras realidades para olhar sobre a realidade que nos cerca, mas agora com outros olhos.

Considerações finais Tudo que fora criado para dar certo, as invenções tecnológicas, cien-

tíficas, bens materiais etc. acabam por se transformar em verdadeiros martírios para a maioria, daí o surgimento da distopia. Em geral, a distopia é causada em consequência da ação ou da falta de ação humana, de um mau

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comportamento ou da estupidez. Por que, então, a sociedade de consumo é uma antiutopia? Primeiro, é preciso salientar que todas as pessoas consomem, mas isso não significa que elas sejam consumistas contumazes. Não existe vida social sem consumo de algum tipo. Os objetos, como cultura material, são parte integrante do existir de qualquer sociedade. A cultura material cria um ambiente artifical na qual nós existimos e nós vivemos, isto é, o mundo material está inserido dentro de um universo cultural. Ajuda-nos na reprodução física, ajuda-nos na reprodução social e ajuda-nos no processo de construção de nossa objetividade/subjetividade. O consumo só é percebido quando se torna excessivo. Quando o consumo é cotidiano, não percebemos que estamos consumindo. O ser consumista é uma categoria acusatória. A grande questão é: como o consumismo se reproduziu socialmente? Não existem necessidades básicas universais, ou seja, nenhuma necessidade humana é genérica, tudo é feito debaixo de uma determinada lógica cultural. Ocorre que, com o hedonismo contemporâneo, há uma mudança na subjetividade do homem, principalmente o homem ocidental. No mundo tradicional, o prazer estava ancorado nos sentidos, enquanto no mundo moderno, o prazer está ancorado nas emoções. O que promove essa lógica? Isso se dá porque exploradores, isto é, nas economias de mercado ou de uma elite técnico-burocrática de planejadores com objetivos claros, que têm como destaque a instauração de uma sociedade de consumo e de uma população consumista e emotiva. Essa opção conduz a uma catástrofe ecológica sem precedentes, que tem na mudança do clima a expressão mais dramática. Por que pensar no imaginário distópico? Primeiro, pelo fato de serem ficções, histórias, narrativas, portanto, não podem ser generalizadas nem apropriadas para todas as culturas, classes, regiões e, em segundo lugar, por mostrarem contextos críticos que muitos interpretariam como irrealistas, mas, na minha concepção, são situações não tão inverossímeis, não se pode afirmar que o que está deflagrado pela distopia seja o espelho da sociedade contemporânea, ela se encaminha para tais situações e disposições e é aí que se encontra a importância desse conjunto de imagens distópicas, na litera-

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as grandes decisões sobre produção e consumo são deixadas nas mãos de

tura, no cinema, nas artes em geral, sem fazer qualquer distinção entre “alta e baixa cultura”, pois, de qualquer modo, eles nos propiciam vivenciar uma experiência estética que causa incômodo, faz-nos refletir de algum modo e faz-nos pensar que, aos poucos, a sociedade é contaminada por esses tipos de situação e modelos de comportamento. Importuna a nossa subjetividade, mexe com nossos valores, faz repensar a moral e consequentemente o significado da ética. Essa é a maior riqueza do imaginário distópico, mostrar a desconstrução, o desencantamento, não para nos deixar resignados, mas para nos deixar incomodados, com a semente da utopia pronta a germinar.

Referências BAUDRILLARD, Jean. A transparência do mal: ensaios sobre os fenômenos extremos. Campinas/SP: Papirus, 1992. BAUMAN, Zygmunt. Ética pós-moderna. Tradução: João Rezende Costa. São Paulo: Paulus, 1997. ­­______. Tempos líquidos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007. BLOCH, Enrst. O princípio esperança. Tradução de Nélio Schneider. Rio de Janeiro: EdUERJ: Contraponto, 2006. v.3. Imaginário e representações: entre fios, meadas e alinhavos

DURAND, Gilbert. As estruturas antropológicas do imaginário. São Paulo: Martins Fontes, 1997. LIPOVETSKY, Gilles. A felicidade paradoxal. São Paulo: Companhia. das Letras, 2007.

______. A era do vazio: ensaios sobre o individualismo contemporâneo. Tradução: Terezinha Monteiro Deutsch. Barueri/SP: Manole, 2005. SWIFT, Jonathan. As viagens de Gulliver. Trad. Therezinha Monteiro Deutsch. São Paulo: Editora Nova Cultural Ltda., 2003. VATTIMO, Gianni. O fim da modernidade. Niilismo e hermenêutica na cultura pós – moderna.Lisboa: Editorial Presença, 1987.

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O Brasil dos intelectuais. Construções imagéticas e representações simbólicas - 1870/1920 Maria Emilia Prado

Este texto pretende comparar interpretações sobre o Brasil efetuadas por alguns intelectuais no período compreendido entre 1870 e 1920. De modo mais preciso, objetiva-se perceber como foi construído o retrato do país, tendo por parâmetro o denominado “mundo civilizado”. Nesse sentido, temas como: raízes coloniais, composição étnica do povo, elites governamentais, organização do Estado, dentre outros, eram compreendidos como fatores importantes, capazes de aproximar ou distanciar o Brasil da civilização. Na des, defeitos, potencialidades são questões que se fazem presentes no debate intelectual brasileiro desde o início do século XIX. Esse debate acentuou-se a partir da independência, ocorrida em 1822. De certo ponto de vista, pode-se assegurar que, ainda hoje, nessa primeira década do século XXI, permanece evidente o debate intelectual seguido pela construção de imagens a respeito do que é o Brasil, o que lhe falta para se tornar um país desenvolvido e com lugar de destaque no cenário internacional. Por vezes, esse debate pauta algumas ações políticas, mas o fato é que, nos dias atuais, ele se faz presente nos diversos segmentos da mídia, extrapolando, dessa forma, os meios acadêmicos e não sendo mais exclusivo de uma elite intelectual. É bem verdade que os temas da civilização e do progresso tornaram-se centrais aos finais do século XIX, não apenas no Brasil, mas, no Ocidente, 47

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realidade, a definição sobre o que era o país, o que deveria ser, suas qualida-

em que definir o que era a civilização e o progresso ocupou boa parte da intelectualidade. No entanto este não foi um debate apenas intelectual, já que políticos e governos participaram ativamente mediante adoção de medidas necessárias para incentivar a indústria e a ciência, um dos ícones do progresso e da civilização. Exposições Universais foram montadas nos principais países europeus - Inglaterra e França - destinadas a demonstrar ao restante do mundo os ícones da modernidade traduzida então pela tecnologia. Esse mundo moderno caracterizava-se pela vigência da liberdade para o trabalho e o empreendimento, pelas máquinas que produziam cada vez mais mercadorias que deveriam estar disponíveis a um número crescente de ávidos consumidores. Máquinas capazes de produzir mais e mais mercadorias, navios capazes de transportá-las, cidades iluminadas, redes de ferrovias ligando lugares mais distantes em menos tempo, massas de trabalhadores tocando indústrias, eram as marcas mais visíveis de um mundo em franco progresso. Olhando esse mundo civilizado que se construía no hemisfério norte, os intelectuais brasileiros inquietavam-se, posto que, ao colocar o país de frente para o espelho do progresso representado pelas nações do Norte, o reflexo exposto pelo Brasil era frágil. Aqui, as cidades eram bem pouco iluminadas, a rede de ferrovias era pequena, os navios transportavam mercadorias Imaginário e representações: entre fios, meadas e alinhavos

que eram produzidas no campo, porque a indústria inexistia. As máquinas estavam distantes da realidade brasileira e a massa de trabalhadores não era urbana e muito menos livre. Ao colocar o Brasil no “espelho da civilização”, a grande maioria dos

intelectuais buscava enfatizar a ausência. O país não era composto por uma população livre, não tinha indústrias, as cidades não eram iluminadas, as estradas de ferro não encurtavam as distâncias, a ciência não produzia tecnologia etc.. Diante deste reflexo negativo, procurava-se encontrar as razões para esse “não ser”. Havia, porém, os que intentavam destacar o que o país possuía de riquezas. De toda maneira, valorando, positiva ou negativamente o país, o fato é que o Brasil constituía-se em objeto central das reflexões intelectuais. Muitos intelectuais, mesmo enfatizando os aspectos positivos do país: exuberância natural, riquezas minerais, agrícolas ou outras, ainda assim, acreditavam que o Brasil encontrava-se extremamente deficitário

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diante dos países europeus, bem como diante dos Estados Unidos. Na busca obstinada por entender as razões do atraso e os meios para superá-lo, os intelectuais enveredaram por múltiplos caminhos. Tomavam por base doutrinas cientificistas e, em especial, o darwinismo, utilizavam-se de argumentos raciais e, a partir deles, creditavam ao povo e à miscigenação a responsabilidade pela defasagem social e cultural do Brasil. O “bando de ideias novas”, denominação dada por Sílvio Romero, inundou o império a partir do decênio de 1860, quando teve início a renovação. No Nordeste, surgia a denominada “Escola do Recife”, cujas figuras principais eram o próprio Sílvio Romero e Tobias Barreto. A geração de 1870 foi, portanto, pródiga na construção de projetos para o Brasil e, ao fazer isto, formulou também um sem números de imagens sobre o país, já que colocar o país “ao nível do século”, superar o “atraso cultural” eram questões que inquietavam as mentes dos intelectuais que integraram a “geração de 1870. Pautavam-se por uma filosofia do progresso e, a partir dela, formulavam projetos destinados a possibilitar que o Brasil pudesse superar, quando confrontado com países da Europa Ocidental e/ou com os Estados Unidos, o atraso social e cultural. As inquietações expressas, dentre outros por intelectuais como Rui to Sales, Joaquim Nabuco tiveram desdobramentos políticos importantes e constituíram um capítulo fundamental da vida intelectual brasileira. Além disso, há que se destacar que, ao efetuarem a crítica às instituições políticas e à organização social brasileira desses finais do século XIX, os integrantes da geração de 1870 traçaram representações sobre o Brasil e contribuíram, decisivamente, para a construção de um imaginário nacional. Joaquim Nabuco, por exemplo, colocava-se frontalmente contrário à opinião vigente de que o Brasil era uma nação rica, opinião esta expressa sobretudo pelos organismos oficiais, em decorrência da expansão cafeeira, fruto da produção escoada das férteis terras do oeste paulista (PRADO, 2005). Afirmava Nabuco que não se podia dizer isto de um país que tinha sua economia dependente da grande lavoura, principalmente porque os latifundiários viviam solicitando favores ao Estado e necessitando dos fundos

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Barbosa, André Rebouças, Quintino Bocaiúva, Teixeira Mendes, Alber-

que lhes eram fornecidos mediante a usura, que, por sua vez, os sufocava. O crédito agrícola concedido pelo Estado não era suficiente e, diante desse quadro, o grande proprietário territorial se via na necessidade de tomar dinheiro das mãos de um influente comerciante. Impossibilitado, por vezes, de saldar sua dívida, terminava por perder a propriedade. Esta situação tinha como consequência obrigar o Estado a socorrer os descendentes dos grandes proprietários empobrecidos. O socorro prestado pelo Estado resultava na hipertrofia do funcionalismo que passava a se constituir no modo pelo qual o Estado garantia o sustento dos membros empobrecidos oriundos da classe dos proprietários de terras. O funcionalismo é, como já vimos, o asilo dos descendentes das antigas famílias ricas e fidalgas, que desbarataram as fortunas realizadas pela escravidão, fortunas a respeito das quais pode dizer-se, em regra, como se diz das fortunas feitas no jogo, que não medram nem dão felicidade. É além disso o viveiro político, porque abriga todos os pobres inteligentes, todos os que tem ambição e capacidade, mas não tem meios, e que são a grande maioria dos nosso homens de merecimento (NABUCO, 1988, p. 131).

Traçava-se um quadro pouco animador do Brasil. Um Estado forte, porém aprisionado a uma elite econômica, que retirava de atividades agroImaginário e representações: entre fios, meadas e alinhavos

exportadoras seu poder. Dessa forma, o Estado só aparentemente era forte, embora o país fosse frágil. Essa fragilidade era acentuada por uma série de outras questões, decorrentes, essencialmente, da vigência da escravidão. Nessas circunstâncias, escravidão e regime territorial escravista constituíam-se no núcleo dos obstáculos para a construção de um país moderno. A indústria não podia se estabelecer e se desenvolver, o mercado de trabalho livre era insignificante, o mercado interno incipiente, de modo que se vivia na dependência da comercialização de produtos originários do estrangeiro. A pequena e a média propriedade não existiam. O Estado, ao cuidar dos interesses privados, descuidava-se, por sua vez, das questões essenciais ao desenvolvimento nacional, tais como: educação, saúde e sistema previdenciário. O analfabetismo era alto, impedindo a existência de uma imprensa forte e atuante. Ao mesmo tempo, a opinião pública era reduzida e desarticulada.

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Enfim, o cenário era trágico, se se tomar como parâmetro os princípios que caracterizam a modernidade: liberdade civil e política, integração social e econômica, mercado interno forte. Alguns intelectuais começaram, porém, a creditar à colonização portuguesa a responsabilidade pela defasagem do Brasil diante de países como França, Inglaterra, Alemanha e Estados Unidos. E assim, principiaram-se os voltados para análise de questões relativas à natureza cultural e/ou psicológica do colonizador português, procurando encontrar nelas as possíveis razões para o atraso do Brasil. A obra que inaugurou esse posicionamento foi, sem dúvida, a de Tavares Bastos, Os males do presente e as esperanças do futuro (TAVARES BASTOS, 1972), publicada no decênio de 1860. Neste livro, o autor se mostrava bastante crítico diante do passado colonial brasileiro, em especial, no tocante ao papel desempenhado pela colonização portuguesa. a origem dos nossos males não está só nos recentes erros de ontem, como de ordinário se diz. Não! para descobri-la é preciso remontar ao curso de mais de um século, a muitos dias passados; é preciso procurá-la nesse longínquo tempo em que se encerrou a epopeia da idade-média e começou o drama terrível da história moderna. O século XVI foi o teatro do absolutismo mais depravado. da tirania e do fanatismo, da tortura e da fogueira, símbolos da maior miséria social (TAVARES BASTOS, 1972, p. 27-28).

Para de modo mais explícito, concluir sobre os males da colonização portuguesa: Se alguma cousa explica o embrutecimento do Brasil até o começo do século presente, a geral depravação e bárbara aspereza de seus costumes, é, portanto, a ausência do que se chama espírito, publico e atividade empreendedora é de certo o sistema colonial. Não recai sobre Portugal somente esse crime de ignorância e egoísmo; mas, é inegável que, em parte alguma, foi o regime observado com mais severidade e mais solicita avareza do que na metrópole (TAVARES BASTOS, 1972, p. 32).

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Para os povos de raça latina, sobretudo, ele é a expressão da guerra e da fome,

A temática do passado colonial somente seria retomada, na primeira década do século XX, com a publicação do livro de Manoel Bomfim, América Latina: males de origem (BOMFIM, 1993). Ao voltar-se para os países colonizadores, Bomfim identificava neles os mesmos males que afetam os países da América Latina. O mesmo atraso, “uma geral desorientação, um certo desânimo, falta de atividade social, mal-estar em todas as classes, irritação constante e, sobretudo uma fraqueza”(BOMFIM,1993, p. 57). Foi na trajetória histórica da Península Ibérica que Manoel Bomfim localizou as raízes da incapacidade não apenas brasileiras, mas latino-americana para compreender o sentido da modernidade. Estaria no modo como se constituíram os países ibéricos as razões para uma determinada prática de colonização. Para explicar o que considerava serem os males da América Latina, Bomfim recuou até o período das invasões cartaginesas do século IV, para mostrar como, durante oito séculos, a Espanha, em particular, viveu em lutas permanentes, e isto resultou numa educação guerreira e numa cultura intensiva dos instintos belicosos e o desenvolvimento de tendências depredadoras, bem como na impossibilidade dos habitantes da Península Ibérica em se habituarem ao trabalho pacífico. Foi com base nessa tradição belicosa que Manoel Bomfim interpreImaginário e representações: entre fios, meadas e alinhavos

tou a maneira como os espanhóis conquistaram os impérios- inca e asteca. Terminada a fase de depredação teria, então, início a do sedentarismo, que, para ele, significava a fase da degenerescência. Alertava que, para Portugal, a conquista configurou-se mais difícil em razão do tamanho do pequeno reino. Assinalava, no entanto, que o Brasil e a África foram colônias que permitiram a Portugal o exercício do sedentarismo. Do Brasil retirava os tributos, os dízimos e os monopólios, da África, o tráfico dos negros. Como resultado do parasitismo favorecido pelas conquistas, deu-se, na Espanha, a formação de uma aristocracia do dinheiro, capaz de abafar o desenvolvimento normal da sociedade. Igualmente em Portugal, a vida produtiva estagnou e passou-se a viver dos lucros gerados nas colônias. Para Bomfim, mesmo quando deixamos de ser uma área colonial, a

prática de se viver parasitariamente do trabalho de outrem, já havia se instalado. Lembremos, para o caso do Brasil, a concentração das terras em

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poucas mãos, a presença marcante das atividades agrárias e, por fim, mas, jamais por último, a escravidão. Bomfim destacava que a escravidão fora o meio utilizado para tornar mais viável o parasitismo: as classes inferiores e mecânicas se adaptaram a viver em condições de pobreza, desconforto e miséria que parecem incompatíveis com a vida. Os escravos- negros - coagidos pelo açoite - adaptaram-se, habituaram-se a trabalhar o mais possível a viver com o mínimo de conforto e de alimentação (BOMFIM, 1993, p. 126).

Na comparação da colonização ibérica com aquela empreendida na América do Norte, Bomfim, uma vez mais, reafirmava que o Brasil se caracterizava pelo parasitismo em contraposição ao empreendedorismo que caracterizavam os Estados Unidos. Ainda que lá também tivesse existido a escravidão, no Brasil bem como na América Latina, a ela se somaram as desastrosas consequências dos monopólios e privilégios, -os exclusivos mercantis, instituídos sobre o comércio colonial, as restrições fiscais, o sistema bárbaro de tributos, o embaraço, a proibição formal às industriais manufatureiras tornando-se impossível qualquer esforço de iniciativa particular pela interdição

Como resultado dessa forma de colonização, estabeleceu-se, internamente, nas sociedades latino-americanas um parasitismo de uma classe sobre a outra, dos que detinham os meios de produção sobre os que nada possuíam. Das qualidades a nós transmitidas, a mais sensível e interessante, afirmava Bomfim, é o “conservantismo”. É preciso ressaltar, porém, que, na mesma década em que Bomfim descrevia o Brasil como um país sem iniciativa, constituído por uma elite parasitária, que vivia de explorar as riquezas naturais e, para isto, se utilizava do povo mantido inculto e pobre, outros intelectuais procuravam valorizar as riquezas do Brasil, assim como os valores pertinentes à família e à Igreja aqui plantados pelo colonizador português. Nesse sentido, cabe destacar a obra do conde de Afonso Celso, Porque me ufano de meu país (FIGUEIREDO JR, 1920). Nesta, o autor enaltecia a riqueza da formação cultural 53

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de toda inovação progressista (BOMFIM,1993, p. 134).

brasileira, como também o papel desempenhado pelo colonizador para a construção dessa identidade caracterizada pela multiplicidade racial e cultural. O Brasil era, portanto, a terra do porvir. A terra abençoada por Deus que dele recebeu uma natureza privilegiada e repleta de recursos. Não havia por que valorizar positivamente a experiência de outros países, uma vez que eles nada tinham para nos ensinar, mesmo porque o Brasil não precisava aprender coisa alguma com a França, a Inglaterra e menos ainda com os Estados Unidos. Porque me ufano de meu país foi escrito em 1900 e publicado pela primeira vez em 1901. Tornou-se uma espécie de “cartilha” de um nacionalismo ingênuo, que teve, porém, enorme influência entre a juventude, já que passou a ser adotado nas escolas. Recebeu diversas reedições e, como o título tão exemplarmente clarifica, o livro é uma exaltação das virtudes brasileiras. Não há preocupação em olhar para outros países nem tampouco em discutir, analisar ou compreender os significados do ideal civilizatório. Afonso Celso preocupou-se, através dos capítulos de sua obra, em demonstrar quais os fatores responsáveis pela grandeza do Brasil. Depois de definir para quem se destinava o livro: “ vós, meus filhos, ao celebrar a nossa Pátria o quarto centenário do seu descobrimento” (FIGUEIREDO JR, Imaginário e representações: entre fios, meadas e alinhavos

1920, p. 1), dedicou o primeiro capítulo a explicar as razões que o levaram a escrevê-lo, e elas consistiam na “ primordial ambição em vos dar exemplos e conselhos que vos façam úteis à vossa família, à vossa nação e à vossa espécie, tornando-vos fortes, bons, felizes”( FIGUEIREDO JR,1920). Após essa introdução tão necessária, Afonso Celso começou a traçar o retrato do Brasil, e este surgia como sendo o de um país marcado pela grandeza: território, povo, natureza, cultura e história. Uma perfeita combinação destinada a levar o país às maiores glórias. Perfeita combinação que teve como realizador a providência divina. Ao longo dos 42 capítulos que compõem o livro, o autor descerra uma a

uma as razões da glória do Brasil. O tamanho do território é a primeira delas: O Brasil é um dos mais vastos países do globo, o mais vasto da raça latina, o mais vasto do Novo Mundo, à exceção dos Estados Unidos.

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É pouco menor que toda a Europa. Rivaliza em tamanho com o conjunto dos outros países da América Meridional. Representa uma décima quinta parte do orbe terráqueo. Só a Rússia, a China e os Estados Unidos o excedem em extensão. É quatorze vezes maior do que a França, cerca de trezentas vezes maior do que a Bélgica. [...] Pará, Goiás, Mato Grosso ultrapassam qualquer nação europeia, salvante a Rússia. O Brasil é um mundo (FIGUEIREDO JR, 1920, p. 4).

As belezas naturais são o segundo elemento a atestar a superioridade brasileira: Não há no mundo país mais belo do que o Brasil. Quantos o visitam atestam e proclamam essa incomparável beleza. Dentro do enorme perímetro brasileiro, encontra-se tudo o que de pitoresco e grandioso oferece a terra. Ainda mais: encontra-se, em matéria de panorama, tudo o que ardente imaginação possa fantasiar. E os espetáculos são tão variados quanto magníficos (FIGUEIREDO JR, 1920, p. 14).

À natureza o autor dedicou diversos capítulos, nos quais procurava demonstrar a superioridade do Brasil: a cachoeira de Paulo Afonso, o Amamidades para, a seguir, dedicar-se a descrever a superioridade da cultura brasileira e do seu povo. Assim, o heroísmo do povo, a grandeza da colonização portuguesa, a generosidade, a doçura e o acolhimento do povo e, por fim, os fatos históricos. O retrato do Brasil que surge da pena de Afonso Celso é de um país que reúne todas as características para, se posto no espelho das nações, sobressair-se como o mais grandioso e o mais importante dentre todas as nações. O resumo de suas ideias foi apresentado por ele em um único capítulo em que buscou descrever todas as qualidades brasileiras. Então, a imagem que surgia do país revelava que: — O Brasil constitui um dos mais vastos países da terra, capaz de conter toda a população nela existente; — É belíssimo encerrando maravilhas sem êmulas no universo, como o Amazonas, a cachoeira de Paulo Afonso, a floresta virgem, a baía do Rio de Janeiro;

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zonas, a baía de Guanabara, os minerais, o clima ameno, a ausência de cala-

— Possui riquezas incalculáveis, tudo quanto de precioso se encontra no globo; — Goza de perpétua primavera, sem jamais conhecer temperaturas extremas; — Não sofre as calamidades que costumam afligir a humanidade: vulcões, terremotos, ciclones, inundações, abundância de animais ferozes; — Resulta a sua população da fusão de três dignas e valorosas raças; — Bom, pacífico, ordeiro, serviçal, sensível, sem preconceitos, não deturpa o caráter desse povo nenhum vício que lhe seja peculiar, ou defeito insusceptível de correção; — Nunca sofreu humilhações, nunca fez mal, nunca perdeu uma polegada do seu solo, nunca foi vencido, antes tem vencido poderosas nações; — Sempre procedeu honesta e cavalheirosamente para com os outros povos, livrando, com absoluta abnegação, de odiosas tiranias seus vizinhos mais fracos; [...] — Na sua história, relacionada com os mais notáveis acontecimentos da espécie humana, escasseiam guerras civis e efusões de sangue, sobejando feitos heroicos, formosas legendas, preclaras figuras, luminosos exemplos; — Primeiro país autônomo da América latina, segundo do Novo Mundo, sempre manifestou espírito de independência, desfrutou liberdades desconhecidas em outras nações. Nestas condições, o Brasil é um país privilegiado, reunindo elementos que lhe

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conferem primazia sobre todos os mais. Importa ingratidão para com a Providência invejar outras nações, não nutrir a ufania de ter nascido brasileiro. Foi belo o quinhão que nos coube. Outros povos apenas se avantajam ao nosso naquilo que a idade secular lhes conquistou. O Brasil poderá tornar-se o que eles são. Eles nunca serão o que é o Brasil (FIGUEIREDO JR, 1920, p. 189-191).

A imagem do Brasil que surge das letras de Afonso Celso retratava um

país grandioso, sem mazelas (a escravidão quase não foi mencionada), abençoado pela Providência com riquezas mil. Composto por um povo heroico, hospitaleiro e doce. O texto de Afonso Celso, retratando o Brasil de modo paradisíaco, levou a propiciar o surgimento do termo ufanista, a partir de então, empregado para todos os autores e/ou textos que construíam uma imagem extremamente positiva do Brasil. As primeiras duas décadas do século XX assistiram a outras constru-

ções imagéticas sobre o Brasil. Do campo ou da cidade, do litoral ou do 56

sertão. O Brasil continuou sendo o objeto das reflexões de uma grande parte dos intelectuais, que produziram narrativas literárias, sociológicas ou políticas discutindo temas como: a identidade cultural, a integração nacional, forma de governo, representatividade, educação, cidadania, modelos políticos, culturais e de sociedades, ou ainda, a questão da herança colonial. Neste último tema, cabe destacar as análises, imagens e projetos construídos por dois intelectuais que ocuparam lugar de destaque no cenário cultural brasileiro: Paulo Prado e Oliveira Vianna. Paulo Prado nasceu em São Paulo, em 1869, o primogênito do conselheiro Antônio Prado - chefe do partido conservador, fazendeiro de café e responsável pela fundação, em 1887, da casa Prado, Chaves & Cia, que se tornou a maior empresa exportadora de café. Cursou a Faculdade de Direito do largo de São Francisco, em São Paulo, mas não chegou a exercer a profissão e, pouco depois de formado, com o advento da república, estabeleceu-se em Paris na casa do tio Eduardo Prado.1 Na Europa, aprimorou sua formação intelectual, frequentando livrarias e se interessando pelas novidades no terreno das ideias. Em 1897, retornaria ao Brasil, atendendo à solicitação de seu pai para exercer as funções de gerente na firma Prado, Chaves & Cia. Foi mecenas de muitos intelectuais e artistas brasileiros, dentre eles, alguns Andrade o grande impulsionador da Semana de Arte Moderna. Em 1928, Paulo Prado publicou Retrato do Brasil. Ensaio sobre a tristeza brasileira (PRADO, 2001). Ao longo de quatros capítulos, procurou desvendar no caráter do povo e nos traços históricos a razão para a existência da tristeza, que, para ele, caracterizava o brasileiro. Luxúria, cobiça, tristeza e romantismo eram os pontos definidores do Brasil, heranças da colonização portuguesa . Na trilha aberta por Manoel Bomfim, em 1905, Prado detinha-se, também, numa análise meticulosa dos traços culturais implantados pelo colonizador. Este tema seria objeto de nova análise com a publicação no decênio de 1930 das obras de Sérgio Buarque de Holanda, Raízes do Brasil (HOLANDA, 1936) e Gilberto Freyre, Casa grande & sen Eduardo Prado foi o autor do mais contundente libelo contra o modelo norte-americano, refiro-me ao texto A ilusão americana publicado em 1890.

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dos membros do movimento modernista. Foi considerado por Mário de

zala (FREYRE, 1933), todas polêmicas e que grande impacto causaram no meio intelectual brasileiro. Retrato do Brasil traçava uma imagem extremamente pessimista da sociedade brasileira e, por esta razão, a obra foi duramente criticada à época do seu lançamento. A crítica mais veemente partiu do amigo e companheiro de longas jornadas, Oswald de Andrade. O retrato pessimista do Brasil traçado por Paulo Prado era mais uma tentativa de entender as razões do nosso atraso diante das nações civilizadas, que Prado tão bem conhecia. Começara discorrendo sobre a natureza dos colonizadores que para aqui vieram constituídos por “degredados que abandonavam nas costas as primeiras frotas exploradas, ou náufragos, ou gente mais ousada desertando das naus, atraída pela fascinação das aventuras” (PRADO, 2001, p. 67). O tema da aventura já fora levantado por Manoel Bomfim e seria uma vez mais retomado por Sérgio Buarque de Holanda. A busca pelo eldorado, representado pelas minas de ouro e prata, só fazia atiçar ainda mais este espírito aventureiro, enfim, concretizado com a descoberta no século XVIII das Minas Gerais, que, na concepção de Paulo Prado, tanto empobreciam o Brasil: guerra civil, inomináveis abusos do fisco e do clero, epidemias de fome, em

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que se morria de inanição ao lado de montes de ouro pelo abandono da cultura e da criação. [...] Olhos fixos na loteria da mina surgindo de repente, a população vivia entre a mais abjeta indolência e frenesi de mineração desordenada. De fato só o negro trabalhava, e este comprava-se a qualquer preço para os misteres da mineração. Abandonava-se a agricultura; o cultivo da cana diminuiu a tal ponto que os mercados que abastecia o açúcar brasileiro sofreram uma crise séria, tendo de recorrer à produção inglesa e francesa, então incipiente. E rapidamente o país se despovoava. No entanto, a exploração das minas continuava a fornecer riquezas fantásticas (PRADO, 2001, p. 121).

A tristeza grassava e essa característica da alma brasileira interditava

que se pudesse aqui estabelecer o espírito dos novos tempos: o empreendimento. Paulo Prado inquietava-se com a ausência do espírito empreendedor. “O nosso próprio antepassado de Portugal, cantador de fados saudosos, enamorado e positivo, é um ser alegre quando comparado com o

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descendente tropical, vítima da doença, da pálida indiferença e do vício da cachaça” (PRADO, 2001, p. 144). Percebia os brasileiros como sendo um povo submisso e débil. Destituído do vigor que caracterizava os povos empreendedores. Creditava parte dessa característica ao colonizador, que para aqui veio carregando o sonho do retorno e a saudade da pátria. A chegada da corte, em 1808, em nada contribuiu, na concepção de Paulo Prado, para melhorar esse estado de coisas. Muito pelo contrário, a “presença da corte, antiquada, pobre, desmazelada, imprimia aos diferentes aspectos da vida fluminense o tom caricatural, que por tão longos anos caracterizou o cerimonial monárquico no Brasil ”(PRADO, 2001, p. 155). Dada a carência de vigor do povo brasileiro, prisioneiro desse sentimento de tristeza e melancolia, o futuro que Paulo Prado descortinava para o Brasil não podia deixar de ser, também, triste e melancólico. Oliveira Vianna, diferentemente de Paulo Prado, não se preocupou em apenas apontar traços definidores da identidade brasileira. Menos voltado a apenas construir imagens sobre o Brasil, Oliveira Vianna preocupou-se em analisar o modo como o Brasil se organizava e se constituía para, então, dedicar-se a elaborar projetos destinados a construir uma nova realidade para o país. A da herança colonial foi um dos objetos importantes nas como embasadas nos referenciais da Sociologia, bem como do historicismo alemão. Pretendeu construir uma imagem que fosse a fiel expressão da realidade social brasileira tal qual existia, para, só depois, indicar as mudanças necessárias para transformar esse quadro. O primeiro volume de Populações meridionais do Brasil (VIANNA, 1998) foi publicado em 1920 e teve como editor Monteiro Lobato. Num curto período de tempo, a obra ganhou mais duas edições, fato inédito para os padrões da época. Com uma receptividade ímpar, foi festejada, à época de seu lançamento, mas tornou-se objeto de severas críticas a partir do decênio de 1950, por considerarem Oliveira Vianna elitista e seus textos repletos de concepções racistas. De toda maneira, há que se considerar a força dessa obra, capaz de ter despertado um conjunto sem precedentes de críticas positivas e negativas.

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suas reflexões. Suas análises diferenciavam-se, porém,, porque apresentadas

Oliveira Vianna recusava-se a aceitar que a importação de modelos políticos e/ou jurídicos pudesse contribuir para tornar o Brasil um país moderno. Ao contrário, acreditava que as soluções para a modernização do Brasil deviam ser buscadas a partir da observação da sociedade existente. Ressaltando o papel dos traços culturais herdados de Portugal, buscava construir, então, a imagem do Brasil. Ele mostrava-se, portanto, extremamente preocupado em compreender o tipo de povoamento e de ser humano próprio a cada uma das regiões do Brasil, visto que o povoamento se distribuíra pelas regiões de modo relativamente diversificado. Levando em conta que a estrutura social brasileira era produto da história e que o passado não podia ser corrigido, preocupava-se em examinar o presente, visando desenhar soluções para que determinados vícios fossem superados. A imagem que Oliveira Vianna construía sobre o Brasil era a de que o país se caracterizava por possuir uma estrutura social de tipo patriarcal, baseada em famílias que se compunham não só dos elementos a ela vinculados por laços de sangue, mas também por um grande número de agregados. O regime de clã, como base da nossa organização social, é um fato inevitável entre nós, como se vê, dada a inexistência, ou a insuficiência de instituições

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sociais tutelares e a extrema miserabilidade de nossas classes inferiores [...]. O espírito de clã torna-se assim um dos atributos mais característicos das nossas classes populares [...]. O nosso homem do povo, o nosso campônio é essencialmente o homem de clã, o homem da caravana, o homem que procura um chefe (VIANNA, 1998, p. 145).

Os elementos de controle social que se projetam na vida política e dão

a essa estrutura social o seu caráter patrimonialista - que Oliveira Vianna percebe com argúcia- estão vinculados à existência da família extensa, mas eles dependem também de um outro elemento, que é a propriedade da terra. Essa ascendência, donde vem ela, então? Do orgulho do sangue fidalgo? Este pode dar a esses aristocratas a empáfia, a soberba, o espírito de casta, o aristocrático afastamento da plebe. Não explica, porém, a força, de que eles dispõem em homens, em dinheiro, em dominação direta e real sobre o povo. Qual, então o fundamento desse prestígio, dessa ascendência, desse poder incon-

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testável? [...] É sobre a sesmaria, sobre o domínio rural, sobre o latifúndio agrícola e pastoril que ele se assenta... Ele é que classifica os homens. Ele é que os desclassifica (VIANNA, 1998, p. 58-59).

Oliveira Vianna, a partir da identificação dessa forte presença do clã, procurava compreender o significado do localismo na vida política brasileira. Alertava para o fato de que a presença dessa estrutura clânica foi responsável pela instituição de uma ordem privatista que se opõe, como uma espécie de muralha, às tentativas do poder político de impor um poder centralizado. Para ele, a questão central estava na montagem de uma organização social e política que fosse capaz de integrar a população sob o controle do Estado. O que propunha, então, era um processo de transferência de lealdades. Lealdades políticas que antes estavam canalizadas para a estrutura patriarcal, tenderiam a se dirigir para o poder central, uma vez que esse poder central mostrasse ter força e autoridade suficientes para submeter-se às estruturas tradicionais de dominação, libertando os indivíduos dessas mesmas estruturas. Livre das estruturas tradicionais, o indivíduo entregaria as suas lealdades ao Estado. Adepto de um Estado forte e centralizador, capaz de outorgar cidadania, com aqueles já existentes no mundo em que ele vivia. Este corporativismo seria composto por segmentos sócioprofissionais organizados, ou seja, por câmaras ligadas ao mundo do trabalho - a partir dos sindicatos - ou por câmaras ligadas ao mundo do patronato. O mecanismo da representação corporativa buscava agrupar os indivíduos dentro de determinadas estruturas, e eram elas que se faziam representar e não o indivíduo entendido como cidadão. O novo Brasil que surgia da pena de Oliveira Vianna seria constituído por um estado forte, que, integrando as elites locais, pudesse, ao mesmo tempo romper com a sua predominância. A imagem do Brasil traçada por Oliveira Vianna era, portanto, a de um país moderno, dinâmico, com integração social, mas livre de conflitos políticos entre o trabalho e o capital. Muitas outras imagens foram desenhadas pelos intelectuais. Afinal, o Brasil, fosse por sua incompletude como nação ou por sua exuberância

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Oliveira Vianna introduzia, então, a ideia de um corporativismo mais afinado

oriunda da natureza, sempre foi fonte de inspiração, preocupação e reflexão. Preocupados em apontar entender a ausências, quando se comparava o Brasil aos países da Europa Central ou aos Estados Unidos, muitas foram as construções imagéticas idealizadas pelos intelectuais. O fato é que, em sendo o Brasil um país que se constituiu ao longo do século XIX após três séculos de colonização, tornou-se extremamente difícil coadunar sua cultura, sociedade e política com aquelas provenientes dos países que serviram de modelo. Foi, portanto, a tentativa de entender a diferença que tanta angústia provocou em nossos intelectuais. E nesse sentido um conjunto de imagens e projetos foi elaborado fosse para defender essa diferença ou para indicar os caminhos capazes de promover mudanças.

Referências ALONSO, Ângela. Ideias em movimento. A geração de 1870 na crise do império. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002. BOMFIM, Manoel. América Latina. Males de origem. 4. ed., Rio de Janeiro: Topbooks, 1993. FIGUEIREDO JR. Afonso Celso de Assis. Porque me ufano do meu país. 8. ed., Rio de Janeiro: Livraria Garnier, 1920. Imaginário e representações: entre fios, meadas e alinhavos

HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. Rio de Janeiro: José Olímpio, 1936. NABUCO, Joaquim. O abolicionismo. Petrópolis: Vozes, 1988. PRADO, Maria Emilia. Joaquim Nabuco. A política como moral e como história. Rio de Janeiro: Ed. Museu da República, 2005. PRADO, Eduardo. A ilusão americana. São Paulo: Brasiliense, 1957.

PRADO, Paulo. Retrato do Brasil. Ensaio sobre a tristeza brasileira. 4. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

TAVARES BASTOS, Aureliano Cândido. Os males do presente e as esperanças do futuro. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1972. VIANNA, Francisco José de Oliveira. Populações meridionais do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia; Niterói: EDUFF, 1987. 2v.

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Escavações no campo das letras: a reflexão de José de Alencar sobre a língua portuguesa, a literatura e a cultura brasileiras em “O nosso cancioneiro” 1

Em 1875, o romance O sertanejo, de José de Alencar, veio a lume pela primeira vez. Mas, desde o ano anterior, o escritor já o anunciava nas cartas a Joaquim Serra, que foram publicadas nas páginas de O Globo e que tratavam das “escavações” nas camadas da cultura sobre a poesia popular que ele realizava em sua província natal, o Ceará. No ano de 1873, Alencar pegou sua família, na Corte, e rumou em direção ao norte, ao encontro do sertão, seus habitantes e costumes, sua cultura, natureza e paisagem. A intenção era coletar peças da literatura oral, romances e poemas populares, contados e transmitidos por meio da oralidade pelas populações sertanejas daquele distante recanto da nação. Queria acessar “as verdadeiras fontes” da cultura nacional, as quais seriam tomadas como matéria-prima de um novo romance, em que trataria os costumes pastoris com sua cor local, a figura do vaqueiro, as tradições, as histórias em versos e as melodias simples. O romancista, no decorrer de sua experiência como escritor, envolveu-se em diversas polêmicas literárias e políticas. Por meio de cartas, prefácios, posfácios e pós-escritos, expôs suas ideias e as defendeu, configurando-se num O presente trabalho foi realizado com apoio do CNPq, Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – Brasil.

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Valdeci Rezende Borges

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combatente aguerrido no campo de batalhas simbólicas oitocentistas, como naquelas referentes às lutas pela forma de representação literária que empregasse uma narrativa “moderna” e brasileira (BORGES, 2007, p. 65-84). Em tais embates literários em torno da proposta de elaborar uma literatura brasileira possuidora de temas e formas singulares, que distasse daquela defendida pelos literatos portugueses, forjada em estilo e língua portuguesa clássicos, Alencar expressou sua visão sobre a língua e a linguagem como dimensões sociais que possuem historicidade; da literatura como produção imbuída da missão de contribuir para a formação de uma nacionalidade. Ela deveria ser atuante na consolidação da autonomia cultural em relação a Portugal, sendo formatada numa linguagem própria e empregando um português abrasileirado pelo uso do povo brasileiro. A intenção, neste texto, é rastrear alguns de seus argumentos sobre tais questões nas cartas que compõem o ensaio “O nosso cancioneiro”, de 1874, publicadas no jornal O Globo. De acordo com Bloch (2001), a produção do conhecimento histórico oscila entre o presente e o passado num diálogo no qual a atualidade apresenta problemas aos tempos de outrora, e nele buscamos perceber como foram tratados recorrendo a um método regressivo. Como nos últimos anos, sobretudo a partir de 2009, a imprensa portuguesa e brasileira, também, tem sido palco de uma disputa diretamente ligada àquela querela oitocentista, é que focamos aquele tempo e lugar para empreendermos essa reflexão. O novo Acordo Ortográfico firmado entre a comunidade lusa tem recebido atenção da mídia de ambos os lados do Atlântico. Tanto os favoráveis a sua adoção quanto os resistentes a ela, sejam brasileiros ou portugueses ou ainda de outros países lusófonos, apresentam seus argumentos nesse confronto. No Brasil, uns o defendem por considerá-lo como resultado de uma maturidade linguística; um ato que concretiza uma aspiração de intelectuais oitocentistas como José de Alencar e Machado de Assis, que bateram por um idioma fundado em fontes legítimas, o povo e os escritores falantes da língua. De outro lado, outros resistem a um “abrasileiramento” do idioma. Essa história, ao que tudo indica, parece longe de ter fim. Portanto, é que rumamos ao campo da imprensa fluminense na década de 1870, no Rio de Janeiro, para lá observarmos, pelas lentes da história cultural, uma cena do embate que lá se travava em torno dessa questão e que esteve diretamente ligada aos eflúvios do sertão cearense. 64

Rumo ao sertão: Alencar na busca das fontes próprias Alencar, ao procurar edificar a literatura nacional, recorria em várias ocasiões às fontes primárias para embasar sua escrita, como recomendava o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro aos intelectuais seus membros, historiadores, escritores da história da nação, dentre outros. O IHGB promovia uma política para produzir uma historiografia e uma literatura de cunho nacional, conforme os moldes românticos e a preocupação com representar a nacionalidade, a “brasilidade”, tratando de diferentes regiões do Brasil, com vista a efetivar uma totalidade, integrando, física e culturalmente, o território e suas populações. Alencar foi um dos raros escritores do seu tempo que não fora sócio da instituição. Mas, sendo o Instituto centro importante de aglutinação dos homens letrados, mesmo que de forma indireta, não escapou das emanações do que ali ocorria, era discutido e proposto, estando em diálogo constante e tenso com o grupo. Ele realizou viagens e excursões ao interior do Brasil, nas quais coletou materiais por meio de observações e conversas, nelas se inspirando, como ocorreu em Baependi (MG) e no Ceará, que lhe deram matéria-prima para Til e O sertanejo, respectivamente. (RODRIGUES, 2001, p. 54, 89, 90 e 132; VENTURA, 1991, p. 78; MENo prefácio de Sonhos d’ouro, intitulado “Benção Paterna”, de 1872, o autor periodizou sua literatura em três fases, visando representar o processo histórico de formação da sociedade brasileira. Periodização que abarcou os momentos da ocupação e posteriores, os povos neles envolvidos, as questões culturais e políticas, as várias regiões do território e os tempos com suas especificidades. Sistematizou e reviu sua obra e planejou seu futuro conforme seu conceito de nacionalismo, dividindo-a numa fase primitiva, “aborígene”, a qual pertence Iracema e O guarani, que foi escrito depois; no período “histórico,” representado em O guarani, As minas de prata e Guerra dos mascates, que também escreveu posteriormente; e na época da “infância de nossa literatura, começada com a independência política”. Essa terceira fase foi dividida em dois momentos. Um remetia a espaços e “recantos” rurais; o outro era urbano, focado na Corte. Neste último, a sociedade ti-

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NEZES, 1977, p. 286; GUIMARÃES, 1988, p. 5, 8, 11-2, 23, 25).

nha “a fisionomia indecisa, vaga e múltipla”, efeito da mescla de elementos diversos, como pode ser visto em Lucíola, Diva, A pata da gazela, Sonhos d’ouro e, em seguida, em Senhora e Encarnação. Por outro lado, no primeiro, encontrava-se a cor local “ainda em sua pureza original, sem mescla,” com viver, tradições, costumes e linguagem brasileiros guardados intactos, os quais foram retratados em O tronco do ipê, Til, O gaúcho e, depois, O sertanejo (BORGES, 2007, p. 205, 212-5). Foi justamente na busca da referida pureza, do guardado intacto, que, no ano seguinte, 1873, Alencar embarcou com sua família para o Ceará rumo ao viver, às tradições, aos costumes e à linguagem próprios desse recanto, com sua cor local. Percorreu a região com Capistrano de Abreu, para recolher peças da literatura oral, cópias de romances e poemas populares, em especial, o Boi espácio e o Rabicho da Geralda. Ia ao encontro daquilo que considerava as verdadeiras fontes nacionais, conversando com idosos, como alguns descendentes “da nobreza indígena” cearense, como o velho Filipe Pici, que foi considerado por ele como “um livro curioso”, com o qual aprendeu mais “do que numa biblioteca” sobre “as antigualhas” narradas. Colheu informações, assuntos e tradições que, no ano seguinte, serviram de matéria às quatro cartas a Joaquim Serra, expondo suas ideias sobre as fontes nacionais da literatura Imaginário e representações: entre fios, meadas e alinhavos

brasileira, as quais foram enviadas a Salvador de Mendonça: [...] Destino ao Globo a série de cartas que me dirigiu o nosso comum amigo e mestre o Sr. Conselheiro José de Alencar. [...] Versam elas sobre assunto literário de magna importância: a naturalização de nossa literatura; o estudo da poesia popular. [...] O talento e perspicuidade do crítico que tão bem analisou o poema dos Tamoios, fulge com todo o seu brilhantismo nessas cartas de um valor inestimável como lição e como estilo (ALENCAR, 1960, p. 961).

A cultura escrita em encontro à cultura popular e sertaneja Alencar iniciou suas cartas declarando que “É nas trovas populares

que sente-se mais viva a ingênua alma de uma nação”. Era aí, “neste nosso agreste vergel, ainda tão desdenhado da literatura militante”, que se podiam colher “flores das mais graciosas”. Como escritor engajado na defesa de uma

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literatura singular, debruçava-se sobre a cultura popular sertaneja atento para perceber suas particularidades (ALENCAR, 1960, p. 961). Havia muito tempo que o escritor tratava de “coligir as trovas originais” que se cantavam ainda pelas cidades, “porém mais pelo interior; rapsódias de improvisadores desconhecidos”, os quais foram considerados “maiores poetas em sua rudeza do que muitos laureados com esse epíteto.” Estava “convencido de que o nosso cancioneiro nacional” era muito “mais rico” do que se presumia. Num procedimento comparativo, afirmava que podia faltar-lhe, “sem dúvida o sabor antigo e o romantismo das formosas lendas góticas e mouriscas, pois no Brasil nem a terra é velha”. Mas tinha “o sabor pico” e sobravam-lhe “em compensação o perfume de nossas florestas e o vigoroso colorido da natureza, como do viver americano” (ALENCAR, 1960, p. 962). Remetendo às condições desfavoráveis às atividades de pesquisa e de produção literária no Brasil, referiu à tarefa árdua e demorada de recolher tais materiais, ao lugar ocupado pela literatura e pelo papel do literato na sociedade brasileira: É preciso, porém, não somente o gosto destas escavações pacientes, como folga para as empreender; cousas muito difíceis de reunir em um país onde as letras, dades nocivas à reputação de um homem grave (ALENCAR, 1960, p. 962).

Alencar destacou, a partir de suas pesquisas, as quais foram atribuídas feições arqueológicas por remover as camadas da cultura, a peculiaridade da poesia brasileira. Observou que, na primitiva poesia popular do Ceará, predominava o gênero pastoril, mas que “o estilo dessa poesia pastoril” contrastava “com o estilo clássico da musa grega e romana”, tanto quanto se destacava “do estilo romântico dos zagais do Tirol e dos vaqueiros da Suiça”. Buscando uma explicação para essa diferença, esclareceu que “A razão da singularidade provém de não revestirem as canções cearenses a forma de idílio. Não se inspiram no sentimento lírico, têm cunho épico. São expansões, ou episódios da eterna heróida do homem em luta com a natureza.” Historicizando, o escritor procurou tecer o contexto social e natural da época da colonização, o qual propiciou tal diferenciação na forma ou no estilo: 67

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longe de serem profissão, entram ainda para muita gente no número de futili-

“Sucedeu nos sertões do Norte o mesmo que se observou nos pampas do Sul”; nesses espaços, “desde os princípios da povoação, [...] as diversas espécies de animais domésticos introduzidos pelos colonizadores se propagaram com intensidade; a Providência [...] havia preparado a América para a regeneração das raças exaustas do Velho Mundo.” Assim, o gado, “internando-se pelo sertão, aí voltou ao estado selvagem”, e ainda era possível encontrar, naquele momento, “pelos sítios escuros algum, a que na província chamam barbatão.” (ALENCAR, 1960, p. 962-3). Ao tratar da introdução e do estabelecimento da pecuária na província, apontou a figura do vaqueiro inserida num sertão imenso e vivendo em “luta constante” com as condições geográficas e com as peculiaridades do rebanho. Estas diferenciavam a atividade de vaquejar ali existentes e deixavam marcas no seu caráter, nos seus costumes e nas cantigas populares. Tal pensamento teórico, vazado pela matriz romântica, compreende a literatura como produto do meio em que floresce, forneceu instrumento para afirmar a independência literária brasileira. Mas ele expressa ainda a matriz retórica, que, aos poucos, ia sendo abandonada diante da demarcação do movimento romântico e sua oposição à estética clássica. A retórica, no Brasil, se manteve presente ao longo do século XIX, manifestando nos manuais escolares de Imaginário e representações: entre fios, meadas e alinhavos

eloquência e nos debates literários, como, neste caso, expresso na preocupação alencariana de determinar o gênero ao qual as cantigas se conformavam, o pastoril, dado nas cores fortes da epopeia e não nos tons amenos do idílio (MARTINS, 2010, p. 1). Atendo-se ao falar do povo cearense, mostrava como a literatura oral

já incorporara vocábulos de cunho regional. E na defesa das inovações produzidas por este na a língua portuguesa, afirmava que, desde o início da ocupação das terras brasileiras, se criava “um vocabulário novo”, conforme as “necessidades de sua vida americana”, o qual traduzia seus “usos e sentimentos”. Ao trazer o termo barbatão, presente na cultura popular, para o universo da cultura escrita e letrada, Alencar procurou desvelar o sentido dessa palavra e sua relação com a gramática, abordando a “excentricidade de certos aumentativos” observáveis no uso da língua pelo povo da província. Primeiro, afirmou não atinar “com a etimologia deste vocábulo”, que, se

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não era “genuíno cearense”, vinha “provavelmente da ribeira do São Francisco”. Especulando, sugeriu que “pode ser que barbatão não passe do aumentativo de barbato para significar o longo e denso pêlo do gado criado no mato” ou que derivaria “de brabo, variante rústica de bravo”. Porém, “neste caso o aumentativo se afastaria da formação gramatical”, mas, segundo ele, desses tipos de solecismos “há muitos exemplos no dialeto popular”, pelo qual os sertanejos compunham vocábulos indo “contra todas as velhas regras etmológicas”. Era “também comum entre o nosso vulgo o aumentativo em ama, [...] de que vários exemplos se encontram na língua portuguesa.” Desta forma, para Alencar, “Com o instinto gramatical de que é dotado, vai o povo criando aqueles de que precisa para exprimir suas ideias”. Defendeu a legitimidade desse processo de formação gramatical inserido no movimento da história brasileira, da colonização e do povoamento, e no seio da cultura popular, recorrendo a Garrett, que explicou “que o povo também é clássico”, mas acrescentou a ele a questão da gramática: “Penso eu que devia dizer – o primeiro dos clássicos e igualmente dos gramáticos” (ALENCAR, 1960, p. 963, 966). Para Alencar, todas as “cenas dos costumes pastoris” de sua terra natal, com sua “cor local”, mostravam que, nos sertões do Ceará, a vida do abegoarias da Europa”. Muito ao contrário, agitavam-na “os entusiasmos e comoções da luta, que lhe imprimem antes um cunho cinegético”. Nesse contexto natural, social, cultural e histórico, “outra cousa é o campear de nossos vaqueiros”: não podiam, pois, as nossas rudes bucólicas cearenses se impregnarem da mesma doçura e amenidade das que outrora cantaram Teócrito e Virgílio, e que ainda hoje se reproduzem nos colmos dos pegureiros do Velho Mundo. [...] Bem diversas, porém, são estas cenas sertanejas, dos bárbaros espetáculos de touros, tão populares na Espanha e que nos vieram outrora por importação. (ALENCAR, 1960, p. 964-5).

O literato pesquisador afirmou que, na coleta de peças da literatura oral, “entre os poemas pastoris da musa natal”, dois distinguiam-se “pela

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vaqueiro não repousava na “serenidade e cordura”, que eram “os toques das

antiguidade, como pelo entrecho”, o Boi espácio e o Rabicho da Geralda. Na procura de esclarecer o sentido do termo novo que empregava _ espácio, que “na língua do sertanejo significa o boi que tem a armação aberta e esgalhada”, considerou que este era uma criação popular: “Os nossos rústicos fizeram este adjetivo pelo mesmo processo que os sábios empregaram para de ‘Olimpio’ tirarem ‘Olímpio’, de ‘rosa”, ‘róseo’, etc.” Assim, o vocábulo representaria “a forma passiva de espaçado”. Avaliou que não escaparia, com certeza, “a um crítico ilustre e refletido”, como aquele a quem dirigia essas missivas, Joaquim Serra, “a novidade de outros termos” que empregava nesse escrito: “Nós os encontramos nos mais copiosos dicionários da língua portuguesa; naturalmente os atribuirá ao dialeto sertanejo, do qual talvez possua melhores subsídios do que até hoje eu puder obter” (ALENCAR, 1960, p. 965). Mas Alencar, após ressaltar que Serra era, “entre todos os nossos escritores, brasileiros pela pátria e pela musa”, aquele que mais escusava, senão acoroçoava suas “insurreições contra a esquadria dessa coisa chamada vernaculidade (sexquipedalia verba)”, com a qual pretendiam “a força compassar-[lhe] a palavra”, passou a tecer uma reflexão na qual entrelaçou língua,

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tempos e lugares, realidade e teoria: Uns certos profundíssimos filólogos negam-nos, a nós brasileiros, o direito de legislar sobre a língua que falamos. Parece que os cânones desse idioma ficaram de uma vez decretados em algum concílio celebrado aí pelo século XV. [...] Esses cânones só têm o direito de infringi-los quem nasce da outra banda, e goza a fortuna de escrever nas ribas históricas do Tejo e Douro ou nos amenos prados do Lima e do Mondego. [...] Nós, os brasileiros, apesar de orçarmos já por mais de dez milhões de habitantes, havemos de receber a senha de nossos irmãos, que não passam de um terço daquele algarismo. [...] Nossa imaginação americana, por força que terá de acomodar-se aos moldes europeus, sem que lhe seja permitido revestir suas formas originais. Sem nos emaranharmos agora em abstrusas investigações filológicas, podemos afirmar que é este o caso, em que a realidade insurge contra a teoria. O fato existe, como há poucos dias escreveu o meu colega em uma apreciação por demais benévola. (ALENCAR, 1960, p. 965).

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Ao dar continuidade à exposição e visão sobre o fato da língua e da forma como aspectos atrelados ao contexto natural, social e histórico, na defesa da particularidade cultural brasileira, Alencar abordou o abrasileiramento da língua portuguesa no cotidiano do povo e no seu emprego pelos escritores. Ao falar e o usar, tanto criava novos vocábulos quanto sintaxe. É vã, senão ridícula a pretensão de o aniquilar. Não se junge a possante individualidade de um povo jovem a expandir-se no influxo da civilização, com as teias de umas regrinhas mofentas. [...] Desde a primeira ocupação que os povoadores do Brasil, e após eles seus descentes, estão criando por todo este vasto império um vocabulário novo, à proporção das necessidades de sua vida americana, tão outra da vida europeia. [...] Nós, os escritores nacionais, se quisermos ser entendidos de nosso povo, havemos de falar-lhe em sua língua, com os termos ou locuções que ele entende, e que lhe traduz os usos e sentimentos. [...] Não é somente no vocabulário, mas também na sintaxe da língua, que o nosso povo exerce o seu inauferível direito de imprimir o cunho de sua individualidade, abrasileirando o instrumento das ideias. (ALENCAR, 1960, p. 966).

Para o autor, tal qual a sociedade, a linguagem, como manifestação desta, é dinâmica, “não refletindo senão a ‘mentalidade’ de um período e povo constitui o resultado de seu mecanismo social e histórico, ou antes, a expressão do interagir da coletividade com o indivíduo, a desdobrar-se em fatos linguísticos, morais, culturais, entre outros, que se particularizam, a cada época, num quê demasiado próprio.” Essa visão de mundo, em nada idealista, leva em conta “a dinâmica mesma do desenvolvimento histórico, marcada pelo embate de ‘ideias’ objetivamente consideradas.” (PELOGGIO, 2008, p. 124-5). Alencar chamou a atenção para esse abrasileiramento da língua no uso do povo, tratando também de um exemplo acerca do emprego excêntrico de certos diminutivos. Segundo ele, “usa-se no Ceará um gracioso e especial diminutivo”, que talvez fosse empregado em outras províncias, mas que, com certeza, se havia de generalizar quando apenas fosse vulgarizado. Embora “a rotina etimológica” não permitisse aplicar diminutivo ao verbo, em sua

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suas necessidades primeiras de expressão verbal.” A “individualidade de um

província “o povo teve a lembrança de sujeitar o particípio presente a esta fórmula gramatical, e criou de tal sorte uma expressão cheia de encanto”, tudo a partir de um “diminutivo verbal”. Mas, avaliou que se ele empregasse em algum romance “aquele idiotismo”, a seu ver, “mais elegante do que muita roupa velha com que os puristas repimpam suas ideias”, as censuras da crítica cairiam sobre ele. Não faltariam, como de outras vezes tem acontecido, críticos de orelha, que depois de medido o livro pela sua bitola, escrevessem com importância magistral: ‘Este sujeito não sabe gramática’. E tem razão; gramática para eles é a artinha que aprenderam na escola, ou por outra, uma meia dúzia de regras que se aforam nas exceções. [...] Enquanto a língua portuguesa vai assim enriquecendo-se à proporção que a brasileira, por outro lado matem em nosso país certas franquezas que sempre gozou desde sua origem, e das quais o classismo lusitano pretende despojá-la. (ALENCAR, 1960, p. 966).

Alencar considerou esse processo de enriquecimento da língua, com novos termos e formas gramaticais, como uma “benéfica tendência da nossa índole literária”, da qual tinha outros exemplos a citar, entre eles, tirados à sombra de nosso cancioneiro, “comentários e glosa das trovas e cantigas Imaginário e representações: entre fios, meadas e alinhavos

populares” (ALENCAR, 1960, p. 966-7). Nessa carta, assim como em outras seguintes, Alencar expôs, como já

havia feito em outros ensaios, as diretrizes de um programa de nacionalização da literatura brasileira que fundamentava a identidade nacional, distinta dos modelos lusos, do pensar e sentir português, nas formas, ao voltar às raízes americanas, à natureza, aos costumes e às tradições primitivos e populares. Buscou no cancioneiro popular, a poesia sertaneja, a originalidade e defendeu a diferenciação de forma e conteúdo da literatura nacional, de idioma e motivos (FREITAS, 1993, p. 7-10).

Metendo-se a gramaticar e analisando a estética da poesia popular Na epístola seguinte, datada de 12/12/1874, Alencar mencionou que

“nossos irmãos de origem e língua riem-se de nosso povo brasileiro” devido

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à forma peculiar de falar, “porque diz ‘moro na rua de..., estou na janela, cheguei em casa’”. Para ele, a questão era saber quem tinha razão para rir e tachar como defeito essa usual locução. Enfatizando que não era filólogo e que nem pretendia para si os foros de gramático, como se arrogava tanta gente, ponderou que os dois “melhores mestres” que conhecia “da arte de falar são o bom senso e o uso”, com os quais, todos os dias, tomava lição. Portanto, considerou-se “habilitado” para discutir o problema e afirmou que nesta questão dávamos “quinau nos nossos irmãos mais velhos”. Objetou: “São eles que se conspiram contra a gramática, firmando como regra o exclusivo da proposição – à – para as locuções acima indicadas e outras análogas, e exigindo que se diga impreterìvelmente: ‘moro à rua de... estou à janela, cheguei à casa’”. Argumentou que a contestação entre as duas preposições ninguém ousaria contrariar que nos viessem diretamente do latim; que andava em moda nas altas regiões da filologia negar a filiação evidente do português, buscando as origens em línguas desconhecidas e truncadas, porque, desse modo, a coisa não poderia ser entendida de todos e tomava “ares de intrincado problema”. Alegou que não carecíamos de adentrar nas conjecturas da linguística moderna e que, para o nosso caso, nos bastava colégio. Assinalou que “no mais puro e clássico latim achamos o emprego simultâneo das preposições ad e in para significar o lugar onde, sem outras restrições além das que eram peculiares à harmoniosa prosódia dos romanos e à discriminação dos casos” (ALENCAR, 1960, p. 967). Demonstrou o que afirmava, ou seja, que o uso desta preposição em português é bem semelhante ao da latina, e asseverou: “A regra latina passou com a mesma amplitude para o português. Já o tinha dito o nosso compatriota Morais, que ainda hoje é o primeiro lexicólogo da língua”, o qual indicava que os clássicos, como Barros e Camões, assim também empregavam-na. Reforçou que “nos clássicos são inúmeros os exemplos do uso promíscuo das duas preposições para designar os lugares onde e aonde.” Por conseguinte, reparava:

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um léxico latino, livro que todos conheciam, naquele momento, desde o

Já se vê o meu ilustrado colega, que aleijaríamos nossa língua tão rica, se lhe tolhêssemos esse genuíno teor de loução que traz de origem. É o que pretendem nossos irmãos; e tacham-nos de não sabermos português, porque não nos conformamos com as suas modas modernas em matéria de linguagem. (ALENCAR, 1960, p. 968).

Estimou que “o emprego que fazemos segundo a lição clássica da preposição em para indicar o lugar onde deixa-nos livre a preposição a para exprimir a circunstância”, mas “a perspicuidade, que é uma das excelências do estilo”, exige alguma discriminação, qual seja: a usado para significar acesso designa melhor aproximação, enquanto em exprime com mais propriedade a relação de ingresso e permanência (ALENCAR, 1960, p. 968). Cessando a discussão com um “Basta de gramaticar; deixemos isso para os sábios”, Alencar tornou à cultura popular, ao tema do cancioneiro. Tratou do romance ou poemeto do Boi espácio, que ele, na infância, nas cercanias da lagoa de Messejana, ouvia do vaqueiro do sítio paterno durante as noites dos invernos e que foi rememorada em parte e cantada por Filipe Pici. Explanou também acerca de outro poemeto, o Rabicho da Geralda, do qual teve acesso a cinco versões, colhidas por amigos em vários pontos da província, como Ouricuri e Inhamuns. Elas foram por ele, pacientemente, restauradas, em diImaginário e representações: entre fios, meadas e alinhavos

álogo e em conformidade com processo empregado em outros países para compilação, resultando num texto por fim reproduzido na quarta e última carta, datada de 10/12/1874 (ALENCAR, 1960, p. 969-72, 974-77). Nessa carta seguinte, Alencar analisou alguns aspectos dessas rapsódias

sertanejas, comentando-os e tratando de suas variantes. Nesse exercício intelectual, ele declarou que “o caráter poético das nossas rapsódias pastoris não é comum a outros países”. Aqui, o herói é o animal, no caso, o boi, que não precisou “de ser o artista para reivindicar proeminência”, a qual foi reconhecida pelo homem e por ele celebrada. Os nossos rapsodos do sertão, imitando ao criador da epopeia, Homero, sem o saberem, exaltam o homem para glorificar o animal. Alencar avaliou que o Rabicho da Geralda “tem a forma da prosopopeia” e, o cantor é o espectro do próprio boi, que é o herói, havendo, em suas quadras, “traços da simplicidade homérica, ou antes

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persuadir os ânimos e atrair as vontades (ALVES, 2001, 158-167).

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do estilo sóbrio e enérgico do povo, em que foi vazada a poesia do grande épico”, com cenas desenhadas em rasgos breves e naturais, expressa com a palavra concisa e rápida. O autor informou que não fez “na lição popular mais do que uma tênue alteração”, ao substituir um vocábulo trissílabo por seu equivalente dissílabo, a fim de conservar a harmonia do verso. Ponderou que, nossos vates populares, que “improvisam e repetem suas canções ao toque da viola”, apagam, por meio da cadência da toada, “as asperezas do metro imperfeito” e imprimem “ao verso cantado um ritmo sonoro”, cabendo àquele que “transporta para a imprensa essas composições”, que não foram produzidas “destinadas à leitura”, o dever “de apresentá-las com a forma por que as apreciam aqueles que porventura as escutam, vestidas com a rude harmonia do canto sertanejo”. Por fim, ressaltou que “ainda assim a correção gramatical ou métrica não vale a poesia nativa, que se expande na voz e no entusiasmo do trovador popular” (ALENCAR, 1960, p. 977-9). Martins (2010, p. 2-3) considera que a postura de Alencar, de procurar determinar o gênero no qual as cantigas se enquadram, é uma reminiscência dos conceitos oriundos da retórica, indicando que, no escritor, a matriz de pensamento romântica mescla e se funde com a retórica. Para ele, “Alencar segue a tradição retórica” não apenas classificando os poemas, mas principalmente na análise do caráter que neles assume o boi – herói. Na sua leitura do cancioneiro, “identifica dois ornatos retóricos empregados pelos vates do sertão para mitificar seus heróis: a hipérbole e amplificação.” E, tanto os temas discutidos nessas cartas, quanto os dispositivos retóricos identificados em tais cantigas foram retomados em O sertanejo. A retórica, ainda que apontada pela historiografia literária como abandonada com o avanço da estética romântica, continuou a orientar a produção de discursos por meio dos ensinamentos dos manuais escolares. Ela implicava o domínio das humanidades clássicas e requeria certo grau de aprofundamento no estudo da língua, devendo estar na formação de homens que atuassem na política e nos negócios burgueses. Seu terreno era a eloquência, a beleza da expressão, elegante e convincente, a exposição com estilo florido, pressupondo o conhecimento da gramática como elemento essencial para a comunicação verbal e escrita, empreendida com o intuito de

Alencar, após fazer as apreciações acima expostas, passou a tecer algumas considerações concernentes à “questão da nacionalidade da nossa literatura”, a qual, em seu “conceito envolve necessàriamente a da modificação da língua”. Ele iniciou seu exercício interpretativo e de compreensão da questão, perguntando se haveria, no cancioneiro português, tão rico, coisa que parecesse com esse poemeto, não somente no assunto, como na maneira de o tratar e expor. A resposta ao problema foi: Eu não conheço. Se um de nossos sertanejos, transportado de repente a Portugal, cantasse a sua lenda cearense no terreiro de alguma das abegoarias do Alentejo, estou convencido que os granjeiros de lá não o entenderiam. Nem ele tampouco aos seus parceiros de ofício (ALENCAR, 1960, p. 979).

O escritor defendeu que a diferença, a “individualidade própria” ou a particularidade presente nas composições do nosso cancioneiro, absorvida da tradição de fatos praticados ou de ideias, e que se tornam símbolo de uma sociedade, época ou lugar, começaria pelo título da peça, que “o sertanejo pronunciaria Rabicho da Geralda como está escrito” enquanto “o alentejano teimaria em ler Ravicho da Giralda.” Desse modo, cada um ficaria a rir-se do outro e sem razão, “porque tanto direito tem o nosso povo de dar a uma Imaginário e representações: entre fios, meadas e alinhavos

letra o som de b, como eles o som de v. Quando à elegância é simples ques-

tão de gosto.” Alencar esclarece que, no latim clássico, o t diante das vogais passou, desde certa época, a ser pronunciado pelo romanos que falavam a língua de Cícero e Virgílio, como s, como aconteceu também com o m final, que foi se obscurecendo a ponto que a voz já o não feria, esmagando-o contra a vogal seguinte. Avaliou e julgou que: Essas alterações fonéticas são frequentes nas línguas, especialmente quando intervêm novos elementos etnológicos. Com o volver dos tempos elas exercem tão poderosa ação no mecanismo e gramática de um idioma, que o separam completamente do tronco. [...] Não foi outra, segundo as investigações dos melhores filólogos, a revolução, que desvanecendo as flexões do latim, criou a língua romana ou romance, da qual saíram o francês, o italiano, o provençal, o valáquio e o espanhol, de que a seu turno destacou-se o português. (ALENCAR, 1960, p. 980).

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A preocupação de Alencar era criar um estilo brasileiro, um novo modo de escrever que refletisse o espírito do povo brasileiro, as peculiaridades sintáticas e vocabulares do falar da nação. Naquela época em que vivia, despertavam novas concepções orientadoras dos estudos linguísticos, as quais reagiam à gramática filosófica ou logicista que era dominante nos séculos XVII e XVIII, segundo a qual, devia haver harmonia absoluta entre a razão e a língua, sendo esta estável, fixa, regulada pela razão universal. Nesse ambiente e clima de procura por renovação, Alencar foi um pioneiro na indicação da reflexão acerca do fazer literário e da especificidade da língua, pois, apesar desta ser matéria-prima do escritor, não constituía, para os românticos, objeto de análise refletida. Sua consciência de que o artista se faz pelo domínio de seus instrumentos de trabalho o distingue de outros contemporâneos (GUIMARÃES, 2010, p. 1- 2).

Na defesa da “revolução”: de um “dialeto brasileiro” e de uma literatura “nossa” Expondo sua visão sobre o modo pelo qual ocorre a modificação das línguas, vendo-o como fruto de um processo histórico, Alencar levantou cussões filológicas do momento e, por fim, firmou sua posição em relação à “revolução” que observava ocorrer nesse campo, a qual resultaria na formação, em andamento, de um “dialeto brasileiro”. Querem alguns que o português se formasse de primeira mão, e ao mesmo tempo que as outras línguas de estirpe romana. Enquanto, porém, não se exibirem as provas desse fato, eu permaneço na minha conjectura. Se como assegura Bourguy, e se acredita geralmente, o português nasceu da transformação do galego, um dos dialetos do primitivo espanhol, parece óbvio que ele não podia preceder à língua mãe. [...] Estas questões filológicas andam de presente tão estudadas e discutidas, que realmente é para encher-nos de pasmo, como há quem seriamente conteste a revolução fatal que a língua portuguesa tem de sofrer no solo americano para onde foi transplantada: revolução da qual já se notam os primeiros e vivos traços, no que já se pode chamar o dialeto brasileiro. (ALENCAR, 1960, p. 980). 77

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conjecturas à luz do pensamento de Bourguy. Referiu-se ao estado das dis-

Alencar historiou o processo de formação das línguas, apontando o percurso de transmigração do primitivo sânscrito do oriente para a Itália, onde se demudou em latim, que, mais tarde, espalhando-se pela Europa, transformou-se no romano, que, impregnado mais ou menos dos dialetos aborígenes, se dividiu em tantas línguas quantas foram as regiões por onde de vulgarizou. Isso, para, em seguida, problematizar a imutabilidade que alguns queriam impor à modificação do português: É admissível que alguma dessas línguas, produzidas pelo desenvolvimento mecânico de outra língua primitiva, esteja condenada à imutabilidade? [...] A transformação contínua que se opera na história filológica e que Muller compara à vegetação, cessou de todo para o português de que se pretende fazer uma múmia clássica? (ALENCAR, 1960, p. 980).

Em consonância a essas questões levantadas, o autor expressou sua visão evolucionista e progressista do processo de transformação das línguas, enfatizando: “As línguas, como todo instrumento da atividade humana, obedecem à lei providencial do progresso; não podem parar definitivamente.” Nesse movimento, “As pausas, e até mesmo os atrasos, que lhe sobrevenham não passam de acidentes, e de ordinário sucedem-se recrudescencias Imaginário e representações: entre fios, meadas e alinhavos

de energias que reparam aquelas perdas.” Dessa forma, por entre permanências, atrasos, avanços e acelerações, estava o português transmigrado para o Novo Mundo, destinado a criar uma nova língua: Se o português, transferindo-se para a América, desenvolvendo-se no meio de uma natureza tão opulenta como aquela onde se enriqueceu o sânscrito seu antepassado; se o português nessas condições não tivesse o viço e a seiva necessários para brotar de si um novo idioma sonoro, exuberante e vigoroso; triste dele; seria uma língua exausta, votada a breve e rápida extinção. [...] Temos do português ideia mais vantajosa e lisonjeira do que nossos irmãos de além-mar. Acreditamos que a essa língua não só está prometido o florescimento e restauração na terra heróica, onde a falou Nuno Álvares e a cantou Camões, e onde agora se sucedem as gerações de notáveis escritores como foi destinada a servir de raiz a uma das mais belas e mais opulentas entre as línguas que dominaram na América, antes de um século. (ALENCAR, 1960, p. 980-1).

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De tal modo, o escritor tratava de mostrar o quanto já se diferençavam “o nosso português americano e o português europeu”. Nesse sentido, retomou a questão, abordada na segunda carta, referente ao uso das preposições a e na, pois recebera uma correspondência, de autor anônimo, que apontava como incorreta sua afirmação de que lá, em Portugal, se riem dos brasileiros dizerem “- moro na rua de...”, etc. Assegurava o leitor que, ao invés do exposto, riem-se lá “de quem usa outra locução – ‘moro à rua de...’, etc – a qual tem ressaibos de galicismo”. Alencar se explicou, reparando que fora induzido ao erro nesta matéria, pois nunca percorrera as províncias portuguesas, e que à falta de documentos, guiava-se por informações de terceiros (ALENCAR, 1960, p. 981-2). Portanto, o romancista achou ou criou mais um ponto e oportunidade de retornar à questão e aprofundá-la. Entrou a esclarecer que “não fomos nós que iniciamos na literatura esta rivalidade, que infelizmente reinou em outros tempos no trato da vida”. Reconstruindo historicamente esse movimento de conflito, oposição, tensão e resistência presente entre os intelectuais dos dois lados do Atlântico, produziu uma breve síntese da história da literatura brasileira.

ratura, pagamos, como era natural, o tributo à imitação, depois entramos a sentir em nós a alma brasileira, e a vazá-la nos escritos, com a linguagem que aprendemos de nossos pais. [...] Prosseguimos na modesta senda, quando em Portugal principiou a cruzada contra nossa embrionária e frágil literatura, a ponto de negar-se-lhe até uma individualidade própria. Não era generoso, e não era justo. Basta que a escola dos escritores portugueses, começando pelo príncipe dos seus prosadores, Alexandre Herculano, não se associou à ingrata propaganda (ALENCAR, 1960, p. 982).

Alencar, que declarava existir “uma cruzada” contra nossa literatura, deu continuidade a sua explanação, abordando a postura diferenciada, de respeito, da crítica brasileira em relação aos escritores portugueses em oposição àquela, de acusações, de lá, frente a nossos escritores e literatura.

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Depois da independência, se não antes, começamos a balbuciar a nossa lite-

Ainda assim, não reagimos, e nem pensamos em retaliar. No Brasil também se cultiva a crítica; e desde remotas eras, Aristarco mostrou que não há superioridade inacessível à censura. Todavia respeitávamos os representantes ilustres da literatura mãe. [...] Enquanto em Portugal, sem darem-se ao trabalho sequer de ler-nos, acusavam-nos de abastardar a língua, e enxovalhar a gramática; nós ao contrário, apreciando as melhores obras portuguesas, aprendíamos na diversidade dos costumes e da índole a formar essa literatura brasileira, cuja independência mais se pronuncia de ano em ano. É infantil; será incorreta; mas é nossa; é americana. (ALENCAR, 1960, p. 982).

O escritor, mostrando-se consciente da diversidade cultural que marcava as duas nações, e engajado no projeto de formar uma literatura brasileira que distasse da portuguesa, ao possuir a marca da América, batia-se contra a dependência e colonização cultural. Na luta pela separação e por uma autonomia de nossa literatura identificada com a natureza local, tornada símbolo nacional, profetizava. Terá um dia a formidável e brilhante incorreção da majestosa baía de Guanabara, a qual infunde o assombro e admiração no estrangeiro que pela primeira vez a contempla. [...] Não nos ressentimos, ainda assim, com esse espírito de

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colonização literária. É tão natural o zelo da mãe que recata a filha e não lhe consente separar-se de si! (ALENCAR, 1960, p. 982).

Alencar defendia a aproximação da linguagem literária com a linguagem

falada, afastando seus textos dos padrões de uso e produção portugueses, ao pautar-se na ideia do povo soberano e demiurgo. Como romântico e com seu ideário de libertação, afastava-se do ideal dos clássicos de elevar a língua portuguesa ainda tosca e singela, que os antepassados medievais forjaram, à riqueza e elegância do latim literário. A língua, elaborada por escritores eruditos, que formaram seu senso estético nos moldes latinos, expressavam aristocraticamente e aspiravam à grandiosidade épica ou a pompa oratória; essa língua, que teve normas de uso simultaneamente estabelecidas por gramáticos, deveria, para Alencar, buscar outras fontes de exemplificação e, assim, combater a “colonização literária” (GUIMARAES, 2010, p. 5).

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Mas Alencar apontou que essa postura combativa, de resistência a dominação dos modelos culturais portugueses, não estava presente em toda intelectualidade do lado de cá, na qual existiam aqueles submissos às vozes e apreciações de lá, aliados aos ideais e práticas lusos: “Houve, porém, brasileiros que se deixaram contaminar desses espíritos. Começou então a vogar uma ideia singular: que o diploma de escritor em nosso país não se recebia da opinião nacional; era preciso ir recebê-lo do outro lado do Atlântico.” Ele explicitou sua postura política, deixando clara a ligação que fazia entre a cultura e o campo político, entre autonomia cultural como consolidação da independência política de 1822: É contra isso que eu reclamo em nome de nossa literatura e por honra da mocidade brasileira, que aí vem cheia de vigor e talento pedir-nos conta de meio século de existência política. [...] É essa submissão que não tolero; e como já disse uma vez, quebraria a penas antes, do que aceitar semelhante expatriação literária (ALENCAR, 1960, p. 983).

Para o escritor, era imprescindível a produção de uma literatura nacional que representasse o povo e a cultura brasileiros. Com temas e formas peculiasidade cultural dos povos que para cá vieram com a imigração e entraram em contato com aqueles que aqui já viviam, além da presença da natureza. Admiremos Portugal nas tradições grandiosas de seu passado; nos esforços generosos de seu renascimento; prezemos sua literatura e seus costumes; porém nunca imitá-lo servilmente. Importaria anular a nossa individualidade. [...] O Brasil não é unicamente nem o solo que habitamos, e no qual são recebidos como irmãos quantos o buscam; nem a gente aqui nascida e que tem o nome de cidadão. O Brasil é a grande alma que habita esse corpo, e que associou-se à terra sul-americana, como o seu espírito indígete, com o seu nome hospitaleiro. (ALENCAR, 1960, p. 983).

Continuando a explicitar a relação indicada entre assuntos próprios, estética, natureza e identidade cultural, declarou:

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res, firmaria nossa particularidade, aquilo que nos era próprio, fruto da diver-

Se nós, os brasileiros, escrevêssemos livros no mesmo estilo e com o mesmo sabor dos melhores que nos envia Portugal, não passaríamos de autores emprestados; renegaríamos nossa pátria, e não só ela, como a nossa natureza, que é o berço dessa pátria. (ALENCAR, 1960, p. 983).

Desta forma, Alencar atuava de maneira crítica em defesa da diferenciação de conteúdo e forma para a produção de uma literatura brasileira que contribuísse para construção de uma identidade nacional ao possuir raízes americanas. Sem rechaçar a herança cultural lusa, defendia a evolução da língua portuguesa marcada pela terra americana e pelos povos que aqui habitavam, fossem indígenas ou vindos pelas correntes migratórias (FREITAS, 1993, p. 9). A literatura nacional deveria representar “a alma brasileira”. Portanto, ser escrita em língua portuguesa abrasileirada, recorrer às fontes de inspiração próprias e expressar “a alma de uma nação” com motivos e temas individuais. Fruto de uma postura “militante”, atenta à diversidade cultural, à tradição letrada e à cultura popular, produziria uma independência cultural que completasse aquela política. Alencar, ao visitar sua terra natal, e por ela percorrer em expedição lítero-arqueológica, realizou pesquisa sobre a pecuária no sertão. LevanImaginário e representações: entre fios, meadas e alinhavos

tou aspectos relativos às condições de vida e de trabalho dos vaqueiros, no intuito de incorporar à sua produção romanesca os elementos temáticos e estruturais identificados nas cantigas populares, o “estilo sóbrio e enérgico do povo”. O autor, que havia censurado Gonçalves de Magalhães e seu poema A Confederação dos Tamoios, por ter tentado representar a saga dos índios por meio de uma epopeia, gênero que considerou impróprio para a edificação da poesia nacional, dava continuidade à sua busca de uma forma épica nacional. Os temas e procedimentos estéticos observados nas cantigas sertanejas, foram empregados no romance O sertanejo e podem ser pensados como uma tentativa de vincular o romance, gênero novo e moderno, à tradição popular, valorizada pelo romantismo, e também como contribuição para estabelecimento de uma forma épica genuinamente nacional (MARTINS, 2010, p. 4).

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Referências

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A profissão de Jacques Pedreira de João do Rio: Anti-bildungsroman da República no Brasil e contranarrativa da nação Virgínia Célia Camilotti

Na confluência de duas leituras sobre o início do século XX, uma relativa ao processo decadencial experimentado pela civilização e outra concernente à jovem república brasileira, João do Rio, em 1910, concebeu seu primeiro romance – A profissão de Jacques Pedreira. Espécie de anti-Bildungsroman, A profissão de Jacques Pedreira tematiza a recusa de um jovem a qualquer processo de formação, expressando, alegorià jovem república brasileira, em estreita concordância com tais sensibilidades. A exploração desse romance, focalizando sua fortuna crítica, seu enredo, e o gênero a partir do qual ganha forma na relação com as duas leituras do tempo imbricadas na sua composição, constitui-se, aqui, no objetivo maior. Dentre os resultados desta exploração, tem-se o questionamento de uma assertiva recorrente quanto às contranarrativas de nação – a de que elas “rasuram as fronteiras totalizadoras”, perturbando “as manobras ideológicas através das quais ‘comunidades imaginadas’ recebem identidades essencialistas”, pois “a unidade política da nação consiste em um deslocamento contínuo da ansiedade do espaço moderno irremediavelmente plural” (BHABHA, 2005, p. 211). Sob o exemplo de A profissão..., poder-se-á ver que, por meio de um formato muito particular, contranarrativas da nação rasuram identidades essencialistas,

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camente, os sentimentos morais que enformavam a “era” e o horizonte posto

porque são concebidas colocando em cena o espaço moderno como irremediavelmente o mesmo, em especial, quanto aos sentimentos e valores que lhe dão forma, para os quais, inclusive, não há fronteiras ou divisas de um nacional que os contenha; antinarrativas que diluem as fronteiras não porque dão voz ao múltiplo de seu espaço interior, mas porque expõem a identidade que o processo de modernização impõe. *** Em 1992, a Editora Scipione, em parceria com a Fundação Casa de Rui Barbosa e o Instituto Moreira Salles, devolveu ao público leitor o primeiro romance de João do Rio – A profissão de Jacques Pedreira. Embora pareça adequado falar de “devolução”, para qualificar o empreendimento de reedição de uma obra que se encontrava desaparecida desde sua primeira edição, há nisso certa insuficiência para aludir aos eventos que envolvem essa história. Eventos relacionados ao malogro, em seus sentidos primeiros e mais imediatos de “perder-se prematuramente” e/ou “ficar sempre sem resultado”. Malogro, primeiramente, por sua publicação inconclusa (parcial) sob Imaginário e representações: entre fios, meadas e alinhavos

a forma de folhetim, na Gazeta de Notícias durante os meses de junho e julho de 1910. Malogro, também, talvez maior, por ter sido retirada de circulação pelo próprio autor, que conseguiu, na justiça, o direito de destruir a edição definitiva da Editora Garnier, de 1911, em função dos diversos erros tipográficos. Mas o malogro desse malogro maior (a destruição de todo o lote da edição) foi a preservação “quase por acaso”1 de dois exemplares na biblioteca de João do Rio (doada ao Real Gabinete Português de Leitura do Rio de Janeiro). Um deles serviu de referência, após 81 anos de seu suposto desaparecimento, aos pesquisadores do setor de filologia da Fundação Casa de Rui Barbosa para o preparo de nova edição. Em Nota à reedição de A profissão de Jacques Pedreira, Raquel Valença Teixeira e Flora Sussekind descrevem a circunstância de reedição da obra: “Foi graças a Homero Senna, na época, diretor do Centro de Pesquisas da Fundação Casa de Rui Barbosa, que pudemos ter acesso, então, a um desses exemplares preservados quase por acaso para iniciar o preparo de uma nova edição.” (SUSSEKIND; VALENÇA, 1992, p. VII).

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Talvez porque “estivesse escrito lá em cima” (como diria Jacques, o fatalista, personagem de Diderot2) ou por obra do acaso ou azar (como concluiria outro Jacques – o personagem do romance de João do Rio), a obra, por mais um malogro, foi impedida de ser reeditada no formato idealizado por seu autor. Qualquer que tenha sido o exemplar posto à disposição dos pesquisadores da Casa Rui para a reedição, certamente, não foi aquele em que o próprio João do Rio assinalara correções à precária edição preparada pela Garnier e que fora mantido na sua biblioteca à espera, num futuro, de restabelecimento definitivo. Nesse sentido, é curioso observar que, a cada obra publicada posteriormente à malograda edição de A profissão... de 1911, João do Rio fez constar na relação de obras de sua autoria, impressa nas contracapas, o anúncio de A profissão... como romance de “próxima publicação”. Tal anotação ainda aparece no seu último volume – Algumas figuras do momento – de 1920, fazendo crer que o escritor alimentou, até o final de sua curta vida, a expectativa de colocá-lo em circulação novamente com uma nova edição, fiel ao original. Porém, malogro ainda experimentaria o pesquisador que, porventura, tencionasse, até muito recentemente, consultar tais volumes no Real Gabinete Português de Leitura do Rio de Janeiro. As referências de localização topográfica e os números de registro de ambos os volumes encontravam-se no antigo fisequer constavam mais do catálogo informatizado como integrantes da biblioteca de João do Rio3. Em dezembro de 2010, todavia, um desses exemplares foi finalmente reencontrado, porém não aquele em que o autor anotara minuciosamente os erros de edição. ***

Refiro-me aqui ao personagem central da obra de Denis Diderot, intitulada Jacques, o fatalista, e seu amo (DIDEROT, 2001), a quem João do Rio, por contraste, parece ter como referência, na composição de Jacques Pedreira, personagem central da obra A profissão de Jacques Pedreira.

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As informações constantes do antigo fichário para os volumes são as seguintes: A profissão de Jacques Pedreira – Rio de Janeiro – H. Garnier – 1911, in 8º, n.51.278 - 15–N–14; A profissão de Jacques Pedreira – Rio de Janeiro – H. Garnier – 1911, in 8º, n. 52.196 - 13-N-8.

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chário; no entanto estavam desaparecidos das estantes e, por essa razão, nem

A sua recepção crítica parece ter a mesma sina. Raríssimos estudos se ocuparam de A profissão... Quando disso se tratou, predominou a prática, bastante disseminada entre historiadores ou estudiosos da literatura de, em nome de alguma temática específica, considerar o volume como corpus integrante de uma série documental4, a ser explorada em proveito de tal tema. Para o caso, tratou-se das seguintes temáticas: as representações de Petrópolis, da casa ou do mundo privado, do esporte, das drogas, dos vícios, da técnica e da velocidade. (DOMINGUES, 1997, p. 213-224 ; SILVA, 1999, p. 93-103 ; SILVA, 2001; ALMEIDA, 2005; CARDOSO, 2005; LINHALES, 2007). O ensaio de Giovanna Dealtry, de 2004, intitulado “Jacques Pedreira: melhor que ser é parecer ter”, de certa forma, foge à regra. Ainda que A profissão... não seja tomada aí como um evento em si mesmo no universo das letras ou, dessa mesma forma, no interior da própria série produtiva de João do Rio, é explorada, em algumas de suas particularidades de composição, na qualidade de obra que focaliza os modos de vida da elite carioca no início do século XX. Porém o detalhamento dos modos de operação de João do Rio na composição do personagem – um jovem smart – bem como na caracterização de sua vida de ócio perde, por fim, a centralidade no artigo, para que cumpra Imaginário e representações: entre fios, meadas e alinhavos

o propósito maior de atestar, com a A profissão... , a confluência existente entre a aversão da elite brasileira ao trabalho organizado, driblado com formas de sobrevivência que se associam a enganos, chantagens e favorecimentos pessoais, e as práticas da malandragem da gente de baixo, identificadas, costumeiramente, com os pobres e pretos (sambistas e capoeiras). Ao supor que “a nova moral do trabalho encontra aqui [no Brasil] uma cultura voltada para o ócio, seja entre as elites que exploram [...] seja entre certos homens, nem tão livres assim, que equacionam o menor esforço braçal ao maior ganho”, Dealtry (2004, p. 7) destaca A profissão... como índice da existência de um “sintoma de cultura nossa” (2004, p. 4) ou de um ethos particular ao Brasil. É certo que a reedição de A profissão..., em 1992, foi acompanhada de

dois importantes ensaios que o tomaram como objeto particular de inquiri Série documental composta tanto a partir da obras do próprio autor, quanto a partir de obras de outros literatos.

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ção. Mesmo assim, A profissão... não mereceu de Flora Sussekind e Raúl Antelo, autores desses ensaios, exploração na sua condição de gênero particular – romance –, adotado pelo autor, para ensaiar sua literatura nos anos 1910 e 1911. Nem tampouco como um evento distinto e, de certa forma, inusitado no leque da produção daquele que é visto, prioritariamente, como cronista. Em “O cronista & o secreta amador”, de Sussekind, A profissão... aparece como mais um exemplar de uma vasta produção que tem a cidade como tema central e a experiência urbana a enformar a constituição de tipos e, sobretudo, de vícios, cuja profusa descrição corresponde à compulsão do escritor em fixar a passagem do tempo (SUSSEKIND, 1992, p. XVI). Nesse enquadramento, o protagonista do romance – Jacques Pedreira – resolve-se como figuração em miniatura do Rio de Janeiro do início do século XX, donde os aspectos de rapaz elegante, encantador e sem profissão corresponde à remodelada cidade com seu aumento sensível de desocupados, de arrivismos e de clientelismos (SUSSEKIND, 1992, p. X). Ainda que o ensaio indique a cosmopolitização do Rio, como personagem maior de A profissão... e, o próprio Jacques, como alegoria mais bem formulada de tal processo, é, como uma obra espelho de uma cidade, espelho distorcido (bisouté) de Paris, por suas mazelas e incompletudes, que A profissão... é interpretada. A da denúncia de um projeto malogrado de cidade/polis moderna. De “A profissão do proveito”, de Raul Antelo, por sua vez, advém a imagem da obra como mais uma expressão de um artista-filósofo, que, sob o formato de uma biografia hipotética, suscita “uma estrutura intencional segunda”, que “ora revela, ora encobre o caráter alegórico da própria experiência.” (ANTELO, 1992, p. 154). Experiência (que não deixa de ser também do artista) com o imperativo pragmático posto “à consciência moral do indivíduo” (ANTELO, 1992, p. 154), já que a profissão imposta – o intermediário adandinado –, ofício que é meio para tráfico de interesses, deriva do modo peculiar de funcionamento do Estado oligárquico. Nos termos do próprio Antelo: a “profissão de Jacques Pedreira compra a vaga para revendê-la enquanto posto, mostrando que o poder público utilizava a iniciativa privada para construir o Estado.” (ANTELO, 1992, p. 155). É

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Jacques Pedreira, o seu fútil protagonista, parece restar apenas a dignidade

como um ensaio analítico que a obra emerge da pena de Antelo. Ensaio que se afasta do caráter de mera denúncia da corrupção como elemento endêmico da sociedade brasileira, para explorar a dialética particular à nova ordem simbólica do país em tempos de modernização e de estado oligárquico – o segundo, como meio a partir do qual se leva a cabo a primeira: a clientela transformada em regra. Para além destes ensaios, há sobre A profissão... o inspirador artigo de Antonio Dimas, “João do Rio e o mito do progresso”, de 1993. No entanto, da fértil trilha que nele se abre à interpretação da obra, identificando-a como “uma vistoria bem pouco favorável ao deslumbramento que a avenida provocou em cabeças ávidas de modernização”, resta, por hora, apenas malogro. Nenhuma análise de A profissão fora efetuada considerando tal perspectiva. Nem tampouco outra intrigante sugestão proposta pelo estudioso – o formato ou gênero literário escolhido por João do Rio, para aportar sua “vistoria bem pouco favorável à modernização”– o bildungsroman; mais especificamente, o bildungsroman às avessas. Dessa imbricada correspondência, assim fala Dimas: A Profissão de Jacques Pedreira apanha um momento em mudança, em que va-

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lores antigos estão sendo questionados, quando não ridicularizados. Daí não ser estranho que, diante de tantas inversões, o romance cometa a sua e se coloque como uma espécie de Bilgungsroman (sic) às avessas. (DIMAS, 1993, p. 226).

Ao reter a correspondência entre os dois termos, presente na sugestão

de Dimas – a destoante crítica à modernização e a espécie de Bildungsroman às avessas –, que, a um só tempo, sugere a inscrição de um lugar particular à obra em meio a tantos registros de um “tempo” e salienta sua condição de gênero inusitado no interior da série produtiva de João do Rio, empenho-me na exploração de A profissão... justamente a partir dos liames entre o formato que lhe corresponde e o horizonte histórico imaginado/desenhado para o tempo das avenidas ou para a cidade/polis remodelada. Na base desse exercício, ainda se encontra uma preocupação maior: a relação que se estabelece entre a adoção de um gênero literário específico por parte de um autor e as ações políticas visadas por sua literatura ou as ações políticas 90

nela implicadas, quando o próprio fazer literário é compreendido como tal. Preocupação que, para o caso em tela, conduz, necessariamente, para sua exploração em duas perspectivas: a da intriga, concebida por João do Rio para o percurso de formação de Jacques Pedreira; e o de suas outras ações/ intervenções na cena literária, ao tempo e ao compasso da concepção, publicação e edição do romance. *** Antes de adentrar a intriga, portanto, cabe situar parte dessas ações de João do Rio na cena literária. Durante o período de composição e publicação de A profissão..., o jornalista subscrevia, com pseudônimos diferentes, crônicas que poderíamos nomear políticas, dado o foco privilegiado sobre os eventos, personagens e práticas relacionados à jovem República Brasileira. É o caso das crônicas subscritas com o pseudônimo Simeão, em 1910, na Gazeta de Notícias, pelas quais se pode acompanhar o engajamento do jornalista na campanha civilista de 1910, sua posição favorável ao candidato Rui Barbosa e, ao mesmo tempo, sua sistemática oposição ao general Hermes da Fonseca. De mesma natureza são as crônicas assinadas Paulo José, político nos diversos Estados da Federação. Como Joe, no mesmo período, o jornalista subscrevia, primeiramente, na coluna “Cinematographo” e, depois, na coluna “Os dias Passam...”, na mesma Gazeta de Notícias, crônicas que passam em revista inúmeros eventos relativos à cena carioca. Espécie de recolha pujante do dia a dia da cidade/ polis remodelada, ao modelo de faits divers, a um só tempo, focalizava a conduta de pessoas comuns e figuras políticas, aproximando-as naquilo que guardavam de sentimentos e valores a orientá-las. Como João do Rio, entretanto, assina, em A Notícia, crônicas que constituem uma reflexão mais verticalizada dos comportamentos políticos, em especial, do que nomeava de “transformismo”: a prática dos políticos de mudar de posição ou figurino ao sabor das necessidades do momento, alheando-se completamente da observação de princípios no exercício de suas

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também na Gazeta de Notícias, em 1912, em que o escritor explora o quadro

ações. Trata-se, nesse caso, de crônicas que, além de guardarem uma abordagem comum das práticas republicanas de então – relativas aos sentimentos morais que lhe davam sustentação –, compararam e inscreveram tais práticas num quadro amplo, que não se restringia à república brasileira, mas ao universo das nações latinas. Parecendo proceder como estudioso interessado na recolha de indícios ou mesmo sintomas de um ethos cultural amplo para, subsequentemente, efetuar sua diagnose, o literato, contudo, avança sobre o material recolhido a ponto de transpô-lo ao espaço da ficção em clara perspectiva alegórica; devolve ao leitor, portanto, qual o quadro de Dorian Gray, as marcas e mazelas produzidas pelos sentimentos morais que orientavam tais condutas. Não sem antes, todavia, alimentar-se de inspiração para o traço, como testemunha a tradução que efetua do próprio romance de Oscar Wilde – O retrato de Dorian Gray –, publicada sob a forma de folhetim no jornal A Noite, sem assinatura, de julho de 1911 a janeiro de 1912. *** É como “jovem contemporâneo”, em que “contemporâneo” é sinalizado com “depois da Avenida Central” (RIO, 1992, p. 37), que Jacques Imaginário e representações: entre fios, meadas e alinhavos

Pedreira é apresentado ao leitor no segundo capítulo de A profissão... Porém

seu primeiro aparecimento em cena já havia ocorrido no capítulo anterior. Trata-se de uma entrada discreta, pelas bordas, sem alardes, pelo atraso à recepção preparada pela mãe, que, no cumprimento do figurino de esposa, precisa muito “oferecer” para manter as inúmeras relações do marido, célebre advogado, consultor de várias companhias inglesas. Chegar atrasado à recepção vale a Jacques uma apresentação feita por um de seus “mentores”5: “menino de maus costumes” (RIO, 1992, p. 24). No geral, no entanto, a referência à sua persona será como “moço bonito”. A figura do mentor é sempre desempenhada nos romances de formação por um ou mais personagens que “se ocupam de garantir o bem estar material e espiritual do herói, e se asseguram de que ele alcance um grau de maturidade que permita sua integração na comunidade.” (VASQUEZ, 2003, p. 14).

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O que vem a ser “moço bonito”? Na produção de João do Rio, é figura frequente, a prestar-se, inclusive, como expediente importante às inversões que o escritor efetua de certos registros sobre a imagem do país, em especial, aquela que o identifica como atrasado e incipiente na sua performance de país civilizado. Em “O trabalho e os parasitas”, crônica de 1911, publicada no volume Vida vertiginosa, ao focalizar as formas de sobrevivência que independem do trabalho ou do roubo à propriedade, o cronista privilegia a descrição da forma – “moço bonito”. Ao ser abordado por um desses exemplares na saída de um clube de jogo, o narrador é agraciado com os detalhes que compõem tal prática de sobrevivência, que, entre outras coisas, implica viver na e da mais completa elegância. O “moço bonito”, ao descrever o seu labor – a prática da prostituição em meio aos mais elegantes e afortunados e o “reclamo” para hotéis e restaurantes de luxo –, aponta o “atraso” existente no país quanto às possibilidades oferecidas a essa específica forma de sobrevivência. Esclarece, ainda, que se encontra apenas de passagem pelo Rio, pois sua vocação para “moço bonito” só é, efetivamente, aproveitada onde essa prática é maciçamente disseminada: em Paris. Inversão completa de sinais em relação ao discurso que enfatiza a civilização como positividade e sua correspondente associação ao modelo ou ao processo que se desenvolve além do Atlântico. Jogo irônico também com a na voz do “moço bonito”, uma vez que se vincula, intrinsecamente, via aspiração do “moço bonito”, civilização e corrupção (RIO, 1911e, p. 230). Em “Moços bonitos”, outra crônica de 1911, publicada na Gazeta de Notícias, Joe6 apresenta o tipo, a propósito de uma ocorrência policial envolvendo um desses exemplares, lembrando, nessa apresentação, a execução de um “tema com variações”: uma mesma composição repetida de forma uma pouco alterada, pois acompanhada de maneira diferente. A sequência de variações é finalizada com a figura do “moço bonito”, que fracassa no seu intento de gozar “o ambiente enervador da cidade” (JOE, 1911, p. 6 ):

Pseudônimo com que o escritor assina a coluna “Os dias Passam” n’ A Gazeta de Notícias durante o ano de 1911.

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ideia de atraso experimentado pelo Rio de Janeiro ou pelos trópicos, presente

são [os moços bonitos] os pervertidos da vida vertiginosa. [Neles] Há um desequilíbrio entre a nevrose do gozo em que vivemos e a educação ministrada a taes rapazolas. Os infelizes vêem a exhibição de elegâncias, os automóveis a correr, os restaurantes com champagnes e cocottes, os theatros, as mulheres cheias de brilhantes e de promessas. Não dão um passo que não encontrem a tentação. Por que não gosar também as ceias, as cocottes, as gravatas, as luvas? [...] A nossa moral urbana chegou a um tal estado que ninguém vence sem ser acusado das maiores infâmias. [...] Não há dignidade, não há convenções, não há código e não há polícia. Então elles, a principio, hesitam, depois tentam a primeira rapaziada. São por acaso bem succedidos. Riem. E, como não pensam no dia de amanhã e são apenas o desejo de gosar, commettem com toda a inconsciência a segunda malandragem e continuam. [...] Alguns acabam ricos. [...] Outros seguram-se: explorando o crime, o vício. Alguns vão para a Europa, ao prazer maior. Só são presos aqui poucos, os infelizes, os inhabeis. E nenhum delles é máo, é realmente bandido. São apenas homens que, desejando o conforto, esqueceram de trabalhar. [...] A culpa é da sociedade, é do momento. Uma sociedade constituída como nós, latinos, actualmente deve ter uma flora parasitaria grande. (JOE, 1911, p. 6, grifos nossos).

Na “execução”, afora a referência ao mundo além Atlântico como apanágio da civilização, ao mesmo tempo em que da depravação/licenciosidade – o Imaginário e representações: entre fios, meadas e alinhavos

“prazer maior” dos moços bonitos –, em primeiro plano, a explicação decisiva sobre a produção do tipo: os pervertidos da vida moderna são deduzidos da contradição entre a forma que o desejo assume na vida contemporânea e a formação ainda destinada a esses seres desejantes por excelência que são os moços prestes a se transformar em senhores do momento. Em último plano, mas não menos evidente e importante, a atribuição de responsabilidade à gestação do tipo: à sociedade e ao momento. E, por mais uma inversão, digna de nota, a sociedade culpada não se adjetiva como brasileira, mas latina. Nessa perspectiva, cabe indagar: o que João do Rio delimita ou cir-

cunscreve como quadro efetivo, no qual identifica os pervertidos da cidade/ polis remodelada? A vida nacional. Porém essa vida nacional, “depois da avenida”, como é sinalizada em todo o romance, ou após a cidade/polis remodelada, é nos seus modos, nos sentimentos morais que a enformam e nas práticas políticas que a ensejam, tanto quanto os “moços bonitos” 94

aquém Atlântico, variação de um mesmo tema: a decadência da civilização. Identificada ou coincidente, por sua vez, como estado ou processo, com os povos latinos. Diante de tanta inversão, pareço também cometer a minha: iniciando a exposição da intriga de um romance de formação, que pressupõe a narrativa de um percurso de aprendizado ou do movimento de uma consciência que se apodera, vagarosamente, no decurso da experiência, do eu autêntico, com a indicação imediata do formato do homem feito – “moço bonito”. O fato é que esta inversão do preceito decisivo ao gênero – “a existência de uma evolução por parte do protagonista (geralmente, um menino ou jovem)” (VASQUEZ, 2003, p. 14) – é, ela mesma, estruturante do próprio romance. Jacques esquiva-se a qualquer formação, não arredando do figurino, que, desde o princípio da intriga, já se lhe mostra ajustado. Tanto quanto o seu país, que também já se mostra perfeitamente ajustado, ao momento, aos valores em vigência, bem como aos sentimentos morais que lhe definem o aspecto. “Depois da avenida” não há homens a se fazer, esclarece o Barão Belfort, outro mentor de Jacques: A mocidade de antes da Avenida era composta na sua maioria de estudantes aleses, depois de guardar os versos maus do tempo de menino, a recordação dos amores e a recordação das pândegas. Em regra geral, não havia senão ambições relativas. Com a abertura das avenidas, os apetites, as ambições, os vícios jorraram. Já não há mais rapazes. Há homens que querem furiosamente enriquecer e esses homens são ao mesmo tempo pais e filhos. Faz-se uma sociedade e constituem-se capitais com violência. É uma mistura convulsionada, em que uns vindo do nada trabalham, exploram, roubam para conquistar com o dinheiro o primeiro lugar ou para (sic) pelas posições conquistar o dinheiro... (RIO, 1992, p. 37, grifos nossos).

Da recusa de Jacques (o “moço bonito”) a qualquer “processo de formação”, na sua dupla vertente – Ausbildung – o desenvolvimento das capacidades inatas – e – Anbildung – a complementação do aperfeiçoamento individual por um adestramento social (VASQUEZ, 2003, p. 14) – já se tem um claro indicativo no capítulo “Um jovem contemporâneo”. Porém

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gres e despreocupados. Formado o estudante, ia tratar da vida, segundo suas pos-

a inversão maior que nele se processa em relação aos preceitos do bildungsroman diz respeito à etapa da “separação” – momento em que o herói deveria abandonar o ambiente familiar, criando um enfrentamento com os adultos (VASQUEZ, 2003, p. 15), para alçar seu futuro a partir de suas qualidades inatas. Todavia “Um jovem contemporâneo” não dará a ver nem enfrentamento, nem tampouco qualidades a se desenvolver. E mais: como promessa de caracterização do “jovem contemporâneo”, o capítulo inicia-se pela caracterização do pai de Jacques (Justino), o homem já formado, a quem, supostamente, Jacques deveria contrariar. O que e quem é Justino? O importante consultor de várias companhias estrangeiras, [que] pelas contingências de uma vida de advocacia forçadamente administrativa, acostumara-se a dobrar o temperamento, a fingir, a representar. A vida é palco, onde cada um representa o seu papel, disse Shakspeare.7 Depois do transformismo, moda passada na ciência e moda em voga na cena: a vida é palco, onde cada um representa seus papéis. (RIO, 1992, p. 11, grifos nossos).

Para caracterizar Justino, o romance alude diretamente às formulações de Lamarck, segundo as quais, as espécies se modificam em função das condições da natureza que as obriga a se adaptar sob pena de serem extintas Imaginário e representações: entre fios, meadas e alinhavos

(VILLELA, p. 201); e ao gênero teatral, de mesmo título, tornado famoso pelo artista italiano Leopoldo Fregoli8, consistindo da presença de um único ator em cena a representar diversos papéis de uma única trama dramática, mudando de aspecto, de voz e de registro em poucos minutos, para dar forma a personagens diferentes. É inclusive por esse crivo – o da representação e do transformismo9 A forma adotada na passagem para o nome de William Shakespeare era usual à época.

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Fregoli esteve no Brasil pela primeira vez em 1895, e sua obra foi elogiada por Machado de Assis em crônica de 3 de novembro desse ano, publicada em A Semana: “Mudando de aparência e de traje foi ele o criador do ‘transformismo’ no teatro e veio ao Brasil várias vezes”. (MAGALHÃES, 1981, p. 318).

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O termo também reporta a um “sistema de governo que em Itália ficaria conhecido por transformismo, expressão nascida do lema político do primeiro ministro italiano Agostino Depretis, para quem ‘governar era transformar os inimigos em amigos’ ” (RAMOS; MATTOSO, 2001, p. 98).

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– que o romance remete para a cena política contemporânea. Dentre os momentos do romance, em que se apresentam esboços de uma história de formação, ou melhor, de transformismo da república, pode-se sublinhar a passagem em que uma artista, já esgotada de tantas apresentações, explica a Jacques por que teve que se submeter a mais uma: para atender aos anseios de um homem público. Eis a caracterização de tal homem público: “O ministro da fazenda pediu. É um desses republicanos históricos a que nada se pode negar. Pertencia ao partido conservador da monarquia”. (RIO, 1992, p. 27). Em “Impressões da câmara”, crônica de 1911, o estado da casa de representação é dado a ver pelo mesmo recurso – a sequência histórica de seu transformismo: A Camara transformou-se. Não é a transformação arrebicada do interior com aquelle delírio de portinhas e de grades de madeira [...]. Não é a grande transformação material sonhada pelos remodeladores da cadeia velha em grande palácio. É a sua essência moral, é o seu caráter [...]. – Não é a mesma coisa. [...] Desapparecidas as grandes épocas da monarchia em que os oradores tinham poderes destruidores [...]. Desapparecido o primeiro período da República, com os “tenentes”, [...] as ambições de vinte anos, a convicção inexperiente da mocidade. Desapparecido o renascimento do parlamentarismo na república brilhantes, argumentos definitivos. Desaparrecido aquelle ultimo período de intellectualismo dos jovens, [...]. Desapparecidos, enfim, os bellos dias em que se faria alguma coisa com a convicção de bem servir a pátria. [...] que víamos nós? Como que a dissociação da Camara. É um abatimento estranho. Os homens entram e ficam desanimados, sem coragem, sem fé, sem enthusiasmo. (RIO, 1911c, p. 3)

Eis, então, a maturidade republicana, alegorizada na figura de Justino, o pai de Jacques, o homem já formado, correspondente ao homem público, ao representante do povo, todos resultantes do “transformismo”: Chamavam-no o ‘camaleão dos ministérios’; ninguém poderia afirmar numa questão de que lado estaria [...]. O hábito de mascarar o temperamento, de mudar de cara várias vezes ao dia, apagara-lhe a energia de retomar o seu

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com as defesas dos leaders, os ataques tremendos da oposição, [...] idéas re-

‘eu’[...]. O secreto acovardado Justino íntimo tornara-se apenas o espectador de vários Justinos mundanos, e só raramente intervinha no drama [...]. Sorria e continuava a representar, mesmo em casa, para a família, mesmo só. (RIO, 1992, p. 11).

O hábito de mascarar o temperamento do senhor já formado é correspondente ao mascaramento dos acovardados deputados federais, perfilados na crônica “O medo da responsabilidade”, de 1911: Os homens que tem por profissão fazer política [...] estabeleceram entre si a duvida, o temor da desconfiança geral; [...] É simplesmente o medo das responsabilidades. [...] O crescente desejo de não se comprometer, a fúria ambiciosa das maiores posições á custa da annulação de princípios [...], da própria personalidade, foi a pouco e pouco contaminando o ambiente. [...] O momento é [...] de concordar com todos e com tudo [...] de trepar a custa deste emasculamento geral. [...] Tudo é ‘sim senhor’. ‘Sim senhor’ a espera do amanhã [...], á espreita de uma fresta para subir [...]. Essa importante opinião social trouxe o desenvolvimento do sentimento latino que nós conseguimos tornar o maior dos sentimentos nessa época de [...] ambições desmedidas – o engrossamento. A bajulação desarrazoada, [...], o rebaixamento mórbido do próprio ‘eu’ condensam-se nesta palavra [...]. É o engrossamento vasio aos detentores do Imaginário e representações: entre fios, meadas e alinhavos

poder [...]. (RIO, 1911d, p. 1).

Oportunismo, que criou o comodismo acovardado, também visível

em Justino, diante do dever de instruir Jacques ou de incitá-lo ao adestramento social. O pai, figura contra a qual o jovem deveria iniciar o processo de descoberta e desenvolvimento de suas capacidades, porque “tivera sempre a preocupação dos papéis simpáticos” e “não havia nem tempo para perder [...] organizara um pai misto de peça romântica e de comédia moderna” (RIO, 1992, p. 11). Pai de drama romântico, quando acena com o imperativo do trabalho e do exercício do ofício no qual o “jovem contemporâneo” se formara – bacharel em direito –, caminho similar ao do próprio progenitor. E personagem de comédia moderna, quando acena com o imperativo de que é preciso ganhar não importando como, desdobrando da máxima “Um homem não é homem, enquanto não ganha” ainda outras:

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[ganhar] de qualquer forma. A questão é ganhar. As sociedades fazem cada vez menos caso dos meios. [...] Ganha-se dinheiro, mesmo não fazendo cousa alguma. [...] A questão é preparar o espírito, é encaminhá-lo para o ponto prático [...] pensar sempre que precisa conservar uma série de confortos, de aparências [...]. Não queres advogar?” (RIO, 1992, p. 13).

O misto de pai, na dupla acepção, ao mesmo tempo em que retoma uma suposta hierarquia e intima o jovem a estar no escritório na manhã seguinte, oferece um tanto de cartões e convites: Estas lembranças pessoais, deu-mas o Godofredo de Alencar [jornalista e literato], que é muito amigo dos governos. Sê também amigos dos governos. [...] Com estes trunfos que tens em mão, um homem esperto talvez não se decidisse por nenhuma profissão, mas decerto teria meios de arranjar uma fortuna. (RIO, 1992, p. 14).

Duas sensações imiscuídas acometem Jacques. Diante dos convites, certa emoção, traduzida pelo narrador onisciente nos seguintes termos “sentia-se bem um personagem, alguém” (RIO, 1992, p. 14). Diante do futuro, alguma preocupação: “Se Justino morresse? [...]. Era preciso atirar-se, toda gente [...] e ele que se sentia tão fraco d’alma, tão incapaz de reagir!” (RIO, 1992, p. 14-15). A replicar os atos de Dorian Gray, personagem do romance de Oscar Wilde, Jacques lança mão de um recurso que lhe repõe o formato, o figurino: Fechou-se por dentro, no quarto, acendeu a luz, olhou-se ao espelho. [...] Ainda não tivera uma amante senhora casada. Quanta coisa ainda não fizera na vida! Mas [...] tinha o desejo de fazer, desde que elas fossem agradáveis e pouco trabalhosas. Sorriu para o espelho um sorriso tentador. (RIO, 1992, p. 15).

Acometido por uma mistura de crença no destino e filosofia de jogador, constatava e apostava: “Afinal tinha sorte, sempre tivera sorte e havia de ter sorte. [...] visitara com os colegas uma quiromante que lhe prognosticara

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trabalhar, ter uma profissão [...] era humilhante. [...] Tinha que fazer como

muitos amores e muitas viagens.” (RIO, 1992, p. 15). Decidira-se, a partir da vã filosofia ensaiada no espelho, a continuar apenas no sport. Expressão que, ao longo do volume, conota triplamente perfomance, disputa e aposta. Para Jacques, todavia, menos os últimos e, prioritariamente, o primeiro: O apetite da vida voltava-lhe diante da própria imagem a mover-se no espelho. Sempre obtivera tudo sem esforço e a sorrir. E havia de continuar. [...] Ah! Se soubesse o futuro! E para quê, de resto? Saber é uma necessidade muito relativa. É possível passar perfeitamente sem saber uma porção de coisas. [...] Esse feitio não o obstou de ser precoce em tudo, por tudo lhe ter sido fácil. (RIO, 1992, p. 15-16).

Rememora, então, os anos de preparatórios e da faculdade, confirmando que sempre tivera a sorte do seu lado, para concluir que já se fazia homem a todo pano, vertiginosamente. À volta assustadora da ideia de que deveria “ensaiar a vida só, apenas comboiando durante algum tempo”, pareceu-lhe tão intolerável, que se ergueu num pulo e “olhou-se de novo ao espelho a ver se não teria mudado. [...] achou-se perfeitamente agradável.” (RIO, 1992, p. 20). À indagação do pai, na versão drama romântico, se havia pensado, Jacques responde taxativamente: “– Não, vesti-me” (RIO, 1992, p. 20). Imaginário e representações: entre fios, meadas e alinhavos

Se a intriga avança sugerindo o seu encaminhamento para a etapa da “iniciação”, donde, supostamente, começaria o aperfeiçoamento do herói por meio de distintas experiências vitais, é, justamente, pela recusa às iniciações que o movimento da trama se estabelece. Ao escritório de advocacia Jacques até que aparecera; no entanto, apenas para constatar que não desejava aquele “horror!” (RIO, 1992, p. 21) ou, então, para passar por lá apenas alguns minutos do dia, já que “a sua fraca vontade irritada contra um trabalho comum, descobrira que esse trabalho, mesmo comum, seria um título de elegância” (RIO, 1992, p. 21). Título capaz de proporcionar-lhe o desfrute do “prazer indizível” de ver que senhoras e amigos acreditavam ser ele outro Jacques, mesmo que muito distante da vida prática, apenas posando uma individualidade definida. Quando, em função de tal figurino, lhe é solicitada a atuação no tráfico

de influências – a aquisição junto ao pai, amigo dos ministros, de uma carta

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de apresentação a um amigo –, o romance sugere a transposição para a etapa da “eleição”, quando o herói deveria adquirir maturidade para encalçar seu futuro. Todavia, diante de tal ato, Jacques apenas se satisfaz secretamente com o “papel ativo” que parecera assumir na vida, percebendo, muito rapidamente, que uma “indolência, por demais moral e [...] física parecia afastá-lo desse ambiente de ativa persistência” (RIO, 1992, p. 34) em negociatas. Possibilitando-lhe concluir que “devia ser muito aborrecido fazer como o Jorge [o amigo a ser beneficiado com a carta de apresentação], de assaltante diário, ou como Godofredo [literato e jornalista], e seu pai, de intermediários entre o assaltado que deixa assaltar mediante condições e o assaltante que reparte” (RIO, 1992, p. 26). Todo o episódio cumpria apenas a função de fazer Jacques perceber o que já sabia há muito sobre si mesmo: sua preferência pela roda daqueles que “já tinham chegado”. Da mesma forma que, diante do luxo da garçonnière, oferecida pelo Barão Belfort para o desfrute de seu caso com mulher casada, tinha que admitir: não lhe importava a conquista do luxo, apenas seu usufruto. (RIO, 1992, p. 49). A propósito dessa constatação, e, mais uma vez, reforçando a ausência de qualquer aprendizado do homem já “vestido” ou já de posse do figurino que melhor lhe ajustava, ainda diria o narrador em terceira pessoa: “Certo, tudo” (RIO, 1992, p. 35). Narrador que apenas uma vez procede a uma narrativa de fluxo de consciência para Jacques, cuidando muito rapidamente de alertar o leitor para a singularidade do caso. Trata-se da cena em que Jacques se põe, excepcionalmente, a lucubrar sobre o assalto cometido contra Godofredo de Alencar, a quem devia parte de uma comissão recebida ao viabilizar a aprovação de uma concessão no Senado, mediante tráfico de influência. A justificar o fato de Jacques parecer, na passagem, conter alguma “profundidade” como personagem, tendo em vista a indagação sobre os desdobramentos morais de sua conduta, alerta o narrador: Os romancistas de vez em quando põem os seus personagens a dizer várias coisas e mesmo a pensar. Em seguida chamam a isso psicologia. Um romancista não deixaria de colocar o jovem Jacques, depois de receber os dinheiros do Gomide apenas com a observação do Godofredo. (RIO, 1992, p. 120). 101

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o jovem encantador não refletia, com tanta clareza. Mas sentia. E sentir é

A exceção do procedimento do narrador na passagem não deixa de chamar a atenção para quanto o romance, na sua composição, contraria amplamente outro preceito do Bildungsroman – certa interação entre a voz adulta do narrador (em primeira ou terceira pessoa) e a voz imatura do protagonista (VASQUEZ, 2003, p. 14). Interação essa que permitiria ao leitor constatar que o processo de aprendizagem havia chegado a bom termo, fazendo supor que o herói teria rechaçado seu passado rebelde e adquirido vergonha pelos erros cometidos. (VASQUEZ, 2003, p. 15). Mas o narrador de A profissão... não pode ser a voz adulta de Jacques, pois que não há aprendizado em curso na intriga. Nem tampouco pode lançar mão de fluxo de consciência para aquele que não reflete, apenas sente. Se, todavia, algum nível de interpretação Jacques pode formular sobre as ocorrências que lhe acometem, ou algum nível de consciência, esta somente se formula a partir da ideia de fatalidade ou de azar, o que, por sua vez, demanda que sua “antiformação” seja, necessariamente, narrada ou contada por outrem. Nesse sentido, inclusive, é preciso que um de seus mentores, o Barão Belfort, dimensione ao próprio Jacques a vocação que lhe condiz. Diante da resposta de Jacques de que não tinha jeito para a advocacia, podemos ouvir apenas a voz do Barão a promover o encontro da consciência com o vazio Imaginário e representações: entre fios, meadas e alinhavos

do ser, com o puro fluxo desejante a que Jacques se conforma: — Não tem mesmo. Meu caro Jacques [...] Tu nasceste para viver à custa da sociedade sem te incomodares [...] É a melhor maneira. Não te cansas. É impossível bateres a vida, como teu pai, como alguns dos meus companheiros de club, [...]. A ti será preciso que venha o prato feito. E vem. Vem, porque seria uma pena se não viesse. Olha, diverte-te, ama. Estás na idade de amar. (RIO, 1992, p. 36-37).

Mas de que matéria compõem-se as experiências amorosas de Jac-

ques, tão decisivas num percurso de formação? Hipocrisia: “Queria, mas ficava quieto, sabendo que, quando são elas a desejarem, tudo fica mais agradável.”(RIO, 1992, p. 38). As conquistas ou as experiências seriam apenas recurso à sustentação da imagem de “moço bonito”, desejado, cobiçado: iniciado um caso, “todas as outras mulheres sentem de súbito uma

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incompreensível simpatia. [...]. De um lado aumenta a atração, de outro os homens se tornam ainda mais pólo negativo. A sabedoria do profissional é mudar imediatamente de amante para conservar a atmosfera.” (RIO, 1992, p. 45). A sedução em série parecia-lhe o mais adequado para fazer-se continuamente novo e, assim, multiplicar indefinidamente o prazer que a sua beleza provocava. O amor, admitido como sport – perfomance, disputa, aposta –, somente se rivalizava com outro sport – o automóvel –, que Jacques nem ao menos tinha, mas do qual podia usufruir, aproveitando-se da febre pela máquina manifestada pelo amigo que se enriquecia com a maquinaria das concessões para as reformas urbanas. É, inclusive, o sport com a máquina de velocidade, que traz o envolvimento com a morte. O desastre, em que morre um motorista, em corrida de automóvel na Avenida Beira Mar, sugere o encaminhamento do romance para sua última etapa – a fase do “retorno” – a volta do herói para o âmbito comunal e a resolução do conflito inicial. Jacques volta ao seio familiar. O retorno, porém, é muito mais uma fuga ou busca de refúgio, embalada pela crença de que a fatalidade explicava o caso – “o desastre do automóvel pareceu-lhe uma [...] espécie de aviso da Providência” (RIO, 1992, p. 126); ou, valeu-lhe muita leitura, coisa a que jamais se dedicara. Leitura das aventuras de Nick Carter, um policial, cujos traços eram, além da força, justamente, a esperteza e o disfarce. A reclusão, no entanto, dura pouco, pois se a sabedoria popular diz que “desastre chama desastre”, “depois da avenida”, e diferentemente do “tempo da tragédia grega onde os desastres sucediam-se aos desastres”; ou do romantismo em que, conforme o narrador, o “desastre é o desastre sem consequências” (RIO, 1992, p. 126), nos últimos tempos literários, os desastres acabam tendo a obrigação de um epílogo alegre. O desastre alça Jacques, finalmente, ao lugar mais ajustado ao seu figurino/vocação de “moço bonito”, dado a perfomances, à representação e à competência para posar. O desastre é que lhe traz a adequação, anunciada e tramada por um de seus mentores – uma mulher elegante:

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embalada por certa filosofia de jogador, significava o azar. A reclusão no lar

— Arranjamos as coisas. A Alice trabalhou muito junto ao general, o presidente prometeu a teu pai, e fez o possível junto do meu velho amigo o chanceler. […] – precisas sair daqui, por várias razões e principalmente porque a boa educação não se pode completar num meio tão estreito. Depois que profissão melhor para um rapaz fino [...]? — O que quero, é que venhas a dar um grande diplomata. (RIO, 1992, p. 138-139).

Adequação confirmada pelo outro mentor – o dândi Barão Belfort –, ante a indagação de Jacques se devia ou não aceitar a proposta: “— Mas claro. [...] Parte quanto antes. É uma profissão, é a única profissão que te serve. Teu pai começava a estar seriamente incomodado. Depois um homem não é homem senão depois de conhecer a civilização.” (RIO, 1992, p. 139). O tom irônico da resposta do Barão não deixa dúvidas de que as experiências encetadas por Jacques, permeadas de artifícios, não eram senão o superlativo da própria civilização. O percurso da viagem para Petrópolis, para definir a nomeação, é pontuado pelo encontro com o viajado marido de Luísa Frias, que lhe desfila os mais efusivos casos, encontros, esnobismos da vida mundana europeia. Eventos e situações nada distintos daquelas que Jacques já experimentara no Rio o tempo todo, apenas com a variação dos

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cenários e das celebridades. Convencido e orgulhoso de sua aptidão para representar o país ou a re-

pública, porque abarcava todas as formas comuns da sobrevivência, ultrapassando-as no seu formato condensado de moço bonito capaz de posar na Europa, Jacques segue na direção do chanceler para sua última performance aquém

do Atlântico. Tão absolutamente “formado” e pronto quanto o seu próprio país, plenamente vestido com o figurino adequado ao momento e à ocasião. A atestar tal condição do país, tem-se o caso dos “deputados inamo-

víveis”, explorado em crônica de mesmo título, em 1911. Deputados constituídos de “matéria” idêntica àqueles que atuam nos congressos além do Atlântico: É que imitamos a França desde 89 e seria desagradável um tão altruístico exemplo latino sem imitadores. [...] deputados que nunca pronunciaram um discurso, nunca agiram senão particularmente para o próprio interesse e, sempre são ree-

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leitos, graças a uma influência regional inamovível. [...] Todos os congressos se parecem. [...]. Mas o nosso parece com o francez demasiadamente, quanto aos deputados inamovíveis. Há vinte annos, o homem, espécie de cônsul do seu districto volta deputado, trata de transferências, de empregadinhos nas secretarias, felicita o oligarcha do momento e prompto. (RIO, 1911a, p. 1).

Da mesma forma, tem-se o caso dos “reservados”, explorado em outra crônica do mesmo ano. Espécie de administração do dinheiro público, criminosamente secreta, ou de deslocamento de verbas públicas para o pagamento de despesas, os “reservados”, se discriminados e dados a conhecer resultariam num vergonho “desastre”. Porém, “desastre” que não seria apenas nacional, esclarece o cronista, pois que de “reservados” se beneficiavam indiscriminadamente forças, sujeitos e grupos pertencentes a uma rede que se estendia a todo o mundo nomeado “civilizado”: o reservado honesto, complacente, necessário, tão nosso, unicamente nosso como o Pão de Assucar, o carnaval e o general Pinheiro, resistindo abundantemente à luz do sol, acabaria por ser não um escândalo do seu ministro e do seu governo, mas um indecente e inútil escândalo mundial, porque com as contas e os actos sérios, a vida secreta do paiz appareceria com a miséria dos seus e a teria de mostrar que o grande philosopho estrangeiro, o notável político, o socialista triumphal – para aportar aqui, falar e prometter livros, recebiam cheques de milhares de libras; que a imigração atacava fundo em funccionarios de vários paízes; que os jornaes se vendiam [...]. (RIO, 1910, p. 3).

Mas é, sobretudo, pela afronta ao direito de voto, ao direito à representação política, dado a ver na crônica “O figurino eleitoral para o distrito”, que o país revela-se, na sua performance, absolutamente adequado ao momento, sem nada destoar em relação ao que supostamente seria seu modelo: De resto nisso, apesar do nosso gênio inventivo, não caminhamos muito, assimilando apenas. Tudo o que fazemos em patifarias eleitoraes já a Republica Romana executava com extraordinária maestria. E o que presentemente se vê, com a absoluta indifferença do publico, é o que a França viu em plena República, quando o ministério mandava pregar cartazes com os nomes dos 105

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miséria dos de fora, sendo como são os homens todos eguais... Este ministro

candidatos, seguidos destas palavras: - ‘candidatos, do governo do Marechal Mac Mahon, presidente da República... (RIO, 1911b, p. 1).

Bastante diversa da fortuna do romance, desenvolvida sob o signo do malogro, não há, para Jacques, o moço bonito, nem tampouco para o seu país, insucesso, fracasso ou imaturidade, no que toca à competência para a performance adequada ao momento. Variação de um mesmo tema, o país, no próprio exercício de suas práticas políticas de polis remodelada traduz-se em total conformidade com sentimentos morais vigentes no processo decadencial que atinge o ocidente, em especial, os latinos, signos maiores do que se entendia por civilização.

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A natureza imaginada na obra de Carmo Bernardes Márcia Pereira dos Santos

Os seres vivos como de resto, a Natureza toda, reagem contra as agressões do meio exterior e nesse eterno conflito vão sofrendo mutações, ora genéticas, ora históricas.

(Carmo Bernardes)

terato goiano do século XX. Inspirado na cultura rural, Bernardes tornou-se, no âmbito de uma literatura elaborada no Centro Oeste brasileiro, notório expositor de saberes da cultura local, caipira, da natureza do Cerrado, bem como se tornou referência em se tratando das questões sociais que colocavam em destaque, sobretudo, homens e mulheres que deixaram o campo em direção à cidade. Dessa forma, Bernardes pode ser definido como homem – memória, cuja escrita responde e remete ao passado como ficção e , principalmente, como dever de memória. Neste artigo, retomarei algumas discussões travadas ao longo do estudo da obra de Carmo Bernardes (SANTOS, 2007), tendo como eixo central as representações que esse autor elaborou para a natureza. A intenção é problematizar como, ao imaginar e representar o mundo natural, Bernardes ba109

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Há algum tempo ‘descobri’ Carmo Bernardes (1915 – 1996), e o contato com sua literatura revelou um mundo criativo muito particular desse li-

liza sentimentos presentes que o fazem avaliar o passado preconizando um futuro para o mundo que o cerca. A reflexão, assim, toma o mundo criativo de Bernardes como tema e como aporte de questionamentos. Ao longo de sua existência, Bernardes perpassou por várias profissões e fazeres, “foi de tudo um pouco”, até que se tornou jornalista e escritor e, mais ao declinar dos anos, apresentador de TV. Ele, que nascera e crescera dentro de uma família rural, que migrara do interior de Minas Gerais para Goiás, ainda na década de 1920, vivenciou uma trajetória de vida singular, mas, ao mesmo tempo, possível de ser tomada como fio condutor de reflexões sobre a vida de outros homens e mulheres do interior do Brasil, cujas histórias podem ser contadas a partir de sua condição de migrantes dentro do seu próprio país. Desde a saída de Minas Gerais, por volta de 1926, até a entrada para o jornalismo em 1959, o literato experimentou as agruras do povo que, no Brasil, perde o acesso à terra e se vê forçado a ir para as cidades. A miséria de uma população que não tem de onde tirar o sustento se torna o pano de fundo da vida e obra desse homem. Bernardes viveu atribuladamente, passando por perseguições políticas_ na época da ditadura militar_ e por todos os sofrimentos que os caipiras (YATSUDA, 2008) viveriam em um Imaginário e representações: entre fios, meadas e alinhavos

país, cuja esperança sempre foi o futuro, mas que sempre viveu crivado pelo corte entre um Brasil rural e atrasado e as expectativas de um Brasil urbano moderno e, portanto, vitorioso (NAXARA, 1992). Notadamente, é essa a atmosfera que alimenta o universo criativo de

Carmo Bernardes. Suas obras estão marcadas por sua existência migrante e inquieta, que transita entre um passado caipira e um presente do universo da escrita jornalística. Sua escrita é marcada também pela sua vivência no espaço urbano, ainda que ostentando o que dizia ser sua identidade caipira, que, de certa forma, o torna um homem memória, cuja missão de vida é regida por um dever de memória (SEIXAS, 2001) para com o seu povo, seu passado e, como é o interesse deste artigo problematizar, para com a natureza do Cerrado brasileiro. Nesse sentido, a literatura de Bernardes pode ser apresentada, segundo a leitura de Sevcenko (1989), como respondendo a uma missão de vida.

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As narrativas têm, para ele mesmo, uma função social de perpetuação de memórias, o que, é possível dizer, remete a uma perspectiva política do escrito em relação ao seu público leitor e, também, em relação a seus personagens, tramas e enredos que transmutam lembrança em ficção, mas também em reflexão atenta ao presente e ao futuro (RICOEUR, 2007). Foi andando pelas ruas e avenidas de Goiânia, nos anos de 1950, que Bernardes respiraria um clima cultural que lhe permitiria entrar para a literatura. Não mais a vida contida dentro das botas de lidar com bois ou madeira, mas a leveza do sapatinho preto conduzindo-o ao centro urbano, aos bares onde se reuniam os intelectuais goianos, às salas de imprensa. O aturdimento que sentia, ora pelo canto estridente das cigarras na Avenida Goiás (BERNARDES, 1969) ora andando trôpego pelas vielas empoeiradas da periferia onde morava – a Macambira – acompanhava-o por todos os cantos, como se a sua sensação de “não ter lugar”, contasse o seu deslocamento de si mesmo, o desenraizamento de uma identidade que era assentada em um pertencimento imediato à terra e que, naquele momento, não encontrava mais referente no lugar em que se encontrava ( BOSI, 2008). Bernardes, na cidade, não via mais bichos, não via mais selva, não via mais aquela gente, pois a “gente” que encontrava pela rua não podia ser por Bernardes caipira e o Bernardes jornalista. Um trajeto que lhe amplificava a sensação de afastamento da natureza, ao mesmo tempo, e que forçava-o a ter, nessa mesma natureza, um veio criativo que determinaria a sua narrativa. Essa talvez seja uma explicação razoável para o fato de que a literatura bernardeana seja fruto de um homem já maduro, pois, quando começou a escrever, ele contava mais de 40 anos. Pode-se, assim, dizer que sua literatura cumpria um papel essencial nas conclusões a que ia chegando sobre si mesmo, sobre sua identidade e sobre o mundo do qual saiu e aquele no qual estava. O primeiro, sendo acessado, especialmente pela memória: [...] aí, entramos na mata fresca. A estrada foi ficando ruim demais de andar. Quando não formava facão no meio, aquilo brioso como espelho e escorregadio, eram as baixadas atolentas, em que os cavalos só podiam andar a passo vagaroso de banqueta em banqueta no feitio de cova de cana. E minha mãe 111

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ele (re) conhecida. Seu mundo mudara, tal como mudara a relação entre o

maravilhada com a luxuria da vegetação cada vez mais diversificada a medida que íamos internando na floresta imensa sem clareira. As madeiras, o cipoal indo às grimpas e voltando, aquele docel permanentemente umbroso que, debaixo, não deixava lama enxugar em tempo nenhum. O fascínio do verde, aquela força imensa de fertilidade do solo denunciada logo e logo pela fartura de guariroba e coqueiro bacuri que apareciam demais nas baixadas, fazia dona Sinhana largar interjeições compridas de encantamento. (BERNARDES, 1981, p. 168).

Vê-se que aqui se configuram imagens do Cerrado, pejadas pela grandiosidade da natureza, pela estupefação do homem em relação a ela e, principalmente, pela idealização sobre uma natureza virgem e intocada pelo homem. Tal como fora comum entre viajantes europeus que conheceram e escreveram sobre a natureza no Brasil, ainda nos primeiros tempos de colonização (DUARTE, 2005), a narrativa memorialística de Bernardes expressa a sensibilidade ao meio natural, que o enfrentamento vivido durante a longa viagem em lombos de burros e cavalos, de Minas a Goiás, permitiu. Importante ressaltar que essa imagem da natureza se elabora, principalmente, no relato autobiográfico do autor, na história da sua infância marcada por essa presença colossal. Para o menininho, na garupa do cavalo, aquele mundo Imaginário e representações: entre fios, meadas e alinhavos

era fantástico, a mata era espantosa: admiração e terror se misturavam tornando aquele universo contraditoriamente atraente e repulsivo. Não é um mundo do silêncio, apesar da imediata sensação de isolamento, mas, sim, um mundo de múltiplas vozes, de uma sinfonia indecifrável de pios, urros, gritos, ganidos e miados. Uma infinidade de sons que não podem ainda ser assimilados pelo garoto que os experimenta. Anos depois, é na lembrança, agora configurada em narrativa (RICOEUR, 1997), que tal mundo é tornado acessível, porém, ainda, intocável. A composição dessas imagens da natureza intocada, ou pouco tocada

pelo homem, faz-se no processo de lembrança de Bernardes o meio de não se perder essa mesma natureza. A escrita lhe parece o espaço de guardar a existência dessa natureza. Assim, não é por acaso que tais representações aparecem mais na autobiografia e memórias que em romances e contos do autor. Pois, confiando que o seu leitor verá no escrito a verdade (JOSEF, 112

1997), Bernardes mostra como era o Cerrado no passado e credita a esse leitor o aval a essa crença, apoiando-se no pacto autobiográfico, que a escrita do passado lhe garante, para que essa verdade seja recebida e reproduzida. Essa memória, de tão sensível, pretende ser quase material, daí o seu desdobramento em ficção, porque remissiva e porque possível. Ela, ao mesmo temo que é viva, morre; ao mesmo tempo, que alegra, também entristece1. No romance Nunila, o personagem principal desabafa: [...] nas minhas saídas com Adão, em nossas caçadinhas e a outras inzonas, chegamos perto das máquinas trabalhando. Sou franco em dizer que aquilo me abalou um pouco o estado de nervo. Sei não. Aquela coisa me parece um massacre. Sinto uma bestagem de pensar que mato sendo destroçado geme de dor. É que o roçado está sendo feito num capoeirão alto, com dois tratores monstros arrastando uma corrente de não sei quantas centenas de arrobas de peso. Aquilo vai deitando o que há na frente, estrafegando o mato, arrancando a paulama com a raiz. Esmói tudo, o madeirame de meia grossura vira bucha. A ferragem ringe de arrepiar, um atropelo monstro. Diante de tanta força e dos horrores dos destroços eu me apequeno, me sinto diminuído como um verme. cara com o chapéu com jeito de não querer assistir o destrago. [...] a feição do companheiro denota contrariedade, transmite o que lhe vai em sentimentos. Ar de choro, os cantos da boca frangidos, quebra raminho por desculpa, mordisca uma folha do mato, panha uma flor. Trator roncando, faz estragos medonhos no chão e na alma dele, ao que vejo. Nada digo. (BERNARDES, 1984 a, p. 58-59).

A tristeza de Antonino e a dor de Adão reforçam a imagem que Bernardes compõe do sertão goiano. O enlevo, a certeza de que a natureza sente dor, é a expressão da busca e, por isso, da existência em ficção, de Ludmilla Jordanova (2001) faz uma reflexão sobre a relação natureza e melancolia, discutindo os conflitos de homens e mulheres interessados em descobrir a natureza do homem e, em decorrência, a necessidade de pensar o mundo natural de forma mais sensível e não apenas numa perspectiva de exploração e usufruto.

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Uma coisa de horror! [...] Lembro que Adão ta ai junto comigo, tampa a

um homem ligado teluricamente a seu meio; um homem ideal, mas que se mostra também inalcançável, pois participa do processo de ruína do mundo ao redor. O trator arranca os pequizeiros, os jatobazeiros, as “sicupiras”, as mirindibas, essenciais para a vida de quem ali está. Comida, remédios, acolhimento, tudo isso a mata oferece a esses homens e, no entanto, eles mesmos veem que nada podem fazer ante a sua destruição. A natureza se torna elemento a ser defendido, elemento daquilo que Bernardes quer combater, a degradação humana segundo a degradação da própria natureza. Natureza humana? Não, jamais, porque o arrocho no peito de Antonino e a vontade de chorar representam o próprio homem em dor, mas um homem forjado por sua historicidade, por suas maneiras de ver e dar-se a ver no mundo. Um homem que é apresentando pequeno diante da violência que o assalta. Aqui, a natureza está em perigo, porque o próprio homem o está, pois à sombra, à espreita está o monstro do capitalismo. Nessa história, que se passa no tempo da ditadura militar brasileira, a narrativa leva a pensar o humano como explorador e destruidor do humano, pois tudo que é parte desse humano pode ser aniquilado. A possibilidade de melhorar o homem – a bondade frágil (NUSSBAUM, 2009), esperança comum nos escritos de Bernardes – se mostra martirizada pelo capitalismo e suas maneiras de explorar a terra. Imaginário e representações: entre fios, meadas e alinhavos

Terra que vai se despindo da sua veste bravia de mato e bicho, quase uma terra de ninguém, pois seus donos já foram alijados do poder sobre ela. Nua, sem natureza, marcada pelo peso da máquina do poder, torna-se não mais a terra vivificante, mas a terra mero meio de produção e destino final de quem tombou. O amálgama entre vida e escrita prefigura, para o próprio autor, a

necessidade de conhecer o homem, como ser, como indivíduo e pessoa, mas também a sua própria necessidade de ler, a si mesmo, no mundo no qual está ( TAYLOR, 1997). O literato de 1980 tomara consciência de que já não era mais o menino sapeca que subia nas “grimpas dos pés de manga pra pegar a manga mais doce”. Também sabe que não é o jovem que sonhou ser o ativista comunista. É um homem, já velho, lidando com suas reminiscências, com a licenciosidade que só o tempo dá a todas as crenças e ideais vencidos. Resta-lhe lidar com os fatos humanos, e o jornalista sabia muito

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bem como é isso, porque sua tarefa era empreender uma outra luta política por um outro homem e, sem embargo, por uma outra natureza, por um outro mundo que se impõe a ele. Bernardes sabia que lembrar é um exercício de vivificação e atualização do passado. Seu único recurso ante a morte do menino que fora é escrever, e fazê-lo sobreviver em sua justa natureza. A narrativa que conta a natureza se espessa e se dilui em toda a obra bernardeana. No entanto é no exercício de decifração da natureza que se impõe como dever de memória. Nos dois livros dedicados ao Cerrado, é que se pode ver com mais clareza a análise afetuosa, simples e quase brincalhona com a qual o autor se propõe a contar o seu mundo em perigo (BEJAMIN, 1994). Jângala: complexo Araguaia (1984b) e Selva, bichos e gente (2001), fazem o enlace final entre vida e obra de Bernardes. O autor, nesses dois livros, torna-se espelho do mundo, pois, olhando para a natureza que o cerca, seu modo de dar sentido ao mundo se explicita e torna-se, também, explicação de si mesmo. Não há fala sobre a água, a terra, os bichos e plantas que não remeta ao humano, a como este humano se insere nesse mundo que é o seu, mas do qual se tornou um estranho, um outro ( RICOEUR,1991). Na capa de Jângala – complexo Araguaia, lê-se: “atalhem-se as erosões antes que o Araguaia morra”. A abertura dá o tom de como é todo o livro: insere. Para levar a efeito essa defesa, Bernardes não se vale apenas das informações de que dispõe sobre o rio. O autor busca, na sua experiência de pesquisador e conhecedor da natureza, para ir, a cada parte do livro, mostrando a natureza, segundo suas lembranças, e apresentando sua leitura dolorida e crítica do que acontecerá, caso não se cuide melhor dela: Causa uma expectativa inquietadora o anúncio de que deverão ser aproveitadas as várzeas com a implantação da lavoura de irrigação. A presunção é de que as técnicas a se adotarem serão as de moldes clássicos, não levando em consideração os fatores mesológicos da região. Não se cogita formular uma tecnologia específica para aquele ecossistema, que coloque a salvo o processo geológico que ali se processa. Demais disso, não se mede a extensão do impacto ambiental provocado pela evapotranspiração medonha dos canteiros artificialmente embrejados que refervem com a soalheira incandescente a 38º à sombra du-

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um manifesto em defesa do Rio Araguaia e do ecossistema no qual ele se

rante oito meses do ano. A água choca e os detritos cozinhando nesse caldeirão senegalês liberam, dia e noite, cargas consideráveis de gás butana que vão infligir danos a camada de ozônio nos níveis superiores da atmosfera. Parece fantasia de um cérebro delirante, mas toda fantasia é abstrata, não é sentida materialmente pelos indivíduos que são por elas contrariados. A possibilidade de implantação de lavouras de natureza sazonal, ditas de sequeiro, não é levantada em nenhuma concepção dos planos propostos para mobilização econômica dos baixadões. Os técnicos não concebem outra forma de fazer lavoura a não ser pelos métodos modernos de aração profunda e irrigação, que, se adotados nas margens do Araguaia e seus formadores, a natureza sofrerá tamanha violência que são imprevisíveis as proporções da catástrofe O raciocínio é de que a irrigação de terrenos que a agronomia moderna preconiza exige, necessariamente, a formação de canteiros. E a lavoura, nos moldes capitalistas, há de ser de colheitas permanentes dados o vulto dos capitais investidos, que exigem retorno imediato e avantajado. (BERNARDES, 1984b, p. 27/28).

Passado, presente e futuro aqui se encontram. Na análise pura do que vê, do que toma como objeto de escrita. Para o autor, o que aparece não é mais um tempo uno, linear, mas um tempo dinâmico, que, por seu lado, exige a ação. Não é apenas a natureza que está em questão, é como se relaImaginário e representações: entre fios, meadas e alinhavos

cionar com ela; é pensá-la como sendo, também, regida e regente da força humana. Jângala: complexo Araguaia, explora não apenas uma perspectiva descritiva da natureza que compõe o ecossistema centralizado pelo rio, mas, especialmente nos primeiros capítulos, Bernardes mapeia a região de forma a mostrar o que ela representa na vida natural do Brasil. A tipificação de terras, das matas, das espécies de solo, sua formação geológica vão compondo a complexa pesquisa que o autor desenvolveu para escrever esse livro2. Como pensar esse exercício? Volta-se, aqui, ao aspecto da ação da me-

mória. O agir sobre o presente, para Bernardes, compreendia mostrar como era a vida no passado. E, muitas vezes, Bernardes assumia tal dever como A própria história do livro é marca desse empenho do autor em fazer-se ouvir, ou ler, na sua defesa do mundo. Edição paga pelo próprio Bernardes, que queimou a primeira impressão devido aos erros de linotipistas, o livro nasceu como uma teimosia, como um esforço, em falar daquilo que pouca gente estava disposta a discutir.

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norma de vida. Suas excursões anuais ao Rio Araguaia tornaram-se uma tradição familiar, que, ainda nos dias atuais, é mantida como herança do homem que conheceu o rio como sua própria vida. Não apenas nos seus estudos, mas nos tempos de recenseador, ou mesmo no ano de exílio na Ilha do Bananal3, ele fez desses momentos um precioso processo de conhecer a natureza para defendê-la. O livro, em especifico, expõe como a escrita bernardeana pode ser entendida como um dever de memória (SEIXAS, 2001). Em função do futuro, Bernardes elabora uma noção de passado e presente. Esse dever de memória, assumido por ele, implicou uma jornada particular pelo meio ambiente. Ora, não era apenas publicar mais um livro, era dotar essa publicação de uma ação política, sedimentada no que aqui se percebeu como a missão que Bernardes deu à sua atividade de escritor. Para Bernardes, como já dito, a ação política no presente de sua escrita, depois das agruras da perseguição política pelo pertencimento ao Partido Comunista do Brasil, foi assim pensada: dedicação ao mundo natural. Esse movimento não foi um ato isolado desse que fora um dos primeiros comunistas em Goiás, mas, sim, uma reação ampla que levou muitos setores da esquerda desiludida com os Partidos Comunistas tanto a um afastamento do como a adesão aos movimentos ecológicos. Há um engajamento social e político na obra de Bernardes, que, muitas vezes, não é considerado por comentadores da obra, que se limitam aos aspectos estético-literários e deixam de percebê-la como atividade política. Aqui se defende que as escolhas de Bernardes, inclusive as literárias, respondem às suas propostas de intervenção social. Assim, para o próprio autor, era necessário conhecer o homem e suas ações e, desta maneira, colocar-se como crítico dos atos que degradavam o meio natural, propondo um mundo alternativo, no qual, deixando a natureza quieta, ela própria iria resolvendo sua devastação, mesmo sendo esse pensamento considerado conservador, por estudiosos que se dedicam a Em nove páginas soberbas, o autor faz uma descrição da Ilha do Bananal, mostrando sua “origem”, fauna, flora, o porquê do nome, seus habitantes e a exploração econômica que degradou o ambiente natural.

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Comunismo, como também à busca de outras lutas em defesa do homem,

pensar o mundo natural, era como Bernardes concebia uma ação ecológica responsável em reinventar a presença humana na terra. Bernardes elaborou, tanto em Jângala: complexo Araguaia, quanto em Selva, bichos e gente, uma sistematização do conhecimento que possuía sobre o cerrado. Essa dicionarização dos elementos da fauna e flora do Cerrado pode ser interpretada como uma forma particular de descrever cada bichinho que conhecia e impõe-se como verdadeiros manifestos contra a extinção desses seres indefesos, podendo ser lida como expressão de uma sensibilidade modernamente elaborada, como permite dizer Thomas (1998), para com o meio natural. Numa dessas fui feliz pegar no chão muitos coquinhos, e fiquei encantado com os bichos que mexiam e sacudiam cachos derrubando eles subindo rapidinhos no coqueiro. [...]. Caxinguelê, minha mãe dissera, e por causa da minha imorredoura gratidão – eu acho – fiquei tendo esse nome e o bichinho como as coisas mais lindas desse mundo. A lembrança é viva, é como se fosse hoje [...]. A ideia que tive, e que veio comigo pela vida toda é que derrubavam os cocos só mesmo para me ofertar. [...] criei a fantasia de que aquelas fofuras vinham era me visitar. (BERNARDES, 1981, p. 28-29).

A terna lembrança aponta para a visão que o homem que recorda reelaImaginário e representações: entre fios, meadas e alinhavos

bora do seu contato com o mundo: a interação, a ajuda e, mesmo, a resposta que o mundo natural dá a quem consegue enxergar-lhe a beleza. Importa ao autor, em cada descrição de cada bicho, contar como conheceu o animal, suas características, as serventias, as lendas e a relação, possível ou não, de cada animal com o homem, aquele predador ou aquele homem inserido na vida ordinária de cada animalzinho indexado. Era, pois, essa ação necessária para a manutenção da teia da vida, ou a jângala É preciso, dessa forma, compreender as explicações de Bernardes sobre

a natureza a partir da perspectiva que assume, também, na sua elaboração como sujeito sensível ao mundo que o cerca. Como Keith Thomas explicou em relação à Inglaterra, foi uma contínua mudança de sensibilidade em relação ao mundo natural que criou a necessidade de proteger animais e florestas. (THOMAS, 1998). Para Bernardes, sua escrita vai, pois, dando-lhe os

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meios de se identificar com uma natureza que fora no passado intocada e, também, com uma outra já alcançada pelas mãos do homem. Se o próprio homem tornara-se objeto de questionamento em suas características positivas ou degradantes, como o faz em suas crônicas, os animais e plantas também vão sendo desnudados nas suas singularidades nesses outros escritos. O que, de certa maneira, expressa também interpretações suas da relação homem / natureza, relação esta tomada como desigual, porque enquanto os homens se portam como incansáveis predadores globais, os bichos têm sua cadeia própria, especificada nos seus hábitos ( RIBEIRO, 2005). Claramente, Bernardes defende, nesses livros, uma preservação ambiental específica, denunciando o que se pode chamar, segundo Crosby (1993), de “imperialismo ecológico”. Isso porque, para ele, grande parte da matança de animais, em Goiás, especialmente, foi também ação da transferência de espécies de outras regiões e países, para o Planalto Central, o que significou um desequilíbrio entre as espécies e a consequente extinção de algumas em beneficio de outras: Divertimento bom de passar domingo é furar morada de abelha no mato. Já fiz muito, tenho saudade. chegam acabam com as nativas. A princípio, pensei que as forasteiras espancavam, escorraçavam; depois vi que não. O que elas fazem é espoliar, tomar as floradas das nativas, assim como os civilizados tomam as terras dos caipiras e dos gentios. São trabalhadoras a mais não poder; ainda no lusco-fusco do amanhecer já estão visitando as flores, com as patinhas carregadas de néctar. Se as colmeias ficam a uma distanciazinha maior pousam lá, para adiantar o expediente. Nossas patrícias dormem até mais tarde; quando chegam nas searas encontram as flores limpas, escorrupichadas, mas não mercam mais nada. Assim elas foram inanindo, só restam poucas espécies no sul do País, umas que são de ambições modestas, como a jataí e a mane-dabreu e outras mais que sempre foram paupérrimas. (BERNARDES, 2001, p. 18).

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Conheço elas de doze qualidades, não contando as estrangeiras, que aonde

Como em um processo maior de colonização, em que homens, bichos, costumes e artefatos transplantados significam a morte de populações, esses pequenos desajustes de espécies interferem no equilíbrio natural, ou seja, a devastação começa também na luta entre os diferentes, os que se impõem como mais fortes, ocasionando a morte sistemática daqueles tidos como mais frágeis. Ou seja, é preciso ter claro que quando duas culturas se defrontam, não como predador e presa, mas como diferentes formas de existir, uma é para a outra como uma revelação. Mas essa experiência raramente acontece fora dos pólos submissão – domínio. A cultura dominada perde os meios materiais de expressar sua originalidade. (BOSI, 2008, p. 16).

Homens e bichos, relembrados por Bernardes, são alinhavados como parte de um mesmo universo de sobrevivência, de uma cultura que implica o ser e o fazer humanos desde os primórdios da humanidade. Por serem diferentes, segundo Bernardes, esses seres devem ser mantidos na cadeia que os pemite viver juntos, no que, defende Bernardes, significa a verdadeira ação ecológica possível às populações atuais que desconhecem a natureza por afastamento. O que antes era norma de vida, na atualidade, torna-se terror, Imaginário e representações: entre fios, meadas e alinhavos

desconhecimento e desastre: A existência da arraia tem muito a ver com o ser humano, tanto de mal, como de bem. Dificilmente um habitante ribeirinho que labuta nos rios e lagos da vertente amazônica encerra a vida sem nunca ter provado o gosto de uma ferroada de arraia. E de beneficio que esse estrupício produz é o óleo de fígado que a arumaçá tem com fatura. O fígado é posto numa vasilha rasa a derreter no sol. Cata com uma colher acalcando a massa, o óleo sai clarinho. Ali é engarrafar num frasco de vidro escuro e tem nada não: não rança, não arde, não toma nenhum descaminho. Tem que tirar assim, coarando no sol. Fritar não serve, perde a virtude. É um santo remédio no combate a toda forma de defluxo do peito, bronquite e tosse comprida. (BERNARDES, 2001, p. 41).

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Essa interação homem/natureza marca todas as descrições de animais e plantas que Bernardes fez. Há sempre o ensinamento de “para que serve tal bicho”. Isso implica, ainda, uma relação intrínseca que o autor estabelece entre o homem que tem sua vida entrelaçada ao mundo natural, caipiras e índios; e os homens, que estão alijados das benesses da natureza, o homem urbanizado. Mesmo aqueles bichos que, aparentemente, não têm serventia estão colocados na cadeia maior de vida natural: O papa mel, ou irara é um bicho quase sem serventia. Por causa dele ser comprido além da conta, e fino, alcança mais de cinco palmos, no feitio de cabaça-marimba, dá uma pele muito no jeito de fazer capa de espingarda; curte com pêlo e tudo, e põe deixar apenas a parte do rabo pra servir de bandoleira.( BERNARDES, 2001, p. 138).

O bicho, considerado o “mais sem serventia”, é contado a partir de como pode ser aproveitado como parte da vida humana. Se tal perspectiva parece como contradição é, todavia, a forma de Bernardes perceber a natureza nessa relação íntima com o homem no seu aproveitamento. A natureza é parte da vida humana, e assim o é cada bichinho, cada ser, que desafia a nho sem serventia é um bichinho sem serventia, mas, no dizer de Bernardes, está ligado à forma com que cada ecossistema se organiza, se regenera, se faz permanecer. O notável é a forma como Bernardes descreve os bichos, percebendo-lhes características e os explicando, muitas vezes, de forma comovente. Assim, é a definição do jacamim, ave tida pelo autor como a mais amorosa e desastrada dentre os animais4:

Essa tentativa de Bernardes de considerar a todos os viventes como importantes no meio natural reporta ao que Bruno Latour considera a incerteza quanto à importância dos seres. O autor diz: “as questões da natureza não têm relação com a exterioridade, com a selvageria, mas com uma extensão da intervenção humana sobre os não humanos, intervenção explicitamente política e não mais dissimulada como antigamente. Sem intervenção humana, os parques as estufas, as paisagens, os jardins desapareceriam. Os ‘negócios’ da natureza fazem parte de uma categoria muito estranha, que é a da incerteza em relação à ordem dos seres e sua importância.” ( LATOUR, 2001, p.33).

4

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humanidade a enxergar-lhe a pertinência de sua importância. Ora, um bichi-

A afeição e o apego de um jacamin manso em casa cria pra com o dono tem hora que chega ser inconveniente. O bicho selvagem é sempre assim, agarrado com seus familiares, mas o jacamin é por demais, é em excesso; todo tanto que se pensar é pouco. Na presença de gente de fora fica furioso, em redor do dono vigiando; se descuidar ele machuca as pessoas. Onde bica arranca pedaço; briga com cachorro e bate no cachorro. Para agradar o dono faz tudo; chega a querer regurgitar na boca dele, como faz com os filhotes. (BERNARDES, 2001, p. 77).

Ou ainda, como se viu, a descrição do caxinguelê, o esquilo fofo, que outrora alegrara sua infância e que, nas matas do alto Araguaia, nos idos de 1965, fazia menos doloroso o seu autoexilamento, forçado pela ditadura militar brasileira. Outra descrição que causa admiração é feita sobre as emas, que habitavam os planaltos próximos à Brasília e que foram aniquiladas por queimadas e caça indiscriminada (BERNARDES, 1984 b). Cada bicho contado é um vivente que, na terra, faz sentido na vida do homem, mas, especialmente, fora dela. Nas várias excursões realizadas por Bernardes por todo o Cerrado, pelo Pantanal, e pela Amazônia, o autor encontrou, em um bichinho, a maneira muito própria de ir descrevendo o mundo. Por isso mesmo, tomando sua defesa, não como um ativista ecolóImaginário e representações: entre fios, meadas e alinhavos

gico de alardes, mas como o observador que era, desde a infância, de todos os animais, até os pequenos pássaros que lhe valeram o “Tomara eu ver” de dona Sinhana, ou ainda os ovinhos de urubu que mereceram atenção especial da criança Bernardes (1981). Cada vivente foi amado por Bernardes. Mas esse amor não significa-

va uma posição cristalizadora da natureza. Amante de uma pescaria, ou de uma caçada, temas que se repetem em seus contos e causos, Bernardes sabia como para o homem o mundo natural era importante. De certa forma, o autor defende uma superioridade humana no mundo, ou seja, acredita que a natureza deve ser dominada pelo homem, o que lhe permite dispor dos seres naturais como lhe aprouver, o que Bernardes não aceita é o uso indiscriminado e sistemático dessa superioridade humana. As narrativas são provocantes, falam mais do que as próprias palavras,

porque questionam a razão humana, tornam-na insanidade. São leituras nas 122

quais Bernardes se comprometia como crítico da humanidade, porque era ali, no trato com o mundo natural, que enxergava a alma humana se revelando. Um desafio continuado de repelir as ações que visavam ao lucro fácil à custa de preciosas peles de indefesos animais, que portam garras apenas na sua rebeldia em ser dominado e, por isso mesmo, vão sucumbir à ação do homem. O moderno Bernardes se configurou, finalmente, no embalo da percepção de qual o mundo construído pelo homem capitalista. Denunciador da exploração ambiental desmedida, foi se inteirando do meio e elaborando suas próprias teorias, para encontrar o equilíbrio possível entre a sobrevivência humana e a sobrevivência da fauna e flora. A terra, nesse caso, era sentida por Bernardes como propriedade não dos homens, mas de todos que nela estavam. As narrativas que aqui foram interpretadas como manifestos ecológicos, são, em grande medida, pautadas pelo princípio de embricamento entre homem e mundo natural. São relatos da indissociabilidade entre o homem, também como ser natural e, portanto, imortal, e o que é natureza; sua relação com outros seres, que, lutando contra extinções artificiais, lutam contra não apenas o extermínio, mas contra sua também mortalidade. Porque, como diria Hannah Arendt (1993), é como ser da natureza que o homem é imortal, que alcança o sonho acalentado por todos, e talvez, passe pelo penpor imortalidade, da serenidade imortal da natureza.

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Ser mulher nas crônicas de Lima Barreto Getúlio Nascentes da Cunha

Lima Barreto, infelizmente, não escreveu um grande número de crônicas. Sua produção, nesse caso, é relativamente pequena, se a compararmos com a de outros escritores, apesar de escrever desde o início do século XX. Não se pode negar que, àquela época, escrever nos jornais era um importante espaço não apenas pela visibilidade que proporcionava, mas, sobretudo, pelo lado financeiro. Num momento em que era praticamente impossível sobreviver da venda de livros, já que a maioria dos autores vendiam seus direitos para o editor, recebendo apenas o valor estabelecido, possuir outra fonte de renda era fundamental. Não por outra razão, uma posição em desejo de, praticamente, todos os escritores do período, entre eles: Machado de Assis, Arthur Azevedo, João do Rio, Alcindo Guanabara etc1. Nesse aspecto, Lima Barreto garantia a base de seus rendimentos como empregado do Ministério da Guerra, função que, entretanto, não lhe permitia uma vida tranquila ou confortável, uma vez que, apesar de não ser casado, era quem mantinha a família2. Lima Barreto, com certeza, esforçou-se para conseguir uma posição na imprensa carioca da época, sem grande sucesso. As críticas devastadoras que fez à imprensa, em seu livro de estreia, Recordações do escrivão Isaias Caminha, barraram o seu acesso à grande im Sobre isso, consultar as biografias de escritores da época. Entre outras: MAGALHÃES JUNIOR (1955); MENEZES (1957); RODRIGUES (1996). E também BROCA (1960).

1

Sobre a vida de Lima Barreto, o livro fundamental continua a ser: BARBOSA (1981).

2

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algum órgão público, ou nos vários jornais e revistas que existiam, era um

prensa, a única que podia lhe garantir uma renda que lhe permitisse maior dedicação ao ofício de escritor. Inicialmente, Lima Barreto teve, na imprensa alternativa, sobretudo de cunho anarquista, uma opção. Lima Barreto não era um militante anarquista, na verdade, ele nunca manteve uma militância política explícita. Em crônica de 1915, chega a criticar o poeta Carlos Maul por seu envolvimento político, considerando a atividade incompatível com a função de escritor3(LIMA BARRETO, 2004). Ele foi, desde início, um escritor militante, mas era na sua escrita que se encontrava sua maior militância. Segundo o próprio autor: [...] a arte literária se apresenta com um verdadeiro poder de contágio que a faz facilmente passar de simples capricho individual, para traço de união, em força de ligação entre os homens, sendo capaz, portanto, de concorrer para o estabelecimento de uma harmonia entre eles, orientada para um ideal imenso em que se soldem as almas, aparentemente, mais diferentes, reveladas, porém, por ela, como semelhantes no sofrimento da imensa dor de serem humanos. (LIMA BARRETO, 2004, p. 271).

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A opção de uma escrita militante por Lima Barreto, suas constantes críticas a escritores de grande apelo popular e com forte penetração na imprensa, como Coelho Neto, alvo constante das críticas de Lima Barreto, certamente, também dificultava sua aceitação pela grande imprensa4. Apenas já quase no fim de sua vida, Lima Barreto conseguiu ser uma presença constante na grande imprensa. A partir de 1919, ele passara a colaborar semanalmente para A Careta5. Essa era sua segunda passagem pela revista, onde ele Todas as notas seguem essa edição.

3

Nas crônicas, eram constantes as críticas a Coelho Neto. Em especial, as críticas se referiam à escrita com um vocabulário longe do cotidiano das pessoa, assim como as temáticas, que não refletiriam a realidade cotidiana da maioria da população.

4

Fundada em 1908, por Jorge Schmidt, a revista circulou até 1960. Destacava-se pelo padrão gráfico e pela presença de importantes chargistas e ilustradores, como J. Carlos e Raul. Se-

5

gundo NOGUEIRA (2010, p. 68), A Careta se diferenciaria de outras revistas que surgiram no início do século, dentro do contexto de modernização da imprensa brasileira, por ter uma perfil mais variado, atendendo a um público mais diversificado. Apesar do conteúdo variado, era na sátira política e social que a revista se destacava.

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escreveu em 1915, contribuição interrompida por problemas de saúde que fizeram com que se afastasse da imprensa e do Ministério da Guerra. Apesar da sua escrita irregular no terreno das crônicas, com anos, com uma produção significativa, e outros em que ele praticamente desaparece, nas crônicas, está o que melhor há em Lima Barreto: uma escrita direta, que se recusa ao palavreado, uma crítica contundente aos mais diversos aspectos da sociedade - o racismo, a exclusão social, a carestia de vida, a corrupção política, a exploração das riquezas nacionais em detrimento da maioria da população, a submissão da mulher, o papel ideológico da Igreja, o casamento religioso, as perseguições políticas etc. A representação que Lima Barreto faz das mulheres e seu papel social mostra-se nas crônicas de uma forma ambígua, ora elogiosa, ora crítica. Uma primeira aparição se deu ainda em 1911, na crônica “A mulher brasileira”, publicada na Gazeta da Tarde, no dia 27 de abril. No início, Lima Barreto questionou os brindes à mulher brasileira, que, segundo ele, estariam presentes em todos os jantares que se realizavam na cidade. Lima não questionava o merecimento da mulher, em especial, da mãe. Para ele, o merecimento das mães era algo universal, que ocorre em todas as sociedades humanas. Nesse ponto, ele se perguntou se a mãe brasileira também era Lima Barreto reclamava de uma distância, de um formalismo que existiria entre a mãe e os filhos no Brasil, distância que se repetiria em todas as demais relações entre homens e mulheres. Assim, enquanto, nos demais países, as mulheres seriam uma influência positiva sobre os homens de sua relação, no Brasil, isso não aconteceria, dizia Lima Barreto: Não há num Raul Pompéia influência da mulher; e cito só esse exemplo que vale por legião. Se houvesse, quem sabe se as suas qualidades intrínsecas de pensador e de artista não nos poderia ter dado uma obra mais humana, mais ampla, menos atormentada, fluindo mais suavemente por entre as belezas da vida? (LIMA BARRETO, 2004, v. I, p. 74).

A distância existente entre homens e mulheres acabaria por negar ao homem um interlocutor para suas horas de angústia. As mães não conheceriam 129

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digna de todos os louvores. Sua resposta aqui parece ser negativa.

seus filhos e não seriam capazes de perceber suas necessidades mais profundas, não contribuindo, assim, para o seu desenvolvimento intelectual e a diminuição das dores que deixariam o homem sorumbático e melancólico. Não se pode negar que o papel que Lima Barreto atribuiu à mulher e, em particular, à mãe era um papel de coadjuvante, de uma auxiliar no desenvolvimento dos grandes homens. É exatamente com essa ideia que ele fechou essa crônica: O meu maior desejo seria dizer das minhas patrícias aquilo que Bourget disse da missão de Mme. Taine, junto a seu grande marido, isto é, que elas têm cercado e cercam o trabalho intelectual de seus maridos, filhos ou irmãos de uma atmosfera na qual eles se movem tão livremente como se estivessem sós, e onde não estão de fato sós. (LIMA BARRETO, 2004, v. I, p. 76).

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Onde, aparentemente, há uma crítica à mulher, percebe-se, na verdade, uma censura à forma como as mulheres eram criadas e educadas. O distanciamento entre mãe e filho, marido e mulher, era causado, sem dúvida, pelo patriarcalismo que imperava na sociedade brasileira e que prejudicaria o papel das mulheres na formação de grandes homens. Patriarcalismo que dificultaria que a mulher tivesse acesso a um nível de escolaridade maior. Sobre isso, há, em várias crônicas, críticas à falta de escolas, sobretudo, secundária. Para Lima Barreto, formar culturalmente as mulheres era fundamental, como ele advogava, “A influência de uma educação superior da mulher iria influir nas gerações.” (LIMA BARRETO, 2004, v. I, p. 181). Segundo ele, a única escola secundária do Rio de Janeiro seria a Escola Normal, cujo acesso era restrito a algumas poucas alunas. Para Lima, a educação secundária das mulheres seria importante também por uma questão preventiva. Segundo ele, a educação primária poderia alimentar nas meninas uma curiosidade que, por falta de orientação, poderia levá-las para leituras sem maiores interesses ou mesmo perigosas para a sua formação, como afirmou na crônica “Pela ‘Seção Livre’”, de 1919 (LIMA BARRETO, 2004, v. I, p. 489). Percebe-se aqui as oscilações de Lima Barreto em relação à mulher, já que não se pode negar uma desconfiança quanto a sua capacidade de discernimento, já que só uma educação adequada poderia evitar as “leituras erradas”. 130

Nem sempre a influência exercida pelas mulheres sobre seus maridos era vista de forma positiva por Lima Barreto. Uma de suas marcas foi, certamente, um anticlericalismo bastante forte. E neste particular, via as mulheres como a principal forma de manutenção do poder da Igreja. Na crônica “Moralidade?”, de 1918, ele assegura: O raciocínio deles [dos cléricos] é simples. Se mantivermos sempre o domínio sobre as moças ricas, dominaremos, por intermédio delas, os seus prováveis maridos. Ora, estes, ou serão ricos como elas, ou pobres de talento que se impusessem. De qualquer maneira, teremos nas mãos as duas maiores forças de todas as sociedades: a inteligência e a riqueza. (LIMA BARRETO, 2004, v. I, p. 332).

Para tanto, as irmãs de caridade que controlavam os colégios para moças ricas as manteriam sempre envolvidas em atividades patrocinadas por elas, mesmo depois de formadas. Além disso, o ensino nos colégios religiosos seria formal e retórico, não levaria às mulheres os conhecimentos atuais das ciências, que permitiriam a elas melhor compreensão do mundo (LIMA BARRETO, 2004, v. I, p. 490). É preciso ressaltar que, na crônica, o casamento aparecia sempre como um destino natural das mulheres, daí a razão do investimento da Igreja na sua doutrinação. de confirmar o papel secundário da mulher. Por quê? Em 1914, ele colocava, em crônica sobre um concurso de música, aquela que seria sua posição constante ao longo de sua vida: as mulheres seriam ótimas imitadoras, mas não teriam capacidade criativa, o que explicaria sua posição de coadjuvantes e não de protagonistas. Em suas palavras: “As mulheres são extraordinariamente aptas para essas coisas de reprodução, de execução, de exames, de concursos; mas, quando se trata de criação, de invenção, de ousadia intelectual, fraqueiam”. (LIMA BARRETO, 2004, v. I, p. 131). Em “Os exames”, publicada em 1915, Lima reafirma sua opinião, acrescentando que as mulheres teriam um conhecimento simplesmente escolástico, não sendo capazes de criar nexos entre os vários conhecimentos, transformando o conhecimento num simples adorno que as auxiliaria num casamento vantajoso (LIMA BARRETO, 2004, v. I, p. 131).

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Apesar da crítica implícita ao patriarcalismo, Lima Barreto não deixou

De uma forma geral, Lima Barreto repetiu os mesmos argumentos em “O anel dos musicistas”, publicada em A Lanterna, no início de 1918. Aqui, a criação de um anel para os formados pelo Instituto de Música, em grande parte frequentado por mulheres, era interpretado por Lima Barreto como um auxílio na obtenção de um bom pretendente. (LIMA BARRETO, 2004, v. I, p. 307). O anel atestaria, de uma forma visível, as qualidades das moças, facilitando a atração de um pretendente. Em alguns momentos, Lima Barreto mostrava-se preocupado com a crescente ocupação de espaços pelas mulheres, o que, aliando essa sua perícia nos exames, com a emancipação feminina, poderia conduzir a uma estagnação intelectual, já que elas poderiam ocupar todos os postos, graças ao sistema de concursos então existente. Isso não significa um desprezo pelas mulheres. Na crônica “Maio”, quando ele recordava sua infância no ano da abolição da escravidão, 1888, não deixara de colocar sua dívida pra com sua professora de então, que ele definia como sendo “muito inteligente” e a quem admitiu dever muito do seu espírito (LIMA BARRETO, 2004, v. I, p. 78). Mesmo quando criticou a criação de um anel para as formandas em Música, Lima não deixou de elogiar o papel das formandas como professoras. Imaginário e representações: entre fios, meadas e alinhavos

Também via nas mulheres, sobretudo, nas mais pobres, uma grande capacidade de amar, um amor que se mostrava na sua compaixão para com os cachorros abandonados pelas ruas, contra a ameaça dos guardas municipais que os perseguiam todos os dias (LIMA BARRETO, 2004, v. II, p. 20). Além disso, não se pode negar uma visão muito clara de Lima Barreto

em relação a questões que afetavam diretamente a vida das mulheres, sobremaneira as mais pobres. Exemplo claro disso é a crônica “A lei”, publicada no Correio da Noite, no dia 7 de janeiro de 1915. Apesar de curta, tem pouco menos que uma página na versão em livro, apresentou uma série de questões: o aborto, divórcio, guarda dos filhos, sobrevivência diária, etc. A crônica envolveu duas mulheres. A primeira, separada e temerosa de perder a guarda da filha, se envolve com um homem que poderia lhe dar alguma segurança financeira, ou pelo menos ajudá-la nessa questão. Por conta desse relacionamento, acabou com uma gravidez indesejada, afinal, as relações

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entre homens e mulheres, nas classes pobres, eram tradicionalmente muito efêmeras6. Aqui, entra a segunda mulher, uma parteira. Amiga da primeira, ela concordou em lhe fazer um aborto, sem cobrar valor algum por isso. Por conta do aborto, a parteira foi presa e se suicidou na prisão por vergonha de estar ali sem se sentir culpada. A primeira mulher, por medo de perder a filha, também optou pela morte. Lima Barreto mostrava-se o tempo todo solidário com as duas mulheres, questionando uma moral que impunha às mulheres obrigações que não eram compatíveis com as condições em que viviam. Assim, a morte da parteira fora provocada pela vergonha de se ver presa, por uma razão da qual ela nunca suspeitaria ser culpada. Enquanto a morte da amiga se dera por medo de uma lei que não respeitaria os direitos da mãe sobre seus filhos, privilegiando a condição financeira e não a afetiva. No mesmo sentido, nas crônicas “Não as matem” e “Lavar a honra matando?”, Lima fez uma defesa do divórcio, mesmo que não mencionasse a palavra7. Ao criticar os crimes passionais que ocorriam, tanto entre casados como entre ex-noivos, Lima Barreto reafirmou a liberdade que deveria ser inerente às relações entre homens e mulheres. Dizia ele: “esse obsoleto domínio à valentona, do homem sobre a mulher, é coisa tão horrorosa, que convalidou o direito das mulheres de escolherem a quem amar e, principalmente, de deixar de amar e escolher um novo parceiro. Ou mesmo de assumir que os filhos não seriam do marido, sem que isso desse direito a eles de matá-las, como defendeu na crônica “Os matadores de mulheres”. (LIMA BARRETO, 2004, v. I, p. 325) Na crônica “A amanuense”, falando para Nilo Peçanha (então, presidente da República), ele declarou “Sua Excelência – eu lhe rogo – antes de fazer ‘amanuenses’ procure arranjar para as meninas bons maridos, honestos Ver, entre outros: SOIHET (1989).

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Na crônica “No ajuste de contas...”, de 11 de abril de 1918, Lima Barreto, falou diretamente sobre a possibilidade do divórcio, mesmo que a justificativa fosse a vontade de se casar com uma outra pessoa e da possibilidade de qualquer um dos cônjuges de requerê-lo. (LIMA BARRETO, 2004, v. I, p. 342)

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Imaginário e representações: entre fios, meadas e alinhavos

enche de indignação” (LIMA BARRETO, 2004, v. I, p. 168 e 313). Lima

e trabalhadores”, reafirmando a posição da mulher dentro de casa e não nas repartições públicas. Entretanto, por se casarem cedo e terem uma educação essencialmente familiar e religiosa, as mulheres não teriam critérios seguros para julgar seus pretendentes. Por isso só julgando os elementos exteriores (beleza e dinheiro). Mas, quando se deparavam com a dura realidade do casamento se decepcionavam e o casamento se tornava uma prisão. Ao contrário dos homens, que teriam várias formas de escape: o álcool, as orgias, o deboche, as mulheres teriam apenas o amor, o adultério (LIMA BARRETO, 2004, v. I, p. 472). O divórcio seria sua única forma de libertação. Lima mostrou-se também favorável ao voto feminino. Numa primeira leitura da crônica de 1921, intitulada “Voto feminino”, pode-se sugerir uma disposição contrária. A crônica censurava a presença de grupos de mulheres nas galerias do Senado durante as discussões do projeto que lhes concedia o direito de voto, que teriam levado flores e até mesmo beijado um dos senadores (LIMA BARRETO, 2004, v. II, p. 375). Mas, em outra crônica, Lima Barreto defendeu diretamente o direito de voto da mulher. O que ele discutia na crônica “Voto feminino” era a intervenção das mulheres, ligadas ao movimento feminista, no processo político. Aliás, aqui chegamos num ponto onde ele foi certamente contrário: o movimento femiImaginário e representações: entre fios, meadas e alinhavos

nista. Em várias crônicas nos anos 1920, Lima Barreto teceu sua ironia contra as várias formas de feminismo que então atuavam na cidade do Rio de Janeiro. Notadamente, reprovava as ações da principal líder do movimento feminista de então, a bióloga Berta Lutz8. As críticas de Lima Barreto concentravam-se em torno de alguns pon-

tos, mas, principalmente, na forma de atuação das mulheres. Caso da presença das mulheres no Senado para pedir o direito de voto. Lima acusava o movimento feminista de atuar como um partido político, defendendo direitos particulares. Vale lembrar que, como simpatizante do anarquismo, Lima fez várias críticas ao funcionamento dos partidos e da política de forma geral. Entre 1918 e 1922, Lima travou uma intensa polêmica com as femi-

nistas, contra a participação das mulheres no serviço público. Já em artigo Sobre as origens do movimento feminista no Brasil ver: (PINTO, 2003).

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de 1918, intitulado “A amanuense”, Lima Barreto fazia duras referências à contratação de uma mulher para o cargo de terceiro oficial da secretaria do Exterior. Lima afirmava, no texto, serem esses lugares destinados aos homens e que sua ocupação por mulheres colocava em risco a própria saúde social, ao tirar as mulheres de casa, seu lugar natural. O trabalho feminino colocaria em risco a própria estrutura do tecido social, já que o sedentarismo inerente ao trabalho em uma secretária debilitaria fisicamente a mulher (LIMA BARRETO, 2004, v. I, p. 389). Vale ressaltar que, em outra crônica, Lima explicava que “nunca neguei capacidade alguma na mulher. O meu antifeminismo não parte do postulado da incapacidade da mulher, para isso ou para aquilo; é baseado em outros motivos, mais de ordem social do que mesmo de natureza fisiológica ou psicológica.” (LIMA BARRETO, 2004, v. II, p. 415). Entretanto, na crônica “A amanuense”, ele retomou o argumento da limitação intelectual da mulher: A inteligência da moça é, em geral, reprodutora, portanto muito própria para esse estudo de línguas muito do gosto das repartições catitas, como o Itamarati; mas nunca é capaz de iniciativa, de combinação de imagens, dados concretos e abstratos que definam a verdadeira inteligência. (LIMA BARRETO,

Em “A polianteia das burocratas”, publicada na Rio-Jornal, em setembro de 1921, ele ampliou ainda mais essa argumentação, primeiro, admitindo que aqueles que haviam contratado mulheres estavam muito satisfeitos com o trabalho por elas realizados. Afinal, “ninguém nega que a mulher tenha as qualidades subalternas e secundárias que são exigidas para o exercício de um simples cargo público” e “não é boa recomendação para ser um bom escriturário ou ótimo oficial de secretaria, a posse de uma individualidade, de um temperamento; e, raramente, a mulher é dona dessas coisas” (LIMA BARRETO, 2004, v. II, p. 418). Apesar das resistências, um número cada vez maior de mulheres passou a ocupar funções públicas, ficando apenas os ministérios da Guerra e da Marinha como bastiões de resistência. Em 1921, Lima Barreto publicou, na revista A Careta, um artigo que nos parece apontar o limite ao anarquismo 135

Imaginário e representações: entre fios, meadas e alinhavos

2004, v. I, p. 389).

do autor e a base de seus argumentos. A crônica fala de uma mulher que teria sido sorteada para o serviço militar e que se recusou ao alistamento alegando que não havia lei que estendesse às mulheres a obrigação do serviço militar. Aproveitou-se, então, para fazer nova crítica à presença de mulheres no serviço público. Segundo ele, no momento de ocupar empregos públicos, as feministas teriam proposto uma interpretação do artigo da constituição que dizia que “os cargos públicos civis e militares são acessíveis a todos os brasileiros, observadas as condições de capacidade especial, que a lei estatui”, de forma a que “brasileiros” se referisse a homens e mulheres. Entretanto, agora na questão do serviço militar, elas interpretavam a determinação “Todo brasileiro é obrigado ao serviço militar, em defesa da Pátria e da Constituição, na forma das leis federais”, de forma restritiva, considerando como “brasileiros” apenas aqueles do sexo masculino. E acrescentou: Mas lei é lei; e a Constituição quando falou em “brasileiro” aí, no tal artigo [do serviço militar], não incluiu mulher, porque ela se quis referir a cidadão brasileiro. Tanto não é que a dama sorteada não quer ser soldado, alegando que “nenhuma lei ainda tornou extensivo às mulheres o serviço militar. (LIMA

Imaginário e representações: entre fios, meadas e alinhavos

BARRETO, 2004, v. II, p. 349-350).

Pouco tempo depois, o autor voltou à questão, reafirmando o primado

da lei. Na crônica “A poliantéia das burocratas”, de setembro de 1921, comentou sobre um levantamento feito junto aos chefes das mulheres, em que todos atestavam sua satisfação com seus serviços. Lima, então, ressaltou, de forma irônica, a qualificação das mulheres para o serviço público, “falta de individualidade”, para acrescentar, em seguida, que qualificação nunca foi o problema: Está em jogo a maneira irregular e ilegal que tem presidido o provimento desses cargos, por moças e senhoras. Em que lei se hão baseado as autoridades que tal têm feito? Não respondem. Ou antes: respondem citando consultas, pareceres e outros documentos mais ou menos graciosos, que não podem ter valor legal, isto é, de lei alguma. (LIMA BARRETO, 2004, v. II, p. 418). 136

E contra o argumento de Berta Lutz9 de que o trabalho, e, consequentemente, o acesso ao serviço público, era fundamental para a emancipação feminina. Lima Barreto lembrou que as mulheres sempre trabalharam, e até mais do que os homens, não necessitando do serviço público para isso, já que podiam ser encontradas em praticamente toda atividade. Colocou, então, a questão como mais uma forma de corrupção da burocracia brasileira. Antes de resolver um problema social teria a intenção de beneficiar pequenos grupos. E concluiu, “Legislar, só o Congresso Nacional; e ele ainda não falou a respeito.” (LIMA BARRETO, 2004, v. II, p. 421). Dentro dessa disputa, a crítica de Lima Barreto às feministas se estendeu também à questão do divórcio. Já vimos como, em vários momentos, ele se posicionou favorável à possibilidade do divórcio ser pedido por qualquer um dos cônjuges e por qualquer justificativa. Mas, para ele, as feministas estariam mais preocupadas com o acesso ao funcionalismo público do que com essa questão que, a seu ver, era vital para as mulheres. Disse ele: [...] – contra tão desgraçada situação da nossa mulher casada, edificada com a estupidez e a superstição religiosa, não se insurgem as borra-botas feministas que há por aí. Elas só tratam de arranjar manhosamente empregos públicos, masculino. (LIMA BARRETO, 2004, v. I, p. 472).

Durante toda a polêmica, Lima Barreto não perdia a oportunidade de ressaltar as qualidades que julgava mais adequadas às mulheres, sempre as contrapondo àquelas que procuravam o serviço público. Exemplo disso é a crônica “Concurso para a cozinha”, na qual ele saudava o fato de ser ainda maior o número daquelas que participavam do concurso de culinária, do que as que se sentiam atraídas “pela máquina de escrever”. (LIMA BARRETO, 2004, v. II, p. 76).

Berta Lutz, como líder da Liga Pela Emancipação da Mulher, era alvo de muitas críticas por parte de Lima Barreto. Em crônica de 1921, ele questiona a tentativa de Berta de interferir num parecer de um funcionário que deveria se posicionar em relação à possibilidade das mulheres ocuparem cargos públicos (LIMA BARRETO, 2004, v. II, 406).

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Imaginário e representações: entre fios, meadas e alinhavos

sem lei hábil que tal permita. É um partido de ‘cavação’, como qualquer outro

Mas não se pode negar também que Lima Barreto percebia as mudanças pelas quais as mulheres estavam passando em sua época. Desde 1918, apareciam crônicas nas quais ele falava das melindrosas, de sua presença nas ruas, de seu comportamento ousado para os padrões da época. Esse era o caso das “vaporosas”, assim chamadas por suas roupas quase transparentes (LIMA BARRETO, 2004, v. II, p. 30), ou das torcedoras de futebol cujo vocabulário “rico no calão, veemente e colorido, o seu fraseado só pede meças ao dos humildes carroceiros do cais do porto” (LIMA BARRETO, 2004, v. II, p. 29). Mas também não se pode negar que Lima Barreto foi um homem do seu tempo. Tinha forte preocupação com a situação social da mulher, em especial, das mulheres pobres que habitavam os subúrbios, mas não conseguiu libertar-se totalmente da visão da mulher ligada essencialmente à casa.

Referências BARBOSA, Francisco de Assis. A vida de Lima Barreto (1881-1922). 6. ed. Brasília/ Rio de Janeiro: INL/Livraria José Olympio Editor, 1981.

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BROCA, Brito. A vida literária no Brasil - 1900. 2. ed. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editor, 1960. CHALHOUB, Sidney; NEVES, Margarida de Souza; PEREIRA, Leonardo Affonso de Miranda (orgs.). História em cousas miúdas. Campinas: Ed. UNICAMP, 2005. LIMA BARRETO, A.H. Toda a crônica. v. I e II., São Paulo: Agir, 2004. MAGALHÃES Jr., Raimundo. Artur Azevedo e sua época. 2. ed. revista e ampliada. São Paulo: Livraria Martins Editora, 1955. MENEZES, Raimundo de. Guimarães Passos e sua época boêmia. São Paulo: Livraria Martins Editora, 1957. NOGUEIRA, Clara Aspert. Revista Careta (1908-1922): símbolo da modernização da imprensa no século XX. Miscelânea, Assis, v. 8, p. 60-80, jul/dez 2010. PINTO, Céli Regina Jardim. Uma história do feminismo no Brasil. São Paulo: Perseu Abramo, 2003.

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RODRIGUES, João Carlos. João do Rio. Uma biografia. Rio de Janeiro: Topbooks, 1996. SOIHET, Rachel. Condição feminina e formas de violência. Mulheres pobres e ordem urbana, 1890-1920. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1989.

Imaginário e representações: entre fios, meadas e alinhavos

VASCONCELOS, Eliane. Entre a agulha e a caneta: a mulher na obra de Lima Barreto. Rio de Janeiro: Lacerda Editora, 1999.

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Santos – O Porto do Café: imaginário e representações Maria Izilda Santos de Matos

Estes escritos contemplam um conjunto de inquietações tendo como foco a cidade/porto de Santos. Num primeiro momento, buscar-se-á discutir algumas questões que envolvem as cidades portos, observando as referências do porto como território de troca – porta de entrada e de saída. Em seguida, intenta-se recuperar o cotidiano, resgatar várias experiências urbanas e passando pelas ações, projetos e interferências urbanas implementadas na cidade-porto, finalizando com um questionamento sobre o imaginário e as repre-

O Porto: saídas e entradas A história da cidade e do porto de Santos esteve diretamente ligada aos negócios cafeeiros. Na segunda metade do século XIX, a expansão da produção cafeeira rumo ao oeste do estado de São Paulo encontrou, entre outras dificuldades, a do escoamento do produto, então, realizado em lombo de burro, enfrentando o relevo íngreme da Serra do Mar. A inauguração da ferrovia Santos-Jundiaí (1867) possibilitou um transporte regular, com menos riscos e maior grau de eficiência, impulsionando ainda mais a expansão da cafeicultura e viabilizando um escoamento eficiente da produção. A partir de então, o comércio e a exportação do café foram sendo centralizados em Santos, em detrimento de outros portos, desencadeando um processo de crescimento contínuo da cidade. Dessa forma, estabeleceu-se 141

Imaginário e representações: entre fios, meadas e alinhavos

sentações de Santos, privilegiando o prédio/monumento da bolsa do Café.

a vinculação do porto de Santos aos negócios cafeeiros, como porta de saída para que o “ouro verde”, dinamizando a chegada desse produto aos mercados consumidores europeus e norte-americanos. A tradição agroexportadora do país e as referências economicistas, ainda fortes na historiografia, destacam os portos pelos produtos que são por intermédio deles exportados. Ao se nomear Santos – o Porto do café – se reproduzem essas referências, que também privilegiam a visão que os outros, os consumidores (Europa e América do Norte), tinham do Brasil – “o país do café”. Essa perspectiva necessita ser relativizada, deve-se focalizar o processo de mundialização e de circularidade cultural, também observando o país internamente, investigando: como o café era produzido; o cotidiano nas fazendas, no porto e na capital São Paulo; o que se produzia além do café; quais e como eram as transformações que estavam ocorrendo e quais eram as influências recebidas. A segunda metade do século XIX foi um momento estratégico do processo de mundialização – de expansão do capitalismo e crescimento industrial, com amplas mudanças nas formas de produzir, o vapor extravasando os limites da fábrica, por meio dos trens e dos navios, o que viabilizou o aumento das conexões internacionais. Foram criados e/ou dinamizados Imaginário e representações: entre fios, meadas e alinhavos

fluxos de circulação de mercadorias, de matérias-primas e de capitais, que ampliaram o consumo e geraram novas necessidades. Assim, foi nesse contexto que o consumo da bebida – café e os próprios cafés (como espaços de sociabilidade) se expandiam, possibilitando a ampliação do cultivo do produto no Brasil e a constituição de Santos como porto. Esse processo de mundialização também implicou a intensificação da

circulação de mercadorias, pessoas, ideias e referências culturais. Assim, os portos, para além de porta de saída dos produtos – em Santos, do café –, tornaram-se porta de entrada de mercadorias, pessoas e influências. Daí a importância de observar não só o que era exportado, mas também as mercadorias e referências culturais que entravam por essa porta. O porto de Santos, conexão do Brasil com o mundo, exportava café,

mas também recebia todo um amplo conjunto de influências, tornando-se um território privilegiado de trocas culturais, identificando-se mercadorias

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como produtos culturais. Nesse sentido, cabe ressaltar toda ampla e variada gama de novos produtos e objetos de consumo que chegavam ao porto e lá eram comercializados, o que incrementou não só o comércio exportador como também o importador. De várias partes do mundo, particularmente da Europa, chegava toda uma gama de produtos e influências, o que gerou e dinamizou um “vetor civilizador” sobre a cidade e tornando o porto cenário efervescente para receber esses fluxos (ELIAS, 1994). Entravam pelo porto: modas, modos, hábitos, costumes, estilos, sensibilidades, modelos, não só de como vestir, alimentar-se, de como se morar, também modelos de comportamento masculino e feminino, de como receber e ser recebido, de como namorar, novas noções de higiene, de civilidade e de modernidade. Para difundir e vender essas mercadorias, foram abertas lojas, criados catálogos, almanaques e periódicos, que passaram a circular para divulgar esses produtos. Nesses impressos e nos periódicos, eram oferecidos desde barbatanas para uso nos colarinhos masculinos, espartilhos para modelar os corpos femininos dentro dos padrões de moda europeus; utensílios de uso cotidiano, como: colherinhas de café, vasos sanitários, até uma estação ferroviária, como a estação da Luz/SP, totalmente importada da Inglaterra. Em pouco tempo, Santos tornou-se um território1 privilegiado, buscaparâmetros do comércio importador e exportador, com a forte presença de comissários e exportadores; mas outros modelos eram difundidos, entre eles, generalizava-se um desejo de ser moderno2. Deve-se destacar a noção de territorialidade, identificando o espaço como experiência individual e coletiva, onde a rua, a praça, a praia, o bairro, os percursos estão plenos de lembranças, experiências e memórias. Espaços que, além de sua existência material, são também codificados por todo um conjunto de representações, numa dinâmica de múltiplos processos de territorialização, desterritorialização e reterritorialização (ROLNIK, 1992).

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Perseguir o moderno se generalizou como uma aspiração presente na cidade, nos seus gesto-

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res e moradores, cabe destacar que, nesse processo, diferentes sentidos da modernidade foram construídos e reconstruídos através dos tempos e por vários grupos e setores. A construção do moderno, em geral, diagnosticava um presente problemático, projetava um futuro modelar e assim procurava justificar ações de intervenção, dessa forma, estava permeada de intenção e fazia parte dos jogos de poder.

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va-se acompanhar os modelos europeus, não só nos negócios regidos pelos

Vivia-se a euforia, a ideia da chegada de novos tempos, com as referências da modernidade e do progresso, com novas avenidas, praças e os canais recém-construídos e iluminados, novas residências e prédios comerciais no estilo eclético-europeu. No lugar dos antigos carros de parelha, tílburis e bondes a burro, apareceram os bondes elétricos circulando juntamente com os primeiros automóveis; motores, telégrafo, telefone; máquinas fotográficas registravam o processo, também despontava o cinema, que reproduzia na tela, a vida em contínuo movimento. Os ritmos e fluxos da cidade se alteravam, as ditas conquistas tecnológicas acenavam que o mundo nunca mais seria o mesmo. O desejo de modernidade se expandia e se generalizava, sob o influxo do crescimento comercial e financeiro. A modernidade também se apresentou com novas referências de temporalidades, tempo efêmero, mudanças constantes e ininterruptas, os tempos dos negócios (os negócios a termo), as agilidades possibilitadas pela expansão da tecnologia, uma segmentação cada fez maior do campo e da cidade, ruptura com as tradições, instituição do arcaico e a busca incessante pelo moderno.

O Porto: palco de múltiplas experiências Reforçando a necessidade de não olhar só o que se exportava por SanImaginário e representações: entre fios, meadas e alinhavos

tos - o café-, mas atentar para o porto e a cidade, nas suas conexões com o mundo e transformações internas, cabe destacar as transformações e as múltiplas e variadas experiências que passaram a se estabelecer no cotidiano da cidade. Como porta de entrada, saída e circulação de pessoas, o porto tornou-se palco de trocas culturais, os sujeitos históricos traziam experiências, hábitos, idiomas, modas, sensibilidades, ou seja, um conjunto complexo de referências culturais, que passavam a circular juntamente com eles pela cidade. Além dos portos serem um território de trocas de mercadoria, eles

também se constituíram como lócus de fluxo de corpos, pessoas, viajantes, turistas, marinheiros, comerciantes, homens de negócios, também de migrantes e imigrantes, múltiplas identidades em trânsito nesse e por esse território, ao circular, entrar, sair, atuar e trabalhar.

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Cabe recuperar as formas e os fluxos de pessoas de diferentes nacionalidades que chegavam e saiam pelo porto. Alguns estavam de passagem para conhecer a área, outros vinham realizar negócios ou em busca de oportunidade de trabalho nas atividades portuárias e na cidade. Geravam-se novas necessidades, como o crescimento do número de hotéis e pensões para hospedar as pessoas que estavam de passagem, já para as que procuravam instalar-se, devido a permanências mais longas ou definitivas, tornava-se premente implementar novas habitações. Assim, o crescimento do porto – consolidando-se como ponto de trânsito dos produtos de exportação, importação e centro econômico e político –, passou por transformações sociais e demográficas num curto espaço de tempo e em ritmo acelerado, num quadro no qual se interpenetraram a desintegração da escravidão, a grande imigração e a emergência do governo republicano. O “sonho americano” e a atração exercida pela cidade concentraram um significativo contingente de homens e mulheres. O porto, centro dinâmico da cidade, precisava ser constantemente modernizado e ampliado, a área tornou-se polo de atração, um ímã para os imigrantes recém-chegados3, particularmente, portugueses do continente e das ilhas. O contingente imigrante, em mento nos armazéns de café e docas, onde exerceram atividades de doqueiros, estivadores, ensacadores e carroceiros. Ao chegarem a Santos, as sacas de café eram descarregadas dos vagões dos trens e colocadas nos depósitos alinhados ao longo da via férrea; carroças e carretões estacionavam junto às portas numeradas desses depósitos e retiravam a mercadoria, iniciava-se, então, o transporte pelas ruas estreitas da cidade até os armazéns particulares e o porto. Havia firmas organizadas, mas, geralmente, os carroceiros, quase todos imigrantes, dividiam entre si o transporte de café pela cidade. O número de carroças que transitavam cresceu em proporção direta ao aumento da quantidade de café exportado. Pelas ruas, homens corriam Na ferrovia e obras do porto, os imigrantes eram preferidos nos contratos desde 1890 (CONTRATO DA GRAFFRÉ-GUINLE... 1892).

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especial, de ibéricos, foi incorporado em serviços estratégicos ao funciona-

ao lado das carroças puxadas a burro, sob um calor sufocante e faziam, às pressas, a viragem, as misturas e o reensaque do café. No porto, o embarque era feito carregando-se os sacos de café nas costas, e, como num formigueiro humano, os trabalhadores subiam e desciam com sacos nos ombros as pranchas do cais para o convés dos navios, ou de um navio para outro. O trabalho girava em torno da safra, quando o ritmo da atividade era intensificado, envolvendo trabalhadores regulares e outros eventuais. Com a expansão das atividades portuárias, constituiu-se uma especialização das funções, e o setor da estiva foi se organizando. Os carroceiros e carreteiros também realizavam inúmeras tarefas ligadas à circulação de alimentos e de mercadorias em geral e ao suporte à construção civil; faziam mudanças, transportavam pessoas, o que assegurava o funcionamento de serviços essenciais à rotina urbana (lenha para as cozinhas, carregamento de lixo, água, forragens para os animais das cocheiras). Todavia, o ganho era incerto, pois se, em alguns dias, arranjavam vários fregueses, em outros, ficavam parados, durante a safra o trabalho era intenso, mas, em outros momentos do ano, os ganhos eram eventuais. O intenso processo de urbanização era marcado pelas constantes demolições e construções, erigiam-se obras que definiam novos espaços, em geral, Imaginário e representações: entre fios, meadas e alinhavos

estabelecidos a partir do porto e de suas necessidades. Na cidade, eram muitos os trabalhadores nas obras do porto e na urbe, como pedreiros, carpinteiros, marceneiros e marmoristas, artífices também se destacavam, fabricando artefatos de cimento e gesso, tacos de madeira para pisos, serralheiros executavam trabalhos em ferro para portões, janelas, grades e gradis. A atração exercida pela cidade prosseguia, concentrando uma significativa

quantidade de trabalhadores imigrantes4 e nacionais, abrindo-se possibilidades

de associação entre companheiros e/ou conterrâneos em pequenos negócios. A crescente urbanização de Santos e o aumento considerável de sua população geraram novas oportunidades para as atividades comerciais e de abastecimento. Para os imigrantes, o trabalho foi uma experiência estratégica, eles dotaram de um novo sentido o ato de trabalhar - sob certa perspectiva, o trabalho ajudava a superar o medo do novo e a insegurança do desconhecido. No intuito de “fazer a América”, investiam economias, adiavam os prazeres imediatos e procuravam melhorar sua situação, ao entregar-se ao trabalho com extremo despojamento e tenacidade.

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O setor de gêneros alimentícios se destacou com os estabelecimentos de pequeno e médio porte, na maioria, unidades familiares que, ao procurar trabalhar com custos operacionais reduzidos, aproveitavam o quarto da frente de suas próprias casas para estabelecer pequenos armazéns de secos e molhados, açougues, adegas, quitanda de frutas e legumes, vendas, botequins e pensões. A participação de mulheres nesses negócios era determinante, vários estabelecimentos eram conhecidos pelos nomes de suas proprietárias. Entrecruzando o público e o privado, a mulher administrava o lar e o negócio, e trabalhava duramente no balcão de madrugada a madrugada (MATOS, 2002). Dessa forma, enquanto uns se dirigiam para o comércio, outros atuavam por conta própria ou foram impelidos para o trabalho em vários ramos. O número de trabalhadores excedia as necessidades do mercado, o que aviltava os salários, criava formas múltiplas de atividades temporárias e domiciliares, subemprego e emprego flutuante e ampliava uma população que garantia a sua sobrevivência na base das ocupações casuais, à custa de improvisações de expedientes variados, eventuais e incertos, constituindo trajetórias que englobavam privilegiamentos, participação e exclusão num processo de tensões e conflitos. As experiências no porto foram múltiplas, resta aos pesquisadores o desafio de recuperá-las, observando o porto a partir dessas múltiplas vivências: marinheiros, turistas, veranista e banhistas; destacando os trabalhadores no balcão, os caixeiros e caixeirinhos (portugueses), os estivadores e carroceiros, as costureiras de sacaria (MATOS, 2004) e as catadoras de café e toda uma vasta gama de outras atividades que envolviam de homens e mulheres, brancos e negros, nacionais e imigrantes e que vitalizavam o cotidiano do porto.

O Porto: cidade, questão, saneamento Ao delinear cenários em constante movimento, a cidade de Santos foi se modelando como um lugar para se viver, trabalhar, rezar, observar, divertir e sonhar. Ao misturar laços comunitários e étnicos, criavam-se espaços de sociabilidade e reciprocidade, estabeleceram-se solidariedades, conflitos e tensões urbanas, que se constituem entre o aumento de mobilidade e os desejos

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dos homens de negócios, comissários, importadores e exportadores; visitantes,

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de enraizamento, oposições entre planificação, programação, ordenamento num confronto infindável com a criação, identidade, movimentos que redimensionam o pulsar urbano num fluxo contínuo de tensões. Em meio a essas tensões historicamente verificáveis, a cidade porto tornou-se palco de memórias contrastadas, múltiplas, convergentes ou não, mas plenas de emoções. Dessa forma, a cidade-porto impunha-se como construção problemática de algo a ser decifrado pelo pesquisador. Cabe ao investigador entender esse emaranhado de tempos, espaços e memórias, recuperar as várias camadas e as relações entre elas, para decifrar seus enigmas e suas questões. No Brasil, desde os finais do século XIX e inícios dos XX, uma das vias a delinear a cidade como questão foi a higiênico-sanitarista. O olhar médico conjugado a ação/observação/transformação do engenheiro e à política de intervenção de um Estado planejador/reformador, construíram um campo de interferência sobre a cidade – o urbanismo. Buscando dar ao espaço uma qualidade universal e manipulável, por meio da “racionalidade e objetividade da ciência”, que passou a ter função-chave na sua luta contra o arcaico pela “ordem e progresso”; caminhava-se conjuntamente ao desejo latente e generalizado de “ser moderno”, em que a cidade aparecia como sinônimo de progresso em oposição ao campo. Nesse processo, a problemática da cidade foi delineada como questão – a chamada questão urbana – encontrando-se atravessada pelos pressupostos da disciplina e da cidadania, passando a ser reconhecida como palco de tensões. Construiu-se aí a questão social mediante a identificação do outro – o pobre, o imigrante, o negro, as mulheres. O processo de constituição de uma nova ordem social (a urbana), toda experiência de transformação tem que se submeter no sentido de atualização de seus códigos de mando e de obediência, a partir do que se redefine o lícito e o ilícito, o que é direito e o que é ilegal, e, no limite, o possível e o impossível, o desejável e o desprezível, o tolerável e o insuportável..., toda a experiência vivida é levada a ter um direcionamento uno, objetiva-se formas codificadas de expressão. (PECHMAN, 2002, p. 38).

As ruas estreitas, o porto desarranjado, o trânsito de centenas de carro-

ças carregadas de café, as cocheiras e as epidemias marcavam o espaço urba148

no santista. Velhos problemas foram ampliados com o crescimento desordenado e o movimento agitado do porto, que geravam o agravamento das condições ambientais, insuficiência de água e de esgotos, precária vigilância sobre os navios vindos de portos infectados. Isso fez com que a cidade fosse constantemente assolada por violentos surtos de epidemias como a cólera, febre amarela, varíola, impaludismo e peste bubônica, atingindo, particularmente a população pobre e imigrante. Esta população amontoava-se em moradias precárias, em becos, cortiços, vielas, praticamente sem água, esgoto e iluminação, enfim, sem condições sanitárias, deixando-a vulnerável para contaminação e com a possibilidade de expansão das epidemias. Apontava-se como um dos principais fatores das epidemias o grande número de cortiços localizados nas áreas mais centrais da cidade, erguidos nos pátios e nos quintais de qualquer jeito e tamanho, quase todos em estado deplorável; esses “cubículos” eram baixos, feitos de tábuas, cobertos com zinco, compostos de um só cômodo. Eram construídos às pressas para albergar a numerosa imigração chegada em busca de trabalho remunerador e certo. Havia também o problema das cocheiras-cortiços, que, em sua maioria, eram também habitações coletivas, onde viviam cocheiros e suas famílias em palanques construídos sobre as baías. O grande número de cocheiras faos outros cortiços, não tinham água nem esgoto, eram abafadas, insalubres. As águas paradas nos seus pátios difundiam o mosquito transmissor da febre amarela, de 1890 a 1900, faleceram 22.588 pessoas atingidas por várias moléstias, destas, 6.688 de febre amarela (LOPES, 1974). Nesse processo, o porto aparecia como lugar de contágio e passava a ser considerado um organismo doente, vulnerável às febres, epidemias, infecções, e também pelo medo de que, a qualquer momento, navios aportassem trazendo doenças. Tornava-se urgente um controle da situação, das doenças e da sua difusão (regras de entrada, inspeção e controle, quarentenas), mas também buscavam “ações de cura”, no sentido de sanear o porto e a cidade. A situação preocupava a todos, autoridades, médicos, comerciantes e exportadores de café, a Companhia Docas de Santos, que percebiam a necessidade de uma remodelação urbana, com uma atenção particular aos assuntos

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cilitava a difusão de ratos e pulgas, transmissores da peste bubônica. Como

da saúde público-sanitária. Essas medidas encontravam-se vinculadas aos novos pressupostos de higienização e somavam-se ao desejo da Belle Époque de tornar o porto moderno e planejado, procurando eficiência e rapidez e pautada no binômio civilização-progresso. Tornava-se premente o saneamento, contudo o município não possuía recursos financeiros suficientes. As pressões cresceram, em particular, do setor comercial-exportador de café. Sobre isso, a Associação Comercial de Santos dizia: “O saneamento de Santos torna-se uma necessidade inadiável para garantir não só a vida da população, mas altos interesses de ordem econômica” (BOLETIM ACS, 1889). Por fim, o governo do Estado assumiu a empreitada, era imprescindível manter o fluxo do café e, para tanto, o funcionamento eficiente do porto. Várias propostas foram encaminhadas, enfrentando a burocracia e outros obstáculos políticos, por fim, foi aceito o projeto de Saturnino de Brito. Foram montadas duas Comissões: uma sanitária, na sua maior parte, coordenada pelo médico Guilherme Álvaro e outra de saneamento, sob a

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liderança de Saturnino.5

O plano urbanístico de Saturnino O projeto de Saturnino foi executado sob sua direção e dos engenheiros Miguel Presgrave, Joaquim T. de Oliveira Penteado e João Ferraz. As pontes ornamentadas sobre os canais foram projetadas por Carlos Lang e executadas por D. Savorelli ( BRITO, 1943).

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O sonho da cidade higienizada transparecia no projeto, ele se propunha como “reparador absoluto das dificuldades”, apresentando toda uma complexidade: um sistema de separação do esgoto das águas pluviais; um moderno sistema de esgoto projetava o esgotamento dos despejos pelo sistema de estações elevatórias acrescido da construção de uma grande ponte pênsil para levar as tubulações de esgoto e lançá-los ao mar; o enxugamento da planície e a correção dos rios por meio da drenagem superficial composta de oito canais (mais um), de mar a mar, que, por aproveitar a força das marés, possibilitava a limpeza e evitava as águas estagnadas e as inundações. Construídos de cimento armado, geralmente, a céu aberto; gramados, internamente, na parte superior, com pontes e passadiços, os canais drenavam o solo e recebiam dos emissários as águas pluviais, em tubos de cimento armado. Eles ocupavam o espaço central das avenidas, facilitando a circulação e o arejamento urbano. Árvores nas calçadas laterais formavam uma paisagem urbana amena, com espaços de circulação para pedestres e veículos. A longa extensão dos canais e a largueza as avenidas favoreciam a penetração das brisas marítimas no interior da ilha, refrescando-a (ANDRADE, 2000). Os trabalhos da Comissão foram iniciados em 1905 e em 1907, grandes festividades marcaram a inauguração do primeiro e maior dos canais, tintas, os canais garantiriam que elas não voltariam, o moderno sistema de esgoto tornou a cidade mais saudável e as inundações evitadas, os negócios do café estavam revitalizados depois do Convênio de Taubaté (1906), e o porto funcionava a todo o vapor. A implantação da ação reformadora, encaminhada por meio do projeto do engenheiro Saturnino de Brito, marcou Santos, a ponto de se poder dividir sua história em duas etapas: antes e após o saneamento. Em 1908, já eram 45.000 metros de canais, que, por sua utilidade e beleza, passaram a marcar as memórias afetivas da cidade. A cidade higienizada diversificava suas funções, as chácaras da praia cediam lugar a mansões da elite. Já na primeira década do século, foi construído o luxuoso Hotel Parque Balneário, a praia passou a ser sinônimo de lazer, atraindo moradores e visitantes.

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o Canal 1. Tinham-se motivos para comemorar: as epidemias estavam ex-

O espaço da praia rapidamente se distinguia de anos anteriores, um areal procurado pelos que procuravam bons ares ou defendiam os milagres curativos do banho de mar. No século XIX, o banho de mar não era hábito social difuso, mas terapia recomendada para tratamento de saúde. Imagens dos inícios do século XIX exibem banhistas santistas, e, aos poucos, ocorreu uma gradativa ampliação da ida à praia como forma de lazer e prática esportiva, mas somente depois da década de 40 é que a frequência às praias se generalizou, sendo elas representadas como espaço de beleza, sensualidade e prazer. Apesar de se manter a importância das atividades portuárias, a função de veraneio se acentuou na cidade, gerando transformações urbanísticas e arquitetônicas com um processo de verticalização da orla da praia, a partir de então, a cidade volta às costas para o porto.

O Porto: memórias urbanas Discutir a cidade como lugar de memória permite observar seus usos e manipulações, ordenações do passado, esquecimentos e ocultamentos. Carregado de conteúdos emocionais e forças simbólicas, momentos estratégicos forjaram, exploraram, atualizaram, apropriaram e reordenaram as memórias da cidade, produzindo enunciados e construindo sentidos, pleno de referênImaginário e representações: entre fios, meadas e alinhavos

cias de poder, usando do passado como um campo de disputas. Se comemorar significa trazer à memória um acontecimento e nela

conservar o passado, rememorar encontra-se carregado de sentidos políticos, merece destaque como momento celebrativo da cidade de Santos: o I Centenário da Independência em 1922, momento que coincide com a Terceira Valorização do Café. Os significados e resignificados dados ao passado constituíram-se

em instrumentos de construção e hierarquização de poder, controlado por “guardiões da memória” – a Comissão do I Centenário. Buscava-se edificar uma imagem homogênea do passado dito glorioso e de pujança, alicerçada na bravura e coragem, com destaque para os irmãos, particularmente, José Bonifácio – “Patriarca da independência”, visto como o herói que deu sentido à nacionalidade.

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As comemorações do I Centenário incluíram uma ampla pauta de atividades: salva de morteiros no Monte Serrat, desfiles de militares e escolares, missa campal com orquestra, procissão cívica ao túmulo de José Bonifácio de Andrada e Silva, juramento à Bandeira pelo presidente da Câmara, prefeito (Joaquim Montenegro) e vereadores. No começo da noite, a Comitiva Oficial do Estado iniciou o retorno à capital pelo Caminho do Mar (da mesma forma que D. Pedro I), repavimentado para a ocasião, inaugurando, no trajeto, vários ranchos-monumentos, marcos históricos e monumentos, edificados em comemoração ao Centenário da Independência (FERREIRA, 2005). Durante a inauguração dos monumentos (07/09/1922), Júlio Prestes fez a seguinte referência à Serra do Cubatão: Esta serra é o emblema da intrepidez, da coragem, do descortino dos paulistas. É o símbolo da altivez e da sobranceria de S. Paulo. Por ela, se fez a primeira conquista, quando os seus cocorutos, embiocados de neblina, calafetavam o interior numa noite povoada de fantasmas; por ela, penetrou na América a civilização latina, quando, ao sol da cristandade, os seus cumes se aureolavam de arneses de ouro e o céu, raiado de púrpura, refletia as planícies do além; por ela, os patriarcas de nossa emancipação política conduziram Pedro I, e a alma alvoroçada do Brasil ao grito de Independência ou morte!; por ela, a escravidão, fugindo ao cativeiro, voltou à liberdade; por ela, São Paulo galvanizou o Brasil com os clarões de sua fé republicana, com a mesma segurança com que fez a democracia e com a mesma firmeza com que mantém o império da ordem e da legalidade. (FERREIRA, 2005, p. 43).

Já em Santos, as comemorações continuaram com a iluminação das praças, avenidas e ruas centrais, concertos musicais em várias praças, banquete no Parque Balneário Hotel, – Grande baile no Clube XV. As celebrações são comemorações portadoras de sentido, permitindo perceber as construções do passado que materializam a memória em espaços eleitos – “lugares da memória”, enraizada no concreto, quadros e objetos, buscando a perpetuação voluntária ou involuntária de lugares – âncoras da memória coletiva (LE GOFF, 1996, p. 431). 153

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as trompas da liberdade retroaram na alvorada da nacionalidade, acordando

Merecem destaque as inaugurações dos marcos celebrativos: o Monumento da Independência, o Palácio da Bolsa Oficial do Café e o monumento ao padre Bartolomeu de Gusmão, “O Voador”, que contaram com a presença do presidente do estado Washington Luiz.

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O Porto: um monumento – a Bolsa do café

Palácio da Bolsa do Café – Santos

O Palácio da Bolsa Oficial do Café pode ser observado como um monu-

mento ao I Centenário da Independência. A sua construção (iniciada em 1920) coube à Companhia Construtora de Santos (Roberto Simonsen) e foi intensifi-

cada nos dois anos de obras para possibilitar a inauguração em 1922. Inspirada no estilo Renascentista Italiano, a Bolsa possui exterior sun-

tuoso, sóbrio, com cerca de seis mil metros de área construída e mais de 200 portas e janelas, tem 3 fachadas: a torre na Praça Azevedo Júnior, Rua Frei Gaspar e o pórtico de entrada principal na Rua XV de novembro, que foi

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construído inteiramente em granito, ornado de oito colunas dóricas e de um entablamento, encimado por um frontão com de duas estátuas deitadas, representando Mercúrio (Deus do Comércio) e Ceres (Deusa da Agricultura). Na Praça Azevedo Júnior, de frente para o porto, destaca-se a torre de quarenta metros de altura. Em cima da torre, um belvedere ornado de quatro estátuas que simbolizavam a Indústria, o Comércio, a Lavoura e a Navegação, em suas quatro faces, destacam-se grandes mostradores, que indicam a hora oficial. Sobre a cúpula, coberta de folhas de cobre, ergue-se um mastro para o hasteamento da bandeira. Já na parte central da Rua Frei Gaspar, aparecem arcadas decoradas de guirlandas de folhas e grãos de café, a cultura, a colheita e a venda do produto. A obra foi marcada pela diversidade de origem do material de construção, com cimento e ferros da Inglaterra, telhas e pisos da França, mármores da Itália, Espanha e Grécia e ladrilhos da Alemanha. O interior do prédio também é luxuoso e requintado: cristais belgas, bronzes franceses e mármores italianos. A entrada um hall de conversação que contava com um sistema de informações comerciais, a Caixa de Liquidação, Câmara Sindical de Fundos ção do café e sedes de firmas e exportadoras, já no terceiro piso, escritórios de intermediários, contando com cerca de trinta compartimentos. (MUNIZ Jr., http://www.novomileniun). Merece maior destaque o grande salão da Bolsa de Café, onde ocorriam os pregões, com a mesa do Presidente e seus Secretários ao centro, um círculo de cadeiras dos corretores e a galeria. No chão, mosaico de mármores e o vitral do teto “A visão de Anhanguera”, desenhado por Benedito Calixto6. Benedito Calixto de Jesus, pintor e historiador, nasceu em Itanhaém em 1853 e morreu em 1927, São Paulo. Morou a maior parte de sua vida, em São Vicente e ficou conhecido como marinhista e pintor de temas históricos. Começou a carreira como autodidata, mas conseguiu estudar na Academia Julian, em Paris. Dois anos após a morte de Calixto, seu amigo e colega do IHGSP, Júlio Conceição, realizou um levantamento de suas telas, das quais 28 quadros identificados como “desdobramentos da tela Santos de 1822”. (CONCEIÇÃO, 1929).

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Públicos e sede de firmas comerciais. No segundo andar, a Sala de classifica-

Visão de Anhanguera – vitral do teto da Bolsa do Café

Observa-se, de um lado, a representação Lavoura, com a Deusa da abundância e fertilidade. Ao centro, “A Penetração e Conquista do Sertão” ressalta o encontro do bandeirante com a mãe d’água e algumas ninfas, também as representações dos perigos enfrentados no desbravamento do sertão (cobras e jacarés). Do outro lado, a indústria e o comércio, com a presença da Deusa da ciência, a roda dentada como símbolo da indústria. Ao fundo do Salão do Pregão, um imenso painel, de Calixto, dividido em três partes, ao centro, a maior é composta por um tríptico central, que representa a Fundação da Vila de Santos (1545), nas laterais, o artista Imaginário e representações: entre fios, meadas e alinhavos

recriou a paisagem de Santos, em 1822 e em 1922.7 Em uma abordagem que pudesse reposicionar Santos e São Paulo na história nacional, o pintor acentuou as transformações urbanas da cidade, com ênfase para esses três momentos eleitos.8 Baseando-se em cautelosa pesquisa, Calixto esta-

beleceu sentidos históricos à cidade de Santos, dialogando por meio dos seus pincéis e de escritos como seus contemporâneos dos Institutos Históricos (SCHWARCZ, 1989, p. 45).

Os painéis foram pintados a óleo sobre tela de linho grosso. O painel central se constitui num tríptico e mede 9X3 m na parte do central e 2,8X3 m cada uma das laterais. ( ANDRADE, 1998, p. 12).

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Calixto foi membro do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo e também membro fundador do Instituto Histórico e Geográfico de Santos, centrou seus estudos sobre cidades litorâneas e sua colonização.

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Painel de Benedito Calixto na Bolsa do Café

A fundação da vila de Santos – 1545 Na tela central, Santos foi representada como um vilarejo com suas construções em obras: a Igreja da Misericórdia, a Casa do Conselho e a Capela de Santa Catarina. A pintura destaca a Fundação da Vila como uma celebração hierarquizada, com os personagens dispostos em sequência de subordinação: os vereadores, de “homens bons” e fidalgos, seguidos dos capitães, juízes e os religiosos, damas e outras matriarcas, aparecem também lanceiros e alabardeiros, mais atrás, os povoadores. À frente e em pé sobre a pequena plataforma

Os índios que aparecem em ambos os lados do painel são, na esquerda, prestando tributos e trazendo oferendas nativas, índios tupis e guaianazes; no lado direito, ainda presos ao trabalho escravo, segurando apetrechos de trabalho, os índios carijós. As demais figuras que aparecem no fundo são fidalgos, mulheres e operários. (FARIA, 1999, p. 120-133).

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que sustenta o pelourinho, símbolo do poder público e da justiça – Brás Cubas.

A obra buscou salientar a comunhão das raças e as hierarquias, ao acompanhar a proposta dos Institutos Históricos, Calixto se preocupou com a genealogia, realçando o poder político, religioso e administrativo, bem como a composição social da vila e das famílias. Nesse mesmo sentido, na moldura, ele colocou o nome de quatro donatários: no canto superior esquerdo, Martim Affonso de Souza, da Capitania de São Vicente; em segundo lugar, no mesmo lado, no canto inferior, a condessa de Vimieiro e da Capitania de Itanhaém; no canto superior direito, o marquês de Cascaes e Capitania de Santo Amaro; e, abaixo dele, no quarto canto, o marquês de Aracaty e Capitania de São Paulo.

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Santos 1822

Os dois painéis laterais também focalizam Santos, em contraste com

a tela central, nota-se a ausência de figuras humanas. À esquerda, Calixto

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recriou Santos no momento da Independência, em 1822. A cidade aparece como um pequeno núcleo a Oeste da ilha. O autor escolheu um ângulo superior, onde destacou a topografia, vista ampla do canal do porto até a Barra, os percursos das águas e dos caminhos, tendo como ponto de fuga o horizonte, o que possibilita notar a paisagem e a vegetação.

Para a representação 1922, escolheu um ponto de vista diferente – o morro do Pacheco, tendo a natureza como moldura. A representação, exceto pelo porto, pouco lembra uma cidade litorânea, mas acentua o traçado urbano planejado, quarteirões simétricos, com. ênfase para os edifícios: da Catedral, da Bolsa do Café, os Casarões Gêmeos, o porto e seus armazéns; sendo que o ângulo valoriza o porto exportador e não importador.

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Santos 1922

Nos quatro cantos da moldura, destacam-se os brasões alusivos ao Brasil Colônia, Brasil Império e Brasil República, elementos da fauna brasileira e as referências Artes e indústria, ordem e progresso, emblemas e frases de inspiração positivista. Calixto representou as dimensões temporais, configurando uma cidade mutante no tempo. Os momentos retratados apresentam cenas serenas, calmas, o que reforça certa organização social e urbanística. O equilíbrio visual é alcançado pelas três telas juntas, que se complementam. A Fundação da Cidade seria o ponto de partida de um processo evolutivo de Santos e da nação, do pequeno núcleo inicial, seguiu-se um “processo”, linear, regular, constante e progressista. O período das bandeiras, a busca pelos tesouros da terra, que levou às descobertas e à ocupação de território, teve como ponto de saída o litoral, tornando Santos o berço do país. No período seguinte – a Independência (1822) –, Santos foi um cenário especial com a participação dos Andradas no processo e passagem de D. Pedro pela cidade. O terceiro momento (1922), o de crescimento urbano, impulsionado pelo comércio do café e do porto, que possibilitaram o surgimento de cidade moderna, que não rompe com o seu passado, mas se torna credora dele.

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Santos: memórias, representações e imaginários As cidades constituem-se em territórios que condicionam múltiplas

experiências pessoais e coletivas. Sob a cidade fisicamente tangível, descortinam-se cidades análogas invisíveis, tecidos de memórias do passado, de impressões recolhidas ao longo das experiências urbanas. O porto de Santos torna-se um documento a ser lido pelo investiga-

dor, e propicia uma arqueologia urbana, quando se destacam as múltiplas experiências incluindo todo um esforço de recuperar os vestígios deixados, decodificar os significados destes emaranhados de monumentos, tempos, espaços e memórias, para recuperar as várias camadas e as relações entre elas, e decifrar seus vários enigmas.

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ELIAS, Norbert. O processo civilizador. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1994.

MUNIZ Jr., J. Histórias e lendas de Santos – Bolsa do Café – Um palácio para o Rei Café. In: < http://www.novomilenio.inf.br/santos/h0084a.htm.> Acesso em: 20/10/2010. PECHMAN, Robert Moses (org). Olhares sobre a cidade. Rio de Janeiro: UFRJ, 1994. ______. Cidades estreitamente vigiadas, o detetive e o urbanista. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2002. RAMA, Angel. Cidade das letras. São Paulo: Brasiliense, 1985. ROLNIK, Raquel. História Urbana: História na Cidade. In: FERNANDES, Ana; GOMES, Marco Aurélio. Cidade e história: modernização das cidades brasileiras nos séculos XIX e XX. Salvador: Faculdade de Arquitetura, 1992.

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SCHWARCZ, Lilia K. Moritz. Os guardiões da nossa história oficial. São Paulo: Vértice/Idesp, 1989. Série História das Ciências Sociais, nº 9.

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Fazer lembrar, fazer esquecer: imagens em comemoração da independência de Angola (2000) Nancy Alessio Magalhães Leandro Santos Bulhões de Jesus

Neste trabalho, abordamos a constituição de imaginários  entendidos como imaginação e como conjunto de imagens (in)visíveis na produção da memória e de narrativas da história, no livro Angola: o futuro começa agora, comemorativo dos 25 anos da independência de Angola (2000). Para isto,  interpretamos  os processos de instituição e constituição dessas imagens como proposta de modernidade e de inserção da sociedade mensões temáticas tratadas nesta publicação:  a concepção do  meio físico; as práticas político-sociais, como a guerra e constituição da nação; as práticas  concebidas como culturais,  como costumes e tradições. Thornton analisa a interação entre África e Europa, para discorrer, a seguir, sobre o papel dos africanos que foram viver em outros locais do Atlântico, em outras sociedades. Assinala que autores da historiografia dos idos de 1960, 70 e 80 buscaram conectar os antecedentes africanos dos afro-americanos na chamada cultura afro-americana, outros mais recentemente, focalizaram a religião. Mas, por outro lado, aponta, também, que frequentemente [...] especialistas não compreenderam com profundidade a dinâmica das sociedades africanas pré-coloniais... até bem recentemente suas afirmações sobre

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angolana no chamado mundo da globalização, considerando algumas di-

épocas antigas fundamentavam-se em suposição teórica ou no pressuposto de que a sociedade e a cultura africanas não haviam mudado.(THORNTON, 2004, p. 47).

O autor acrescenta, então, que outras leituras de documentos contemporâneos estão começando a contrabalançar essas tendências analíticas, a produzir outros resultados nos estudos africanos, sobretudo no campo da história social e cultural. É o caso de Henriques (2004a e 2004b), que vem estudando relações afro-portuguesas numa perspectiva de longa duração, e, em especial, no caso de Angola, os marcadores identitários angolanos. Neste quadro de interpretação, essa historiadora acentua como os angolanos aceitam a dinâmica da mudança, a ideia de uma identidade não estática, apropriando-se, seletivamente, das propostas do colonizador para reorganizar um território. Para se entender a história de Angola, Bittencourt salienta que os fatores étnicos e condicionamentos internacionais são fundamentais, os quais ele associa, em sua análise, a outras dimensões também explicativas, como a questão racial e o que denomina de “vínculos de solidariedade” (BITTENCOURT, 1999b, p. 13). Antes do século XIX, não existia Angola como se conhece hoje, assim Imaginário e representações: entre fios, meadas e alinhavos

como, entre outros, Nigéria, Moçambique, Senegal, que são desenhados no final desse século. A relação colonial de Portugal com essas terras é muito complicada;

em Angola, as regiões de Luanda, Malange e Benguela têm presença colonial portuguesa e mestiça (denominada por alguns estudiosos de hibridismo), ao contrário das demais, em que a presença do colonizador português é mais tardia. Os filhos da terra ou crioulos são nomes corriqueiros para nomear, “para identificar, uma camada específica localizada regionalmente e diferenciada tanto dos colonos quanto da massa africana rural” (BITTENCOURT, 1999b, p. 100). Este grupo teria se consolidado a partir do século XVII, principalmente em Luanda, restrito a pequena faixa do litoral, com portos para comércio de escravos, e com pequena inserção no rio Cuanza, na instalação de presídios, mercados e feiras. Crioulo é uma denominação

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que pode se referir a uma mestiçagem cultural, tanto pode ser negro, branco ou mestiço. “É a presença simultânea de elementos das culturas africana e europeia no seu comportamento... é sua capacidade de actuar nesses dois mundos e realizar uma interligação entre eles.” (BITTENCOURT, 1999b, p. 31 e 33). Com o aumento da imigração portuguesa, no final do século XIX, com os interesses desse grupo seriamente abalados, vão ocorrer contestações ao poder colonial por parte de intelectuais dessa cultura crioula, com pedidos de reforma no controle colonial, acesso aos postos administrativos, luta pela expansão do ensino, pois o acesso à educação sempre foi um dos diferenciais desse grupo, em relação aos demais. Há periódicos da imprensa em Angola, em 1870, criados e produzidos por essa camada da população. São tribunas de demarcação entre ela e os chamados indígenas. O que marca esses indivíduos é a cultura, o vestuário, os costumes: “somos negros, mas somos educados”.1 Nesse contexto, no livro comemorativo aqui considerado, é destacada a importância da formação de uma elite: Durante os séculos XVIII e XIX ...Angola teve assim de continuar a manter o seu título de ‘mina da escravaria’ e o seu papel de fornecedora de escravos para Contraditoriamente, ao mesmo tempo que se multiplicam as revoltas contra o comércio de escravos por parte de alguns sobados independentes e dos estados africanos do planalto (que só serão relativamente pacificados mais de um século depois), uma elite económica de origem africana vai-se firmando com base neste mesmo comércio (ANGOLA, 2000, p. 28-29)2.

A imagem visual (ANGOLA, 2000, p. 29) parece nos devolver um olhar misto de perplexidade, dor, resignação e força de altivez diante da opção pelo comércio de escravos em Angola. Parte deste texto pode ser consultado em MAGALHÃES, 2010 e 2009.

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No livro aqui interpretado, não se registram créditos - autoria, local e data - das imagens nele

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reproduzidas, assim como não há legendas na maior parte destas imagens. Ao longo deste nosso artigo, quando citamos textos escritos e/ou imagens visuais deste livro, registramos a denominação genérica ANGOLA e o n. da página entre parênteses e, fora deles, a legenda, caso ela seja registrada.

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Imaginário e representações: entre fios, meadas e alinhavos

as plantações brasileiras.

Escravos angolanos para o Brasil (ANGOLA, 2000, p. 28-29).

Até 1970, Luanda era praticamente administrada por esses filhos da terra, que haviam estudado nas universidades em Portugal. Parte dos líderes dos movimentos de independência de Angola - em Luanda, Malange e Benguela - pertenciam a esse segmento social e, pela instrução, construíram projetos em contato com perspectivas do nacional, isto é, em respeito às

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fronteiras coloniais como nacional. È significativo o que é registrado no livro aqui em tela: “A conferência

de Berlim, em 1985, estabeleceu o direito público colonial e tratados entre Portugal, a França, o Estado Livre do Congo (Belga), a Grã-Bretanha e a Alemanha definiram as fronteiras actuais de Angola”(ANGOLA, 2000, p. 29). É a manutenção destas fronteiras que vai ser sublinhada, na publicação aqui tratada, como evidência de legitimidade do poder exercido por essa elite, que teria, assim, garantido a existência de uma sociedade angolana, como veremos adiante. Nas demais regiões, essa camada social, praticamente, não existia e o

comércio exterior era controlado pelos próprios nativos locais; os movimentos de independência buscavam instituir projetos que não tinham um caráter nacional e sim local, religioso e regional, segundo Bittencourt. Esta confrontação intestina de projetos (BITTENCOURT, 2002) vai se dar na guerra da independência, quando se enfraquece o FNLA-Frente Nacional de 166

Libertação de Angola, e se tornar mais aguda no período pós-independência, em que passam a se digladiar o MPLA-Movimento Popular de Libertação de Angola-, vencedor do embate daquela guerra, e o UNITA-União Nacional para a Independência Total de Angola, dissidência do FNLA. São movimentos de base de apoios distintos. O MPLA foi também a principal referência para os angolanos exilados na Europa ou cursando universidades em Portugal... Dessa forma, tornou-se o movimento de maior amplitude nacional, no que diz respeito à origem social e étnica de seus militantes, e também de diversidade racial (BITTENCOURT 1999a, p. 93).

Segundo ainda Bittencourt, as guerras pela independência de Angola, de 1961-1974, assim como a guerra civil de 1975-2002 são guerras em português, o que, historicamente, pode ser encarado como um dos desdobramentos possíveis daquela busca de ser reconhecido como civilizado, por meio da educação formal, desde a época do domínio colonial português. Assim, em processos narrativos neste livro comemorativo da independência de Angola, interpretamos dimensões e possibilidades de como se exnum contexto histórico de guerra em Angola, de intensa turbulência, que significa viver, na fronteira, o risco permanente da perda (CUNHA, 2006, p. 19). A luta contra o esquecimento, perene ameaça, pode levar qualquer narrador a construir e ampliar seus sentidos de pertencimento, a enfrentar o tempo, projetando-o e modelando-o segundo sua experiência em linguagens, tal como acentuou Benjamin (1987). Em decorrência, não há como distinguir qual seria o formato apropriado para que uma narrativa se mostrasse como um legado a demais gerações (MAGALHÃES, 2011). A luta contra o colonialismo português é apontada, nesse material comemorativo, como algo que acompanha as relações entre portugueses e angolanos desde o início do contato entre estes povos. As resistências à ocupação portuguesa são definidas como uma “tradição de quatro séculos”. Assim, o processo de independência é ampliado para um tempo muito anterior à luta armada, organizada politicamente na segunda metade do século 167

Imaginário e representações: entre fios, meadas e alinhavos

põem e/ou se deslocam projetos angolanos numa ou de uma lógica binária,

XX, pois, na narrativa construída nesse livro, desde sempre, os conflitos já teriam como característica “o desejo incontido de liberdade, da afirmação e da convicção férrea da capacidade do Povo para conquistar a Independência” (ANGOLA, 2000, p. 46). Há, portanto, uma significativa atenção dada ao movimento de contestação da presença portuguesa em solo angolano, o que sugere uma concepção de linearidade automática da luta de libertação, do processo de independência, passado que, como tal, assim, até hoje, justificaria o presente. Isso porque apenas um projeto de contestação e manifestação popular é legitimado (o da não-aceitação da dominação e expulsão dos portugueses), enquanto outras dinâmicas, construídas ao longo dos séculos nas relações colonizador/colonizado, não são lembradas. A legitimidade da independência é, inclusive, situada como passível de aceitação para além do território e das experiências angolanas. Nesta trilha, o chamado “fervor nacionalista” era traduzido nas intensas campanhas de denúncias contra o projeto colonial, realizadas por países estrangeiros, figurados em intelectuais como Jean Paul Sartre, Simone de Beauvoir, François Mauriac, Diego Rivera, Louis Aragon etc. (ANGOLA, 2000, p. 57). As atrocidades cometidas pelo poder colonial e suas inúmeras consequências, Imaginário e representações: entre fios, meadas e alinhavos

como o aumento de refugiados angolanos nos Congos, Zaire e Zâmbia originavam movimentos de solidariedade em diferentes partes do mundo. Sugerir que há uma tradição de quatro séculos de unidade da luta

anticolonial, seguida da ideia de que uma elite africana, enriquecida pelo tráfico de escravos e pelo comércio, seria a base desta luta, configura uma narrativa que situa a constituição da independência da nação angolana como algo linear e processualmente mecânico, que deve ser lembrado no presente, numa memória comemorativa, “numa espécie de culto ao passado” (GAGNEBIN, 2009, p. 103). Muitas das grandes famílias africanas que se haviam constituído um século antes começam então a perder progressivamente o seu poderio económico, e é significativo que alguns dos seus descendentes tenham sido dos primeiros a envolver-se na fase moderna das lutas de libertação, a partir dos anos 60, ocupando hoje lugares chave no sistema político e económico que se seguiu

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à proclamação da Independência em 11 de novembro de 1975 (ANGOLA, 2000, p. 30).

Essa forma de entender a história privilegia processos que se explicariam pelo passado próprio da sociedade angolana e por uma assim concebida sucessão automática de acontecimentos. Nesta esteira, um destaque e lugar privilegiado na história é concedido a uma elite que continuaria no poder atual, seu lugar, portanto, de direito, por seu empenho, luta e sacrifício pela independência de Angola e por sua preservação. É importante ressaltar que são instituídas imagens, prenhes de sentidos e significados em aberto, tanto nos textos escritos, como nos vários registros visuais aí inseridos. Na sequência desta discussão, estamos diante de cenas

Mercado Roque Santeiro-Luanda (ANGOLA, 2000, p. 32).

A situação de pobreza de grande parte dos que vivem em Angola seria apenas uma questão derivada da experiência colonial? Nesse livro, é lembra169

Imaginário e representações: entre fios, meadas e alinhavos

visuais de pobreza, falta d’água, do Mercado do Roque Santeiro.

da a complexa contradição de que “num território potencialmente dos mais ricos do continente africano, com petróleo, diamantes, minerais estratégicos, madeiras, peixe, terras férteis... recursos hídricos etc, etc., cerca de 70% da população viva ainda abaixo do limiar da pobreza...” (ANGOLA, 2000, p. 34). Porém, ao mesmo tempo, logo em seguida, argumenta-se para tentar justificar este alto custo humano e social: E, no entanto, Angola conseguiu até aqui o que parece ser essencial, ou seja, conseguiu preservar a independência, manter a integridade territorial, lançar as bases de um Estado Democrático de Direito e garantir a unidade e consciência do seu povo em torno de um projecto nacional, apesar de todas as agressões e de todas as acções de desestabilização que sofreu nestes últimos 25 anos (ANGOLA, 2000, p. 34).

Como desde a independência Angola tem sofrido invasões e agressões ante aos interesses de outros grupos e países, como é o caso da África do Sul, do Zaire e dos Estados Unidos, além, é claro, da UNITA, em próprio solo angolano, é ressaltado que, apesar de tudo isto, há um mérito na aceleração da unidade nacional e na conclusão da chamada “destribalização”. Nas pala-

Imaginário e representações: entre fios, meadas e alinhavos

vras registradas no livro aqui em tela: A longa guerra de libertação nacional (1961 – 1974) e as guerras que seguiram à Independência do país, apesar dos dramas e do cortejo de horrores que lhe estão associados, tiveram pelo menos o mérito de concluir a já avançada destribalização do país, fazendo circular (forçadamente, nalguns casos) povos de todas as etnias e regiões pelo país inteiro e acelerando a sua integração num todo nacional reconhecível nos seus principais símbolos – a bandeira, o hino, a unidade monetária comum – e até mesmo na língua oficial portuguesa. (ANGOLA, 2000, p. 40).

É pertinente trazer aqui argumentos que problematizam essa delicada

questão: Lembremos também que o sentimento de pertença étnica não deve impedir o indivíduo de se apresentar como angolano. A construção da nação angolana deve necessariamente implicar a absorção dessas particularidades. O que difi170

cultou esse tipo de percepção aglutinadora de referências parece ter sido não só a guerra, mas também o comportamento por parte do MPLA na pós-independência, quando a construção da nação passou a implicar o fim das etnias. É bem verdade que as orientações do partido sobre este tema foram alteradas em fins da década de 80, mas ainda hoje se mantém a necessidade de serem ultrapassados antigos obstáculos....(BITTENCOURT, 2000, p. 168-169).

Assim, não é por acaso que o leitor é convidado, nessa obra, a refletir sobre quem são homens e mulheres de Angola, em imagens visuais, entre as quais inserimos duas a seguir (ANGOLA, 2000, p. 39,41), e em textos escritos, em que pode se perceber esta acima aludida tentativa de considerar Angola como “um país pluri-étnico e multicultural (‘uma Nação de várias nações’, como a definiu o poeta Agostinho Neto, primeiro presidente da

Hoje já ninguém questiona a existência da tão apregoada ‘angolanidade’, que mais não é do que a consciência de pertença a um todo nacional, seja numa base histórico-cultural, simbólica ou simplesmente afectiva, que implica não só o respeito pelo património comum e pelos valores, crenças e princípios da maioria dos cidadãos, mas também o respeito pela identidade e a valorização de todos os grupos parcelares que compõem a Nação angolana e suas respectivas culturas. (ANGOLA, 2000, p. 41).

O tema da constituição da nação angolana vai aparecer mais uma vez, agora, revestido por um imaginário singular: os benefícios da longa guer171

Imaginário e representações: entre fios, meadas e alinhavos

República independente).”

ra. Se os mais de quarenta anos seguidos de confrontos armados, mortes, mutilações, comunidades tradicionais, fome, sede, dentre outros desdobramentos dos conflitos bélicos, serviram também para unir o povo, e, ainda, provaram, assim, que Angola “pode ser um decisivo factor de estabilidade em toda região Central e Austral de África” (ANGOLA, 2000, p. 37l), como seria possível menosprezar este acontecimento? Fica bastante claro, nesse livro, o desafio dos angolanos em compartilhar incisivamente com os tempos de um mundo dito globalizado, afinal, as perspectivas lineares do historicismo sempre os situavam numa condição de atraso. Após o título “O futuro começa agora”, o presidente José Eduardo Santos (desde 1979 no poder) inicia o texto que, praticamente, apresenta o livro. Depois de estabelecer um marco para as guerras de “quase quarenta anos”, lamenta os prejuízos e consequências no campo social e econômico no país e, em seguida, assume o desejo de paz e progresso, pois, naquele contexto, ano 2000, a nação ainda vivia em estado bélico. O governo angolano estaria desenvolvendo “acções concretas para alargar a todo país um clima de segurança, para reconciliar os angolanos, para estabilizar a economia e para dar solução aos ingentes problemas das populações.” (ANGOLA,

Imaginário e representações: entre fios, meadas e alinhavos

2000, p. 07). Continua: Um país que se pretende moderno e atento aos actuais rumos da globalização precisa se inserir na economia mundial, criando as condições para atrair novos investimentos que, além de gerarem empregos e rendimentos, vão aumentar a oferta de produtos e estimular mais riquezas – um ciclo fundamental para consolidar a base econômica e o sistema de produção. A globalização está a estimular o crescimento económico e abrir oportunidades a milhões de pessoas em todo o planeta. O aumento do comércio, as novas tecnologias, os meios de comunicação ligados à Internet, tudo isso oferece um enorme potencial para a criação de riqueza e a erradicação da pobreza no mundo. Um país como Angola, de tantas riquezas humanas e naturais, não pode manter-se à margem deste processo (ANGOLA, 2000, p. 07).

Há, ao longo desse livro, uma ausência de perspectiva que coloque em

questão esse pressuposto de universalismo nos benefícios da tecnologia, da

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internet, na extensão de oportunidades e na erradicação da pobreza no mundo, porque se trata de uma concepção naturalizada da cultura, da economia, da política, da sociedade humanas. Nela, dificilmente caberiam as diferenças históricas, as experiências com que homens e mulheres de carne osso encontraram e encontram para lidar com suas vidas, adversidades e seus projetos de elaboração de relações entre passado, presente e futuro. Podemos observar, na voz do presidente, a importância de não se perder de vista a constituição multifacetada e potencialmente aleatória do devir das experiências dos angolanos, de um futuro que estaria para começar (“O futuro começa agora!”). Parece posto um desafio de se ter que negociar constantemente a produção de sentidos que se procuram atribuir aos acontecimentos, de esconjurar um destino incerto, por meio de programas, senão mesmo visões do futuro...mobilizar ou canalizar energias e esperanças...O clima afectivo gerado pelos factos revolucionários, bem como os avanços e recuos do medo e da esperança, animam necessariamente a produção dos imaginários sociais...O futuro abre-se, assim, como um enorme estaleiro de sonhos sociais...As imagens, glorificantes ou acusadoras, dos acontecimentos e das forças em presença combinam-se com os conflitos e as estratégias, iluminado-os e ocultando-os

O sentimento de pertença a um grupo étnico pode apresentar-se como o último refúgio para os inúmeros expropriados da simples possibilidade de obter melhores condições de vida [ CLARENCE-SMITH, 1986 ], dada a situação de carência generalizada devido ao longo período de guerras. O indivíduo que não consegue acompanhar as mudanças impostas pelo novo sistema vigente no país agarra-se para não se sentir abandonado, aos valores antigos, com a referência étnica passando a ser uma possibilidade de afirmação social.( BITTENCOURT, 2000, p. 168).

Trabalhamos com a hipótese de que imagens-conteúdos, que selecionamos dentre as várias materializadas em escritos e visualidades nessa obra analisada, são instituintes de esquecimentos, para que certa concepção deva ser lem-

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Imaginário e representações: entre fios, meadas e alinhavos

simultaneamente. (BACZKO, 1985, p. 320-321).

brada: de que há uma naturalidade imanente na, assim, imaginada integração entre diferentes grupos étnicos na sociedade angolana, o que garantiria continuidade de tradições, entre elas a soberania da nação e do estado angolano. Todavia isto não se constitui num dado adquirido para todo o sempre, pode diluir-se ou consolidar-se ou transformar-se ao longo de processos históricos, o que não significaria, necessariamente, uma perda total de referências. É o que parece sugerir a imagem silenciosa de um imbondeiro, na abertura deste livro, sem legenda nem comentários escritos. Elemento ativo da africanidade, é considerado por muitos a árvore da vida. Inegavelmente, misteriosa, mas sempre solene, em Angola, é uma árvore que, em geral, não pode ser derrubada, e não há quem não se impressione que, na idade adulta, mesmo com sua aparência fossilizada, esteja plena de vida. Além de marcar a paisagem costumeiramente árida, pode remeter a outros significados e, por isso, quase sempre se multiplica em diversos imaginários, podendo guardar espíritos, servir de alimento, fornecer fibras e, por sua longevidade, abrigar testemunhos

Imaginário e representações: entre fios, meadas e alinhavos

de acontecimentos históricos, de sabedorias abertas a infinitas interpretações.

Imagem (ANGOLA, 2000, p. 8).

Assim, por meio de outros diálogos entre estes escritos e imagens vi-

suais, podem-se criar outras versões da história de Angola, movimentando imaginários, interesses e projetos de (re) apropriação de tempos e espaços, 174

como dimensões da memória, demandas do presente e legados para gerações futuras.

Referências ANGOLA. O futuro começa agora. Tradução de Jean Pailler. França: República de Angola, 2000. 173 p. Em português, francês e inglês. Inclui 2 CDs de músicas angolanas. BACZKO, Bronislaw. Imaginação social. Enciclopédia Einaud. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1985. v.5. p. 296-332. BENJAMIN, Walter. Experiência e pobreza. In: ­­______. Obras escolhidas. Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história da cultura. Tradução de Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1987. v.1. p. 114-119. ______. O narrador. Considerações sobre a obra de Nicolai Leskov. In: ­­______. Obras escolhidas. Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história da cultura. Tradução de Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1987. v.1. p. 197-221.

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Imaginário e representações: entre fios, meadas e alinhavos

______. Sobre o conceito da História. In: ­­______. Obras escolhidas. Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história da cultura. Tradução de Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1987. v.1. p. 222-232.

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Imaginário e representações: entre fios, meadas e alinhavos

THORNTON, John. A África e os africanos na formação do mundo Atlântico. (14001800). Rio de Janeiro: Campus, 2004.

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Territorialização e papéis de gênero: o caso do Reassentamento Córrego Prata (TO) Temis Gomes Parente

Introdução O presente artigo tem como objetivo analisar a vivência de mulheres do Reassentamento Córrego Prata, após o enchimento do reservatório, que se formou com a construção da Usina Luís Eduardo Magalhães, no Rio Tocantins, no município de Porto Nacional (TO). A construção dessa usina após sua criação pela Constituição Federal de 1988 e consequente divisão de Goiás. Como projeto de grande escala, a usina está concatenada com a política desenvolvimentista planejada especialmente para a região Norte e, neste caso, em particular, para o Estado do Tocantins, que não só passou a integrar essa região, mas também a Amazônia Legal. Com a criação do novo estado, tornava-se necessário implantar uma infraestrutura para colocar em prática as políticas de desenvolvimento que visavam minimizar as disparidades regionais do Brasil. Com esse discurso, o Estado do Tocantins, desde a sua criação, vem sofrendo transformações com as construções de grandes empreendimentos planejados para a região, dentre eles, as hidrelétricas. Para o Rio Tocantins, estão planejadas nove hidrelétricas; destas, seis estão no Estado do Tocantins, três já estão em funcionamento (Luís Edu177

Imaginário e representações: entre fios, meadas e alinhavos

está diretamente relacionada às mudanças ocorridas no Estado do Tocantins

ardo Magalhães, Peixe Angical e São Salvador), uma em fase de construção (Estreito) e duas em processo de licenciamento (Impueieras e Tupiratins). Esses grandes empreendimentos, além de acarretar impactos ambientais, desestruturam os modos de vida das pessoas que antes viviam às margens dos rios. Com a construção das hidrelétricas, os rios se transformam em reservatórios de água de grande extensão. Os impactos causados por esses empreendimentos foram e ainda são largamente estudados em todas as áreas,1 pois afetam diretamente o ambiente em que viviam os ribeirinhos. Transferidos compulsoriamente para outras localidades, eles se veem obrigados a, bruscamente, abandonar sua forma de viver; na grande maioria das vezes, sem poder sequer decidir onde vão construir suas novas moradias. Antes, porém, de chegar a esse estágio – de transferência dos ribeirinhos –, os consórcios responsáveis pelas construções desses empreendimentos fazem uso de algumas estratégias. A primeira diz respeito à forma como se dá a desapropriação, quando se utilizam mecanismos para minimizar os usos que essa população faz da água e de todas as atividades econômicas e sociais preexistentes ao projeto, sendo reconhecidas como atingidas somente aquelas pessoas que possuíam direito à terra. Como segunda estratégia, Imaginário e representações: entre fios, meadas e alinhavos

valendo-se da desinformação da população, os consórcios divulgam informações por intermédio da mídia, expondo os benefícios que o empreendimento vai trazer para os moradores da área, para o local, para a região e mesmo para o país. Essas informações seguem uma série de etapas sem que a população ribeirinha se dê conta do fato. Finalmente, a negociação, sempre feita individualmente – estratégia de que as empresas lançam mão. Convém esclarecer que, com os vários questionamentos apontados pe-

los movimentos sociais, houve uma ampliação do conceito de atingidos, que passou a abranger as populações indígenas, as minorias étnicas, os camponeses, os ribeirinhos e outros grupos que tivessem direito informal à terra e a outros recursos expropriados pelo projeto. Esses atingidos deviam ser res A título de exemplo, no Mestrado de Ciências do Ambiente da Universidade Federal do Tocantins, 70% dos trabalhos acadêmicos têm como objeto o Reservatório do Lajeado, formado pela construção da Usina Luís Eduardo Magalhães.

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sarcidos adequadamente com terra, infraestrutura e outras compensações. Assim, a ausência de título legal de propriedade não deveria ser utilizada para negar compensação e reparação a tais grupos. É nessa categoria que estão incluídas muitas famílias do Reassentamento Córrego Prata. Elas não eram proprietárias das terras que seriam alagadas, mas, a partir da mobilização política que empreenderam, tais grupos tiveram direito a um lote de terra no local escolhido pelos consórcios para reassentar os atingidos. Com base nessas reflexões iniciais, este artigo vem explorar as razões pelas quais as famílias que hoje vivem no Reassentamento Córrego Prata2 não tomam consciência, ou não veem como negativos os impactos causados pela construção da Usina e pela consequente formação do reservatório, porque, para elas, foi-lhes dada a oportunidade de adquirir legalmente um lote de terra. Esse processo vem a ser o que aqui denominamos como “territorialização”, porque as pessoas se instalaram numa terra designada de sua. E isto foi possível graças à militância dos atingidos pelos reservatórios, que expandiu os limites de conquistas, para além dos proprietários de terras nesses espaços.

Abordar o processo de territorialização enfrentado pelas mulheres do Reassentamento Córrego Prata é, de certo modo, percorrer um caminho inverso ao de outras mulheres cujas trajetórias acompanhei em pesquisas anteriores (PARENTE, 2005a, 2005b, 2005c, 2006a, 2006b, 2006c, 2007a, 2007b, 2008). É percorrer a situação que essas mulheres vivenciaram com o deslocamento compulsório a que foram submetidas pela formação do Reservatório do Lajeado, tendo a oportunidade de iniciar o processo de territorialização. É trilhar por outros caminhos que levam a outras leituras sobre É importante chamar a atenção sobre o fato de que todas as pesquisas que fiz a respeito dessa temática, em outros reassentamentos do mesmo empreendimento, cujos resultados encontram-se publicados em revistas e capítulos de livros, destoam do que ora apresentamos. Isto porque, nas outras investigações, toda a população pesquisada sentiu que os impactos, por sua forma compulsória, atingiram negativamente, de um modo ou de outro, seus modos de vida.

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Imaginário e representações: entre fios, meadas e alinhavos

Entendendo a dinâmica de territorialização

os impactos causados por grandes projetos desenvolvimentistas, colocados em prática nos últimos trinta anos no Brasil e no Estado do Tocantins, especificamente, depois da divisão do Estado de Goiás. Assim, no momento em que as famílias foram transferidas para o Reassentamento Córrego Prata, iniciava-se o processo de territorialização, pois, daquele momento em diante, elas teriam um referencial, um lugar, um espaço onde poderiam trabalhar e extrair dali sustento para suas famílias, o que antes não ocorria porque se encontravam presas às dinâmicas das constantes mudanças de território de trabalho, pois não tinham terras para se fixar. Devo reconhecer que meu entendimento de territorialização fundamenta-se na noção de território de Félix Guattari e Suely Rolnik (1996). Para esses estudiosos, territorialização é sinônimo de apropriação, de subjetivação fechada sobre si mesma. Trata-se de um conjunto de projetos e representações em que se vai desbocar, pragmaticamente, toda uma série de comportamentos e investimentos nos tempos e nos espaços sociais, culturais, estéticos e cognitivos. O território ainda é um ato, uma ação, uma rel-ação, um movimento que se repete e sobre o qual se exerce um controle (HAESBAERT, 2006, p. 127). O processo de territorialização das famílias do Reassentamento Córrego Imaginário e representações: entre fios, meadas e alinhavos

Prata é, portanto, entendido, neste trabalho, “como fruto da interação entre relações sociais e controle do/pelo espaço, relações de poder em sentido amplo, ao mesmo tempo de forma mais concreta (dominação) e mais simbólica (um tipo de apropriação)” (HAESBAERT, 2006, p. 235). Para a população desse reassentamento que aqui discutimos, tratava-se da oportunidade única de mobilidade, ou, em outras palavras, de migrar, de poder ter garantido uma espécie de “capital espacial” frente àqueles que foram “desterritorializados”, como entendemos ser o caso dos proprietários das terras que foram alagadas. Essa concepção reflete o valor que a sociedade contemporânea dá ao movimento, à fluidez, à ideia ou à perspectiva de mudança. Mais do que isso, à possibilidade de acessar e/ou acionar/recriar diferentes territórios (HAESBAERT, 2006, p, 251).

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Aspectos geográficos e demográficos do Reassentamento A Usina Luís Eduardo Magalhães está localizada a 65 quilômetros de Palmas, a capital do estado, e a 150 quilômetros de Porto Nacional. O lago formado pelo reservatório perfaz uma extensão de 750 km², abrangendo os municípios de Miracema, Lajeado, Palmas, Porto Nacional e Brejinho de Nazaré. É na extensão desse lago que antes residia a população ribeirinha que foi, compulsoriamente, remanejada para outras localidades, muitas das quais foram morar em reassentamentos planejados pelo consórcio da empresa responsável pela construção da usina. O total dessa população remanejada em decorrência da formação do lago foi de 4.777 famílias (SILVA JR, 2005, p. 25), cuja grande maioria foi deslocada para o município de Porto Nacional, que passou a concentrar oito reassentamentos rurais (Brejo Alegre, Córrego Prata, Flor da Serra, Luzimangues, Mariana, Oleicultores, Pinheirópolis Rural e São Francisco de Assis). Quando o projeto do Reassentamento foi elaborado, o número de famílias que ali residiam era de 91 reassentadas e 82 permutadas.3 A área média por família reassentada era – e continua sendo – de 4 hectares. Essas famílias urbanas. São construídas com tijolos, cobertas por telhas e providas de água encanada e energia elétrica. Alguns elementos rurais foram preservados, como o paiol com fogão caipira. Segundo o Diagnóstico agronômico, econômico e social do Reassentamento Córrego Prata, as famílias remanejadas para aquele local são formadas por antigos moradores de fazendas localizadas no entorno de Palmas e Porto Nacional, ainda por alguns trabalhadores vindos de povoados ribeirinhos, que exerciam atividades de lavradores, olericultores, caseiros, vaqueiros e formadores de chácaras em propriedades alheias. Estes, portanto, não possuíam terras e, a princípio, não teriam direito à indenização consequente pela formação do reservatório. Mas, com a intervenção do Movimento de Consideram-se reassentadas as famílias que não eram proprietárias de terra; permutadas são aquelas que, por terem terras às margens do rio, receberam o equivalente no reassentamento.

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Imaginário e representações: entre fios, meadas e alinhavos

moram em casas padronizadas de tamanhos variados, com características

Atingidos por Barragens (MAB), essas famílias entraram no processo de compensação indenizatória adotado pela empresa responsável. Vale lembrar que o MAB se apropriou da experiência das reivindicações indenizatórias exigidas pelos impactados das hidrelétricas de Salto Caxias, no Paraná, e de Serra da Mesa, em Goiás.

As várias pesquisas com os atingidos Este artigo, ao mesmo tempo que apresenta resultados de uma pesquisa mais ampla,4 é uma continuação do projeto desenvolvido junto à população diretamente atingida pela formação do reservatório do Lajeado e tinha como objetivo entender o processo de desterritorialização das mulheres do Reassentamento Pinheirópolis Rural, também compulsoriamente reassentadas devido ao enchimento do lago do Lajeado. Nessas outras pesquisas, elegi como sujeito as mulheres, por entender terem sido elas as que mais sofreram com o processo de desenraizamento, de desterritorialização. Além de terem perdido o seu referencial material, o seu “lugar de memória”, também viram os laços partidos de amizades com os antigos vizinhos, com as comadres, com os afilhados. Esses laços eram fruto da proximidade de muitos anos Imaginário e representações: entre fios, meadas e alinhavos

de convivência. Ao pesquisar, fui movida pelo desejo de entender os sentimentos de angústia daquelas mulheres ao surgir os rumores de que suas casas, seus “pedaços de terras”, com suas plantações – muitas vezes, suas únicas fontes de renda –, ficariam submersos pelo lago que se formaria. Interroguei, também, sobre o que aquelas mulheres sentiram quando tiveram a certeza de que sairiam de suas casas, bem como sobre a insegurança e a aflição advindas por não saberem onde morariam, onde se localizariam as suas novas casas e como seriam. Analisei, ainda, as lembranças de outrora: as moradias rústicas, sem água encanada, com animais domésticos em seus grandes quintais, parecidos com “roça”, tudo perpassado pelas lembranças dos seus ancestrais. Naquela pesquisa, por meio das memórias das mulheres, Todas as pesquisas foram financiadas pelo CNPQ; esta, em específico, é da bolsa de produtividade.

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tentei revisitar suas histórias de vida, antes que elas desaparecessem como suas antigas moradias.5 A proposta inicial desta pesquisa seria levar para outro lócus (Córrego Prata) as mesmas inquietações sobre o processo de desterritorialização analisadas no Reassentamento de Pinheirópolis Rural, mas, ao chegar ao Córrego Prata, percebi que as falas e relatos que me chegavam destoavam das interpretações temáticas e conceituais, das minhas pesquisas anteriores e até mesmo de outras constantes na literatura específica. Muitas famílias ali reassentadas atribuíam à formação do reservatório a única oportunidade de conseguir um “pedaço” de terra e, portanto, não se sentiam impactadas de forma negativa. Nesse momento, fui eu que me senti desterritorializada, por ter minhas certezas abaladas, certezas estas que, até então, se encontravam alicerçadas pelas minhas pesquisas anteriores. De certa forma, perdera meu “chão”. Tive, portanto, de “abandonar” todas as convicções anteriores e colocar em prática o que Deleuze e Guattarri (apud HAESBAERT, 2006, p. 130) afirmam sobre o ato de pensar. Para eles, pensar é desterritorializar. Isto denota que, para entender as vivências cotidianas das famílias do Reassentamento Córrego Prata e criar algo novo, tive de pensar, juntamente com essas mulheres, o que elas sentiram com a mudança para as novas moradias, mentos (de que o deslocamento compulsório de famílias sempre traz impactos negativos). A partir de então, logo entendi que o pensamento se faz no processo de desterritorialização, para poder construir outro territórios. Foi o que fiz. Afinal, para aquelas famílias, os impactos foram positivos em todos os sentidos, porque elas adquiriram estabilidade de moradia, maior segurança para educar seus filhos e mesmo o fortalecimento de papéis tradicionais de gênero. E vi que as mulheres são as que mais se reportam a esses aspectos, reafirmando a perenidade de suas situações, pela conquista da terra, bem como ficam acentuadas as distinções das relações de gênero.

Ver resultados dessa pesquisa em Parente (2006c, 2007a e 2008).

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despindo-me de certezas adquiridas de outras leituras, de outros conheci-

O valor da história oral na pesquisa Ao tentar então redirecionar meu olhar, resolvi buscar, por meio da história oral, o porquê da especificidade daquele Reassentamento. Só assim, a história dessas mulheres e desses homens seria representada pela experiência de indivíduos específicos. Nessa modalidade do fazer da história, os(as) narradores(as) articulam memória, avaliando e construindo relatos, em diálogos com entrevistadores(as), que estão procurando elaborar uma estrutura mais ampla utilizando a vivência de famílias que foram submetidas a processos de remanejamento, muitas vezes, submersos em conflitos complexos de desapropriação e desterritorialização. Em outros, porém, como no do Reassentamento em estudo, identifiquei realidades diferentes. Assim, a história oral é uma metodologia que focaliza o encontro entre a história e as vidas dos entrevistados, entre mundos privados (neste caso, das mulheres) e eventos de interesse geral (as construções de grandes hidrelétricas e a complexidade que essas construções demandam). A história oral é também uma oportunidade para narradores relativamente obscuros serem canonizados no discurso público, pois constitui um relato público realizado por pessoas que raramente têm a oportunidade de falar publicamente Imaginário e representações: entre fios, meadas e alinhavos

(PORTELLI, 2010, p. 186). Foi a partir da história oral e da análise das narrativas das entrevistadas

que pude buscar entender o processo de territorialização e o que representa para aquelas mulheres estar naquelas novas moradias. É o que se pode observar nas narrativas de duas reassentadas conforme apresentamos a seguir: Na época, nós, caseiros, não tínhamos direito a nada, [...] Com o passar do tempo, eles foram vendo que aquelas famílias iam vir para a rua, ia ter que vir pra rua porque não tinham pra onde ir. Tinha que ter casa, tudo bem... Quem não tinha como nós, que era uma família que não tinha casa e lugar nenhum, ia terminando indo pra rua, como foram muitas famílias. Umas procuravam serviço, mas outras famílias, rapazes, jovens ou mocinhas ia terminar se prostituindo, roubando, se drogando. Então eles viram que não era bem aquele lado. Aí deram três opções pra gente: [...] escolher uma chácara; ou 5 mil reais em dinheiro, na época; quem mexia com horta era 10 mil reais. Também

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tinha uma casa na rua se a gente optasse por uma casa na rua. Nós optamos pela chácara porque, se a gente optasse pelos 5 mil reais, não ia dar pra comprar uma quitinete pra gente, ou um lote sequer pra fazer uma quitinete. [E] a gente com três filhos pequenos – na época, o meu menino [...] tava com 2 anos –, aí o dinheiro não ia dar pra nada. A gente ia pegar a casa na rua, [mas] a casa ia ser pequena, o lote muito mais. [E] a gente desempregado, não tinha emprego nenhum. Então o que ia fazer? Aí meu esposo pegou, nós sentamos e conversamos [sobre] o que a gente ia decidir. Decidimos pegar a chácara; a terra não é boa, é só areia, mas a gente planta com bastante adubo, zela bem, dá, dá pra gente sobreviver. E é de onde a gente tá tirando, tá sobrevivendo daqui. Nem eu nem ele temos emprego fora, nós não temos renda nenhuma, a única renda que nós tiramos é daqui de dentro, do nosso suor. A mudança pra mim foi muito boa, eu gostei, gosto, [mas] eu sinto saudade de lá, do local onde a gente morava.6

A outra reassentada, Dionísia Pereira Lima, relata na sua entrevista realizada no dia 22 de maio de 2008: Nasci e me criei na roça e vivo até hoje. Hoje é o momento mais feliz que eu tenho, de roça por mais que eu produza pouco, [mesmo] passando por todas as dificuldades que a gente enfrenta, mas o pedacinho de terra é nosso, nosso outros. Antes mesmo da gente produzir ou de colher o que a roça produz, o dono já pedia a terra e a gente tinha que mudar pra outro lugar. Passamos por essa dificuldade toda. Hoje, pelo mesmo, eu sou feliz, porque a terra é minha, todo pouquinho que produz é meu. Se não produzir, eu não tenho conta pra pagar, porque às vezes a gente planta e não produz. Já [houve] vezes, quando eu trabalhava nas terras dos outros, que eu cansei de pagar sem eu produzir... Mas era um contrato, tinha que pagar, o dono não é responsável ou culpado da terra não produzir, né.

Entrevista realizada no dia 17 de março de 2008. Todas as entrevistas estão arquivadas, em formato digital e impressa, no Núcleo de Estudos das Diferenças de Gênero da UFT, no Campus de Porto Nacional (TO). Neste caso especificamente, a entrevistada não autorizou a divulgação do seu nome.

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mesmo. No tempo dos meus pais até pouco tempo era de roça, de terra dos

É, portanto, por meio das falas, principalmente acerca de suas atividades como pequenas agricultoras, como donas de casa, que se torna possível penetrar na subjetividade dessas mulheres em que as questões de gênero são bem representadas e vivenciadas. Somente com a narração oral da história é que os conteúdos da memória são evocados e organizados, verbalmente, no diálogo interativo entre fonte e historiador, entre entrevistado e entrevistador. Este assume a tarefa de provocar esses conteúdos e, literalmente, contribuir com sua criação por meio da sua presença, das suas perguntas, das suas reações (PORTELLI, 2010, p. 20). Foi esse o meu papel7 como pesquisadora: despertar, durante as entrevistas, as representações e ressignificações de suas vidas, antes e depois de mudarem para o Reassentamento. Para essas mulheres, o passado volta como o quadro de costumes em que se valorizam os detalhes não mais encontrados no presente: insegurança de moradia e de sustento para si e para suas famílias. Nas falas, percebi que as mulheres começaram a fazer atividades que antes não consideravam como próprias da sua condição de donas de casas, esposas e mães. No presente, elas fazem, sem perceber, justamente as mesmas atividades que suas mães fizeram no passado. Rejeitam, contudo, que as filhas façam aquelas tarefas. É como se, além de ocorrer o processo de territorializaImaginário e representações: entre fios, meadas e alinhavos

ção nas questões de moradia e de estabilidade de suas famílias, vigorasse uma forma de territorialização em antigos papéis de gênero, antes vivenciados por suas mães e avós e, agora, vivido por elas em outro contexto histórico. Quando lhes perguntei se faziam – juntamente com suas mães – algu-

ma atividade na roça quando solteiras, elas foram categóricas em afirmar que suas mães não permitiam que elas trabalhassem na lavoura, apesar de suas mães diariamente exercerem tais atividades. Quis, então, saber quando começaram a ir para a roça trabalhar. Elas declararam que isso ocorreu depois de ter conseguido o “pedaço” de terra no Reassentamento. Antes, mesmo morando na roça de outras pessoas – na condição de caseiros, chacareiros –, elas ficavam em casa cuidando dos afazeres domésticos. A partir do momento em que foram reassentadas, além das atividades domésticas, essas Para as entrevistas e as transcrições, foi imprescindível a participação das bolsistas Viviane de Souza Araújo e Naione Pereira da Silva.

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mulheres tiveram de expandir suas atividades também para a agricultura, como deixa claro a fala de outra entrevistada: Lá onde eu morava, lá na Gleba, eu não ia na roça. [...] eu ficava mexendo mais com as atividades da casa, fazendo doce. Eu fazia muito doce de leite, queijo; tinha bastante [leite]. [Eu também ficava] mexendo com galinha, tratando e mandando pro patrão. Eu mandava tratadinha, cortadinha. [...] Perguntava: “Vocês vão querer para assar ou cozinhar?”. Se era cozida, eu mandava cortadinha, pra ficar mais fácil... Tem que cativar o patrão, senão... [...] Quando eu era nova, minha mãe ia pra roça; naquela época não era essa questão de plantação, trator pra gradear a terra. Ela derrubava [o mato], ela mesmo fazia, ela mesmo plantava e colhia, junto com meu pai e meu irmão mais velho. Mais ela não levava nós, ela não deixava, [isso] na época que meu pai tinha fazenda. Aí logo depois ele vendeu, nós já ficamos mocinhas e [fomos] pra cidade. E aí nunca mais eu vim conhecer roça, só depois que eu casei.8

É na fala dessa reassentada que se podem exemplificar as atividades das mulheres, entendidas como tarefas tradicionalmente atribuídas às mulheres. Quando lhe pergunto como é o seu cotidiano, o que ela faz de manhã, quando se levanta, até a noite, quando vai dormir. Na sua fala, o seu cotidiano é detalhes... Logo cedo, a gente levanta e começa a passar as atividades da casa para as meninas. Eu tenho duas filhas que estudam na escola [...] e o menino. Eu passo a atividade pra elas e vou ajudar meu marido na roça”.9 Perguntei-lhe quais são as atividades passadas para as filhas: ‘Tipo de casa, cuidar da casa, o almoço, eu falo pra elas fazer... [...] Falo pra uma limpar a casa, [enquanto] a outra limpa a cozinha, lava as louças. Depois de uma limpar a casa e a outra lavar as vasilhas, [elas olham] se tem roupa pra lavar, se não tiver vão fazer o almoço.”10 É possível perceber, nessas falas referentes às atividades que ela determina para as filhas como uma “empresa”, as relações de gênero. Ao mesmo A entrevistada não autorizou a divulgação do seu nome.

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A entrevistada não autorizou a divulgação do seu nome.

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A entrevistada não autorizou a divulgação do seu nome.

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“organizado” como se tratasse da rotina de uma empresa: “É, nos mínimos

tempo ficam claras a ressignificação, a perenidade, a repetição, a produção e a reprodução de papéis de gênero no que se refere ao trabalho das mulheres (CACOUAULT, 2003, p. 40). Quando lhe perguntei o que ela faz na roça depois de “passar” os serviços para suas filhas, ela responde: “Eu vou ajudar a limpar, a capinar, ou tirar os matos aqui acolá, né. Não capino mesmo não, ajudo a pegar feijão, a pegar o milho, a catar feijão”. Ao indagar-lhe o que o seu marido faz, ela é taxativa: ele capina, planta e roça. Vimos que ela faz as mesmas atividades que ele, mas o trabalho dela é representado como ajuda. Assim, é possível perceber as relações de gênero nesse exemplo: o poder que a mãe tem na questão da educação das suas filhas e os lugares ocupados no interior da casa, do doméstico. Já o mundo do trabalho e da empresa é profundamente estruturado pela ordem dos sexos, pois as representações sociais do masculino exprimem uma ordem que, ainda hoje, atribui ao masculino as qualidades socialmente valorizadas economicamente (DAUNE-RICHARD, 2003, p. 76). Desse modo, as mulheres não veem as atividades na lavoura como trabalho e nem mesmo como uma sobrecarga. Ao contrário, justificam as suas atividades como “ajuda”. As falas das mulheres do Reassentamento Córrego Imaginário e representações: entre fios, meadas e alinhavos

Prata refletem justamente o que Paula Viviane Chies (2010, p. 511) afirma: Quando as mulheres ocupam um espaço em profissões tidas como masculinas, não apenas pela sua construção histórica, mas muitas vezes pela demarcação de pré-requisitos tidos como masculinos (força, resistência e liderança), a força de trabalho dessas mulheres é concebida como inferior. Essas diferenças impostas entre os gêneros, que, na maioria das vezes, expressam um sentido de inferioridade à mulher, são constituídas por um reforço ideológico que busca mascarar a realidade.

Apesar de me afirmarem, nas entrevistas, não querer aquela vida para

suas filhas, torna-se evidente a internalização dos papéis de gênero que agora repassam para as meninas, da mesma forma como cobram delas comportamentos e atitudes socialmente esperados pelos membros daquela sociedade. Os papéis de gênero são facilmente identificados em todas as entrevistas

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realizadas, pois, como se trata da vida cotidiana, as mulheres ocupam uma parcela relevante do quadro. A forma de as mulheres do reassentamento orientarem seu cotidiano doméstico é a mesma de suas mães, hoje, reproduzida para suas filhas.

Algumas considerações finais Assim, por meio desta pesquisa, pude avaliar o processo de territorialização como fruto da interação entre relações sociais e controle do/pelo espaço, relações de poder em sentido amplo, para, assim, compreender os papéis de gênero reproduzidos e fortalecidos nas falas das mulheres do Reassentamento Córrego Prata. Isso só foi possível por ter recorrido aos fundamentos teóricos e metodológicos da história oral, pois, conforme Salvatici (2005, p. 31), o “interesse pelas mulheres e uso de fontes orais ampliaram positivamente o cenário da pesquisa histórica e nele introduziram novos tópicos de investigação, tais como a vida diária, as atividades domésticas e a esfera de mulheres comuns”. De tal maneira, por intermédio desses sujeitos marginais (neste caso, as mulheres), que seriam relativamente ignorados em outros modos de narração do passado, foi possível entender o processo que, A título de conclusão, chamo a atenção para o importante trabalho de Silva Junior (2005). Ao discutir falhas na concepção e na implementação do remanejamento da população rural desses reassentamentos, ele destaca a visível desconsideração da realidade anterior dos reassentados – compostos principalmente por pequenos proprietários, ocupantes, arrendatários e trabalhadores rurais –, especialmente no que se refere à sua própria diversidade, a suas origens, a seu modo de vida, a seus sistemas produtivos de subsistência, a seus hábitos e costumes, a sua composição social, além, é claro, da sua interação com o meio ambiente ribeirinho. Essas dificuldades estão presentes em todas as falas das mulheres que entrevistei. Apesar de todas essas dificuldades por que passaram e ainda estão passando, os impactos decorrentes da construção da usina se apresentaram de forma positiva, revelando, portanto, uma forma de territorialização.

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no meu modo de ver, constitui uma representação de territorialização.

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SILVA JÚNIOR, José Maria. Reassentamentos rurais da Usina Hidrelétrica Luís Eduardo Magalhães - Tocantins: a efetividade do programa de remanejamento populacional quanto à sua sustentabilidade socioambiental. 2005. Dissertação (Mestrado em Ciências do Ambiente) – Fundação Universidade do Tocantins, Palmas.

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SALVATICI, Silvia. Memórias de gênero: reflexões sobre a história oral de mulheres. Revista da Associação Brasileira de História Oral, São Paulo, v.8, n.1, jan./jun., 2005.

O martírio no imaginário cristão do século XIII e os mártires franciscanos de Marrocos de 1220 Teresinha Maria Duarte

Desde os primeiros séculos cristãos, os seguidores do Nazareno elegeram o mártir (do grego μάρτυς, que significa testemunha) como uma figura por excelência, dentro da nascente religião cristã. Pela sua coragem e até ousadia, o mártir era o santo; santidade entendida aqui como o testemunho de Cristo, como a sua máxima imitação, por isto, o mártir passou a ser o herói, vindo a suplantar, ao longo dos séculos – processo concluído na Idade Média –, os próprios heróis gregos. Passar pelo martírio era – e ainda o é perar as suas forças e capacidades e até o seu próprio sofrimento, em prol do testemunho que faz. Por isto, André Vauchez (1989, p. 212) enfatiza que os mártires “durante algum tempo foram os únicos santos venerados pelos cristãos e conservaram no seio da Igreja um considerável prestígio [...]”, mesmo quando outros modelos de santidade começaram a surgir. Entretanto, já por volta dos séculos XI e XII, com o processo de cristianização da Europa, povos outrora bárbaros e pagãos, como os antigos saxões, já haviam dobrado a sua cerviz à religião cristã; com isto, o martírio havia se tornado um bem quase impossível de se alcançar, a não ser entre os infiéis, isto é, entre os mulçumanos. Tal percepção coincidia com o processo de renovação religiosa dos séculos XII e XIII, e muitos daqueles que estavam imbuídos do desejo de reforma da Igreja passaram a buscar o martírio. O

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– uma prova de heroicidade, porque o mártir é capaz de se superar. De su-

mártir passou a ter um papel singular no imaginário medieval, especialmente, naquele contexto de efervescência religiosa e das cruzadas. A noção de imaginário, eu a tomo de Jacques Le Goff, segundo o qual, o imaginário pertence ao campo da representação, indo mais além dele, com a fantasia criadora e a criação poética. Por isso, continua o historiador... [...] a vida, quer do homem quer das sociedades, está tão ligada a imagens como a realidades mais palpáveis. Essas imagens não se restringem às que se configuram na produção iconográfica e artística: englobam também o universo das imagens mentais. [...] As imagens que interessam ao historiador são imagens coletivas, amassadas pelas vicissitudes da história, e formam-se, modificam-se, transformam-se. Exprimem-se em palavras e em temas. São-nos legadas pelas tradições, passam de uma civilização a outra, circulam no mundo diacrónico das classes e das sociedades humanas. E pertencem também à história social sem que, no entanto, nela fiquem encerradas. [...] A história do imaginário é o aprofundamento dessa história da consciência [...]. O imaginário alimenta o homem e fá-lo agir. É um fenômeno colectivo, social e histórico. Uma história sem o imaginário é uma história mutilada e descarnada. Estudar o imaginário de uma sociedade é ir ao fundo da sua consciência e da

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sua evolução histórica (LE GOFF, 1994, p. 16-17).

De fato, como Le Goff afirma: Estudar o imaginário de uma sociedade

é ir ao fundo da sua consciência histórica, porque é ir em busca dos valores e das tradições que circulam, diacronicamente, na vida daquela sociedade; é captar a imagem que as palavras e os temas evocam, e como que estas imagens guardam uma força criadora e modelar. Isso, com certeza, ajuda a entender o significado que o martírio e a devoção aos mártires alcançou entre os cristãos medievais. Proponho-me, neste estudo, a investigar o imaginário cristão acerca do martírio no século XIII, na sociedade ocidental, a partir da saga dos protomártires franciscanos, em Marrocos – ou simplesmente mártires de Marrocos –, martirizados em 1220. As fontes para este trabalho são textos – legendas (o que é para ser lido)

e crônicas – franciscanos. Portanto, são textos hagiográficos. A hagiografia, como bem sabemos, tinha entre suas características uma função pedagógica, isto é, fomentar uma determinada prática; e no caso específico, com relação 194

às vidas de santos, uma imitação. Por isto, tais escritos, sempre na fronteira entre a literatura e a história, eram carregados de imagens. Com efeito, Le Goff (1994, p. 13 ) enfatiza que as obras artísticas e os textos literários são fontes privilegiadas para o estudo do imaginário de uma sociedade. ***

São Boaventura (1983, p. 490), autor da Legenda maior e um daqueles hagiográfos, lembra que São Francisco mesmo, algum tempo depois que havia se convertido e levava uma vida de penitente, dando início a uma fraternidade de penitentes, e esta mesma fraternidade experimentava um rápido crescimento, ele – Francisco – entendia aquele crescimento como a disposição de “muitíssimos em levar a cruz de Cristo, animado pelo seu exemplo”, assim, tomado por uma “caridade ardente” e pela “recordação de Jesus Crucificado”, ele próprio, querendo a todos dar o exemplo, passou a buscar o martírio. “No sexto ano de sua conversão, ardendo de desejo de martírio, resolveu ir à Síria pregar a fé cristã e a penitência aos sarracenos e a outros infiéis” (SÃO BOAVENTURA, 1983, p. 527-528)1. Numa viagem cheia de peripécias, não obteve sucesso: o navio em que viajava foi arrastado para a costa da Dalmácia, Embora sem obter sucesso em sua primeira tentativa, Francisco não deixou arrefecer o seu desejo de alcançar o martírio. Daí a pouco, pôs-se a caminho de Marrocos, com a intenção de pregar o Evangelho ao Miramolim e aos seus seguidores. Com aquele intuito, chegou até à “Espanha”, de onde tinha intenção de alcançar a África. Entretanto uma doença o fez retornar a Assis. Segundo I Fioretti, Francisco teria ido a Santiago da Galícia, por devoção; levara consigo alguns irmãos, entre os quais, Frei Bernardo, o qual deixou, no meio do caminho, cuidando de um pobre enfermo, enquanto ele próprio...“[...] com os outros companheiros foi a Santiago” (I FIORETTI, 1983, p. 1086).2 Teria sido naquela ocasião que Frei Francisco adentrou o Celano (1983, p. 218) e depois São Boaventura, que se baseou nele, datam a conversão de S. Francisco em 1206. Sendo assim, o sexto ano após, seria 1212.

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Os cronologistas da Ordem têm datado a passagem de S. Francisco pela Espanha, por volta de 1213 ou 1214 ou mesmo 1215.

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onde tomou outro rumo, indo parar no porto de Ancona.

reino português – se é que realmente o fez – e se encontrou com a rainha D. Urraca. Ademais, foi a partir daquela sua experiência nas terras espanholas e até mesmo do seu possível encontro com a Rainha de Portugal, que Francisco foi amadurecendo a convicção de espalhar seus frades por aquelas terras, como os mesmos Fioretti registraram: [...] estando de noite em oração na igreja de Santiago foi por Deus revelado a S. Francisco que ele devia fundar muitos conventos pelo mundo; porque sua Ordem se devia dilatar e crescer em grande multidão de frades; e por esta revelação começou S. Francisco a estabelecer conventos naquela região (I FIORETTI, 1983, p. 1086).

No entanto, pela carta de Jacques de Vitry, escrita de Gênova, em outubro de 1216, até aquele ano de 1216, os frades ainda estavam circunscritos às regiões italianas, sem se expandir alhures. Portanto, as fundações em terras ibéricas só aconteceram depois daquele ano. Naquela carta, Jacques de Vitry, além de falar de seu descontentamento com a corrupção da Cúria Romana, falou também do seu consolo de ver as primitivas fraternidades

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franciscanas e deu informações importantes sobre o seu dia a dia: Uma vez por ano, os homens desta Ordem se encontram num lugar combinado para se alegrar no Senhor e comer juntos: e é de grande proveito para todos. Valendo-se do auxílio de conselheiros corretos e virtuosos, redigem, promulgam e levam à aprovação do Senhor Papa santas instituições; em seguida, se separam novamente por um ano e se espalham através da Lombardia, Toscana, Apúlia e Sicília (VITRY, 1983, p. 1029-1030)

Além de especificar as regiões de atuação dos frades: Lombardia, Tos-

cana, Apúlia e Sicília; o bispo de São João d’Acre mencionou, também, as reuniões fraternas anuais, realizadas em locais previamente determinados, nas quais, ouviam conselheiros virtuosos, redigiam e promulgavam instituições – o que permite entender que se tratava dos Capítulos.3 Naquelas reu Segundo J. LECLERQ (1977, p. 102-103), a época em que os capítulos gerais apareceram foi a mesma, na qual, na Igreja, constituiu-se os capítulos catedralícios e em que nasceu “o

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niões periódicas, acontecia a celebração da vida fraterna; discutiam-se a vida e as atividades cotidianas; com certeza, Francisco dava as orientações para os frades; e, juntos, programavam missões, dividindo homens e regiões. Assim, no Capítulo de Pentecostes, de 1217 “Já haviam decorrido onze anos desde o início da Ordem e os religiosos se haviam multiplicado; foram eleitos os ministros e enviados, juntos com alguns irmãos, para quase todas as regiões da cristandade” (O ANÔNIMO PERUSINO, 1983, p. 721).4 O número de frades havia aumentado, Francisco enviou-os para além das cidades e das regiões onde eles já eram conhecidos. Possivelmente, aquele envio de frades para regiões distantes tivesse uma relação com a estadia do Fundador em terras ibéricas: o seu encontro com a Rainha de Portugal e sua oração na igreja de São Tiago, em Compostela. Aquela missão, entretanto, era um desafio. Lázaro Iriarte (1985, p. 55) comenta que os frades partiram apenas com as orientações evangélicas, inculcadas pelo Fundador, sem nenhum outro amparo, tanto é que aquele esforço missionário acabou em frustração, com exceção dos frades que foram para a “Espanha”; talvez melhor, para Portugal. Frei Gualter, Frei Zacarias de Roma e seus companheiros foram os primeiros frades da Ordem, que se dirigiram para Portugal, onde foram acolhidos e protegidos pela rainha D. Urraca. Para êxito desses missionários em relação àqueles outros que se dirigiram para a França, Alemanha, Áustria, Hungria, Castela, Aragão e Catalunha, que não tiveram o apoio real na sua empreitada, e a esta acabou fracassada. fenómeno comunal”, com as suas múltiplas manifestações, tais como: cartas e privilégios que outorgam aos povos e, sobretudo a certas cidade libertas, frente aos senhores, que lhes concediam o direito de eleger representantes e juízes que intervinham em matéria de administração, justiça e finanças, a fim de assegurar entre todos uma ajuda mútua que favorecesse a concórdia e a paz. Os primeiros a adotar os capítulos gerais foram os cisterciencienses. Os estudiosos da história franciscana tem compreendido estes “onze anos decorridos desde o início da Ordem, como sendo o ano de 1217; neste caso, é possível que os biógrafos de São Francisco estivessem contando a partir da sua conversão, em 1206, quando o Santo assumiu

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a vida eremítica. Acerca do que se concebia da função do irmão ministro, Fr. Fernando Félix Lopes (1997, p. 8) esclarece que deve se compreender por ministro, naquele momento, na fraternidade franciscana, aquele frade... “[...] designado para acompanhar cada grupo de frades, como o de guia nos caminhos ou de socorro nos trabalhos”.

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Francisco Leite de Faria (1988, p. 54), foi isso que estabeleceu a diferença do

Em certas regiões, eram bem acolhidos [...] Em outros lugares, ao contrário, eram enxotados, porque tinham medo que se tratasse de hereges [...] sofreram muitas tribulações por parte do clero e dos leigos, foram atacados por ladrões [...]. Tais adversidades tiveram de sofrer na Hungria, na Alemanha e em outras regiões além dos Alpes (O ANÔNIMO PERUSINO, 1983, p. 722).

Embora tivessem ido para regiões cristãs e de obediência romana, eram regiões vizinhas de territórios de heréticos e cismáticos: no sul da França, preponderavam os Cátaros ou Albingenses, e na Lombardia, grupos Valdenses variados. Todos eles pregavam uma reforma evangélica, mas eram hostis à Igreja. Daí, o receio das populações e do clero local, quando os frades, desconhecidos, não portavam documentos que os identificassem, não conheciam as línguas da terra e boa parte deles era formada de leigos e do povo miúdo, sem uma cultura clerical. Despreparados para uma missão daquele porte, a única alternativa, para a maioria deles, foi voltar para Assis. De acordo com O anônimo perusino (1983, p. 722): “Os que voltavam deram a notícia daquelas desgraças ao cardeal de Óstia. Ele mandou chamar Francisco, levou-o ao Papa Honório [...] e lhe pediu para compor uma outra Regra e confirmá-la [...]”. Para Iriarte (1985, p. 50), aqueles incidentes se constituíram na primeira crise Imaginário e representações: entre fios, meadas e alinhavos

interna que afetou a Ordem dos Frades Menores, e são devedores do crescimento incontrolado da admissão indiscriminada de candidatos, e da expansão da Ordem por locais distantes, debilitando a “ação diretora e modeladora” de Francisco sobre os membros. Ainda, existia o perigo da infiltração da heresia, no seio da Fraternidade. Havia um parentesco do movimento franciscano com os movimentos heréticos contemporâneos, assim como o modo de vida itinerante favorecia o contato dos frades com os heréticos, e a admissão incontrolada poderia permitir o ingresso de hereges no seio da Fraternitas. Iriarte (1985, p. 51) lembra que bispos e populares desconfiavam da

ortodoxia dos frades. Aquilo causava preocupação aos frades letrados – provavelmente, clérigos – que, dia após dia, adquiriam importância no interior da Fraternidade e aos olhos de Roma. Porém Francisco se opunha às reivin-

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dicações de cunho institucionalizante, temia comprometer pontos essenciais do seu programa, como a observância da pobreza e a igualdade entre os frades. Enquanto um grupo de frades e parte da hierarquia eclesiástica desejava maior organização e enquadramento do movimento franciscano, o Fundador temia que pontos essenciais da vida da Fraternidade fossem sacrificados. Bem em meio a esta crise pela qual a primitiva fraternidade franciscana passava, é que foi convocado o capítulo de 1219. Os estudiosos da história franciscana têm destacado a importância daquele capítulo, que, provavelmente, aconteceu com a presença do Cardeal Hugolino. Para Fr. Fernando Félix Lopes, o que houve de mais notável naquele capítulo foi a estruturação da Fraternidade em unidades administrativas, chamadas províncias, mais ou menos como S. Francisco as talhou na Regra de 1221. Segundo Félix Lopes, eram entendidas como: [...] territórios com grupo de frades que normalmente neles exercitassem suas actividades itinerantes sob a direcção de um servidor ou ministro com direito de aceitar candidatos à Fraternidade e obrigação de, em contínuas visitas, a todos ir animando nos seus trabalhos e consolando nas suas agruras, a todos amiúde reunir em capítulo para confraternização festiva, para os ouvir e com eles reflectir a vida e obrigação também de a cada três anos assistir ao Capítulo 13).

Uma inovação realista, uma vez que os primeiros anos da história da Fraternitas haviam sido dominados pela figura carismática do Fundador e se caracterizado pela liberdade e pela improvização. Era um momento novo: aquela fraternidade de penitentes estava se constituindo em uma grande Ordem, com excepcional capacidade no exercício da pregação, o que era percebido tanto pelos frades letrados como pela hierarquia eclesiástica. Essas forças entendiam que era imperioso preparar os frades para aquela missão, mediante a organização dos estudos, além de dar-lhes, ao menos, um mínimo de estabilidade e orientar, de forma racional, as suas atividades apostólicas. Aquele capítulo, também, deu relevância às missões entre os infiéis, organizadas pela primeira vez. Francisco e um grupo de frades rumaram para o

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Geral da Ordem, a levar e trazer propostas e orientações (LOPES,1997, p.

Oriente, e um outro grupo de frades, presididos por Frei Vital, seguiu para Marrocos. Compunha aquele grupo, além do já citado Frei Vital, Frei Velardo ou Beraldo, Frei Pedro, Frei Ajuto, Frei Acurso e Frei Octonem. Marrocos tinha um significado especial no imaginário da Cristandade de então. Há que esclarecer que o norte da África e a Península Ibérica eram vistos um como continuidade do outro, especialmente depois que ocorreu a invasão muçulmana, em 711. Primeiramente, os muçulmanos fizeram da Península uma continuidade da África. Depois, quando os cristãos começaram o processo da Reconquista, procederam de igual forma. Como reconhece Joaquim Chorão Lavajo: “Às tribos almorávida e almóada se deve a primeira grande tentativa de fusão das histórias de história comum” (LAVAJO, 1993, p. 47). Quando a hegemonia almorávida entrou em declínio, o vazio foi preenchido por outra tribo berbere, os almóadas. Em 1130, Abd al-Um’min conseguiu estabelecer a dominação sobre o antigo império almorávida; e, em 1147, já era senhor de Marrakeche e, desde 1146, já estava atacando as posições almorávidas da Hispânia. Em 1150, Abd al-Um’min foi aclamado rei da Andaluzia Ocidental. A queda dos almóadas iniciar-se-ia em Navas

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de Tolosa.5 Sobre a presença marroquina em Portugal, Joaquim Chorão LAVAJO (1993, p. 45-52) comenta que, quando o norte da África ainda fazia parte do Império Romano, o Cristianismo floresceu em algumas regiões, como no Egito e no Magrebe. Entretanto, em Marrocos, a evangelização foi muito rápida. Quando da chegada dos muçulmanos, naquelas terras, o sistema de valores de que eram portadores se revelou mais adequado ao padrão de vida das tribos berberes, de maneira que parece não ter havido uma resistência ao invasor, de quem logo abraçaram o credo. E foi um berbere islamizado, Tarik, que esteve à frente da conquista árabe da Península Ibérica. Dos doze mil homens que o acompanharam, cerca de dez mil eram berberes, somente dois mil eram árabes. Depois da conquista, outras levas de berberes entraram na Península. Os berberes eram maioria, do ponto de vista demográfico, entretanto estavam em condição de dependência, isto os fez revoltar contra os árabes, obrigando o califa de Damasco a enviar contra eles um exército de orientais, que os desbarataram. No mosaico social hispânico, predominavam os hispanos romanos, cerca de sete milhões, mais uns duzentos mil visigodos, contra uma população muçulmana, estimada, em mais ou menos, duzentos mil berberes e vinte e cinco mil sírios-árabes. Os vencidos, dotados de uma cultura mais rica e diversificada acabaram impondo muito de seus valores aos vencedores. A islamização da Península Ibérica só começou a acontecer, entretanto, em 755, quando um príncipe da família

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Para António Dias Farinha, a batalha de Navas de Tolosa, em 1212, foi um divisor de águas na relação entre os cristãos, muçulmanos e judeus. Até aquela data, de acordo com Dias Farinha, era possível entabular uma convivência entre as três comunidades – cristã, muçulmana e judia – em diversos lugares da Península. Pois “tinham organizado um sistema de vida em comum que salvaguardava alguns aspectos da cultura própria de cada um dos grupos que habitavam a cidade, cujo êxito poderia garantir a coexistência de comunidades distintas no chão peninsular” (FARINHA, 1990, p. 27-28). A batalha de Navas de Tolosa alterou toda aquela relação. Os cristãos, sob a invocação da cruzada, acentuaram o antagonismo religioso entre os três povos. Além do mais ... No século XIII, surgiram ou difundiram-se novas formas de actuação na esfera religiosa cristã que se traduziram no reforço da Respublica Christiana e na referência à sua matriz ocidental e católica. O relativo fracasso das cruzadas do Oriente e o ritmo da expansão muçulmana contribuíram para o afastamento dos fiéis de cada credo, definindo gradualmente dois mundos com concepções em termos de civilização. Espalhou-se entre os cristãos a ideia de cerco e de asfixia da sua comunidade que a conversão ao Islamismo de povos orientais, como os Tur-

Ademais, às forças seculares da Cristandade, no século XIII, outras novas se juntaram, por exemplo, o novo entusiasmo religioso, oriundo daquela califal de Damasco, foi se instalar em Córdova. Até 1086, o domínio islâmico continuou nas mãos dos árabes, apesar de numericamente os berberes serem maioria. Tal situação só veio a alterar quando, em 1085, Afonso VI de Leão e Castela conquistou Toledo, dando um grande passo na reconquista cristã da Península Ibérica. A reação veio das tribos marroquinas. Primeiramente, os almorávidas. Movidos pela ideologia da guerra santa, em 1086, atravessaram o Estreito de Gibraltar, conquistaram Algeciras e seguiram para o Norte. A partir da batalha de Zalaca, em outubro daquele ano, Yusuf conseguiu reunificar Al-Andalus, politicamente, integrando toda a faixa a sul do Tejo e do Ebro, exceto Toledo. Apesar dos esforços para a reconquista cristã, já em 1099, os almorávidas eram senhores de todo o Al-Andaluz, dominando desde Castela a Argel. Toledo continuava, contudo, como um enclave cristão em terras islâmicas. O ano de 1117 marcou o começo da derrocada dos almorávidas em Al-Andalus, quando Ali, sucessor de Yassuf, foi obrigado a recuar da investida que fez contra as cidades da margem do Tejo.

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cos, transformou em ameaça de subversão total (FARINHA, 1990, p. 29-30).

ambiência de renovação cristã, especialmente com a atuação das Ordens Men-

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dicantes, responsáveis por uma verdadeira transformação religiosa na Europa. De maneira que a missão entre os infiéis, sobretudo em Marrocos, naquele Capítulo Geral de 1219, com certeza, foi discutida pelos frades Menores e assumida por eles, com grande entusiasmo, pois representava uma possibilidade bastante concreta de se alcançar o martírio. Como já foi dito, com a conversão dos povos europeus ao Cristianismo, no século XIII, o martírio parecia quase impossível de ser alcançado, a não ser entre os muçulmanos. Marrocos representava, por assim dizer, no imaginário cristão, o local onde se podia dar a vida pela fé católica e pelos valores a ela inerentes: podia ser um campo, onde o missionário semearia a fé ou o local onde viria a colher a palma do martírio, testemunhando a fé com o próprio sangue. O século XIII viu a renovação da espiritualidade e, também, a reação da Cristandade contra os infiéis; um sentimento presente não apenas entre os cristãos dos reinos vizinhos dos muçulmanos, como também entre aqueles que estavam mais distantes. Contudo os frades que se alistaram para a missão em Marrocos, optaram por irem até Portugal, para de lá rumarem ao seu destino final, embora, para quem estivesse na Itália e desejasse ir a Marrocos, não havia nenhuma necessidade de que se fosse primeiro a Portugal. Poderiam ir diretamente ao seu destino, passando por Sevilha. No entender de Frei Francisco Leite de Faria (1988), a opção dos desses cinco minoritas de ir a Portugal, antes de seguirem para Marrocos é uma prova de que S. Francisco teria ido a Portugal, em 1214, e, em seu colóquio com a Rainha D. Urraca, já ter pedido o seu apoio para entrar em terras de infiéis. Talvez até soubesse que o infante D. Pedro Sanches ou D. Pedro de Portugal, cunhado da Rainha, servia na Corte do Miramolim. D. Pedro, era um filho segundogênito.6 O primogênito de D. Sancho Desde a segunda metade do século XI, com o crescente êxito alcançado pelo direito de primogenitura, na França, que fazia do primeiro filho o único herdeiro, no seio da nobreza. Assim, os filhos mais novos ou segundos, premidos por questões econômicas, encontraram algumas opções para se arranjarem na vida: uma delas seria alcançar lugares privilegiados na Igreja, com ricas plebendas; outra seria se contentar com uma pequena herança, advinda de aquisições recentes ou de bens advindos do lado materno, na qualidade de posse precária. A respeito desta situação, advertiu Georges DUBY (1989, p. 126): “essas migalhas suscitavam

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I foi o Infante D. Afonso. Este, apesar de constantemente enfermo e parecer, a um segmento da nobreza, incapaz de gerir o reino e prosseguir com as guerras da reconquista; quando da morte do pai, todavia, acabou por herdar a governança do reino. Com isto, o infante D. Pedro, com parte da nobreza portuguesa que lhe era afecta, optou para deixar o país. Foi, primeiramente, ao reino de Leão que ele se dirigiu. De lá, passou ao Norte da África, indo prestar os seus serviços ao Miramolim de Marrocos. De acordo com os cronistas (CRÓNICA DA ORDEM DOS FRADES MENORES, 1918, p. 25-26; MARCOS DE LISBOA, 1626, p. 282289; e ESPERANÇA, 1656, p. 286-288), Frei Vital, que presidia aquele grupo de irmãos, quando atravessava o reino de Aragão, enfermou-se e por lá ficou. Os outros cinco frades se dirigiram ao reino de Portugal, mais precisamente, à cidade de Coimbra, onde se encontraram com a Rainha D. Urraca e, depois, foram a Alenquer, onde estiveram com a Infanta Dona Sancha. Esta lhes deu roupas seculares e, só então, eles foram à Sevilha, onde já começaram a pregar e, também, a serem punidos por aquela ousadia em terra dos mouros. O soberano, depois de mandar castigá-los, seguindo o conselho dos seus, resolveu mandá-los a Marrocos, juntamente com outros cristãos e o nobre D. Pedro Fernandez. senhor Ifamte dom Pedro, o qual os recebeo com grande devaçom, fazemdos prover de viandas” (CRÓNICA DA ORDEM DOS FRADES MENORES, 1918, p. 26). O Infante continuou a lhes dar apoio, depois de lhes providenciar alimento, logo que chegaram; quando o Miramolim os colocou fora da cidade, ele os mandou para Ceuta. Porém os cinco retornaram discórdias entre irmãos, alimentavam a cupidez, agudizavam a tentação de tomar pela força a parte dos outros irmãos ou dos sobrinhos. Privados de qualquer esperança de herança certa, os filhos segundos só viam uma saída: a aventura”. Aquela parcela significativa de filhos segundos que optavam pela aventura foi responsável pelo aparecimento cada vez maior de homens armados que vieram a se constituir nos bellatores, pondo em perigo constante a paz interna. Sem parte no patrimônio familiar e, portanto, sem poder estabelecer família, como jovens ou juvenes, como eram conhecidos, se lançavam na aventura: nos torneios ou ao serviço, na corte de um rico e magnâmico senhor; onde esperavam conquistar, pela força das armas, a fortuna ou uma herdeira rica e assim se estabelecerem.

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Ao chegar a Marrocos, aqueles Franciscanos... “forom-sse a cassa do

a Marrocos e insistiram nas pregações, por isto, acabaram presos. Quando deixaram o cárcere, o Infante os colocou sob a proteção de guardas. Depois de mortos, ele fez recolher os seus restos mortais e dar-lhes tratamento de relíquias de mártires, as quais depois mandou a Portugal (CRÓNICA DA ORDEM DOS FRADES MENORES, 1918, p. 26-31; MARCOS DE LISBOA, 1626, p. 289-291; e ESPERANÇA, 1656, p. 290; 293-294). Segundo os relatos das crônicas, aos olhos cristãos, aqueles frades foram dotados de uma coragem singular, mas, aos olhos da comunidade muçulmana de Marrocos, a missão daqueles frades deve ter tido o sentido da intolerância e até do desrespeito às suas crenças. Comportamentos corrigidos de forma exemplar pelo povo e pelo rei, por meio das prisões, dos açoites e de maus-tratos diversos, culminando com a morte dos culpados. Do ponto de vista do relacionamento entre cristãos e muçulmanos, as relações tenderam a piorar, pois que, uma comunidade de cristãos – inclusive o infante D. Pedro – vivia entre os muçulmanos de Marrocos e, ao que tudo indica, gozava de uma relativa paz. Com a pregação assaz teimosa daqueles frades e a sua prisão, de acordo com a Crónica da Ordem dos Frades Menores (1918, p. 28), os cristãos, temendo a morte, fugiram para suas casas e, dentro delas, se encerraram. Contudo tiveram-nas arrombadas e foram Imaginário e representações: entre fios, meadas e alinhavos

submetidos a maus-tratos e prisões. As diferenças recíprocas entre cristãos e muçulmanos acentuaram-se

mais com a morte daqueles minoritas: E depois desto as molheres lançarom fora as cabeças e os corpos [daqueles frades], e os poboos malvados de aquelles emfiees, atando-lhe cordas nos pees e em nos braços, corremdo por a çidade e com grande alarido, sacarom-nos fora dos muros da çidade, e aas cabeças e os nembros e os corpos despedaçados lançarom-nos por aquele campo. E emtam os cristaãos com as maãos alçadas ao çeeo louvavam ao Senhor por o marteiro e vimçimento delles, e outros colhiam escomdidamente as suas reliquias, e muitos mouros que os viam, cheeos de sanha, lançavom contra elles moltidom de pedras que parecia hûa grande tempestade. E emtam pollo mereçimento dos samtos todollos cristaãos se forom fogindo pera suas casa sem dano, e por meedo da morte escomderom-se por três dias. E em aquelle tempo matarom os mouros em no mercado Pedro

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Fernandez e Martim Afonso, escudeiros do Ifamte (CRÓNICA DA ORDEM

O relato acima seria um noticiário fidedigno ou estaria recheado de informações tendenciosas, inseridas pelo cronista? Difícil precisar, porque, a crônica foi escrita cerca de mais de um século depois do ocorrido.7 Mas uma coisa é possível ter como certa: as diferenças religiosas e os ódios entre cristãos e muçulmanos tenderam a aumentar. Ainda em Marrocos, os cristãos que lá habitavam, tão logo souberam da morte daqueles cinco frades, louvaram a Deus pela morte gloriosa alcançadas pelos cinco minoritas: morreram como testemunhas fiéis de Cristo. Como prova de reverência, puseram-se a recolher os restos mortais deles, considerando-os como relíquias de mártires. Como se vê, atribuíram-lhes uma honra merecida aos santos. Eles se tornaram, aos olhos de seus correlegionários cristãos, heróis da fé católica e testemunhas de Cristo. A comunidade muçulmana marroquina, também percebeu o alcance do sucedido: jogou pedras nos cristãos que recolhiam pedaços dos corpos daqueles mártires e não hesitou em matar dois escudeiros do infante D. Pedro, porque também eles recolhiam os restos mortais das vítimas. De forma mais agressiva ainda, botou fogo naqueles corpos mutilados – embora o fogo não os queimasse – para assim destruir todos os vestígios deles, alvo da honra e da reverência dos cristãos em Marrocos.8 Embora com todos aqueles sucessos, o Infante fez recolher o que conseguiu dos corpos daqueles cinco missionários franciscanos. Para os cristãos, aqueles cinco frades foram mártires que deram a sua vida em testemunho e em fidelidade a Jesus Cristo e que, portanto, deviam ser considerados santos, e logo começaram a se lhes atribuir milagres. Com relação à crença do homem medieval nos milagres, Jacques Le Goff chama atenção para alguns pontos interessantes. Primeiramente, segundo ele, o mi A Crónica da Ordem dos Frades Menores (1209-1285) é a tradução da Crônica dos 24 Gerais, feita, provavelmente, por Frei Arnaldo de Sérent, por volta de 1370, para a língua portuguesa.

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É difícil precisar, com exatidão, quem seriam os cristãos que estavam em Marrocos, à época.

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Sabe-se do próprio Infante e dos outros que o seguiam. Pelas Crónicas dos sete primeiros Reis de Portugal ( MCMLII. p. 203). Sabe-se, também, que lá havia cristãos cativos, inclusive foram eles que recolheram muitas partes dos corpos daqueles mártires, para dá-las ao Infante D. Pedro, mas não havia comunidades cristãs organizadas, naquele momento, em Marrocos.

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DOS FRADES MENORES, 1918, p. 30).

lagre é o maravilhoso cristão; depois, “no milagre há um autor, e só um, que é Deus” (LE GOFF, 1990, p. 23). E o historiador continua explicando e traçando a relação entre a autoria divina do milagre e a intercessão dos santos: Ora, o milagre, se depende apenas do arbítrio de Deus – que é exactamente o que o diferencia dos acontecimentos naturais, também estes, como é óbvio, queridos por Deus, mas por Ele decididos uma vez por todas, tendo-se assim estabelecido uma certa regularidade no mundo, – não escapam por sua vez ao plano divino e a uma qualquer regularidade. E se o milagre se realiza através daqueles intermediários que são os santos, é previsível dizer que a situação que estes vão encontrar-se é tal que o verificar-se o milagre por sua intercessão é previsível (LE GOFF, 1990, p. 23).

Ora, o que Le Goff deixa claro é que, para o homem medieval, Deus é o autor do milagre e os santos são intercessores diante de Deus. A simples presença ou menção de um santo já era suficiente para se esperar uma intervenção miraculosa e, também, um cristão só passava a ser conhecido e reconhecido como santo se realizasse milagres. Era como se dissesse: “é pelo fruto que se conhece a árvore” (Mt.12,33), e “Toda árvore boa dá bons frutos” (Mt.7,17). Ademais, no caso dos mártires, o milagre era uma espécie de ordália, como se fosse um juízo divino, no qual Deus se colocaria Imaginário e representações: entre fios, meadas e alinhavos

do lado de quem lhe fora fiel, prodigalizando feitos sobrenaturais, pela sua presença e intercessão. Assim, ainda em Marrocos, começaram a se atribuir milagres àqueles

cinco mártires: feitos que realizaram em vida foram tidos como miraculosos e muitos outros, de caráter extraordinário, foram atribuídos às suas relíquias. Relembraram que, ainda em Portugal, antes de partir para Marrocos, previram a própria morte e a da Rainha D. Urraca (CRÓNICA DA ORDEM DOS FRADES MENORES, 1918, p. 24). Em Marrocos, deram água ao exército do Miramolim que passava sede (CRÓNICA DA ORDEM DOS FRADES MENORES, 1918, p. 27). Depois de mortos, vieram em socorro dos cristãos que tentavam re-

colher suas relíquias, permitindo-lhes que conseguissem fugir dos mouros, sem maiores danos (CRÓNICA DA ORDEM DOS FRADES MENO-

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RES, 1918, p. 30), e os seus próprios restos mortais foram preservados do fogo (CRÓNICA DA ORDEM DOS FRADES MENORES, 1918, p. 30). A mesma fornte (p. 35-36) menciona a revelação feita ao cônego D. Pedro Nunes, confessor de Dona Urraca, sobre a sua morte vitoriosa em Marrocos. De acordo com a mesma Crónica (1918, p. 30-31), os criados do Infante que se aproximaram das relíquias, em estado de impureza, foram castigados e foi preciso que confessassem os seus pecados. Enumera ainda o amparo fiel dos mártires ao Infante e sua gente: alcançando-lhes a licença para deixar o reino do Miramolim e a proteção a eles conferida de todo perigo na terra e no mar (CRÓNICA DA ORDEM DOS FRADES MENORES, 1918, p. 32-34). Interessante notar que a maioria dos miraculados eram leigos. Maria Helena da Cruz Coelho explica isto: o culto dos santos é uma corrente da religiosidade popular, transmitida oralmente, só posteriormente vindo a Igreja a reconhecer oficialmente essa santidade, para o que ordena um processo com os elementos das vidas dos santos e os relatos dos seus milagres. E este reconhecimento tem graus, pois pode ser inicialmente local, só sancionado pelo bispo da diocese, para mais tarde se obter

De fato, essa observação se amolda muito bem ao caso dos Mártires de Marrocos, pois mortos a 16 de janeiro de 1220, só foram canonizados, segundo frei Manoel da Esperança (1656, p. 3010), em 1481. De acordo com o mesmo cronista (1656, p. 294-295), as suas relíquias foram transladadas pelo infante D. Pedro até Leão e de lá, enviadas para Coimbra, sob os cuidados de um cavaleiro de sua confiança. Em Coimbra, foram recebidas com muita devoção pelo Rei, pela Rainha, pela clerezia e pelo povo, que propuseram a conduzi-las para a Sé. Todavia aconteceu mais

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da Santa Sé a beatificação ou canonização do santo (COELHO, 1998, p. 119).

um milagre: a mula, que transportava os sagrados despojos, parou em frente à canônica de Santa Cruz, entrou e se colocou de joelhos diante do altar e de lá não se levantou nem saiu enquanto não a aliviaram da carga que trazia. Então, entenderam que era ali que os Mártires queriam encon-

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trar o seu último descanso.9 Por trás do relato piedoso do cronista, pode se vislumbrar uma série de comportamentos e uma série de expectativas em relação às relíquias dos Mártires de Marrocos. Em Coimbra, a Cristandade, em seu todo, acorreu para recebê-las e conduzi-las, como se conduzisse o troféu de uma grande vitória. Para o povo, aquela parte mais modesta da população, foi a experiência de estar diante de algo sagrado e transcendente, objeto de veneração e devoção, retribuído com abundantes milagres.10 A canônica de Santa Cruz se assenhoreou daquelas relíquias em razão do comportamento inusitado da mula. Para Coelho (1998, p. 108-109), tal fenômeno deve ser entendido a partir da relação das instituições eclesiásticas com as relíquias. As disputas das relíquias eram assaz frequentes, porque se tornavam “penhor do renome espiritual da instituição que as recebia e não menos do seu acréscimo de rendimentos, pelos peregrinos e oferendas que atraíam, eram sempre decididas – assim se pretendia – por vontade divina, que agia sobre um animal irracional”. Mas os trunfos não pararam por aí. Esperança (1656, p. 295) lembra que D. Afonso II aproveitou para amenizar as intrigas familiares: enviou parte daqueles despojos – apesar da escolha feita pelos Mártires para repousarem em Santa Cruz de Coimbra – à rainha D. Teresa, abadessa cisterciense É bem possível que as santas relíquias tenham ido para Santa Cruz, por interferência do capelão do Infante D. Pedro, em Marrocos, João Roberto, cônego de Santa Cruz. A ele foram confiados os cuidados de preservação delas, que envolveu o cozimento e a separação da carne e dos ossos e, depois, a secagem ao sol.

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Quando a desgraça abatia sobre si e sobre seus bens, o homem medieval recorria aos santos. Assim, segundo Fr. Manoel da Esperança (1656, p. 297-301), as pessoas se encomendavam àqueles Mártires, visitavam os seus túmulos, em Coimbra, bebiam água que era tocada em suas relíquias e entre aqueles que buscavam graças, estavam: “Cegos, surdos, quebrados, to-

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lhidos, aleijados, & enfermos de differentes doenças todos cobrauão faude. Muitos, das portas da morte erão tornados à vida. Huns efcarrauão offos, q[ue] na garganta trazião atraueffados: outros pela bocca lançauão as fanguefugas, que tinhão bebido: outros de repente convalesciam de mortais enfermidades”.

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Sobre os conflitos sustentados por D. Afonso II com seus irmãos, sobre o testamento de seu pai, ver Maria Teresa VELOSO (1988, p. 121-123).

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Sobre os sucessos do Infante D. Pedro, depois do seu retorno de Marrocos ver VELOSO (1988, p. 124-126).

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É interessante notar que, no mesmo ano de 1219, saíram para missão entre os muçulmanos: os cinco mártires de Marrocos e Francisco com outros companheiros, que foram para o Egito e a Terra Santa. De primeira mão, estaríamos diante de uma imprecisão do cronista; quando do martírio daqueles cinco Menores, em Marrocos, o Fundador, com outros companheiros, devia se achar no Oriente. Assim é bem provável que tenha tomado conhecimento da morte daqueles cinco irmãos, quando Frei Estêvão de Narni foi ao seu encontro, no Oriente, para lhe pôr a par dos atos de indisciplina que ocorriam, na Fraternidade, em Assis e noutras partes, encabeçados pelos vigários que Francisco deixou à frente dos irmãos. É provável, portanto, que, entre as notícias levadas por Frei Estêvão, estivesse também aquela do martírio dos frades que foram em missão para Marrocos.

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no Mosteiro de Lorvão e uma das suas irmãs com quem teve um memorável conflito na partilha dos bens paternos. Já o infante D. Pedro alcançou reconhecimento pela sua obra piedosa, em toda a Cristandade, mas, notadamente, por parte do Papa Honório III, que lhe enviou a bula Morum et sanguinis generositas, colocando-o e seus bens sob a proteção do Papa e da Santa Sé.11 Ironia do destino. Dom Pedro não fizera fortuna na corte do Miramolim, nem lá alcançou um bom partido, mas estava de volta à Cristandade, trazendo os restos mortais de cinco frades Menores, mortos pela fé. Estava de posse do prestígio de homem piedoso e, também, da experiência militar muçulmana. As relíquias – como já se disse – ele as mandou a Portugal, mas os outros qualificativos lhe renderam o mais alto cargo na corte de Leão; o casamento com a condessa de Urgel, em 1228; e depois da barganha daquele condado com Jaime I de Aragão por Maiorca, o título de senhor de Maiorca.12 A crer em Esperança (1565, p. 296), toda a Cristandade se alegrou com aquela façanha, essencialmente, naqueles loci onde se pensava mais a sério a tarefa da reforma da Igreja. Segundo o cronista, em Assis, Francisco teria se alegrado com o martírio daqueles irmãos, e Clara, em seu mosteiro, teria “invejado” os desígnios divinos para com aqueles cinco frades.13 Mas é possível que o maior fruto produzido pelo martírio daqueles irmãos apareceria, ali, mesmo em Portugal, com a passagem do cônego regrante, Fernando Martins de Bulhões, da canônica de Santa Cruz de Coimbra, para

a Ordem dos Frades Menores. ***

Entendo que as vitae dos mártires, narradas de forma oral e escrita, desde os primeiros tempos do Cristianismo, foram responsáveis não apenas para torná-los conhecidos e lembrados, mas, acima de tudo, para torná-los admirados pela sua coragem e pelo seu heroísmo: verdadeiras testemunhas e imitadores de Cristo. Junto à admiração para com aqueles que não hesitaram diante dos maiores sofrimentos e até mesmo do derramamento do próprio sangue, veio também a devoção; a convicção das populações de que eles eram realmente santos e, como tais, dotados, por Deus, de poderes em favor do seu povo. As imagens dos mártires e de seus martírios – sempre motivo de admiração e devoção – mas no calor das discussões de reformas na Igreja, sobretudo no desejo da retomada da vida apostólica, foram imagens muito fortes, imagens que tiveram repercussões diversas na vida da Cristandade. A uns incitando para o martírio, como os protomártires franciscanos em Marrocos, no ano de 1220, e a outros para as diversas manifestações de devoção, como os louvores a Deus, o recolhimento dos restos mortais dos mártires Imaginário e representações: entre fios, meadas e alinhavos

e a solicitação de milagres e até o tratamento que o papa deu ao Infante D. Pedro de Portugal. Imagens que incitaram a outros tantos a também buscar o martírio,

como foi o caso do cônego D. Fernando Martim de Bulhões, que deixou a canônica de Santa Cruz de Coimbra e pediu ingresso na fraternidade franciscana, com a condição de ser mandado para Marrocos. Se as adversidades da viagem e de sua própria saúde o pouparam do martírio, mas a ambição de se tornar um mártir fez dele Frei Antônio – o tão conhecido Santo Antônio. Ambição que Frei Marcos de Lisboa (1626, p. 305-308) e Frei Manoel da Esperança (1656, p. 320-324) afirmam ter levado outros minoritas a se instalar, como missionários, em terras sarracenas ou até mesmo a novos martírios como o dos sete frades em Ceuta, no ano de

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em 1227.14 Imagens que foram recolhidas pelos hagiógrafos franciscanos para continuarem a alimentar o imaginário cristão e sobretudo franciscano. Vê-se, pois, que o imaginário de uma sociedade é uma das forças mais relevantes que a move.

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A festa litúrgica destes sete mártires é celebrada, atualmente, pela família franciscana e no Martirológio romano, no dia 10 de outubro, como Festa de São Daniel, presbítero, e companheiros, mártires, da Ordem I.

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I FIORETI. In: São Francisco de Assis. Escritos e biografias de São Francisco de Assis. Crônicas e outros testemunhos do primeiro século franciscano. 3. ed. Petrópolis: Vozes: CEFEPAL, 1983. p. 1079-1190.

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Benzeções: a gramática e os gestos transcendentais da fé Maria Clara Tomaz Machado

Só se cura com milagres de santos aqueles que têm fé (CARPENTIER, 1985)

No Brasil, quando nos imiscuímos no espaço das práticas religiosas populares, percebemos que, ainda no século XXI, elas estão em plena vigência, mesmo que (re)significadas. Esse é um mundo de magia, cujos códigos de linguagem e rituais simbólicos permitem o contato entre o material e o espiritual. Nele, a fé e a convicção são astúcias que permeiam as experiências de grande parte de sujeitos sociais, que, contra as próprias limitações que mo tempo, palpável e real. Pensar o tema da religiosidade no Brasil contemporâneo pressupõe estar atento aos deslocamentos de práticas culturais populares do mundo campesino para o urbano, o que provoca mudanças e interações nas inúmeras dimensões tecidas entre o sagrado e o profano. Estamos, aqui, a pensar na ruralização do urbano, quando, a partir de 1950, o contexto histórico se moderniza, se industrializa e acelera o processo de urbanização, com o intuito mesmo de romper com um passado, cuja tradição era vista como instrumento de atraso ao desenvolvimentismo (SCHWARTZ, 1994). A inversão do rural para o urbano se acentuou a partir de 1970, especialmente, nas regiões de cerrado do Triângulo Mineiro-Alto Paranaíba/MG. Os projetos agrícolas como o Polocentro, Prodecer, Provarzeas, Profir, financiaram

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cercam sua luta pela sobrevivência, recorrem a esse espaço utópico, ao mes-

a modernização da agropecuária, objetivando a exportação de grãos e carnes para o mercado nacional e outros países. Tais projetos não só concentraram mais terras, como propiciaram a lenta agonia da economia de subsistência, agravando a desigualdade social. (MACHADO, 2000a/2002). Nesse cenário, crenças e tecnologias dialogam no enfrentamento entre tradição e modernidade, instituindo novos investimentos estéticos, rítmicos, performáticos, imagéticos e poéticos. Novos personagens se encenam ao lado daqueles que trazem suas tradições como lembranças. Conflitos de gerações provocam um embate, o que pode levar à ruptura de laços afetivos e de sociabilidades. Diversos grupos, ternos de folias, dividem-se e, por sua vez, se multiplicam. A igreja, antes distante da fé rural, aproxima-se, muitas vezes, com o intuito do controle; resistências se impõem. As relações entre a nova ruralidade e a economia de subsistência dão lugar, algumas vezes, ao embate, outras vezes, ao conformismo. Nesse viés, novos vínculos entre o político, o poder público e os anônimos da cultura popular se estabelecem, ora em termos de promoção e apoio, ora pautadas pelos ressentimentos (MACHADO, 2007). A benzeção, tal como afirma Certeau (1994), faz parte da ordem efetiva das coisas nas quais os anônimos sociais, por meio de suas táticas, criam Imaginário e representações: entre fios, meadas e alinhavos

os “(des)lugares” da racionalidade, desviando para fins próprios a confiança na utopia da graça, da cura, do milagre. Essa é uma arte de fazer que insinua, segundo o autor: [...] um estilo de traços sociais, um estilo de invenções técnicas e um estilo de resistência moral, isto é, uma economia do ‘dom’ (de generosidades como revanche), uma estética de ‘golpes’ (de operações de artistas) e uma ética da tenacidade (mil maneiras de negar à ordem estabelecida o estatuto de lei, de sentido ou fatalidade). A cultura ‘popular’ seria isto, e não um corpo considerado estranho, estraçalhado a fim de ser exposto, tratado e citado por um sistema que reproduz, com os objetos, a situação que impõe aos vivos. (CERTEAU, 1994, p. 89).

A benzeção é, por essa ótica, uma prática cultural religiosa que hoje

também habita a cidade e, nesse sentido, como sua essência é o dom pre-

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nunciado pela atividade voluntária, estabelece, afetivamente, laços sociais, à medida que se torna uma transgressão à lógica do lucro que permeia o campo da medicina alopática. A gramática e o gesto permitem o elo entre o universo simbólico e o real, entre a doença e sua cura, tal como enuncia dona Lázara Cobreiro - o que é que eu corto? - cobrero brabo - assim mesmo eu corto, corto cabeça, meio e rabo. Cobrero de largatixa, cobra, bicho preguiça. mandruva, sapo e todo bicho peçonhento eu corto, a cabeça, o meio e o rabo em nome de Deus eu corto. (LÁZARA, 1997).

Já ensinava Santo Agostinho: “fé é acreditar no que não vemos, a recompensa desta fé é vermos aquilo em que acreditamos”. Para o historiador, à “medicina rústica”, constitui-se numa grande aventura (NAVA, 2003; QUEIROZ, 1976; ARAÚJO, 1961). Este é um itinerário demarcado por outra ordem de relações e de poder. O que realmente conta é, de um lado, a fé e, de outro, o dom de curar, a premonição, a intuição e a sensibilidade aflorada, enunciada. É o mundo do encantamento expresso por códigos de linguagem, pelo ritual em que o simbólico e o gestual reinauguram o contato entre o material e o espiritual. Não existem testemunhos documentais, provas. É preciso, antes de tudo, experimentar, ver para crer. A invocação do bem, a força sobrenatural, os efeitos inexplicáveis, como lembra Janine Ribeiro, não deveriam se contrapor à racionalidade. Para esse autor:

[...] a magia não é verificável. Ela não faz proposições que possam ser provadas falsas. Apela à crença e depende desta. Volta-se para uma eficácia imedia-

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penetrar no território da religiosidade, especificamente no que diz respeito

ta. [...] a razão constitui apenas uma parcela do pensamento [...] o trabalho essencial da filosofia consiste em pensar sobre o pensamento, em fazer-nos desapegar de nossos preconceitos, favorecer a expansão da consciência. [...] as artes divinatórias culminam em livros e práticas de sabedoria. [...] é uma relação com as coisas que prenuncia um ponto de partida para se pensar uma ecologia do homem (RIBEIRO, 1991, p. 37-40).

O conhecimento divinatório é usado para afastar ou curar os males em um campo eminentemente propiciatório. A sabedoria, em relação à flora e à fauna, faz parte de uma tradição secular, enredada na memória dos antepassados. Por esta ótica, o homem não se interpõe como capaz de dominar as forças da natureza, ele próprio é parte do meio, ao mesmo tempo natural, social e sobrenatural. Talvez, resida aqui a possibilidade de pensar o homem de forma holística. Antonio Candido adverte que, ao tratamos das práticas tradicionais religiosas, da liturgia, ao contrário do que ocorre na cultura material, é possível perceber a interpenetração de planos em que o passado e o presente das ações simbólicas e o racional se combinam, porém não é clara a substituição de um pelo outro. Destarte, elos entre os diversos níveis são evidentes (CANDIDO, 1982). As práticas culturais da medicina popular estão enImaginário e representações: entre fios, meadas e alinhavos

tranhadas de misticismo e religiosidade. Elas são, antes de qualquer coisa, práticas sociais de grupos que experimentam, no seu cotidiano, as agruras da vida, são a prova da luta do homem contra suas próprias limitações, em um mundo ilimitado (MACHADO, 2000b). Os cultos que envolvem a medicina popular devem ser compreendidos

como parte da vivência de segmentos sociais que buscam, no imaginário, no espiritual e no mistério, a reordenação de seu mundo. Nesse sentido, a recorrência ao transcendental, acena para a possibilidade do homem, em condições adversas, dominar o universo em que vive com o auxílio das forças sobrenaturais, restabelecendo a normalidade, repondo a ordem no caos. Antes de ser considerada religiosidade ou pura empiria, a arte popular de curar remete-nos, na maioria dos casos, a pessoas submetidas aos infortúnios financeiros e desigualdades sociais, não usurpando das vantagens do conhecimento médico sofisticado, à disposição somente daqueles de posses, 216

dependem, por isso, da política nacional de saúde/SUS. Sabemos que esse plano tem enfrentado problemas, o que não permite o acesso democrático a esse direito. A recorrência à medicina teológica ou rústica, como querem alguns, é uma forma de retomar o próprio equilíbrio emocional, físico e material seu e de seu grupo. Propondo uma transformação do trabalho intelectual nas abordagens de determinados fenômenos culturais, Bordieu avalia que: [...] compreender a gênese social de um campo, e apreender aquilo que faz a necessidade específica da crença que o sustenta, do jogo de linguagem que nele se joga, das coisas materiais e simbólicos em jogo que nele se geram, é explicar, tornar necessário, subtrair ao absurdo do arbitrário e do não motivado os atos dos produtores e as obras por eles produzidas e não, como, geralmente, se julga, reduzir ou destruir. (BOURDIEU, 1989, p. 69).

Evitar o reducionismo, explicar o imponderável requer, na perspectiva de Timothy Jenkins, fazer refluir os critérios utilizados pelo racionalismo científico, pois neles a resposta para os fenômenos religiosos de cura será sempre a do empirismo ou charlatanismo, ainda que os resultados dessas práticas médicas tenham alcançado numerosos resultados positivos tação desses fenômenos: [...] é possível perguntar o que essas atividades relativas ao conhecimento oculto, nas suas mais variadas formas, podem estar querendo atingir em seus próprios termos. O que eu proponho é uma mudança de ênfase, de fenômenos naturais ou sobrenaturais para práticas sociais e, nesta perspectiva, sugiro que as ciências ocultas deveriam ser consideradas parte de um conjunto maior de práticas que tentam compreender o lugar do homem no mundo. (JENKINS, 1991, p. 36).

Mudança de ênfase, eis o caminho. O ato de crer nas artes curativas da medicina teológica, das “benzeções” podem ser interpretadas, conforme propõe Certeau, como táticas de sobrevivência dos despossuídos e explorados ante as estratégias do poder. Acreditar na cura, no milagre, “garante ao

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(JENKINS, 1991). Daí, a proposta de cunho metodológico para a interpre-

oprimido a vitória num espaço maravilhoso, utópico.” (CERTEAU, 1994, p. 85). Contra a lógica do capital, impõe-se um “dom”, o de curar, estabelecendo uma rede social de solidariedade e reciprocidade, compreendida como uma “astúcia desviacionista”. Responder às perdas numa economia do lucro, na cura pela fé, pode ser uma forma de transgressão dos que estão submetidos à lógica hegemônica (CERTEAU, 1994). Nota-se, aqui, o deslocamento da compreensão da evidência mística, como prática religiosa, para analisá-la sob outros prismas. Nestas perspectivas, o mistério e sua vivência se fazem presentes por meio de gestos e sensibilidades encontradas nas experiências concretas de vida dos que se sentem à margem do progresso e de suas vicissitudes. Procurar a benzeção é um ato de fé, mas também é, certamente, uma prática coletiva de um grupo social do qual se faz parte. Participar como crente envolve não só uma situação econômica, como também uma postura cultural. Crer se vincula a pertencimento, a tradição, a memória, a história de vida construída socialmente (DIHEL, 2002). O ritual é uma forma de representação visual e exterior dos poderes mágicos legitimando a sua prática. Sem a encenação, há perda do brilho, e o contato entre o espiritual e o concreto não se realiza. O fortalecimento da fé está na força do ritual e, consequentemente, naquele que o dirige. Os Imaginário e representações: entre fios, meadas e alinhavos

fenômenos naturais pertencem também, nesta ótica, ao mundo dos efeitos sobrenaturais, no mais das vezes, inexplicáveis. Doença, morte, alegria e tristeza, nascimento e crescimento dependem do poder divino em associação às ações humanas perpetradas no real. Ilusão e realidade se confundem. Basta que se tenha fé nas palavras e nas ações empreendidas pelo portador do dom para que os resultados possam ser obtidos. De acordo com Sérgio Buarque de Holanda, a medicina popular, no

Brasil, tem suas raízes fundantes no contato que colonos e Jesuítas estabeleceram com os índios. Na empreitada de alargamento do nosso território, construiu-se uma teia de relações, nas quais as experiências na arte de curar, mais em consonância com nosso ambiente e natureza, foram amalgamadas. A essa farmacopeia rústica, salpicada pelo gosto do maravilhoso, do exótico, herança da ciência medieval, somam-se as práticas indígenas, produzindo, no imaginário popular, uma mentalidade terapêutica rica e diversificada. As

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mezinhas provenientes da flora e da fauna, as orações, amuletos, benzeções e excrementos fazem parte de um rico arsenal curativo. Longe dos socorros médicos, isolados no sertão, marcado pela distância e solidão, as novas experiências curativas puderam aflorar, demarcar presença, frutificar e persistir até os dias atuais. Como afirma este autor, [...] Mas só a larga e contínua experiência, obtida à custa de um insistente peregrinar por territórios imensos, na exposição constante a moléstia raras [...] é que permitiria ampliar substancialmente e organizar a farmacopéia rústica. [...] Era preciso acreditar no milagre, promessa de outros milagres. [...] O essencial, na maioria dessas fórmulas salvadoras, é que a religião (ou a superstição) deve servir a fins terrenos e demasiado humanos. As potências celestiais são caprichosas; uma vez assegurado seu socorro em qualquer transe da vida que obstáculo se poderá erguer às vontades dos homens. [...] Tal é a capacidade de persistência dessas crenças que puderam manter-se até os nossos dias, mesmo nos centros mais adiantados. (HOLANDA, 1994, p. 34-89).

Considerando a relação entre religiosidade e as práticas médicas populares, é importante perceber que, independentemente do místico nelas explicaria. Nesse sentido, Douglas Carrara, recorrendo a Leví-Strauss, avalia que a lógica do pensamento médico popular é implícita, não explícita, a magia é sempre uma arte, nunca uma ciência (CARRARA, 1994, p. 196). Contudo, para desvendá-lo, faz-se necessário [...] indagar qual é a técnica que utiliza para classificar e observar os diversos elementos da natureza. [...] sob o manto do mistério frequentemente se esconde um conhecimento passível de ser comprovado experimentalmente, nascido de uma longa, continuada e instintiva observação dos fenômenos naturais. Existe toda uma lógica que elabora um sistema classificatório, que denomina e qualifica doenças, plantas, animais e minerais. [...] A sua sobrevivência é garantida pela tradição cultural e pela legitimidade de suas curas. [...] Convive conflituosamente com a medicina alopática, não deixando, entretanto, de estabelecer influências mútuas. (HOLANDA, 1994, p. 191-197).

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presente, existe uma lógica, porque, ao contrário, sua persistência não se

O ofício de benzedores tem sua origem vinculada à zona rural e ao catolicismo tradicional, implantado desde a colonização portuguesa, que, pelas dificuldades em povoar e administrar mais de perto o sertão, possibilitou a multiplicação de práticas culturais religiosas, entre elas, o exercício da medicina “rústica”, de caráter teológico. O isolamento e as necessidades de sobreviver proporcionaram o desenvolvimento de ofícios curativos, entremeados pela fé e solidariedade. A esse respeito, Elda Rizzo de Oliveira nos revela: [...] na roça, benzedores e curadores eram quase todos católicos, viviam num espaço de relações de produção marcado pela afetividade familiar e comunitária (solidariedade entre vizinhos, mutirão, trocas cerimoniais, festas sazonais, lazer). Viviam num espaço geográfico restrito, no qual recriavam um universo de experiências marcado por símbolos sagrados. Paralelamente, elas tinham uma relação muito forte com a natureza e possuíam um saber muito útil sobre a agricultura: produziam uma classificação e uma seleção de plantas, ervas, raízes que eram utilizadas como recursos terapêuticos. Desse conhecimento, contudo, parte poderia ser conhecida e partilhada por toda a comunidade. A outra parte era segredo do ofício, transmitido aos noviços em condições muito particulares. (OLIVEIRA, 1985, p. 28).

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No interior das Minas Gerais, é possível observar mudanças não só no que se refere ao seu espaço geográfico, mas também nas relações sociais de produção antes vigentes. O trabalho de tipo familiar, as relações de vizinhança, de parceria estão se esgotando, as figuras do boiadeiro, tropeiro, carreiro, entre outros, estão desaparecidas. O capitalismo penetrou no campo, impondo como presença constante o boia-fria, o “gato”, os sem-terras. As estradas foram alargadas e asfaltas para dar vazão a uma produção pecuária e de grãos para o mercado externo. Por essas estradas, também transitam famílias desapropriadas, benzedores e curadores que migram em busca de melhores condições de vida, só visualizadas no espaço urbano. Entretanto, se algumas profissões e relações anteriores desapareceram, outras sobrevivem. A forma de exercer a profissão se recria, se renova, se atualiza, mantendo, porém, a aceitação no ato mágico de curar, conforme declaram os moradores do lugar: 220

[...] antigamente, quando nois morava na roça, porque nois moramo lá nos Coquero a vida intera, só vim pra cá cuns meus filho grande pra estudá. Tamém nóis viemo pruque a terra era poca e num dava pra sustentá mais todo mundo, sabe cumo é? depois de 70, num dava mais pra competi cum quem tinha dinheiro, muita terra e máquina. Então, até 70, ainda existia muita benzedera, curadô nas roça. A gente num tinha médico, era difícil vim pra cidade, então, a gente recorria a essas pessoa. Quase toda família tinha alguém que benzia. Eu mesmo aprendi a benze coisa simples com minha avó. Benzo de cobrero, costuro ventre-virado, essas coisas mais simples mesmo. Porque lá tinha gente com dom, gente de poder, curava mal olhado, mordida de cobra, bichera e outras coisa. Hoje a gente vai no médico,mas num dexa de recorrê às garrafada, às benzeção. Parece que na cabeça da gente um completa o ôtro. (ARAÚJO, 1995). [...] Olha dona Maria, tem umas doença, umas situação de vida que num adianta i só no médico não. Por inxemplo o cobrero, a isipela, o mal olhado só mesmo cum benzição, curadô bão. Pode tomá remédio de farmácia que fô, se num benzê, tivé uma força grande contra o mal a gente vai definhano até morrê. Mesmo! Eu sei de pessoa assim chegada, da famia, que se num fosse o Otávo que era um grande curadô, já tinha ido pro beleléu. Foi caso de mal olhado. Injeção, dotô num adiantô mesmo. Se o home num tivesse receitado

A benzeção e o curandeirismo são práticas que muitas vezes se confundem, pois que o curador, quase sempre, também benze. Entretanto, a benzeção se manifesta, essencialmente, através de palavras e do gestual de imposição das mãos, enquanto o curador serve-se também dos usos da flora e da fauna para elaborar remédios (MARTINS, 1991; 1986; CASCUDO, 1988; OLIVEIRA, 1984). Elucidando esses procedimentos, Núbia Gomes e Edimílson Pereira informam que [...] a benzeção é uma fala ao inconsciente coletivo de onde se retira a doença e onde se coloca, pela palavra, a saúde, restaurando-se o equilíbrio. Durante o período de permanência da desarmonia, o benzedor mantém a esperança e a calma, detendo, com a palavra e o gesto mágico, o prolongamento do mal. Daí advém o valor social do benzedor, cercado de prestígio pela eficácia do rito por

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as pranta dele e rezado o fim havia de té sido triste. (SOUZA, 1995).

ele exercido. [...] A palavra está no princípio do mundo [...] a força criadora do Verbo, modeladora de todas as realidades e instrumento por demais conhecido dos deuses. [...] Há pessoas iniciadas, capazes de manipulá-la, adquirindo o status de intermediários entre uma autoridade sagrada e a imediaticidade do cotidiano, são palavras que registram a totalidade de um tempo e preservam as relações essenciais entre realidades aparentemente díspares. [...] É a palavra que reconstrói a unidade ameaçada desde o dia em que o homem, sentindo sua fragilidade diante da natureza, rezou aos céus pedindo proteção. (GOMES, 1989, p. 72-73).

É a integração homem/natureza, base do pensamento místico, que explica o papel decisivo dos elementos naturais nas benzeções. Além da palavra recitada, a presença de elementos tais como a água, o fogo, o ar, a terra e a vegetação concorrem para o extermínio do mal. A água, fonte de vida, fortalece, revifica. O fogo simboliza a iluminação, a purificação, por isso, destrói o mal por meio da queima. O ar, associado ao vento, transfere a força vital das palavras. Nesse sentido, os ramos verdes, as folhas agitadas produzem a aragem que imortaliza por meio da vida espiritual. A terra em oposição ao céu, por suas características femininas, é mãe, nutriz, protege contra o aniquilamento das forças humanas, é símbolo de fertilidade. Imaginário e representações: entre fios, meadas e alinhavos

Os excrementos animais ou humanos, tais como: saliva, unha, fezes, urina, sangue, leite, cabelos, couro, chifres, são considerados agentes que afastam o mal; contêm a força biológica sagrada, porque neles permanece a energia vital do corpo que o produziu. Para fechar o corpo contra as forças do mal, figuras geométricas são

simbolicamente reconstruídas. A cruz, associada ao círculo e ao quadrado, domina os pontos cardeais, por isso, sua abrangência é infinita. O sentido gestual acompanha o sentido da direita para a esquerda, de acordo com a marcha do sol, pois que a esquerda remete ao inferno, às forças do mal. A lua, em oposição ao sol, é respeitada e sua força e energia fazem andar, crescer, brotar. Os instrumentos intermediários usados como coadjuvantes à palavra,

devem ser virgens, não-tocados, utilizados apenas nas etapas do processo ritual. Deles, podem fazer parte panos, facas, machados, plantas, velas, in-

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censos, novelos, linhas, agulhas, entre outros. O simbolismo dos números também está presente nas fórmulas da benzeção: o três, o sete e o nove, têm um poder especial de neutralizar o mal. Os números ímpares se articulam à ideia de virilidade, perfeição, não podem partir-se em dois, daí a sua força. (CASCUDO, 1988; GOMES, 1989). A partir dos dados coletados na região pesquisada, organizamos um quadro revelador das diversidades das doenças e das formas de benzeção propostas para restaurar as energias vitais: Diversidades das Doenças e das Formas de Benzeções/ Minas Gerais Desterrar

Juntar as partes

Tirar o malefício

Cortar a doença

sarampo

hérnia

caxumba

catapora

morte

Verminose,

praga de plantas

carne quebrada

constipação

sapinho

tumores

miséria

verruga

piolhos

doença

epilepsia

carne partida

cisco no olho

Fogo e animais peçonhentos

cobreiro

veneno cobra

fome

hemorroida

dor de cabeça

erisipela

íngua

seca

inflamação do peito

terçol

raiva animal

bicheira

inveja

unheiro

mal olhado

coqueluche espinhela caida

dor de dente

medo

queimadura

Deter

quebrante feitiço

engasgo

inimigos ladrões raios e trovões

Dados colhidos pela pesquisa de campo – 1990-2000.

A benzeção, ao contrário do curandeirismo, é, quase sempre, uma especialidade feminina. É a mulher quem detém o segredo das palavras, dos gestos que exorcizam o mal. Mais detalhista e sensível, é atenta aos ritos, doadora por natureza, mais afeita às oferendas. O seu ofício é, quase sempre, determinado pela descoberta do “dom” de benzer. Em todos os depoimen223

Imaginário e representações: entre fios, meadas e alinhavos

desinteria

cólica

Ordenar a Pedir proteção/ saída do mal fechar o corpo

tos colhidos entre as benzedeiras, o ponto comum de suas histórias de vida foi o momento significativo da descoberta desse dom, revelado, não raro, casualmente no seu cotidiano. Rezar por um conhecido ou pessoa da família que, estando doente, recebe a graça da cura, um sonho, a visão ou a voz de uma santa, ou de um ente querido reconhecido pelo exemplo de vida, podem ser os sinais de iluminação para a cura. Entretanto, ser portadora de um dom é condição necessária, mas não suficiente para a realização e o reconhecimento de seu trabalho. O processo iniciatório de aprendizado das orações, dos gestos, das plantas, de toda a simbologia que compõe o ritual e, principalmente, dos sintomas do mal, requer tempo e amadurecimento. Essa prática está sedimentada nas relações de vizinhança, de parentesco e, acima de tudo, de solidariedade para com o outro. É o que aprendemos com depoimentos: [...] As benzedera geralmente é muié pruque elas transmiti mió o amor, muié é que nem a terra, dá a vida prus otro, né? Sê benzedera num é da noite pro dia, não senhora. Eu, pur inxemplo, descobri o dom quando tive uma visão de Santana. Eu contei pra minha avó e ela disse: ‘minina, ocê é capaiz de me saí uma boa benzedera’. Ela já era uma boa benzedera, me insinô tudo, divagá, todo dia um poquinho. Eu acompanhava ela e ela me insinava: ‘oh! Esse aqui Imaginário e representações: entre fios, meadas e alinhavos

tá sofreno disso, usa arruda cum alecrim, reza desse jeito, vai pela direita, corta, é assim, assado’. Num é que minha vó me iscoieu, tinha muitas otras pessoas, até da familha, mais eu que tinha o dom, né? (JESUS, 1996). [...] Um dia um dos meus irmãos adoeceu e eu rezei pra ele, acendi uma vela e vi uma luz pru riba da cabeça dele. Esse era o sinal, ele sarô. Maisi dispois dessa visão muitas coisas aconteceu, que hoje eu fico pensano que era tamém sinal de Deus, que eu tinha uma força de curá, que eu nem dei por conta. Quando eu fui ficano mais velha, uma madrinha minha percebeu que se eu tocava num doente ele melhorava. Aí ela falô: – “o minha fia, ocê tem de desenvorve esse dom, sinão ocê até adoece!” Foi aí que eu comecei a aprendê cum ela e foi um alívio, quando mais eu benzia e curava, mais forte eu ficava. Nem dor de cabeça, cólica eu tenho. É assim mesmo. Se ocê tivê o dom e passa coisas boa prus otro é como uma corrente, a bondade vorta pro cê. (SILVA, 1996).

224

Com o progresso e a urbanização do interior de Minas Gerais, as benzedeiras migraram para as cidades, no entanto as suas atividades se mantêm, persistem, bem como a procura pelos seus préstimos. A sua recomposição no espaço urbano se enriquece por meio de novos símbolos, recria-se, renova-se, atualiza-se. A clientela amplia-se, diversifica, assim como a busca alternativa por curar doenças, até então, desconhecidas. Independentemente da sua situação financeira ter-se agravado, o que leva algumas benzedeiras a buscar trabalho fora de casa, elas ainda mantêm a regra de não cobrar por seus serviços. Isto se explica por ser ela a mediadora de diversas santidades, entidades ou mesmo de Jesus, e ninguém paga ou compra uma graça divina por via monetária, mas por merecimento. Quando muito, aceitam ofertas em gêneros alimentícios ou qualquer outra ajuda como forma de complemento de sua renda. A sua presença na cidade, ainda hoje, é uma forma de resistência cultural, não obstante percebemos que, mesmo que a demanda pelos seus trabalhos não tenha diminuído, a iniciação nesse ofício tem, contraditoriamente, arrefecido. Esse labor se justifica, segundo nossos depoentes, pelos fundamentos bíblicos. Entre eles, citam-se: Jesus respondeu-lhes: ‘tende fé em Deus. Em verdade vos digo, se alguém mas crer que o que diz se realiza, assim lhe acontecerá’. Por isso vos digo: tudo quanto suplicardes e perdides, crede que recebestes, e assim será para voz. (BIBLIA, 1989 - Marcos 11, p. 22-24).

As práticas culturais estão sendo recriadas e recicladas, mas o fato é que, enquanto os homens acreditarem em um poder superior ao seu para estabelecer um certo grau de harmonia e ordem em suas vidas cotidianas, enquanto o emocional necessitar do religioso para encontrar equilíbrio e paz, a busca pelos rituais mágicos continuará em uso.

Referências ARAÚJO, Alceu Maynardi. Medicina rústica. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1961.

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Imaginário e representações: entre fios, meadas e alinhavos

disser a esta montanha: erga-te e lança-te ao mar, e não duvidar no coração,

ARAÚJO, Lázara. Depoimento. Coromandel, 7/4/1995. Dona Lázara é costureira, tinha à época 60 anos e é muito conhecida pelo poder de benzer, especialmente, cobreiro. BÍBLIA de Jerusalém. São Paulo: Paulinas, 1989. BORDIEU, Pierre. O poder simbólico. Lisboa: Difel, 1989. CANDIDO, Antonio. Parceiros do Rio Bonito. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1982. CARPENTIER, Alejo. O reino deste mundo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1985. CARRARA, Douglas. Possangaba - o pensamento médico popular. Rio de Janeiro: Ribro Soft Editoria e Informática Ltda, 1994. CASCUDO, Luis da Camara. Dicionário do folclore brasileiro. Belo Horizonte: Itatiaia/São Paulo: EdUSP, 1988. CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 1994. ______. A cultura no plural. Campinas, SP: Papirus, 1995.

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Imaginário e representações: entre fios, meadas e alinhavos

QUEIROZ, Maria Izaura Pereira de. O campesinato brasileiro. Petrópolis, RJ: Vozes, 1976.

Os limites do que nos era permitido saber Beatriz Kushnir

1984: Ressurgem as velhas aspirações Olhar, vigiar, controlar, censurar, limitar, policiar, permitir, negar. Ou olhar, observar, descobrir, conhecer, nomear, reconhecer. Duas faces da mesma moeda, em que cada uma esconde/aprisiona uma escolha. Temática atemporal, o interdito, na sociedade altamente tecnológica e de olhos vigilantes sobre os habitantes das cidades, possui justificativas para essas duas facetas. ças políticas e setores populares buscavam, nas manifestações de rua e nas articulações palacianas, formas de explodir o grito calado pela imposição do arbítrio. O “[...] Brasil de 1984 não era aquele de 1964. Enormes mudanças econômicas haviam acontecido, viu-se o fim de uma geração inteira de políticos, e havia uma população cuja maioria das pessoas nascera nas duas últimas décadas”. (SKIDMORE, 1988, p. 66-7). Transformações, certamente, estavam em curso. Mas “velhos políticos” – como se pôde perceber nas articulações para a sucessão do general Figueiredo, que ocorreria em março de 1985 –, novamente, estariam no centro do palco. Assim, uma tradição política, que teve seu auge em 1964, soube se reformular e contou com um golpe do destino para estar outra vez no “olho do furacão”. Por outro lado, resquícios de gerações que estavam

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Imaginário e representações: entre fios, meadas e alinhavos

Brasil, 1984: vinte anos depois de 31 de março/1° abril de 1964, for-

na “boca de cena” dos anos 1960 e 1970 também retornaram, beneficiados pela Anistia, assinada em agosto de 1979. Outra vez se encontrariam esses revolucionários, autoexilados, banidos ou não, com seus algozes, juntando-se a eles uma geração que nascera nesse hiato de tempo. As marcas deixadas, de ambos os lados, por esses anos de autoritarismo, somadas às novas posturas que cada grupo e cada indivíduo construiu para si, determinariam que 1984 não era 1964. No centro dos acontecimentos, o intuito de fazer valer o voto colocava-se como uma das prioridades nas negociações para as quais convergiam os diversos espectros políticos. Eleger o presidente da República, naquele momento, representava a forma de estabelecer e construir estruturas políticas mais democráticas, rompendo com a autoritária representação das indicações indiretas do pós-1964.1 O primeiro comício pelas “Diretas Já”, no fim de 1983, realizado pelo PT no estádio do Pacaembu, em SP, tornou-se um marco, por romper com a ideia de que era loucura realizá-lo. Definitivamente, uma euforia estava no ar! Assim, durante as comemorações pelo 430° aniversário da cidade de São Paulo, em 30/1/1984, ocorreram outras demonstrações populares sob esta bandeira. A apatia e a inércia, um sono, porém, mais que isso, o medo do terror parecia estar chegando ao fim. O povo queria tomar as ruas e, em Imaginário e representações: entre fios, meadas e alinhavos

10/4/1984, compareceu em massa à Avenida Presidente Vargas, no Rio, ao megacomício, convocado, principalmente, pelos partidos de oposição e para o qual veio um milhão de pessoas. Em São Paulo, foi para a Praça da Sé, seis dias depois, e continuou a gritar por “Diretas Já!”. Os comícios eram embalados por muita música, a maioria delas proibidas pela censura até então. Naquele instante, parecia se estar construindo uma ponte, unindo esse

momento a junho de 1968, quando o Rio de Janeiro viveu a “Passeata dos cem mil”. O desejo era resgatar o clima daquelas manifestações e reafirmar o “inato espírito democrático do povo brasileiro”. A democracia brasileira, nesse discurso, era algo escondido que deveria mais uma vez vir à tona. Esta Daniel Aarão Reis Filho, comentando o processo de anistia política brasileira, aprovada em 28/08/1979, o interpreta como o de luta que se autoconstruiu como resgate de supostas raízes democráticas. Assim, propõe-nos pensar que a sociedade brasileira sempre foi contra a ditadura e pôde se reencontrar com ela durante as negociações que aprovaram a anistia recíproca, para torturados e torturadores. (REIS FILHO, 2000, p. 113-9).

1

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va, segundo essa perspectiva, nas raízes da sociedade e deveria ser resgatada. Em meio às lutas por fazer valer o voto popular e sob a pressão dos comícios pelas Diretas, no dia 25/4/1984, foi votada a emenda à Constituição que possibilitaria, depois de vinte anos, que cidadãos e urna se reencontrassem para esse tipo de pleito. Uma semana antes da votação da proposta do deputado Dante de Oliveira, o general-presidente Figueiredo moveu as peças do tabuleiro para impedir o direito ao voto da nação. No dia 17 de abril, fez chegar uma Emenda Constitucional que, em 38 inovações, restabelecia o sufrágio universal para presidente nas eleições de 1988. No dia da votação da emenda pelas Diretas, um aparato de segurança máxima foi montado, as TVs e rádios foram censurados, seis mil homens do Exército se espalharam pelas ruas de Brasília, comandados pelo general Newton Cruz – o chefe da agência central do SNI, com sede na capital federal –, obedecendo às medidas de emergência decretadas pelo governo. O clima popular era de euforia, mas a revista Veja daquela semana já apontava as chances mínimas de que o objetivo fosse alcançado. A emenda constitucional, de autoria do deputado federal pelo MDB de Mato Grosso, Dante de Oliveira, que permitiria a realização de eleições presidenciais diretas no país, foi derrotada. E a população, novamente impedida de exerNacional para ratificar o desejo das massas.2 O próximo pleito continuaria indireto, mantendo a tradição do pós-1964. O desenrolar dos acontecimentos e a trágica morte de Tancredo Neves – o presidente eleito indiretamente –, deslocaram o foco para o senador maranhense José Sarney, o vice de Tancredo. Essa mudança de protagonista daria um novo rumo à política dali para frente. Muitas arestas ainda precisavam ser aparadas e, principalmente, havia a necessidade de se redefinir um novo pacto político-social, diferente do estabelecido em 1964, e que se os acontecimentos de 1984 novamente frustraram, dele ao menos lançaram uma semente.

No plenário da Câmara Federal, a emenda recebeu 298 votos. Faltaram 22 para completar os dois terços necessários.

2

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cer sua cidadania, já que não se conseguiram os dois terços do Congresso

Tempos não tão novos É oportuno retroceder no tempo, para melhor concentrar o foco de análise. Terminado o Estado Novo, ao se regular e reestruturar o Serviço de Censura de Diversões Públicas (SCDP), do então Departamento Federal de Segurança Pública (DFSP), foi editado, em 24/01/1946, o decreto nº 20.493. Foi o Serviço que administrou as questões da moralidade e dos bons costumes até ter o seu fim decretado pela Constituição de 1988. Ou seja, por 42 anos, um mesmo conjunto de artigos e normas balizou as atividades artísticas e orientou a programação de rádio, cinema, teatro, música e até mesmo da TV, muito embora tenha sido instaurado antes do advento deste último veículo. O decreto nº 20.493/46 propunha nova forma e conteúdo ao direito do Estado de regular a liberdade de expressão nesses novos tempos, após os desmandos do DIP – Departamento de Informação e Propaganda, criado na ditadura estado-novista. É interessante sublinhar, no entanto, que um governo – o de Dutra –, eleito pelo povo, depois de um longo período ditatorial (1937-1945), refez uma legislação invasiva e centralizadora, como a que regia o DIP, para, nos ares de liberdade, assegurar o domínio de outra Imaginário e representações: entre fios, meadas e alinhavos

forma, conservando ainda, porém, o conteúdo regulador. O ato censório, por vezes, se reveste de um suposto movimento pen-

dular entre o direito à liberdade e o risco do abuso. São esses os dois marcos a serem preservados, na visão de um Estado democrático. O discurso autoritário, quando quer negar que exerce a censura, também se afirma preocupado em garantir o acesso à informação, mas investido de preservador da moral. Partindo dessas duas formas de encarar a censura, pode-se estabelecer a ação do Estado nessa seara em duas frentes: uma, preventiva, outra, repressiva. Uma anterior ao evento, outra de punição a este. Neste sentido, o [...] poder de Polícia constitui o instrumento de que se vale o Estado para, no cumprimento de sua missão de controle social, garantir a paz, a segurança, a ordem, o desenvolvimento harmônico da sociedade, o respeito aos direitos e garantias individuais e a realização do bem-estar da população. É em tal campo que se insere o direito de censura.(ROSA, 1974, p. 209).

232

Para o jornalista Pompeu de Souza, o nº 20.493/46 era um dos marcos para se perceber como a censura se valia de uma legislação “obsoleta”, e como essa foi amplamente exercida no pós-1964. O decreto, composto de 136 artigos, divididos em 13 capítulos, perfilava condutas e dispunha sobre: o funcionamento interno do SCDP; a censura prévia; o cinema; o teatro e as diversões públicas; a radiofonia; os programas; as empresas; os artistas; o trabalho de menores; o direito autoral; a fiscalização; as infrações e as penalidades. Foi esse decreto que justificou a grande maioria dos pareceres dos censores, autorizando ou vetando, até 1988. Enorme e tentacular, era capaz de dar conta de cada diferente veto. Todos os censores que entrevistei o sabiam de cor e o citavam no artigo ou parágrafo adequado a cada situação. Difícil é lidar com o fato de que, feito em um período de redemocratização, justificou proibições ditatoriais. De 1946 a 1963, o censor ganhou cada vez mais visibilidade em seu trabalho e esteve sempre a postos nos teatros, clubes, circos e qualquer outra casa de diversão. Para garantir o cumprimento do seu trabalho, a partir de 1952, na segunda gestão de Vargas, deveriam ser remetidos ao SCDP, nos dez primeiros dias de cada ano, dois ingressos de acesso permanente do chefe desempenho da função, esses tickets “devem ser nas três primeiras filas da platéia em posição de visibilidade e audição” (Decreto nº 30.795, 30/4/1952). Atuando entre a legislação e avanços técnicos, em janeiro de 1956, o Diário Oficial da União publicou a Portaria n° 2, “autorizando o Serviço de Censura de Diversões a exercer a censura prévia das exibições de televisão”. Esta foi assinada tanto pelo chefe da Censura, tenente-coronel João Alberto da Rocha Franco, como pelo chefe de Polícia, general Augusto da Cunha Magessi Pereira, demonstrando que o expediente de censurar previamente, exercido, naquele momento, por um militar, funcionou em períodos democráticos. O exercício da censura ainda não possuía uma visão classificatória da programação. Cortar os “excessos” era o ideário. Seis anos após essa Portaria, o então primeiro-ministro Tancredo Neves e o ministro da Justiça Alfredo Nasser ratificam que qualquer programa

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Imaginário e representações: entre fios, meadas e alinhavos

do Serviço e de seus censores aos estabelecimentos. De modo a assegurar o

artístico dependeria da aprovação do Serviço de Censura, que não iria “classificar o melhor horário de exibição e sim garantir pela moralidade social frente a qualquer abuso do espetáculo”.

Depois de 1964 Se o período anterior a 1964 circunscreve a questão censória ao decreto nº 20.493, logo nos primeiros meses do governo Castelo Branco, em novembro de 1964, reorganizou-se o Departamento Federal de Segurança Pública (DFSP). Continuou sendo função deste departamento a censura das diversões públicas, com ênfase especial nos filmes. No organograma burocrático, a estrutura, que não se alterou até 1988, era a seguinte: Presidência da República 6 Ministério da Justiça e Negócios Interiores (MJNI) 6 Departamento Federal de Segurança Pública (DFSP) (a partir de 1967, Departamento de Polícia Federal)

6 Imaginário e representações: entre fios, meadas e alinhavos

Polícia Federal de Segurança

6

(desaparece em 1967) 6

Superintendências Regionais da PF

Censura Federal 6 Censuras Estaduais

Menos de um mês antes do AI-5, o então ministro da Justiça Gama

e Silva editou uma lei, a de nº 5.536, de 21/11/1968, que dispôs sobre as novas regras de censura às obras teatrais e cinematográficas. Revolucionando conceitos, no seu artigo primeiro, sentenciou que a censura das peças teatrais seria classificatória. Um pouco mais adiante, mesmo proibindo quaisquer cortes nos textos, abre uma brecha a esse avanço: desde que não atentem “contra a segurança nacional e o regime representativo e democrático, [...] [ou] incentivem a luta de classes”. 234

Esse instrumento jurídico também se refletiu sobre o executor das medidas censórias – o censor. Assim, refez planos de carreira e estipulou que, para o exercício de tal cargo, era indispensável que se apresentasse o “diploma, devidamente registrado, de conclusão de curso superior de Ciências Sociais, Direito, Filosofia, Jornalismo, Pedagogia ou Psicologia”. Regra que não se alterou até a extinção da carreira, decretada pela Constituição de 1988. Menos de um ano depois dessa norma, o decreto-lei 972, de 17/10/1969, que regulou o exercício da profissão de jornalista, confirmava, no seu artigo 7°, “não haver incompatibilidade entre o exercício da profissão de jornalista e de qualquer outra função remunerada, ainda que pública, respeitada a proibição de acumular cargos e as demais restrições da lei”. Essa brecha jurídica, somada a uma prática de os jornalistas terem empregos públicos como forma de se proteger, um pouco, da instável carreira, explica e justifica a existência de jornalistas exercendo suas funções em concomitância ao exercício de cargos públicos. Talvez o principal artigo da 5536/68 seja o de número 15, que criou o Conselho Superior de Censura (CSC), órgão diretamente subordinado ao Ministério da Justiça. Essa norma e, especialmente, o dispositivo do CSC deram a esse recurso jurídico um caráter liberal e progressista, nunca, porém, de propor algo transformador –, já que sugeria a institucionalização de uma instância de recurso. O CSC, subordinado ao ministro da Justiça, deveria ser composto por 16 membros – sete deles ligados ao governo (Ministério da Justiça, das Relações Exteriores, das Comunicações; Conselho Federal de Cultura, de Educação; Serviço Nacional de Teatro; Instituto Nacional de Cinema e Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor), e nove ligados à sociedade civil (Academia Brasileira de Letras; Associação Brasileira de Imprensa, dos Autores Teatrais, dos Autores de Filmes, dos Produtores Cinematográficos, dos Artistas e Técnicos em espetáculos de Diversão Pública, dos Autores de Radiodifusão). Este conselho tinha por competência [...] rever, em grau de recurso, as decisões finais, relativas à censura de espetáculos e diversões públicas, proferidas pelo Diretor-Geral do Departamento

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utilizado em sua plenitude máxima. A 5.536/68 trouxe avanços – no sentido

de Polícia Federal e elaborar normas de critérios que orientem o exercício da censura, submetendo-se à aprovação do Ministério da Justiça (BRASIL. Lei n. 5.536, 21/11/1968, art. 17).

As propostas contidas nessa lei apontavam para um quadro liberal, o qual, infelizmente, não se desenhou. Estabelecia um foro intermediário entre a decisão da DCDP, apoiada pelo DPF, e o ministro da Justiça, e teria ainda uma maioria composta fora dos quadros do governo. Em tese, era, então, perfeita. Poucos dias depois, entretanto, foi decretado o AI-5 e o endurecimento, tanto das políticas de Estado, como das normas de censura se tornaria absolutamente patente. Por um lado, a ideia do Conselho era de possuir uma maioria de componentes fora dos quadros do governo. O artigo 18 da lei de 1968, estabelecia que da “decisão não unânime do Conselho Superior de Censura caberá recurso ao Ministro Justiça”. Ou seja, a deliberação do Conselho não era soberana em uma maioria simples. Tal dificuldade gerou embates, pois era quase impossível que tantas opiniões concordassem e, uma só voz destoante quebrasse essa harmonia tênue. Por outro lado, o artigo 3° desta lei impunha uma interessante reflexão:

Imaginário e representações: entre fios, meadas e alinhavos

[...] para efeito de censura classificatória de idade, ou de aprovação, total ou parcial, de obras cinematográficas de qualquer natureza, levar-se-á em conta não serem elas contrárias à segurança nacional e ao regime representativo e democrático, à ordem e ao decoro públicos, aos bons costumes, ou ofensivas às coletividades ou às religiões ou ainda, capazes de incentivar preconceitos de raça ou de lutas de classes (BRASIL. Lei n. 5.536, 21/11/1968, art. 3, grifo da autora).

A despeito da pretensa liberdade, contida na lei nº 5.536/68, o mo-

mento seguinte ao de sua sanção – para muitos juristas, o de vigência não oficial de um estado de sítio – determinou que não vingasse no pós-1968, por razões óbvias, o que nela existia de mais transformador. Por isto, quando se precisava prejudicar o interdito, muito mais adequado aos pareceres dos censores mostrou-se o decreto de 1946. Entretanto, existe algo na lei nº 5.536/68, essencialmente em seu artigo 3º, acima citado, que se constituiu, no pós-AI-5, em motivo de preocupação do governo e do ministro da Justi-

236

ça. Uma brecha para a possível aplicação da censura foi explicitada no artigo acima, definindo muito bem a sua atuação no pós-1968. Mantendo uma continuidade, a censura no pós-1968 esteve dividida em duas instâncias: uma se aplicava à diversão, outra à imprensa. Ambas de cunho político; contudo, no primeiro caso, este permaneceu encoberto sob preocupações quanto a “moral e bons costumes”. O órgão fiscalizador da imprensa tinha, como adiante se verá, um caráter secreto, fora do organograma tanto da Polícia Federal, quanto do Ministério da Justiça. O artigo 3º da 5536/68, ao enunciar que manifestação alguma poderia ser contrária às questões de política e segurança da nação, como também aos elementos da moral e dos bons costumes, deixou exposto que a censura, nesse momento, era percebida sempre como um ato político, e não restrito apenas ao universo das diversões públicas. Tudo – do livro ao filme, do jornal à música, do teatro ao carnaval – seria objeto de censura: avaliação, aprovação ou proibição. Com o AI-5, em 13/12/1968, estabeleceu-se o recesso do Congresso, a suspensão dos direitos políticos, a proibição das manifestações públicas, e a suspensão dos habeas corpus. Esse endurecimento do regime, obviamente, mobilizou as ações de censura, que serviram de base para a concretização dessa força dura sobre o corpo social. Há que se ter em mente, contudo, e em andamento. O arcabouço legal para as questões censórias ainda não estava pronto em fins de 1968, muito embora a ausência desse aparato legal completo não tenha impedido que os atos censórios tenham ocorrido naquele mesmo instante.3 No próprio dia 13/12/1968, as imprensas carioca e paulista receberam manuais de comportamento, com normas semelhantes em conteúdo e discriminatórias do que passava a ser permitido divulgar e dar a conhecer:4

O jornal O Estado de S. Paulo começou a receber censura na véspera do AI-5, como expôs o jornalista Oliveiros S. Ferreira (entrevistas à autora, em 17/6 e 30/9/1997).

3

Estas notas, publicadas pelo jornal Resistência, em 21/1/1969, foram cedidas à autora pelo jornalista Élio Gaspari. Nos originais entregues, não constava o item 3 no “manual” do Rio de Janeiro.

4

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que tanto a lei nº 5.536/68, como o AI-5 expõem projeto político maior

Manual distribuído no Rio de Janeiro 1. Objetivos da censura:

a) obter da imprensa falada, escrita e televisiva o total respeito à Revolução de Março de 1964, que é irreversível e visa a consolidação da democracia. b) evitar a divulgação de notícias tendenciosas, vagas ou falsas que possam vir a trazer intranquilidade ao povo em geral. 2. Normas: a) Não deverão ser divulgadas notícias que possam: –– propiciar o incitamento à luta de classes –– desmoralizar o governo e as instituições –– veicular críticas aos atos institucionais –– veicular críticas aos atos complementares –– comprometer no exterior a imagem ordeira e econômica do Brasil –– veicular declarações, opiniões ou citações de cassados ou seus porta-vozes –– tumultuar os setores comerciais, financeiro e de produção –– estabelecer a desarmonia entre as forças armadas e entre os poderes da República ou a opinião pública –– veicular notícias estudantis de natureza política –– veicular atividades subversivas, greves ou movimentos operários 3. Prescrições diversas Imaginário e representações: entre fios, meadas e alinhavos

a) a infração das normas do nº 3 implica a aplicação das sanções previstas em lei. b) os espaços censurados deverão ser preenchidos de forma a não modificar a estrutura da publicação ou programa. c) as presentes instruções entram em vigor no ato do recebimento, revogando-se as disposições em contrário. Ass.: General de Brigada César Montagna de Souza (RESISTÊNCIA, 21/01/1969).

Manual distribuído em São Paulo

1) Manter o respeito à Revolução de 1964; 2) Não permitir notícias referentes a movimentos de padres e assuntos políticos referentes aos mesmos; 3) Não comentar problemas estudantis;

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4) Não permitir críticas aos Ato Institucionais, às autoridades e às FFAA; 5) As notícias devem ser precisas, versando apenas sobre fatos consumados; 6) Não permitir informações falsas, supostas, dúbias ou vagas; 7) Não permitir notícias sobre movimentos operários e greves; 8) Não permitir aos cassados escrever sobre política 9) Não publicar os nomes dos cassados a fim de não colocá-los em evidência, mesmo quando se trate de reuniões sociais, batizados, banquetes, festas de formatura. A prisão dos cassados poderá ser noticiada, desde que confirmada oficialmente; 10) Não publicar notícias sobre atos de terrorismo, explosão de bombas, assaltos a bancos, roubos de dinamite, roubos de armas, existência, formação ou preparação de guerrilhas em qualquer ponto do território nacional, ou sobre movimentos subversivos, mesmo quando se trate de fato consumado e provado. Ass. : General Silvio Correia de Andrade (RESISTÊNCIA, 21/01/1969).

Mais uma volta no parafuso Sete meses se passaram entre a decretação do Ato Institucional no 5 e os últimos dias do governo Costa e Silva, quando, em 17/10/1969, promulgou-se a Emenda Constitucional nº 1. Esta, em seu artigo 8, letra “C”, finalidade de “apurar infrações penais contra a segurança nacional, a ordem política e social ou em detrimento de bens, serviços e interesses da União”; e na letra “D”, regulou que seria função dessa Polícia promover a censura de diversões públicas. Desde a transferência da capital federal para Brasília, em 1960, foi esse o primeiro momento em que se expôs, com clareza, o locus da centralidade do poder de polícia e, mais uma vez, a censura faria parte das suas atribuições. Esta mesma Emenda, no artigo 153, parágrafo 8 decretava que É livre a manifestação de pensamento, de convicção política ou filosófica, bem como a prestação de informações independente de censura, salvo quanto a diversões e espetáculos públicos, respondendo cada um, nos termos da lei, pelos abusos que cometer. É assegurado o direito de resposta. A publicação de livros, jornais e periódicos não depende de licença da autoridade. Não serão toleradas a propaganda de guerra,

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dizia ser de competência da União organizar e manter a Polícia Federal com a

de subversão da ordem ou de preconceitos de religião, de raça ou de classe, e as publicações e exteriorizações contrárias à moral e bons costumes (BRASIL. Emenda constitucional n. 1, 17/10/1969, grifos da autora).

Os fatos posteriores demonstraram que um abismo havia sido aberto entre o texto da lei e as práticas de censura. Neste sentido, muitas vezes, verificou-se um rearranjo das normas jurídicas que dessem legitimidade ao ato autoritário. É oportuno perceber que havia uma engrenagem em curso. Diversos órgãos das administrações federais, estaduais e municipais trabalhavam em conjunto para um mesmo fim. O início de todo esse processo de vigilância mais acirrada teve seu início, certamente, no fim de 1968. Com as regras sendo postas à mesa a partir de então, no dia 25/10/1969, cinco dias depois da publicação da Emenda Constitucional nº 1 no Diário Oficial da União, foi empossado, após eleição por vias indiretas, o general Emílio Garrastazu Médici (1969-74), sendo o seu ministro da Justiça o jurista Alfredo Buzaid. O Congresso Nacional, fechado desde o AI-5, foi reaberto para sagrar – no sentido de investir numa dignidade, por meio de cerimônia, esse ato. Aqui, é pertinente, portanto, uma ressalva: se o período analisado é o do desmando, por que perseguir o seu rastro pela via legislativa? Primeiro, porque se “tudo se podia fazer” tendo o AI-5 como retaguarda, é oportuno Imaginário e representações: entre fios, meadas e alinhavos

pensar que, mesmo assim, havia toda a máquina burocrática armada para executar os desmandos. Em segundo, porque será na análise mais ampla desse panorama legal, no período republicano, que observações de permanência e rupturas ficarão mais evidentes e, neste sentido, mais chocantes. Finalmente, porque tendo essa noção de conjunto, compreende-se o quanto ela foi introjetada lentamente, sendo impossível de ser anulada, anos mais tarde, apenas pela via formal. Uma provável resposta a essa regulamentação é que, nesse momento,

reinava, além do arbítrio, um jogo de farsas. O arcabouço legislativo montado também era uma tentativa de dar um rosto ao regime, um véu suspenso no ar. Negavam-se a violência e os desmandos que se cometiam. Não havia para eles nem tortura, nem censura. Não havia violação de direitos humanos. Tudo era legal e legalizável, nessa lógica.

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Assim, o decreto-lei nº 1.077/70, de 26/1/1970, promulgado em seguida, também permitia dupla leitura: instituía a censura prévia, ao mesmo tempo em que justificava sua não existência. Os poderes que o AI-5 autorizava, permitia legalizar o ilegalizável. Como sublinha Maurício Maia: [...] o jornalista e advogado D’Alembert Jaccoud colocava o governo Médici contra a parede quando insistia na tese de que não poderia haver censura de caráter político no Brasil pela falta de uma autorização expressa (‘quem se der ao trabalho de ler a legislação em vigor não poderá acreditar que ela se exerça. [...] E o AI-5? Esse documento admite que o presidente da República poderá adotar ‘se necessário à defesa da Revolução’, as medidas da alínea E do parágrafo 2° do artigo 155 da Constituição [...] Não existe, porém, qualquer ato do presidente autorizando a medida para torná-la legal nos termos do AI-5’)

Do AI-5 ao decreto nº 1.077/70, forjou-se uma armadura. O 1.077/70 justificava e legalizava a existência de censura prévia. Para Maia de Souza e para Anne-Marie Smith(2000), o decreto em si não era o instrumento de censura prévia, até porque, pelos informes do governo, a censura não existia. Essas autoras insistem em sublinhar a ilegalidade jurídica da ação censória nos jornais por não existir instrumento algum que a autorizasse. A inconformidade, certamente, está nas palavras de D’Alembert Jaccoud: “quem se der ao trabalho de ler a legislação em vigor não poderá acreditar que ela se exerça”. Mas não foram essas palavras que puseram o governo em xeque-mate. A lógica da ambiguidade, no qual este se calcava, se importava muito pouco com tais expressões desafiadoras.

Decreto secreto Ao ser elaborado o decreto-lei nº 1.077/70, legalizava-se a norma de censura prévia. Assim, se, no capítulo 2 do decreto n.º 20.493/46, o serviço de censura deveria, antecipadamente, analisar e aprovar, na totalidade ou em partes, todas as projeções de cinema, teatro, shows, discos, propagandas e anúncios na imprensa, o 1.077/70 ia bem mais longe. Sempre justificando as proibições pelo resguardo da “moral e dos bons costumes”, como se 241

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(MAIA, 1971, p. 2).

assim lhes anulasse a intenção política, o governo proibia publicações, nacionais ou importadas, que ofendessem esses requisitos. Ou seja, a censura era à imprensa nacional e aos exemplares estrangeiros que aqui chegassem e que estivessem em desacordo com as normas. Estas regras eram praticadas desde o AI-5 e com circulares enviadas às redações, mesmo que a emenda à Constituição dissesse o contrário.5 Uma análise do decreto-lei nº 1.077/70, feita por três censores federais à época da sua edição, elucidava o poder devastador que este podia exercer. Nessa direção, os censores indicavam que [...] o governo considerou, ao baixar o Decreto nº 1.077/70, que o emprego desses meios de comunicação [imprensa escrita e cinema] obedece a um plano subversivo, que põe em risco a segurança nacional e que tais publicações estimulam a licença, insinuando o amor livre e ameaçam destruir os valores morais da sociedade brasileira.(RODRIGUES; MONTEIRO; GARCIA, 1971).6

Para completar o arcabouço, foram editadas duas Portarias (a de nº 11-B, de 6/2/1970, e a de nº 219, de 17/3/1970) e uma Instrução (a de nº 1-70, de 24/2/1970, do ministro da Justiça). Todas se baseavam na legalidade permitida pelo parágrafo 8, do artigo 153, da Constituição Federal Imaginário e representações: entre fios, meadas e alinhavos

de 1967. Tamanha era a arbitrariedade imposta por esse conjunto, que os censores se apressaram em justificá-las ao dizer que essas [...] são perfeitamente constitucionais, segundo declarações do próprio Ministro da Justiça, professor Alfredo Buzaid, e constituem um serviço do Estado, não se podendo, jamais, considerá-los como uma nova forma de autoritarismo, que repugnaria a formação democrática do povo brasileiro. (RODRIGUES; MONTEIRO; GARCIA, 1971, p. 143).

Anne-Marie Smith lembra que o decreto no 1.077/70 impunha o registro dos periódicos junto ao DPF, e que o Movimento Democrático Brasileiro “entrou com uma ação judicial alegando que a lei era inconstitucional. O Supremo Tribunal Federal recusou-se a pronunciar sentença no caso, alegando que o próprio MDB não publicava um jornal e, portanto, não estava diretamente afetado pela lei”. (SMITH, 2000, p. 237, nota 9).

5

Esta publicação era considerada a “Bíblia” dos censores e servia como referência para o embasamento de pareceres.

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O decreto-lei nº 1.077/70 se autodefinia no seu segundo artigo, ao estabelecer que caberia ao ministro da Justiça, “[...] verificar, quando julgar necessário, antes da divulgação de livros e periódicos, a existência de matéria infringente” à moral e aos bons costumes em qualquer meio de comunicação, assistindo ao DPF a execução dessa tarefa. Ao apontar um árbitro, o ministro da Justiça, o 1.077/70 parecia iluminar uma instância superior reguladora de qualquer desmando, um locus apaziguador que impedisse descalabro. No fundo, o que o decreto esclarecia é quem ditaria as regras de censura, o ministro da Justiça. Portanto, a censura era uma questão de Estado, com atuação de polícia na execução das medidas. Por isso, talvez, o Conselho Superior de Censura só tenha saído do papel em 1979, quando o AI-5 deixou de vigorar. Antes, não havia espaço, mesmo que fictício, para esse tipo de foro. Nesse contexto, quando os delegados regionais da PF se reuniram no Rio de Janeiro no início de setembro de 1970, para receberem instruções de como agir no caso da censura, de sua assembleia consta uma pauta de dois pontos: as atribuições da PF a partir de 1° de outubro e as recomendações sobre sua atuação. As instruções de trabalho centravam-se em oito pontos.

Primeiro: quanto às normas gerais, pautava pela veracidade das notícias publicadas; pelo cumprimento da lei de Imprensa, a de nº 5.250/67; e pela proibição do uso de expressões como “fonte fidedigna”, “pessoa ou político bem informado”, “fontes autorizadas da Presidência”, “fontes autorizadas do Ministério, “assessores”; Segundo: quanto à política, deliberava que eram proibidas notícias, declarações, entrevistas etc., de pessoas atingidas pelo Atos Institucionais e membros de organizações estudantis; bem como de declarações contra o governo, ou animosidade entre membros do regime, ou fatos políticos não comprovados; não criticar os Atos Institucionais e a legislação vigente, não divulgar notícias de prisões e censura; Terceiro: quanto aos atos atentatórios ao patrimônio, interditava notícias sobre assaltos a estabelecimentos de crédito; Quarto: quanto aos costumes, proibia a divulgação de crimes ou cenas obscenas que atentassem contra a moralidade da família brasileira;

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Esses eram:

Quinto: quanto aos problemas religiosos, vetava tanto a divulgação da atitude política de clérigos, quanto os episódios que criassem animosidades nessa seara; Sexto: centrava-se nas questões financeiras e proibia a divulgação das políticas econômicas do governo; Sétimo: quanto às questões sociais, censurava a divulgação de movimentos operários, greves, ou qualquer outro tema que promovesse a “subversão da ordem pública”. Era também interditado o comentário a “movimentos subversivos em países estrangeiros, planos de condutas violentas, guerrilhas etc., assim como filmes para televisão de movimentos dessa natureza”; As “recomendações finais” determinavam serem proibidos, “sob qualquer hipótese ou pretexto e, no tocante às matérias acima especificadas, ‘manchetes’, títulos, fotografias ou legendas de caráter sensacionalista, malicioso ou que não correspondam exatamente ao texto” (REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL, RECOMENDAÇÕES...).

Isso posto, as regras estavam claras. Não havia nada caótico e perdido na burocracia, como muitas análises tentam apontar. Não havia acefalia. Até mesmo os temas censórios estavam expostos desde o início, como as notas recebidas no dia do AI-5 comprovam. Mas o jornal O Estado de S. Paulo continuou expondo o sentimento corrente da época, na matéria “Liberdade em deImaginário e representações: entre fios, meadas e alinhavos

bate na ABI”, de 23/3/1972, publicada em sua página 6, ao argumentar que: [...] como a legislação é contraditória, por força do grande número de portarias e instruções que complementam os diplomas de arrocho fundamentais, os jornais continuam à mercê de decisões subjetivas que variam consoante o critério da autoridade encarregada de interpretar os textos. (O ESTADO DE S. PAULO, 23/03/1972, p. 6).

O difícil, certamente, era aceitar a intromissão de censores na redação.

No imediato pós-AI-5, eles eram das Forças Armadas, mas, com o passar do tempo e os acertos dos pontos a serem seguidos pela PF, eles e elas (os técnicos de censura) eram desta Polícia e ligados a DCDP. Existe, contudo, um interessante debate sobre quando se teria iniciado essa segunda fase da censura no pós-AI-5, com a interdição efetiva nas redações. Para o jornalista Paolo Marconi (1980), a partir de notas proibitivas localizadas, a data

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dessa segunda fase seria 10/6/1969. Já para outros autores, como Maia de Souza, a reunião da PF e os oito pontos a serem censurados teriam dado origem a esse processo, a partir do dia estipulado por aquele relatório, ou seja, 1/10/1970. O marco seria essa reunião de outubro e não o decreto nº 1.077/70, de janeiro. Provavelmente, a máquina esteve em andamento desde o AI-5, e torna-se difícil demarcar o que foi mais importante e que deu a partida. Pensando no processo de censura, cada novo ajuste legal promoveu o aperfeiçoamento daquela engrenagem. Dessa sequência de acertos legislativos, decorreu a existência de um decreto secreto, de nº 165-B/717, ratificando a posição de comando do Ministério da Justiça. Os dez pontos proibitivos do 165-B/71 saíram do gabinete do ministro; a legislação mostrava, de forma cabal, portanto, onde o centro da censura sempre esteve. Os dez pontos proibidos pelo 165-B/71 eram: a) campanha pela revogação dos Atos Institucionais, notadamente o Ato Institucional n° 5, de 13 de dezembro de 1968; b) manifestações de inconformidade com a censura em diversões e espetáculos públicos, livros, periódicos e em exteriorizações pelo rádio e televisão, realizada com base no Decreto-lei n° 1.077/70, de 26 de janeiro de 1970; d) divulgação de notícias sensacionalistas que possam prejudicar a imagem do Brasil no exterior; e) divulgação de notícias com o objetivo de agitar os meios sindicais e estudantis; f) divulgação de notícias a respeito da existência de censura, salvo a de diversões públicas, bem como de prisões de natureza política; g) divulgação de notícias tendenciosas a respeito de assaltos a estabelecimentos de crédito, nomeadamente a descrição minuciosa de quaisquer crimes ou atos antisociais; O 165-B foi decretado um ano antes dos telefonemas proibitivos (“De ordem superior, fica proibido...”) adentrarem as redações. Comparativamente, os telefonemas aos jornais entre 1972 e 1975 muito se aproximam dos dez pontos divulgados em 13/12/1968 às imprensas paulista e carioca. No entanto, entre o 1.077/70 e as ligações proibitivas, tem-se a edição do decreto secreto 165-B, em março de 1971. Meses antes, em 11/11/1970, foi editado o decreto no 69.534, autorizando a edição de decretos secretos. Cf.(SILVA, 1998, p. 11).

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c) apreciações que envolvam contestações ao regime vigente;

h) divulgação de quaisquer notícias que venham a criar tensões de natureza religiosa; i) divulgação de notícias que venham a colocar em perigo a política econômica do Governo; j) divulgação alarmista de movimentos subversivos em países estrangeiros, bem como a divulgação de qualquer notícia que venha a indispor o Brasil com nações amigas. (GM no 165-B, de 29/03/1971, DSI/MJ).8

O estudo da legislação do período, como se pode notar, além das leis e decretos publicados na Coleção de Leis, também fez uso de uma gama de normas e portarias secretas que só as recentes aberturas de arquivos, como os da DSI9 e do DOPS, possibilitaram pesquisar. Esse material inédito, que reproduzia a própria fala da burocracia sobre si, infelizmente não estava acessível quando Anne-Marie Smith realizou sua pesquisa, no fim dos anos de 1980. Não podendo aquilatar o real valor do decreto n.º 1.077/70, Smith atribuiu ao processo de censura prévia uma inconstitucionalidade que os juristas da época, vinculados ao Estado, se esforçaram em corrigir ou maquiar. Essas arbitrariedades cometidas, legalizadas ou não, também eram escondidas pelo governo. Se existia uma lei “permitindo” a censura prévia, por outro lado, havia uma “recomendação” do governo aos meios de coImaginário e representações: entre fios, meadas e alinhavos

municação para que não tocassem no assunto da existência de censura. A regra era: fazia-se a censura prévia em alguns jornais, muito embora fosse proibido divulgar o assunto. Por mais que fosse aviltante, a censura prévia no pós-1964 não era

ilegal em termos jurídicos. Sua existência, para a imagem construída pelo governo, não poderia ser divulgada. Evidentemente, o mais difícil, pelo foco Em depósito no Arquivo Nacional/Rio de Janeiro.

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A Divisão de Segurança e Informação era a versão civil dos órgãos de informação dos Ministérios militares, e existia em todos os outros Ministérios. Foi instituída pelo decreto 64.416, de 28/4/1969, que também reorganizou o Ministério da Justiça. Tratava-se de um órgão de assistência direta de cada Ministério, vinculado, portanto, ao gabinete do ministro. O único material

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encontrado de uma DSI foi o da do Ministério da Justiça. Mas como todas as DSIs e os demais órgãos de informação circulavam suas informações, tem-se uma gama de material do interior da “Comunidade de Informações”. Tal material encontra-se em depósito no Arquivo Nacional, no Rio de Janeiro.

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do cidadão, nesse regime ditatorial civil-militar, foi conviver com a violação dos direitos civis e políticos “legalizados” por normas e decretos. Os governos do pós-1964 criaram jurisprudências, e estas serviam como uma capa de legalidade. Atos como banimento, pena de morte, expulsão do país, censura prévia, são terríveis, mas eram legais. Ou seja, eram executados amparados por lei e pela força bruta. Mesmo “legalizando” a censura à imprensa, o governo não queria que tal imagem transparecesse. Assim, em 26/6/1973, a PF distribuiu uma nota aos órgãos de comunicação – rádios, jornais e TVs –, pela qual, [...] de ordem superior fica proibido, até posterior liberação, qualquer crítica ao sistema de censura, seu fundamento e sua legitimidade, bem como qualquer notícia, crítica ou referência escrita, falada e televisada, direta ou indiretamente formulada contra órgãos de censura, censores e legislação censória.

Nesse mesmo ano de 1973, um interessante embate entre um órgão de imprensa e o governo ditatorial expôs a face da censura. O jornal Opinião, de propriedade de Fernando Gasparian e sob censura prévia desde janeiro daquele ano até abril de 1977, recorreu da intervenção governamental nas suas estava sendo censurado com base não no decreto nº 1.077/70, mas, sim, no AI-5. Por seis votos a cinco, o Tribunal decretou a inconstitucionalidade de censura ao Opinião. Suspensa a censura, no dia seguinte, 20/6/1973, o presidente Médici revogou a liberação do jornal, baseando-se no AI-5 e em um decreto de março de 1971. Essa norma é justamente a de n.º165-B/71, na época das pesquisas de Smith ainda não disponível ao pesquisador. Por não ter conhecimento desse decreto secreto, Smith afirmava que [...] o aspecto mais extraordinário desse despacho, todavia era sua referência a outro despacho até então desconhecido, de 30 de março de 1971, mediante o qual Médici adotara o artigo 9° do AI-5, o qual permitia a censura prévia em defesa da revolução. Até aquele momento presumia-se que o artigo 9° seria invocado apenas em caso de estado de sítio declarado, conforme especificado na Constituição. Tal despacho evidenciava ainda mais a discrepância entre o 247

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publicações. Como narra Smith, o Ministro da Justiça declarou que o jornal

AI-5 e a Constituição. Parece não haver dúvidas na cabeça de ninguém de que esse despacho, declaradamente de 1971, na verdade, foi preparado em 1973 em resposta à crise do julgamento do caso Opinião. Em vez de simplesmente declarar que a censura decorria do AI-5 e que, portanto, escapava à jurisprudência dos tribunais, o governo aparentemente chegou ao extremo de inventar um documento antedatado autorizando o uso do artigo 9°. O regime de exceção mais uma vez arremedava as normas do processo, o que tanto ressaltava as formalidades legais apropriadas quanto demonstrava que o poder do regime se colocava acima da lei.(SMITH, 2000, p. 132).10

É importante esclarecer o episódio que envolveu o Opinião. Isto porque ele desmascara uma farsa, já que era proibido dizer que havia censura. Assim, o caso do Opinião torna-se emblemático. O decreto secreto n.º 165- B/71 foi usado para justificar essa intervenção. Se Smith acredita que essa instrução poderia ser uma invenção, Maia de Souza analisa que “essa hipótese conta com um leve indício a seu favor”. Isto porque existe um ofício 163-B, de 2/5/1973. Assim, o 165-B de dois anos antes teve uma numeração posterior àquele. O episódio de 1973 envolvendo o jornal foi explicado no editorial número 230 do Opinião, de 1º de abril de 1977, cujo Imaginário e representações: entre fios, meadas e alinhavos

título era “Fim de uma etapa”. Às vésperas de interromper sua circulação, pelas pressões econômicas advindas da censura política, o corpo editorial assinalou que isto ocorria [...] talvez por termos sido nós, precisamente, a primeira publicação que recorreu contra a censura e que desvendou os mecanismos em que se firmava. Contra a censura, apelamos ao Tribunal Federal de Recursos, pela voz destemerosa do advogado Adauto Lúcio Cardoso, que levantou a preliminar de sua inconstitucionalidade. Ganhamos a causa, naquele Tribunal. Mas a decisão foi anulada pelo Presidente Médici, ficando então nós, de OPINIÃO, e o país inteiro, sabendo que a censura prévia à imprensa resultava de um despacho presidencial de 1971, até então secreto, baseado no AI-5. Desde então a censura nos dedicou uma atenção toda especial. O preço que pagamos foi o de conviver, até hoje, com a censura prévia, com o veto a alguns de nossos melho Neste trecho, a autora baseou-se no livro de MACHADO, 1978.

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res colaboradores, com a paulatina erosão dos temas que nos eram permitidos, com a destruição do estilo, da qualidade dos nossos textos submetidos a uma censura frequentemente bronca e sempre surda a qualquer apelo. (OPINIÃO, 01/04/1977).

Retomando, entretanto, a discussão acerca da data do decreto secreto, a prática do governo não foi a de arremedar e, sim, criar uma roupagem legal ao seu arbítrio. Certamente, o decreto secreto nº 165-B/71 circulou de forma interna no governo, até porque se encontrava como material da DSI, e foi seguido à risca por seus executores: os censores do DPF. Isto permite a reflexão de que a censura jamais foi caótica e que os censores tinham conhecimento e voz de comando acerca da direção a tomar. Se ele foi criado em 1971 ou em 1973, é uma conjetura mais restrita ao reino das hipóteses. E como filosofa Millôr Fernandes, “hipótese é uma coisa que não é, que a gente diz que é, para ver como seria se fosse”. Nesse sentido, uma portaria anterior, a de nº 11-B/70, já havia regulado o braço executor dessas tarefas: o DPF e suas delegacias regionais. O texto dessa norma permitiu um precedente bastante interessante, pois era notório que o corpo censório era pequeno e despreparado. Assim, no seu parágrafo Federal, no exame de livros e periódicos, poderá utilizar a colaboração de pessoas por ele designadas, inclusive estranhos aos quadros do serviço público, desde que moral e intelectualmente habilitadas a realizá-lo”.11 A partir dessa deliberação, tanto estranhos aos quadros do DPF foram convocados a serem censores, como policiais de outros departamentos desse órgão também foram deslocados. Não havia a necessidade de formar censores, era só seguir à risca os “Dez Mandamentos” do decreto nº 165-B ou os oito pontos do encontro de setembro de 1970. E esses “mandamentos” foram aplicados, em especial, à imprensa. Censores da antiga e cidadãos convocados a serem censores eram designados para um serviço especial. Uma entrevistada, a censora carioca Marina, apelido a ela designado a pedido, foi uma que entrou para a Censura, no começo da década de 1970, sem concurso e por apadrinhamento. Por saber falar, ler e escrever em francês, seu trabalho foi solicitado, primeiramente, para destrinçar a literatura daquele idioma.

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único, estabelecia que “[...] o Delegado Regional do Departamento de Polícia

Criava-se o SIGAB – Serviço de Informação do Gabinete, ligado ao gabinete do ministro da Justiça. Diferente do DIP em muitos aspectos e, principalmente, porque este foi legalizado por um decreto, o SIGAB esteve fora de qualquer organograma, tanto do Ministério da Justiça, como do DPF. Um órgão entre o ministro da Justiça e o diretor da Polícia Federal e que não foi instituído formalmente. Ao SIGAB, cabiam os telefonemas diários às redações de todo o país, informando o que era proibido publicar, como também a visita aos jornais postos sob censura prévia para checar o cumprimento das ordens.12 Uma censura claramente direcionada à imprensa tivera o seu expoente máximo, no período republicano brasileiro, durante o Estado Novo, com a existência do DIP. No pós-1964, e refletindo as diferenças dos dois momentos de arbítrio, esse papel foi desempenhado por um órgão de exceção, do qual saíam os telefonemas e os bilhetinhos às redações de jornais com os famosos “De ordem superior, fica proibido a divulgação...”13 Como se pode verificar, desde fins de 1967, a máquina administrativa foi sendo azeitada para executar as políticas de governo. Vários órgãos de competência do Ministério da Justiça foram reestruturados. A malha da censura recebeu ajustes legais e, em 1969, houve também uma reordenação do Ministério da Justiça. Foi nesse momento que se criou, efetivamente, a Imaginário e representações: entre fios, meadas e alinhavos

Polícia Federal, a qual deveria ser organizada e mantida em todo o território nacional. Suas funções deveriam ser: a) executar os serviços de polícia marítima aérea e de fronteira; O SIGAB tem uma origem que muito se assemelha à OBAN, que foi uma iniciativa conjunta do II Exército e da Secretaria de Segurança Pública do governo Abreu Sodré, como uma tentativa de centralizar as atividades de combate às crescentes ações de guerrilha urbana em São Paulo. Criada em 29/6/1969, a OBAN permaneceu até setembro de 1970, em um caráter extralegal, por não ser encontrada no organograma do serviço público. Isto demonstra que esse tipo de expediente era usado pelo governo ditatorial para manter em sigilo operações mais incisivas.

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Entre 1972 e 1975, a grande imprensa recebeu os famosos bilhetinhos da censura. A partir de 1975, quando a censura deixou o Estadão, apenas os alternativos, a Tribuna da Imprensa e a Veja, até a saída de Mino Carta, continuavam censurados. Os alternativos ou quebravam, por pressões econômicas, ou resistiam bravamente, mesmo que alterados pelos cortes da tesoura.

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b) reprimir o tráfico de entorpecentes, o descaminho e o contrabando; c) apurar os ilícitos penais contra a segurança nacional, a ordem política, social e moral, ou que vulnerem bens, serviços e interesses da União; d) prevenir e apurar as infrações penais, cuja prática tenha repercussão em mais de um Estado, exigindo, em consequência, tratamento centralizado e uniforme; e) executar os serviços de censura de diversões públicas (DECRETO n.º 64.416, de 28/4/1969).

Não por acaso, esse decreto também criava a DSI - Divisão de Segurança e Informação, [...] como órgão de assessoramento do Ministro de Estado e complementar do Conselho de Segurança Nacional, fornecer dados, observações e elementos necessários à formulação do conceito de estratégia nacional e do Plano Nacional de Informações; colaborar na preparação dos programas particulares de segurança e de informações relativos ao MJ e acompanhar a relativa execução” (DECRETO n.º 64.416, de 28/4/1969).

Nesse mar de normas jurídicas e, sobremaneira, em todas as instituique passou a censura, no pós-1968, faziam parte de uma estratégia maior. Esta visou, nos três primeiros anos do governo Médici, calar notícias e informações, e centralizar as atividades censórias; no intuito de forjar uma imagem ao governo e ganhar adesões. Numa visão parcial de quem era o inimigo, podiam-se elencar: as guerrilhas urbanas e rurais, no plano interno, e a vitória comunista no Vietnã, no plano externo. Mas a censura não permaneceu restrita a esse governo, já que continuou pelo do seu sucessor, o do general Geisel. Como também se encontram episódios de censura nos governos Figueiredo e Sarney. É possível que nunca se tenha dado, efetivamente, a transferência da orientação do que censurar para o DPF. Por grande parte do governo Médici, a concentração do poder foi total no Ministério da Justiça. Assim, o SCDP executou as tarefas, mas não foi o órgão que decidiu o que deveria ser proibido. A sua estrutura foi sempre tacanha, comparada ao volume de material, e o órgão 251

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ções fundadas em torno dessas regras, percebe-se que as transformações por

só foi objeto de uma reestruturação a partir de 1972, quando o advogado e jornalista Rogério Nunes assumiu o cargo de diretor da Censura.

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As alterações desse panorama no âmbito do Serviço de Censura são fáceis de se explicar, já que o governo Médici enfrentava, nesse período, as questões da sucessão presidencial. Portanto, os primeiros bilhetinhos às redações são dessa época, proibindo exatamente, as notícias da transmissão do cargo majoritário do país. Foi a partir das mudanças do DPF, em junho de 1972, que a censura passou à divisão (DCDP). Sempre como um executor de ordens, o DCDP assumiu essa função no instante em que a guerrilha urbana e rural – um dos principais “inimigos” do governo Médici –, já estava bem enfraquecida. No centro do comando e pensando as questões censórias, por certo, estava o ministro da Justiça, Alfredo Buzaid, tendo como subordinados na direção do DPF, nesse período, o general Nilo Canepa e, depois, o general Antônio Bandeira, ambos com truculenta atuação. Entre 1972 e 1975, especialmente, as principais redações de jornais recebiam telefonemas proibitivos, fazendo destes a função da censura. Sempre que inquirido sobre o porquê desses atos, Rogério Nunes afirmava que estavam procurando no lugar errado, já que não era ele que possuía o controle dessa atividade. A resposta de Nunes é uma das chaves para se compreender a censura durante o governo Médici e por bom período do governo Geisel. Isto porque o corpo de censores, acrescido de elementos convidados, foi deslocado para o SIGAB, o órgão responsável pelas ligações aos jornais e a ida às redações. Vinculado diretamente ao gabinete do Ministro da Justiça, fisicamente, esteve mais perto deste do que do DPF. Ou seja, a censura aos jornais e revistas recebeu um tratamento diferenciado. Foi executada por censores contratados antes de 1964 e outros, incitados a colaborar. Ligados diretamente ao ministro da Justiça, recebiam de seu gabinete as ordens, e Rogério Nunes não era o seu chefe. Mas isto não quer dizer que os subordinados de Nunes, no DCDP, não fizessem censura política. Executavam essas normas em livros, música, cinema. Apenas os jornais eram um caso para o ministro, e mesmo os livros proibidos eram listados no gabinete do ministro da Justiça.14 Várias listas de livros proibidos encontram-se no material do DCDP, em depósito no Arquivo Nacional, no Rio de Janeiro e em de Brasília.

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novos tempos. A única esfera de fora da avaliação do CSC era a televisão. Previsto para ser composto de 16 membros, a primeira formação do Conselho foi de 12 representantes15. No início de janeiro de 1980, o CSC Geraldo Sobral Rocha (Associação Brasileira de Cineastas), Ricardo Cravo Albim (ABERT), Roberto Pompeu de Souza (ABI), João Emílio Falcão (Associação Brasileira de Produtores Ci-

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Somente em 1974, seis anos após a legislação censória de Gama e Silva, materializada na lei n.º 5.536/68, foi realizado o primeiro concurso para Técnico de Censura, cargo cunhado por aquela lei. É interessante perceber, também, que todas as reformulações do DPF, como a que ocorreu em 1975, contudo, continuaram pautando a criação do Conselho Superior de Censura (CSC), que existia apenas no papel. Mais uma vez, decidiu-se que o Conselho deveria “elaborar normas e critérios que orientem o exercício da censura de espetáculos e diversões públicas, e rever, em grau de recurso, as decisões finais sobre a matéria”. Mas essa instância de recurso, cedo ou tarde, se tornaria real, mesmo que longe de exercer seus poderes imaginados. A revista Veja, no dia do décimo aniversário do AI-5, 13/12/1978, publicou uma grande matéria sob o título “Sem choro nem vela”. O texto abria com a seguinte reflexão: “dez longos anos durou o Ato Institucional n° 5 e, no entanto, a menos de um mês de sua morte oficial, sequer se sabe a quem entregar o cadáver”. Para o ministro Gama e Silva, seu mentor, mesmo depois dessa década, ainda não era a hora de extingui-lo: “ele deveria ficar como uma advertência, uma espada pairando sobre as cabeças” (VEJA, 13/12/1978). Por decreto, o ato deixou de existir no dia 1/1/1979, mas seus efeitos na cultura nacional ainda perdurariam por muito tempo. Nesse processo de mudanças, no fim de julho de 1979, o ministro da Justiça, Petrônio Portella, encaminhou ao Presidente da República, o general João Batista Figueiredo (1979-85), um ato nascido dias antes do AI-5 e que demorou onze anos para ser sancionado. Instituindo o Conselho Superior de Censura, estabeleceu um foro com poderes de rever os pareceres do DCDP sobre a produção cultural, pelo qual o autor da obra poderia reivindicar uma reavaliação dos cortes propostos. O Conselho era uma tentativa de materializar as transformações no tabuleiro do poder sem o AI-5. Era uma maneira também de responder às pressões quanto à má vontade atribuída aos censores nesses

punha fim a uma proibição de quase uma década. Os maiores de 14 anos já poderiam assistir, sem cortes, ao musical Calabar, de Chico Buarque, cinco vezes proibido pelo general Antônio Bandeira, diretor-geral do DPF na década de 1970. Uma máquina legislativa para a questão da censura foi montada pari passu às necessidades de seu uso. Se tida como completa a partir de 1971, foi utilizada, no caso da imprensa, mais uns cinco ou seis anos em alguns jornais e nos alternativos. Para as áreas da música, cinema e TV, essa intervenção teve um período maior. O decreto-lei nº 1.077/70, bem como o decreto secreto nº 165-B/71, perderam seus poderes no dia 1/1/1979, seguindo a legislação que extinguiu os Atos Excepcionais e instituiu um caminho para a Anistia. Finalmente, mais de uma década depois de ter sido criado, o CSC foi formalmente instituído. A trajetória do CSC não cumpriria as expectativas geradas para uma câmara de acordos entre produtores de cinema, escritores, atores e o governo censor. Houve um grande impasse entre o departamento de censura da PF e esse foro. Foi muito difícil para os censores se adaptarem aos novos tempos. Some-se a isso a morte prematura do ministro Petrônio Portella, que, novamente, alterou o tabuleiro do poder. No mesmo início de janeiro de 1980, período em que parte do CSC Imaginário e representações: entre fios, meadas e alinhavos

dava seus primeiros passos para remexer em mais de uma década de cortes e proibições, morria o ministro Portella. Convidado por Portella para chefe da DCDP, o jornalista e ex-chefe da Censura em São Paulo, José Vieira Madeira, tido como uma pessoa flexível, configurava uma tentativa de promover alterações no panorama. Se a imagem de Portella vincula-se ao de articulador da Anistia, cinco anos antes de sua posse como ministro da Justiça, então líder do governo durante os dias que se sucederam ao assassinato do jornalista Vladmir Herzog, havia assim se pronunciado: “[...] embora lamentando o suicídio do jornalista [...] ‘[asseguro] que o governo será implacável na apuração das responsabilidades dos agentes da desordem daquenematográficos), Lafayette de Azevedo Pondé (Conselho Federal de Educação), Alcino Teixeira de Melo (EMBRAFILME), Arabela Chiarelli (FUNABEM), Pedro Paulo Wandeck de Leoni Ramos (Ministério das Comunicações), Octaciano Nogueira (Ministério da Justiça), Guy de Castro Brandão (Ministério das Relações Exteriores), Orlando de Miranda (Serviço Nacional de Teatro) e Daniel da Silva Rocha (Sociedade Brasileira de Autores Teatrais).

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les que pretendem implantar a ditadura totalitária em nossa terra.”(FOLHA DE SÃO PAULO, 23/10/1975, p. 3). Com o prematuro falecimento do ministro, Madeira, tido como um censor liberal, deixou a direção geral do DCPP. Quem assumiu, em uma cerimônia secreta, foi uma censora de carreira, historiadora pela USP e braço direito da censura política (o SIGAB) em São Paulo, Solange Hernandez, conhecida como Solange Tesourinha. Em tempos de Anistia, sua posse foi considerada um retrocesso. Sua gestão marcou uma centralização das atividades censórias, cobrada em relatórios periódicos de seus subordinados. O escândalo mais famoso desse tempo foi o processo de censura do filme Pra Frente Brasil, de Roberto Farias. Aprovado pelos censores, foi vetado pela diretora da Censura. Entre idas e vindas, recursos ao CSC e pareceres de censores sendo retirados do processo, o filme chegou, enfim, às salas de cinema de todo país, depois da Copa do Mundo de 1982. Havia, portanto, uma assincronia, um descompasso entre os caminhos desejados para o serviço de censura e sua atuação. Uma máquina legislativa começava a ser desmontada, mas as forças que a sustentavam ainda mostravam suas garras. A “vitória” de Tancredo Neves no Colégio Eleitoral, car que um novo momento se inaugurava. Não se podia, ainda, votar para presidente. Um presidente civil, contudo, assumia depois de vinte anos. A Tesourinha parecia ficar distante, para trás, com a posse de José Sarney. A censura, diziam, finalmente chegaria ao fim.

Epílogo A propaganda oficial do governo Sarney vendia uma imagem de novos ventos, novos rumos, enfim, o novo governo prometia muito. Fundava-se a “Nova República” e, entre outras promessas, apregoava-se o fim da censura. Esta seria não mais política, nem moral, mas apenas classificatória. Nos jornais da época, são diversas as matérias que sublinham as expectativas por essas mudanças. Às vésperas da posse de Tancredo Neves, que não ocorreu,

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mesmo depois da frustração da campanha pelas “Diretas Já”, parecia indi-

o caderno cultural “Ilustrada”, do jornal Folha de S. Paulo, sintetizou o que gostaria de ver no futuro: Foram anos de golpe, de Brasil Grande, de milagre, mas, principalmente, de censura. Esses vinte anos que acabamos de viver ficaram marcados pelo silêncio e pelo lápis vermelho sobre a criação cultural mas, agora o novo governo apresenta seus planos para a transição, começa um degelo na comunicação. É assim que o presidente da Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão, o paulista Joaquim Mendonça, invoca Caetano Veloso e decreta: ‘É proibido proibir’. (COURI, 1985, p. 3).

Imbuído do espírito de transformação, o novo ministro, Fernando Lyra, sentenciou o fim da censura e pôs à frente da Divisão de Censura de Diversão Pública (DCDP), um censor de primeira hora do grupo que chegara à Brasília quando da fundação da cidade e que ainda estava na ativa. Coriolano de Loyola Cabral Fagundes, no cargo desde 1961, substituiu a irascível Solange Hernandez, a Solange Tesourinha. O objetivo de Lyra, ao nomear Coriolano Fagundes, era desmembrar aquela estrutura e pôr fim à Divisão. Reforçando uma perspectiva de expurgar antigas marcas, e alterando uma tradição de generais e coronéis no comando do DPF, o presidente José Sarney, e não o ministro Lyra, nomeou, em janeiro de 1986, o delegado Imaginário e representações: entre fios, meadas e alinhavos

federal Romeu Tuma para o cargo. Por mais que fosse um civil no cargo, o trabalho de Tuma à frente da repressão era conhecido. No primeiro grupo de ministros escolhidos por Tancredo Neves, o designado para o DPF havia sido o coronel, na época, já na reserva, Luís Alencar Araripe. Ligado à comunidade de informações, não significava qualquer mudança na esfera do DPF.16 Afirmando-se ‘É proibido proibir’, sugere-se que uma interdição conduz

sempre à leitura de que é mal recebida e indesejada. Esta não é uma afirmação inteiramente verdadeira, pois muitos setores da sociedade civil, por vezes, a desejam e pedem. Contudo, quando associada a períodos de arbítrio, são Como o DPF é subordinado ao Ministério da Justiça, poder-se-ia pensar que o delegado Romeu Tuma era uma escolha do ministro Fernando Lyra, o que foi desmentido pelo segundo (entrevista à autora, em 12/12/1998).

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muito comuns declarações que parecem restringir o controle da informação aos anos de ditadura e, principalmente, a dois instantes da história do Brasil: o Estado Novo (1937-1945) e o Golpe civil-militar (1964-1985). A permanência de órgãos de controle da informação, tanto em períodos de exceção, como nos democráticos, contesta os fundamentos dessas declarações. A análise da legislação censória e o levantamento do locus das agências de censura no organograma da polícia corroboram a hipótese contestatória. Trata-se, assim, a partir do elenco de leis e decretos, de compreender como, no período republicano brasileiro, se regularam as atividades de controle da informação. Não se está querendo comparar aqui a maneira mais sistemática, e até mesmo mais violenta, que os governos de arbítrio utilizam para exercer a censura. O que está no centro da discussão é: a) que a censura e todo o seu aparato existem e executam seus trabalhos tanto em momentos democráticos, como nos autoritários; b) que os governos, em períodos de exceção, no Brasil, têm a preocupação, talvez singular, de legislar e, assim, dar aos atos de arbítrio aparência e conteúdo de legalidade; e c) que existe um processo de continuidade, com nuanças de transformação, no sentido de aprimoramento, que regulou as agências de censura no período republicano brasileiro até 1988,

Referências BRASIL. Lei n. 5.536, de 21de novembro de 1968. Brasília, DF, 1968. BRASIL. Constituição. Emenda constitucional n. 1, de 17 de outubro de 1969. COURI, Norma. Muda o governo, chega a nova censura. Folha de S. Paulo, São Paulo, 15 fev. 1985. FIM DE UMA ETAPA. Opinião, 01 abr. 1977. FOLHA DE SÃO PAULO, São Paulo, 23 out. 1975. p. 3 GM no 165-B, de 29/03/1971, DSI/MJ. LIBERDADE EM DEBATE NA ABI. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 23 mar. 1972. p. 6.

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quando a nova Constituição retirou da esfera do Estado tal função.

MACHADO, José Antonio Pinheiro. Opinião x censura – momentos de um jornal pela liberdade. Porto Alegre: L & PM, 1978. MAIA, Maurício. s/t. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 1 jan. 1971. MARCONI, Paolo. A censura política na imprensa brasileira, 1968-78. 2. ed. São Paulo: Global Editora, 1980. REIS FILHO, Daniel Aarão. A anistia recíproca no Brasil ou a arte de reconstruir a História. In: TELES, Janaína, Mortos e desaparecidos políticos: reparação ou impunidade? São Paulo: Humanitas, 2000. p. 113-119. REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL, Ministério da Justiça. Recomendações para a imprensa escrita, falada e televisada, Fundo DSI/MJ, Arquivo Nacional/Rio de Janeiro. RESISTÊNCIA. Rio de Janeiro, 21 jan. 1969. RODRIGUES, Carlos; MONTEIRO, V. Alencar; GARCIA, Wilson de Queiroz Garcia. Censura federal - leis, decretos-lei, decretos e regulamentos. Brasília: C.R.Editora, 1971. ROSA, F. A. de Miranda. A censura no Brasil: o direito e a realidade social. In:______. Sociologia do direito: o fenômeno jurídico como fato social. 3. ed . Rio de Janeiro: Zahar, 1974. SEM CHORO NEM VELA. Veja, São Paulo, 13 dez. 1978.

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SMITH, Anne-Marie Smith. Um acordo forçado: o consentimento da imprensa à censura no Brasil. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 2000.

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Hábitos e modos de viver no Brasil dos anos de 1970 nas crônicas de Rachel de Queiroz Regma Maria dos Santos

Neste artigo, propomo-nos abordar questões relativas à transformação dos hábitos e modos de vida no Brasil dos anos de 1970 a partir das crônicas de Rachel de Queiroz. Para tanto, não podemos deixar de estar atentos ao debate que separa o cotidiano do poético e insere a “ordem do dia” na esfera do repetitivo e trivial. A historiografia tem privilegiado um olhar sobre os anos de 1970, no Brasil, que traz à tona a dimensão política e econômica sob a vigência do dores privilegiam autores como Carlos Heitor Cony ou Márcio Moreira Alves, que foram importantes observadores e construtores da produção de uma memória crítica e de denúncias sobre as imposições do regime militar e sobre a censura e torturas. Conforme Carlos Fico: [...] tal memorialística, para o historiador de hoje, constitui-se, a um só tempo, em fonte e objeto da história do regime militar, pois se ela descreve o período e suas mazelas – sendo fonte -, igualmente fornece suas interpretações necessariamente parciais – passíveis, portanto, de análise histórica. (FICO, 2003, p. 170).

Nossa pretensão é privilegiar o olhar sobre o cotidiano desse período, sobre as pequenas transformações que ocorrem para além da macroestrutura

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regime militar. Mesmo ao utilizar a crônica como documento, os historia-

política, fazendo uso das crônicas de Rachel de Queiroz como fonte1. Michel de Certeau sugere pensar as práticas cotidianas como habitar, circular, falar, ler, ir às compras ou cozinhar como atividades correspondentes às: características das astúcias e das surpresas táticas: gestos hábeis do ‘fraco’ na ordem estabelecida pelo ‘forte’, arte de dar golpes no campo do outro, astúcia de caçadores, mobilidades nas manobras, operações polimórficas, achados alegres, poéticos e bélicos. (CERTEAU, 1998, p. 104).

Chamando atenção para as “maneiras de fazer”, as “multiplicidades das táticas” que são articuladas sobre “detalhes” do cotidiano, Certeau (1998) acentua a importância do gesto corriqueiro para aqueles denominados comumente de “consumidores”. É nessa perspectiva que abordaremos as crônicas de Rachel de Queiroz, considerando-as como resíduo poético de uma dada percepção sobre o cotidiano. A irrupção do cotidiano na literatura é o ponto de partida para questões levantadas por Henri Lefbvre, que observa: “todos os recursos da linguagem vão ser empregados para que se exprima a cotidianidade com sua miséria ou sua riqueza”. Além disso, “o inventário do cotidiano acompanha-se de sua negação pelo sonho, pelo imaginário, pelo simbolismo.” (LEFEImaginário e representações: entre fios, meadas e alinhavos

BVRE, 1991, p. 7). Tomando a crônica como base para pensar a dimensão cotidiana, com-

preendemos que esta revela pontos de vista, expectativas e formas diversas de ver o mundo. Pretendemos, neste texto, observar como a crônica de Rachel de Quei-

roz imprime, no tempo breve da crônica, as transformações sociais ocorridas nos anos de 1970 no Brasil, revelando, com ironia e bom humor as mudanças nos lugares e no comportamento das pessoas. Para tanto, utilizaremos as crônicas: “Os temas eternos”, “Pici”, “A casa e a máquina”, “Sociedade de consumo”, “As menininhas” e “Publicidade”, que fazem parte de seu livro Mapinguari e nos permitem observar a dimensão do efêmero, matéria da própria crônica e também sua essência. Ver ainda sobre a produção historiográfica sobre o período, em especial, sobre o tema da Ditadura Militar no Brasil: FICO, 2004.

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Walter Benjamin ressalta o fato de que o jornal é o suporte em que linguagem e escrita, incisivamente, se encontram: [...] essa dimensão mágica, se se quiser - da linguagem e da escrita, não se desenvolve isolada da outra dimensão, a semiótica. Todos os elementos miméticos da linguagem constituem uma intenção fundada, isto é, eles só podem vir à luz sobre um fundamento que lhes é estranho, e esse fundamento não é outro que a dimensão semiótica e comunicativa da linguagem. (BENJAMIN, 1985, p. 12).

A Semiótica da Cultura oferece-nos, como ponto fundamental, a possibilidade de entender a crônica, escrita no jornal ou em periódicos, como revistas ilustradas, como um texto cultural,2 no qual o que interessa não é somente o signo, mas a textura. Esse dado implica não apenas analisar o conteúdo das crônicas como expressão de uma temática, mas observar também sua própria forma, revelando especificidades que dialogam com o espaço e com outras formas textuais presentes neste lugar de produção, o jornal e a revista, e mesmo fora dele. Dessa forma, é preciso destacar que as crônicas aqui selecionadas para análise saíram das páginas de jornais e revistas para as páginas dos livros, publicada pela Ed. José Olympio. Isso denota que houve uma seleção, uma organização e a perspectiva de tratar as crônicas da autora como “lugares de memória”, que nos permitem ler e reler suas considerações sobre o tempo passado e sobre ele refletir. Conforme Pinheiro: “surgido do periódico diário, a crônica se apossou de um espaço coletivo: nenhuma forma de escritura se aproxima melhor, pelas condições físicas do suporte e pelas técnicas de produção que acarreta, do movimento vivo do cotidiano urbano”. (PINHEIRO, 2009, p. 24). Além disso, o caminho da crônica escrita, para os periódicos e, posteriormente para a publicação em livro revela-nos a possibilidade de sua De acordo com Norval Baitello Jr., o texto da cultura se constrói “na operação interativa entre seus componentes subtextuais, no diálogo entre signos e dos signos com seu próprio percurso histórico”. (BAITELLO JR., 1997, p. 42).

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primeiramente, na obra Mapinguari e, em seguida, na Obra reunida, v. 5,

duração para além do “tempo radical” e descartável dos jornais e periódicos.

Os temas da crônica: entre o transitório e o eterno Na crônica “Os temas eternos” (04/07/1975), a autora aborda uma questão por ela recebida sobre o porquê de os jornalistas sempre fugirem dos temas eternos, preferindo falar da carestia, das dificuldades da vida urbana, das deficiências do serviço público, dos dramas do cotidiano e de “outras infelicidades transitórias”. Argutamente, a cronista comenta que a resposta imediata é que isso ocorre porque não têm grandeza suficiente para tratar do eterno, mas daí vem com a pergunta: o que é o efêmero e o que é o eterno? A princípio, Queiroz define os temas eternos: a Arte, a Beleza, a Ciência, a Religião, o Amor e a Morte. Depois, pondera: o amor e a morte, estes, sim, podem ser eternos, os outros não. Para exemplificar, a autora discorre sobre o conceito de beleza e afirma o quanto este é variável. A beleza feminina, nos primeiros anos do século XX, rondava pelos 70 quilos, já em seu tempo, ou seja, nos anos de 1970, não podia passar um grama além dos 50. Conforme a cronista, a ciência também será vista, no futuro pelas suas Imaginário e representações: entre fios, meadas e alinhavos

descobertas atuais com a “condescendência e ternura” com que vemos os alquimistas procurar sua pedra filosofal. Para ela, a arte depende das modas, pois, periodicamente, alteram-se os motivos para a veneração do passado. E complementa: Eternidade, eternidade, só mesmo para o efêmero que o signatário da carta desdenha. A fome, que se traduz nos problemas do abastecimento e carestia. O abrigo, que se revela na crise habitacional. E as leis que eternamente regem os homens são: lei do movimento, que cuida dos transportes, isto é, trens, ônibus, aviões, carros, filas de embarque. E do preço da gasolina. A lei do menor esforço, que nos leva a lutar pela maior comodidade doméstica e funcional – e aí vêm os telefonemas, a eletricidade, a falta de água, as relações domésticas. A lei da procura do divertimento e do lazer – e faz com que discutamos cinema, TV, teatro, férias, praias, esportes. Ainda há o amor e especialmente a morte, que o

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correspondente reivindica e ninguém lhe nega – eternos sim, mas com a sua venerável eternidade cabendo quase toda nas notas da polícia. (QUEIROZ, 1989, p. 74, grifos da autora).

Encerra a cronista dizendo que quem abandona os temas eternos são aqueles que se fecham na metafísica e no hermetismo literário. Por fim, exemplifica: Quer se estude o amor fatal num ensaio filosófico, quer se conte o caso da moça de programa que tocou fogo na roupa para se vingar do namorado, o tema é o mesmo – o amor, o eterno amor, que governa os deuses e os homens, os filósofos e as mulheres da vida. Tema eterno é isso. (QUEIROZ, 1989, p. 74).

Nessa crônica, podemos entrar em contato com a percepção da autora sobre o exercício da crônica jornalística e a forma como enfrenta os temas do cotidiano. Problematizando o que é efêmero e o que é eterno, constrói uma irônica reflexão sobre a abordagem daqueles que filosofam sobre o “eterno” de maneira pomposa e hermética. Rachel de Queiroz, dessa forma, não se intimida em tratar de temas aparentemente transitórios, como quando descreve a casa em que viveu num filhos ao estudo. (ACIOLI, 2007, p. 45). A crônica “Pici” (24/08/1975) termina com a seguinte frase: “Ninguém desenterra um defunto amado para ver como é que estão os ossos”. A cronista fala do lugar onde viveu, com os pais e irmãos, nos anos de 1927. Rememorando a casa nova que construíram, a autora a descreve como imensa, com salas largas, rodeada de alpendres. Ali ela escreveu O quinze, deitada no soalho da sala, debaixo do farol de querosene. O pomar tinha grandes mangueiras, onde ela armava uma rede e passava as tardes lendo. À noite formavam uma pequena orquestra com o professor de violão. Havia também as serenatas com músicas como “Mi noche triste, porque nesse tempo chique era o tango”. (QUEIROZ, 1989, p. 76). Mas a vida muda e também lá isso ocorreu. Alguns rapazes se formaram, um deles morreu, veio a guerra, a cidade cresceu e se aproximou

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sítio adquirido por seu pai, próximo a Fortaleza, para facilitar o acesso dos

do sítio, e também os ladrões de frutas, de cana, de galinhas e patos. O pai morreu e, por fim, a mãe vendeu o sítio. A cronista conta que nunca mais voltou lá. Pensa na dor de lembrar-se da voz do pai acordando-a de manhã e do sorriso da mãe abrindo a janela do quarto. Podemos contrapor ao texto anterior outra crônica, “A casa e a máquina” (30/12/1974), na qual a cronista lamenta a moda arquitetônica e ambiental que os novos-ricos, em lua de mel com a técnica procuram implantar. Enfatiza a autora: “Maquinolatria. É esta a nova fé”. (QUEIROZ, 1989, p. 85). Segundo a escritora, a arquitetura atual tem horror aos elementos naturais, os homens constroem “buracos de morar”, e cita Brasília como exemplo: Linda, claro, mas em alguns casos tão insensata que a gente até duvida. Edifícios crescem tanto debaixo do chão quanto por cima dele [...] E tudo tão fechado tanto em cima quanto embaixo. Tudo lacrado no vidro e no alumínio, para que um sopro de ar de fora não penetre. (QUEIROZ, 1989, p. 85).

Percebemos que tudo isso contrasta com a descrição de sua casa no sítio do Pici. Não há possibilidade de relações humanas aqui, porque o espaço é hostil e artificial, nega a natureza. A crítica da autora estende-se para Imaginário e representações: entre fios, meadas e alinhavos

toda a existência humana. “Desde a hora em que nasce numa sala de partos esterilizados até que morre noutra sala igual, a de Tratamento Intensivo, o homem moderno é maquinizado”. (QUEIROZ, 1989, p. 85). As formas de viver e morar, de habitar a cidade foram alteradas ao

longo do século XX. A autora exemplifica que, em sua terra natal, Fortaleza, que recebe os ventos da praia, os moradores fecham as janelas, ligam o ar condicionado e acendem o globo de luz. Mas, para ela, a mais gritante maquinolatria se vê nos campos de futebol. Os torcedores compram ingressos caros, enfrentam o trânsito a fim de assistir ao jogo com seus próprios olhos, mas ficam o tempo todo com o rádio de pilha colado ao ouvido, para que o locutor conte a eles o que estão vendo! Na crônica “Sociedade de consumo” (5/10/1973), a autora continua o

mesmo raciocínio ao falar de um conto policial que se passa em Nova York, no qual um rapaz descobre que um ladrão havia carregado todos os seus pertences 264

a máquina de escrever, o relógio de pulso, o rádio de pilha, a TV portátil, o gravador, o toca-disco, o cobertor elétrico, o barbeador e a escova de dentes, também elétricos [...]. É essa a parafernália de um rapaz solteiro [...] pois se fosse casado o equipamento duplicaria: batedeira, liquidificador, enceradeira, aspirador, torradeira, grill, faca elétrica, refrigerador, condicionador de ar, ventilador, máquinas de costura, de lavar roupa e louca, etc., etc. E automóvel, claro. Gadjets. Máquinas. Isso é a suprema aspiração do homem da sociedade de consumo. (QUEIROZ, 1989, p. 89).

A cronista fala ainda da descoberta das prestações, que permitem a todos adquirir as máquinas modernas. E dos confortos que já se tem como função natural da vida urbana: “a eletricidade, o telefone, o gás, a água, o cinema, os transportes, o asfalto. A residência de bom piso, boa parede, bom teto, vidraças, portas, fechaduras, a máquina de morar”. (QUEIROZ, 1989, p. 89). Rachel de Queiroz contrapõe essas “pompas técnicas” ao primitivo modo de vida rural, no qual a casa reduz-se a um simples abrigo contra intempéries: paredes de taipa, teto de telha vã (ou de palha), chão de terra batida. O fogão de girau, o pote da água, a lamparina, a rede de dormir. A faca-peixeira que colheres, um caneco, dois tamboretes. O grande luxo é a mesa de três palmos encostada à parede da sala. (QUEIROZ, 1989, p. 89).

Essa disparidade faz com que a família rural vá para a “rua” mais próxima, tome o próximo ônibus e migre para as favelas do Rio de Janeiro e São Paulo, onde o ciclo recomeça. Não podemos deixar de considerar que esse período é marcado pela ideia do “milagre econômico” brasileiro, com a inserção de milhares de pessoas na sociedade dos bens de consumo, mas também com seu progressivo endividamento. A crença de que, nas grandes cidades, há a possibilidade de uma vida melhor também é construída e alimentada pelos meios de comunicação e pelo próprio governo militar. Numa pequena crônica, a autora consegue trazer à baila as questões relevantes do período, ou seja, o consumo, a migração, os problemas urbanos 265

Imaginário e representações: entre fios, meadas e alinhavos

é utensílio de mesa e cozinha e arma de ataque e defesa. Uns pratos, duas

gerados pela expectativa de uma vida melhor, as disparidades entre o modo de vida rural e urbano, para citar alguns. Para além desses temas amplos relacionados aos modos de viver na cidade e na zona rural, a cronista também aborda a transformação no comportamento dos jovens nos anos de 1970. Na crônica “As menininhas” (15/12/1975), assim as descreve: Elas têm entre 18 e 25 anos. Usam calça Lee, fumam desesperadamente, dizem palavrão [...] em casa ninguém mais as controla [...] E com a liberdade de ir e vir, dia e noite, com a liquidação do tabu da virgindade, com a fácil aquisição da pílula, as menininhas, além da liberação da autoridade doméstica, também se consideram libertas sexualmente. (QUEIROZ, 1989, p. 107).

Mas, critica, apesar disso, elas não cogitam liberdade econômica, mesmo com diploma, não enfrentam o mundo do trabalho. Continua ainda sua descrição: “afetam grande desenvoltura, mostram-se extrovertidas e conversadeiras, algumas declaram que já puxaram erva, não sei”. (QUEIROZ, 1989, p. 107). Apesar de tudo isso, considera essas menininhas vulneráveis e inseguras. Para os meninos, a ideia de permissividade moderna é real, para elas não. “Quase nenhuma aceita com plenitude a ideia da simples fornicação Imaginário e representações: entre fios, meadas e alinhavos

lúdica, sem compromisso ulterior [...] só de fingimento elas se prestam ao jogo de pegar-e-largar e, depois de cada experiência, saem frustradas e profundamente ressentidas.” (QUEIROZ, 1989, p. 89). A autora menciona que algumas dessas menininhas com as quais con-

versa se mostram inquietas, vulneráveis, magoadas. É raro o caso de homens que se apaixonam e transformam casos passageiros em casamento. A crônica encerra-se num tom trágico: “Umas dão para beber, outras se suicidam, é forçoso constatar, embora não se queira forçar a nota de tragédia. [...] As menininhas, por mais atrevidas, são pateticamente frágeis, pela sua própria condição de mulher”. Continua a autora em seu raciocínio, observando que, mesmo antes, com as garantias tradicionais, algumas garotas já naufragavam, imagine agora. (QUEIROZ, 1989, p. 108). Os estudiosos das relações de gênero, certamente teceriam críticas se-

veras à percepção da autora, lembrando que, ao final dos anos de 1960 e 266

início dos anos 70, o processo de liberação feminina estava a todo vapor, questionando paradigmas e revendo posturas e condutas das próprias mulheres e da sociedade. No entanto, a crônica vai do tom maternal – ao chamá-las de “menininhas” – ao tom trágico – ao descrevê-las como suicidas –, passando pelo tom da censura – condenando-as por não ter liberdade econômica –, mas nos permite entender que esse processo não foi fácil. O percurso das mulheres nos anos de 1970 foi o do enfrentamento, da dúvida, da dor, mas também da autoafirmação e da transformação. Sua dupla tarefa era mudar a si mesmas e à sociedade à qual pertenciam, incluindo aí sua família, seus parceiros e as instituições. Na mesma perspectiva de questionar a mudança dos costumes e hábitos nos anos de 1970, na crônica “Publicidade” (02/02/1972), a autora critica a onda da publicidade de utilizar o sexo para vender: “Teremos que fazer, ler, ver e escutar anúncios sexy, até para vender pílulas digestivas”(QUEIROZ, 1989, p. 149). E, para espanto da cronista, já partem para o homem nu, como fez o costureiro Yves Saint-Laurent, “exibindo-se nu ele próprio, de ossinhos à mostra, naquela miséria fisiológica de pequeno-burguês urbano”. (QUEIROZ, 1989, p. 149). mas sem apoio sólido. E passa aos exemplos, como o fato de quebrar 10 centavos nos preços das mercadorias, o que é uma ilusão e irrita o cliente que não quer se deixar levar por tais engodos. Outro exemplo é sonegar o preço final de um artigo, informando apenas o valor da prestação mensal. Ela argumenta que isso deveria ser proibido por lei. Essa é uma estratégia que não agrada a autora que, ainda como muitos, se fia na confiança para realizar um negócio.

Considerações finais Percebemos que novas relações sociais se travam nesse período tão marcante da história brasileira, bastante conhecido pela ação do regime militar e suas mazelas, mas pouco observado nas práticas cotidianas dos hábitos e

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Imaginário e representações: entre fios, meadas e alinhavos

A cronista questiona as práticas publicitárias difundidas como dogma,

dos costumes sociais. As crônicas permitem, como um microscópio, adentrar tal universo e ampliá-lo numa perspectiva relacional, confrontando-o com as questões políticas desse período tão controverso da história do Brasil. As crônicas de Rachel de Queiroz estendem nossa percepção sobre os recursos modernos que o século XX insere no cotidiano das pessoas, tornando-as participantes da sociedade de consumo, receptoras de um discurso publicitário que quer vender tudo a qualquer preço, mas, ao mesmo tempo, informa-nos sobre a resistência ao tom artificial que a vida vem ganhando e o distanciamento da natureza. Não por acaso, ao tratar de temas aparentemente efêmeros e transitórios, a cronista nos permite compreender as transformações ocorridas na segunda metade do século XX com relação às formas de habitação, já que a casa acolhedora e aconchegante cede lugar às “máquinas de morar”. Alteram-se também as formas de relacionamento e de consumo. Nesse período, hábitos e costumes sofrem mudanças devido ao crescimento vertiginoso das cidades e à política econômica que influencia o consumo, difundido pela propaganda e pela publicidade. O comportamento feminino e as relações afetivas também são atingidos pelo vertiginoso século XX. A cronista cumpre seu papel de tratar desses temas efêmeros sim, mas Imaginário e representações: entre fios, meadas e alinhavos

que permanecem como parte de nossa memória e de nossa história.

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Imaginário e representações: entre fios, meadas e alinhavos

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O que é a independência na música independente Rubens de Freitas Benevides

A música independente brasileira vem se reorganizando desde a década de 1990, após um processo crescente de cooptação dos músicos independentes pelas grandes gravadoras de discos (majors) durante as décadas de 1970 e 1980. A partir da década de 1990 até o momento presente, revela-se um ressurgimento das produções independentes, agora menos voltadas para a gravação de discos e orientadas, prioritariamente, para os festivais. A década de 90 trouxe, ainda, aspectos novos no que se refere à produção musical. A abertura comercial brasileira, no início do decênio, possibilitou a aquisição de aparelhagem musical de melhor qualidade e tendeninovações tecnológicas à população, em particular, à juventude, implementou uma nova dinâmica na produção cultural. Agora, em diversos aspectos e áreas, os jovens tornaram-se responsáveis diretos pela criação estética e produção técnica dos bens culturais, particularmente no rock. O impacto das novas tecnologias na produção musical pode ser traçado a partir da popularização do formato Compact Disc (CD), um suporte digital feito de alumínio, mais leve e menor que o anterior, contribuiu para uma realavancagem das vendas de discos das majors, que, após o período de quedas no final da década de 1970 e início dos anos 1980, chegaria a seu ápice em 1999, contabilizando um valor nominal próximo aos 40 bilhões de dólares. No Brasil, o CD seria introduzido a partir da década de 1990 (nos EUA, o formato já estava difundido nos primeiros anos do decênio de

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Imaginário e representações: entre fios, meadas e alinhavos

cialmente mais baratas e, ao mesmo tempo, a progressiva disseminação de

1980) e, após um período de adaptação, ocupou todo o mercado, relegando o Vinil ao posto de artigo para colecionadores. As vantagens do CD, para as gravadoras, se referem tanto à redução dos custos de prensagem e da parte gráfica das capas e contracapas (devido ao tamanho menor em relação ao LP), quanto a uma melhor qualidade de reprodução e a um espaço de armazenamento maior, que elimina o Lado B dos vinis. No decorrer dessa década, uma progressiva diminuição dos custos de aparelhagem para estúdio e dos instrumentos musicais possibilitou a proliferação de artistas, de estúdios de ensaio e gravação de demo-tapes, de selos e de gravadoras independentes. Estes aspectos contribuíram sobremaneira para as tentativas de construção de um mercado intermediário no Brasil. O mercado intermediário se caracteriza pela segmentação baseada em culturas ou subculturas localizadas, como a cultura college do rock alternativo estadunidense. Nos EUA, esse mercado propicia aos músicos e às bandas a autossuficiência, isto é, permite que eles vivam e se sustentem da própria música. A segmentação do mercado se baseia por meio dos gêneros musicais, tanto no alternativo como no underground, e nas formas de identificação entre músico e audiência. O fundamento dessa identificação entre bandas e músicos e seu púImaginário e representações: entre fios, meadas e alinhavos

blico se refere, nas palavras de Jeder Janotti Jr e Jorge Cardoso Filho, às “estratégias de posicionamento frente ao mercado fonográfico e ao público” (CARDOSO FILHO; JANOTTI JUNIOR, 2006, p. 10). Neste sentido, os autores diferenciam as estratégias mainstream das estratégias un-

derground. As primeiras, em função das exigências de difusão ampla e não segmentada, com vistas à maximização dos lucros pela indústria, abrigariam “escolhas de confecção do produto reconhecidamente eficientes, dialogando com elementos de obras consagradas e com sucesso relativamente garantido” (CARDOSO FILHO; JANOTTI JUNIOR, 2006, p. 8), estariam, também, associadas a diferentes meios de comunicação de massa, além daqueles preferencialmente destinados à música, como a televisão, o cinema e até mesmo a Internet. Os gêneros alternativo e underground, por sua vez, se sustentariam em

escolhas mais delimitadas em termos do público consumidor, que refletem

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a organização da produção e a distribuição particulares, vinculada a pequenos fanzines, divulgação alternativa, gravadoras independentes, entre outros (CARDOSO FILHO; JANOTTI JUNIOR, 2006, p. 9). Sua característica principal seria a reivindicação de autenticidade, por se posicionar, quase sempre, contra os padrões dominantes no mainstream e próximo da audiência, de modo a ser facilmente reconhecido por esta. Contudo, uma análise da música popular não deve se limitar às condições de consumo, mas deve incluir também os poderosos mecanismos de identificação que concorrem para este processo de reconhecimento dos artistas. Contudo, no Brasil, no que se refere aos processos de consumo musical, a segmentação dos mercados não é suficiente para manter a imensa maioria dos artistas dedicados integralmente à música. De acordo com Brandini (2004), “o mercado intermediário para bandas brasileiras ainda luta contra a precariedade. Artistas como Ratos de Porão e Garotos Podres, que vendem menos de 10 mil cópias e há mais de dez anos buscam estabilizar-se, dificilmente atingem o mainstream ou vivem de música” (BRANDINI, 2004, p. 92). Concorrem para esta precariedade as condições estruturais do país, mas também do próprio campo de produção e de trabalho musical. O fato é que, no Brasil, os mercados culturais permanecem sob a inencontrada na afirmação de Frith (1981), de que o poder da música popular é a sua popularidade. Neste aspecto, as majors permanecem detendo o oligopólio da produção, distribuição e comercialização de música mediante a mobilização de altas cifras em turnês milionárias de megastars ou pela entrada massiva em diversos meios de comunicação. Assim, a produção independente permaneceu naquilo que Brandini (2004) denomina de “periferia da indústria cultural”, apesar do trabalho dos selos e gravadoras independentes em descobrir novos estilos, bandas e artistas. Entretanto, a partir de 1999, a queda na vendagem de discos revela processos de mudanças profundas naquilo que Bandeira (2005) denomina de “cadeia da produção musical”, isto é, nas formas do consumo musical, mas também nos moldes de produção e circulação de música. Esta cadeia de produção musical, para o autor, pode ser organizada tanto de maneira

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Imaginário e representações: entre fios, meadas e alinhavos

fluência do consumo de massa. Uma possível explicação para isso pode ser

aproximada a um modelo industrial rígido ou mediante sistemas mais flexíveis e autônomos. Independentemente do modo de organização, a trajetória percorrida pelo artefato cultural inicia-se no “polo de criação”, em que se encontram os compositores, autores de músicas e letras, os arranjadores, os intérpretes, os músicos e os produtores musicais (BANDEIRA, 2005, p. 4). A seguir, o autor aponta o “campo da mediação”, responsável pelos aspectos técnicos, operacionais, administrativos e comunicacionais da produção da música popular. O campo da mediação subdivide-se em dois subcampos, o primeiro seria o “campo da mediação técnica-administrativa-jurídica”, em que se localizariam os engenheiros de som, técnicos, estúdios, gravadoras, editoras musicais, distribuidores, lojas, fábricas de discos, agentes, empresários. O segundo seria o “campo da difusão mediática”, no qual se situariam o rádio, o cinema, a televisão, a publicidade, o videoclipe, os divulgadores, os espetáculos, entre outros. No final da cadeia, encontrar-se-ia o “campo da recepção e do consumo” em que se verificariam os processos de reprodução e audição por intermédio do público consumidor; consumo este que não se restringe à música, mas estende-se aos acessórios, equipamentos eletrônicos, roupas e à moda correlacionada ao universo musical. Imaginário e representações: entre fios, meadas e alinhavos

A importância econômica da música popular é referida por Bandeira (2005) como, inclusive, possuindo “grande responsabilidade no desenvolvimento econômico de alguns países. A produção musical pode ser um elemento gerador de riquezas a partir de shows e festivais, difusão local e nacional” (BANDEIRA, 2005, p. 5). Aparentemente, o aspecto econômico da música foi o mais impactado pelo fenômeno de digitalização e difusão de músicas pela Internet, que rompe com a longeva cadeia de produção musical. A difusão de músicas pela Internet foi possibilitada, principalmente,

pelo desenvolvimento do formato MP31, capaz de reduzir a 1/12, em re-

lação aos antigos formatos WAV utilizados nos CD’s, o espaço (virtual) ocupado por uma música. Segundo Marchi (2005), o MP3 foi desenvolvido para a transferência de dados, na medida em que reduz consideravelmente o tempo gasto. Motion Picture Expert Group-Layer 3.

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Contudo, em 1999, o processo da RRIA2 contra a empresa Napster Inc. evidenciou a utilização do formato para a troca de músicas de forma gratuita pela rede. A troca de arquivos de música pela Internet, seja por meio de softwares como o Napster, seja por meio do sistema P2P (peer to peer), representa uma ruptura no oligopólio internacional das majors, que, até então, controlavam os processos de edição das obras musicais, de controle de royalties e direitos autorais, de distribuição, divulgação, marketing, comercialização e, em diversos casos, de agenciamento dos artistas (BANDEIRA, 2005, p. 6). Bandeira ressalta o caráter corporativo das grandes gravadoras, ao chamar atenção para a International Federation of the Phonographic Industry (IFPI), composta por cerca de 1500 gravadoras em mais de setenta países. A noção de indústria sugere, neste caso, a constituição de uma “rede internacional de cooperação formando um “lobby” de amplo alcance, estabelecendo, inclusive, relações com outros órgãos internacionais, como as organizações de controle de direitos autorais”, além de implicar uma economia de grande escala na produção e distribuição de discos, capaz de lidar com mercados segmentados que abarcam os mais diversos gêneros musicais (BANDEIRA, 2005, p. 6). Explorando os gêneros mais exitosos e diminuindo os riscos, a lógietapas da cadeia de produção. Desta forma, a música é considerada como um produto a ser formatado, embalado, comunicado e comercializado. Ao mesmo tempo, a propriedade intelectual e os direitos autorais dos artistas são pré-requisito fundamental à manutenção das atividades econômicas no setor, a ponto de a cobrança de royalties e de direitos autorais ter-se constituído, durante a década de 90, no principal objeto de receitas das majors, mais importante até do que a venda de discos. Deriva deste aspecto o combate das gravadoras aos sistemas de compartilhamento de arquivos pela Internet, uma vez que as transferências gratuitas de arquivos são consideradas como ataques contra os direitos autorais e a propriedade intelectual dos artistas e as suas receitas, bem como das gravadoras. Recording Industry Association of América, representante das grandes empresas fonográficas dos EUA.

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Imaginário e representações: entre fios, meadas e alinhavos

ca empresarial na indústria fonográfica visa reduzir os custos em todas as

Duas tendências podem ser vislumbradas pelas atuais formas de relacionamento entre consumo musical e novas tecnologias. A primeira se refere ao combate às formas não-oficiais de transferência de música online, de que a ação judicial contra o Napster é o exemplo mais forte. Neste sentido, assim como no final da década de 1970, em que as grandes gravadoras culpabilizaram as fitas cassete pela queda nas vendas de LPs, atualmente, o MP3 é apontado como o “grande vilão”, pois a diminuição das vendas de CDs vem sendo atribuída ao fenômeno de downloads de músicas. Ironicamente, em 1999, o último ano de crescimento das vendas de discos coincidiu com o início do funcionamento do Napster; nesse período, a IFPI registrou um total de vendas de 38,5 bilhões de dólares. A queda no faturamento das gravadoras, entre 2000 e 2003, foi de cerca de 23%, o que não implicou prejuízo. Apesar disto, as majors não têm medido esforços em tornar a prática de download não-oficial de músicas, especialmente por meio do modo P2P, uma forma de “pirataria”. Contudo Bandeira indica outros aspectos que podem ter influências sobre a tendência declinante na venda de CDs, tais como o aumento do consumo de DVDs musicais e o crescimento de outros setores da indústria do entretenimento, como o cinema e os videogames. Além disto, o aspecto que Imaginário e representações: entre fios, meadas e alinhavos

constitui a segunda das tendências de mudanças nas relações entre consumo de música e tecnologia se refere ao aumento no consumo de música paga pela Internet (download oficial). As práticas de download, apesar de achincalhadas pelas grandes grava-

doras, demonstram a viabilidade do comércio virtual, que exige maneiras modificadas de intermediação dos agentes da indústria fonográfica. Exemplo disto é o fato de que o Napster viria a ser adquirido pelo Yahoo! logo após a perda do processo aberto pela RRIA. Bandeira, neste sentido, chega a afirmar que não haveria relação comprovada entre a queda nas vendas de CDs e as práticas de download não-oficial pela Internet. Apesar dessa con-

trovérsia, parece inegável o fato de que a indústria da música tem sofrido profundas mudanças nos últimos anos, mudanças estas que estão, também, umbilicalmente, relacionadas às novas tecnologias digitais de transferências de dados – não exclusivamente o MP3.

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Nesse contexto de mudanças das estratégias da indústria fonográfica (compreendida como as grandes gravadoras e as gravadoras multinacionais – majors), é que se situa a emergência da música independente no país. Por um lado, a indústria musical, no Brasil, ao privilegiar os gêneros sertanejo e romântico em função da situação de crise, demonstrava pouco interesse para os gêneros de MPB e rock. Por outro lado, artistas independentes passaram a fundar gravadoras para lançar os próprios discos, bem como discos de outros músicos, pois assumiam a tarefa de descoberta e formação de novos artistas. Mas a manutenção dos vínculos com as majors permaneceu, fosse para a distribuição dos produtos, fosse tendo como horizonte a formação de artistas e posterior transferência para o cast das multinacionais. Além dessas gravadoras que mantinham vínculos com as majors, surgiram, no período, o que Vicente (2006) denomina de “circuitos autônomos”, isto é, formações sociais ligadas à música com vínculos identitários arraigados localmente, mas com referências estéticas orientadas pelo internacional-popular, de onde surgiram, na década de 1990, “parte não só do que foi realmente inovador na produção musical brasileira das duas últimas décadas, como também alguns de seus maiores fenômenos de venda” (VICENTE, 2006, p. 12). capitaneadas, de modo geral, pelos gêneros de rock’n’roll, vêm se organizando no molde de uma rede que congrega músicos, produtores e diversos setores ligados, direta ou indiretamente, à produção musical em quase todos os estados da federação. Ressalta-se aqui, a forte relação entre a produção independente e as novas tecnologias de gravação e reprodução musical, particularmente por meio das possibilidades abertas e, ainda, não totalmente exploradas de difusão e comercialização musical pela internet. Essas cenas, espalhadas pelo país, constituem o objeto deste artigo. Interessam-nos, principalmente, as cenas organizadas em forma de rede e os processos de identificação que aí se desenrolam. As análises apresentadas são o resultado de pesquisa realizada na cena de rock independente de Goiânia, em que, por meio de entrevistas e aplicação de questionário junto aos participantes, além da coleta de dados em blogs, sites e outras fontes, foi possível

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Atualmente, tais formações sociais, que preferimos denominar cenas,

compreender os processos organizacionais, culturais e estéticos relativos à cena de Goiânia, bem como perceber as características que compartilha com outras cenas espalhadas pelo país. Nessa direção, as cenas independentes, tendo em vista o ainda vigente oligopólio dos processos de gravação e distribuição de CD’s, passaram a privilegiar a produção de festivais de música, ainda que a produção de CD’s permaneça como uma das práticas existentes. De acordo com Pablo Capilé, produtor cuiabano e responsável pela Cubo Produções, estamos numa fase interessante. Deixa de ter aquele artista que vende 200 mil cópias do disco para ter 200 que vendem mil cópias. O festival vem substituindo o papel das rádios, é a grande vitrine das bandas do país. Criou-se um cenário que desconstrói a lógica das grandes corporações, do acúmulo de capital e do artista ‘divino’. (FIUZA, 2007).

Assim, os festivais se constituem como a irrupção das práticas difundidas nas cenas. Conforme o mesmo produtor, “o festival é onde a cena cria suporte para um relacionamento mais forte tanto com a iniciativa privada quanto com o poder público. A cena se realiza no dia a dia, mas o festival é Imaginário e representações: entre fios, meadas e alinhavos

a grande erupção, onde tudo se canaliza” (FIUZA, 2007). Nessa perspectiva, constata-se a existência de festivais de música em

quase todos os estados. Os festivais independentes são organizados à maneira de rede, por intermédio da Associação Brasileira de Festivais Independentes (ABRAFIN). Esta, criada em 2005, teve como primeiro presidente um dos sócios da produtora goiana Monstro Discos e se constituiu mediada pelo suporte do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) e da Secretaria Nacional de Economia Solidária (SENAES). A associação congrega, atualmente, 26 festivais de música independente realizados de norte a sul do país. Estes festivais, segundo a ABRAFIN, reúnem, anualmente, cerca de 300 mil pessoas, movimentam em torno de R$ 5 milhões e geram pelo menos 5 mil empregos. Fabrício Nobre, presidente da Associação, falando sobre a necessidade de organização dos festivais independentes, declarou:

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Temos que nos organizar associativamente para poder mostrar articulação e volume, temos trabalhadores como em qualquer outro tipo de indústria, só que ainda não poluímos. Proporcionamos conhecimento, diversão, aumento de autoestima para todos. Movimentamos muito dinheiro e temos pouco incentivo, tá na hora disso mudar. Vamos levantar números e nos mostrar para os governos, ministérios e etc. Mostrar que vale a pena o investimento em cultura alternativa, música independente. Que isso traz benefícios às cidades, pessoas, ao país. Ficar chorando ou reclamando não é política da Abrafin, nossa política é realização, produção, e mostrar o que somos capazes com um pouco mais de suporte. (DE LUCCA, 2007).

O aproximar da associação com a SENAES ocorreu por meio da realização de espaços de debate durante os festivais e da aproximação destes com o calendário nacional das feiras de economia solidária, além do fornecimento de recursos humanos e materiais pelos empreendimentos de economia solidária para os eventos. A avaliação da SENAES sobre a cadeia produtiva da música considera a forte concentração de riquezas nas mãos de poucos conglomerados econômicos e propõe como alternativa ao “modo capitalista de organização das relações sociais” (ABRAFIN, 2007, p. 2) o princípio da autogestão, “ou relações econômicas e sociais que propiciem a sobrevivência e a melhoria da qualidade de vida das pessoas” (ABRAFIN, 2007, p. 2). sical, além dos produtores musicais, o pessoal de apoio, como gráficos, tatuadores, serígrafos, vendedores e outras pessoas que atuam num evento musical, conforme afirma Leandro Canez, consultor do Programa de Desenvolvimento Local e Economia Solidária, da SENAES, em entrevista à assessoria de imprensa do MTE. A organização em rede permite a articulação dos festivais, dos produtores musicais e dos músicos, e representaria o gérmen da formação de um mercado intermediário para a música no país. Mas, além disso, toda uma série de produtos ligados à música (instrumentos, aparelhagem de som etc.), aos estilos (roupas, discos, tatuagem, maquiagem, assessórios etc.), bem como o pessoal de apoio dos festivais (montagem de palco, equipe de som, iluminação etc) e vendedores de diversos produtos são incluídos nesta cadeia produtiva a partir da relação com os princípios da economia solidária.

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O formato em rede da associação articula à cadeia de produção mu-

A criação de uma rede congregando os diversos setores de atividade relacionados, direta ou indiretamente, com a cadeia produtiva da música consiste em um dos aspectos de manutenção no tempo da própria movimentação independente, pois as oportunidades econômicas produzidas nesse processo fazem com que a permanência da cena independente torne-se interesse de outras pessoas que não apenas os músicos e produtores. Este aspecto, ademais, diferencia a atual cena independente das cenas existentes no país durante a década de 90 e mesmo as cenas independentes em outros países, como a cena de rock de Austin, Texas, conforme relatado por Shank (1994). Paralelamente à criação da ABRAFIN, foi instituído, também, o Circuito Fora do Eixo, “que busca interligar os festivais, sites, blogs, mailings, programas de rádio e TV, bandas e produtores por todo o país” (MESQUITA, 2006). Trata-se de um coletivo de trabalho que visa abarcar diversos estados e estabelecer políticas afirmativas “para todos os historicamente alijados das benesses estruturais do EIXO” (CUBO COMUNICAÇÕES, 2005). Os três eixos estratégicos definidos pelos integrantes do Circuito, para atingir a meta da integração nacional de eventos, produtores e bandas independentes, são a produção de conteúdo, a distribuição entre os selos e a circulação de produto-

Imaginário e representações: entre fios, meadas e alinhavos

res e bandas. Eduardo Mesquita afirma que o Circuito Fora do Eixo vem sendo atualmente o canal de comunicação por todo o país entre pessoas envolvidas na cena rock independente, favorecendo o contato, as trocas de informações, as dicas e orientações de quem já deu a cara a tapa e agora pode economizar as dores de quem está começando. (MESQUITA, 2006).

Nessa direção, a criação de um mercado intermediário para a música

no país se relaciona, também, com o grau de autonomia adquirido pela cena independente, pois o público deste tipo de produção musical, situado, na maioria das vezes, em comunidades locais, normalmente, exige que os artefatos culturais se distanciem das imposições das grandes gravadoras e das majors. No entanto essa relação passa pela luta por posições no campo de

produção musical no país, remete a uma luta por legitimação da produção independente nesse campo e, portanto, pela afirmação do valor cultural e 280

simbólico da música indie no interior do campo, mas também nos campos de poder e social. Segundo Bourdieu (2005) o grau de autonomia de um campo de produção cultural revela-se no grau em que o princípio de hierarquização externa aí está subordinado ao princípio de hierarquização interna: quanto maior é a autonomia, mais a relação de forças simbólicas é favorável aos produtores mais independentes da demanda e mais o corte tende a acentuar-se entre os dois polos do campo, isto é, entre o subcampo de produção restrita, onde os produtores têm como clientes apenas os outros produtores, que são também seus concorrentes diretos, e o subcampo de grande produção, que se encontra simbolicamente excluído e desacreditado. No primeiro, cuja lei fundamental é a independência com relação às solicitações externas, a economia das práticas baseia-se, como em um jogo de perde-ganha, em uma inversão dos princípios fundamentais do campo do poder e do campo econômico. (BOURDIEU, 2005, p. 246).

A autonomia se constitui, portanto, na “lei fundamental” de “subcampos de produção restrita” como a cena independente, pois, se, por um lado, demarca o valor simbólico atribuído aos artefatos culturais produzidos no interior da cena, por outro, constitui-se no índice da manutenção dos víncuNo que se refere ao valor cultural da produção independente, o fato dos festivais serem favorecidos pelas diversas leis e editais de incentivo à cultura, nos âmbitos federal, estaduais e municipais, é um índice da legitimidade estética da música produzida. Esse aspecto é apontado em um dos objetivos do Programa Petrobrás Cultural, patrocinador de diversos festivais da cena independente brasileira: “estimular a realização de projetos de interesse público, fora da evidência do mercado e que contemplem a cultura brasileira em toda a sua diversidade étnica e regional” (PROGRAMA PETROBRÁS CULTURA, 2003). Os editais e leis de incentivo à cultura, antes de funcionarem como princípios hierarquizadores externos, atuam como potencializadores dos princípios de hierarquização internos aos subcampos de produção restrita e, assim fazendo, estimulam a autonomia na produção musical. O caráter

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los identitários aí produzidos.

independente da produção cultural é o que, aparentemente, fundamenta o apoio público, dando à música indie um caráter de antivalor. A própria noção de independência tem, nesse sentido, muito mais a ver com as formas de manutenção dos vínculos entre artistas e seu público e com os processos criativos, que se desenrolam nas cenas independentes, do que com uma independência total, portanto, ideal, relativa às condições econômicas da produção musical. A autonomia possibilita que emirjam processos criativos e inovadores na produção musical e, na medida em que é a avaliação pelos pares o que atribui o valor cultural e simbólicos dos artefatos, tornam-se importantes as noções de criatividade e de autoria social. Jason Toynbee (2000) aponta que, principalmente em comunidades locais ligadas à música, é produzido um raio de criatividade, que é o espaço no campo econômico em que, precisamente, objetivos não-econômicos são perseguidos. O raio de criatividade consiste em um espaço de possibilidades, que é formado na intersecção entre o habitus de determinado músico ou banda e o campo da criatividade. Este último é, por sua vez, composto pelo campo de trabalho – formado pelo acréscimo histórico de trabalho cultural e as técnicas e códigos de produção estabelecidos – e pelo campo da produção Imaginário e representações: entre fios, meadas e alinhavos

musical – as posições dominantes ou dominadas ocupadas no campo, em determinado momento, pelos músicos ou bandas (no caso da cena independente, este é, necessariamente, um campo de produção restrita). No lado subjetivo, está a orientação do músico para o futuro (‘o que eu faço em seguida?’), uma orientação informada sempre pelo habitus e pelo peso do passado (por exemplo: classe média baixa, educação artística, lições de música quando criança). No lado objetivo, estão as posições no campo da produção musical – retro cult por exemplo –, e no campo de trabalho – talvez guitarra de surf music com abundância da vibração (TOYNBEE, 2000, p. 42).

Por um lado, o conjunto de posições ocupadas por determinado músi-

co ou banda independente no “campo de criatividade”, ou seja, as possibilida-

des estéticas, técnicas e político-ideológicas à disposição dos artistas, variam de acordo com as posições ocupadas no campo da produção musical restrita

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(posição dominada ou dominante na cena independente) e de acordo com o campo de trabalho (gêneros musicais, estilos, ideologias). Por outro lado, os constrangimentos existentes à apropriação pelos artistas de uma ampla gama de possíveis pouco se referem às demandas da indústria sobre a cena independente (que poderiam implicar limitações nas escolhas estéticas) ou às possíveis limitações técnicas. Dessa forma, os artitas-agentes das cenas independentes são dependentes, portanto, das tradições do rock local (ideologias) e da necessidade dos músicos de manterem os vínculos com sua audiência e seus fãs. Além do mais, esse aspecto configura o atual campo de trabalho, assim, na ausência de constrangimentos estéticos (e pode-se afirmar técnicos), as possibilidades criativas emergem na junção entre a experiência subjetiva e as relações sociais objetivas (ou seja, as posições ocupadas no campo de produção restrita determinadas, ao mesmo tempo, por um imenso arco de variáveis estéticas e restritas, quase que exclusivamente, pelas ideologias existentes na cena independente). A experiência subjetiva ou o habitus, por sua vez, dispõe os músicos-agentes a tocar, escrever, gravar e atuar. Ele viabiliza as estratégias, adotadas a cada momento, de circulação entre as possibilidades e os constrangide produção musical restrita. A música popular e, mais ainda, o rock, possuem amplas variações de habitus, uma vez que as exigências para a entrada no campo são mínimas ou, muitas vezes, inexistentes, como é, por exemplo, o caso do punk rock, que não requer qualquer conhecimento musical prévio devido a sua base de três acordes facilmente apreendida para qualquer pessoa que pegue um instrumento pela primeira vez. Além do habitus, a espécie de democratização nas disposições para os indivíduos tocarem, formarem bandas, gravarem, produzirem, existente na cena independente estimula e permite que desenvolvam tais atividades. Pode-se supor que as disposições em tomar a iniciativa de formar uma banda têm mais a ver com a superação dos constrangimentos vigentes no campo social mais amplo e no campo do poder, do que com constrangimentos inerentes ao próprio campo musical. Aqui, é preciso registrar o papel

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mentos presentes no campo da música popular e, em particular, no campo

fundamental que as bandas mais antigas e os produtores exercem sobre os neófitos, ao mostrar-lhes que é possível montar bandas e se apresentar apesar das restrições existentes na sociedade mais ampla. As possibilidades, encontradas na junção do habitus e do campo de criatividades, inscrevem-se no conceito de “autoria social” (social authorship), que é definido como a combinação e seleção de vozes possíveis no campo de trabalho. Trata-se de um conceito que permite a compreensão da forma como os materiais utilizados na produção musical são retirados do contexto social em que se insere o autor (músico). Toynbee (2000), ao desenvolver este conceito, está preocupado com as possibilidades inerentes ao processo de criação musical. À medida em que o processo criativo retira os conteúdos do mundo social (autoria social), ressalta a ligação do gênero musical com determinada formação social. Segundo o autor, Claramente, para que isto funcione para além do pano-de-fundo social do músico o gênero (musical), deve ser reconhecido pelas audiências. Para pôr isto de outra maneira, tem que haver uma ligação entre o texto e a formação social. Na música popular, ao contrário de outros meios, esta ligação é frequentemente concebida em termos quasi-políticos como uma forma de representação. O Imaginário e representações: entre fios, meadas e alinhavos

gênero é visto como expressando o interesse coletivo ou o ponto de vista de uma comunidade (TOYNBEE, 2000, p. 110).

Toynbee (2000) assegura, nessa óptica, que a “criação musical pode

representar formações sociais em luta” (TOYNBEE, 2000, p. 36). Isto pode ser visualizado na citação abaixo, retirada da página na internet do coletivo cuiabano Espaço Cubo Digital, um dos principais agentes da cena independente nacional, O termo identidade é aquilo que identifica, que é idêntico, aquilo que é semelhante a outrem. Assim, identidade do Espaço Cubo é a semelhança entre todos os envolvidos, seu pensar, seus ideais, seus planos, suas concepções de vida e ações cotidianas, tornando-se um projeto de vida para todos os envolvidos. O Espaço Cubo tem como finalidade a democratização da cultura, entendendo cultura como termo antropológico, que é definido como tudo aquilo que o

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homem produz ou que faça parte da condição humana e nele está envolvido. Assim, a educação, o lazer, a arte, o labor, enfim, o meio. No contexto atual, a democratização está intrinsecamente relacionada com a expressão políticas públicas . O Espaço Cubo entende como democratizar aquilo que vem do povo, ou seja, aquilo que não é política pública para e sim políticas públicas de/para. A metodologia de trabalho adotada pelo Espaço Cubo foi a transformação diária de algumas práticas, incentivando a produção autoral, autônoma e concebendo todas as relações como parte de um todo na vida de cada um. Isso é perceptível a partir da análise das relações intersubjetivas presentes entre os agentes do Espaço Cubo. A definição de agente aqui também se faz necessária: agente , sujeito e protagonista são sinônimos, numa concepção pautada na definição de sujeito e agente de Paulo Freire. Quanto às práticas, são direcionadas para a autogestão, através do trabalho cooperativista de muitas frentes de trabalho. (ESPAÇO CUBO DIGITAL).

As lutas que as cenas independentes travam giram, portanto, em torno da noção de identidade. Ressalta-se, aqui, a orientação pelo discurso da diversidade cultural, pois trata-se de identidades étnicas, de gênero, geracioe de embates pela legitimação desses artefatos no campo de produção cultural e pela difusão democrática dos mesmos. Quanto aos vínculos identitários, eles se sustentam, em parte, devido à manutenção do grau de autonomia em relação às demandas exteriores ao subcampo de produção restrita. Neste contexto, é preciso avançar o entendimento desses espaços sociais – as cenas independentes – como “comunidades reflexivas”. A caracterização das cenas independentes como comunidades reflexivas, onde ocorrem intensos processos de trocas simbólicas, é claramente descrita por Barry Shank (1994): “os espectadores tornam-se fãs, os fãs tornam-se músicos, os músicos são sempre fãs, todos construindo os não-objetos das identificações através de suas performances como sujeitos da enunciação – se tornando e disseminando o sujeito em processo das práticas significativas da musica rock’n’roll” (SHANK, 1994, p. 131). 285

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nais, que parecem encontrar, nas cenas, um espaço para a produção cultural

Um desses não-objetos de identificação, que fornecem os significados para a manutenção dos vínculos com a cena, consiste na noção de autenticidade. A autenticidade pode ser definida pela recusa em aceitar as demandas externas, em especial, da indústria fonográfica, sobre os artefatos culturais e, nesse prisma, pode ser atribuída mediante o grau de autonomia conquistado pela cena. Ser autêntico, no contexto de comunidades musicais, significa, frequentemente, manter-se fiel aos princípios e critérios estabelecidos no interior da própria cena. Estes princípios se referem, de modo geral, às tradições locais de produção musical, à manutenção dos vínculos entre músicos e audiência, mas, especialmente, à rejeição das demandas mercadológicas. Isso decorre do fato de que as cenas independentes são espaços onde as trocas simbólicas são processos significativos para todos os seus integrantes, que se orientam para a manutenção e repetição das experiências que aí têm lugar. Nesse aspecto, encontra-se o fundamento para a continuidade dos vínculos e dos processos de identificação. Os festivais são os espaços privilegiados em que essas experiências ocorrem e, ao mesmo tempo, o locus de toda a articulação econômica que as cenas independentes desencadeiam. Lograr manter e ampliar esses vínculos identitários representa a permanência das práticas e, consequentemente, de um público fiel aos eventos e produtos e, como horizonte possível, a consImaginário e representações: entre fios, meadas e alinhavos

trução de um mercado intermediário para a música independente.

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Biografia dos autores

Beatriz Kushnir Graduada em História pela Universidade Federal Fluminense (1989), mestrado em História Social pela Universidade Federal Fluminense (1994), doutorado em História Social do Trabalho pela Universidade Estadual de Campinas (2001), pós-doutoramento (Júnior) junto ao Cemi/Unicamp (2005) e pós-doutoramento (Sênior) no Departamento de História da Universidade Federal Fluminense (2007-8). É professora convidada do Departamento de História da Universidade Estadual de Campinas e professora visitante no Departamento de História da Universidade Federal Fluminense.

Mestre (1993) e doutor (2000) em História pela Universidade de Brasília. Atualmente é professor associado da Universidade Federal de Goiás - Câmpus Catalão. Membro do corpo editorial da revista Opsis. É organizador do livro: História: representações culturais e relações de força, Catalão/ Goiânia, DEPECAC/FUNAPE, no prelo. Editor de dois números da revista Opsis, do Dossiê Cultura e Representação (2009) e do Dossiê Teoria da História (2007).

José D’Assunção Barros Doutor em História Social pela Universidade Federal Fluminense, professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro nos cursos de 289

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Getúlio Nascentes da Cunha

Graduação e Pós-Graduação em História e professor colaborador do Programa de Pós-Graduação em História Comparada da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Autor de diversos artigos e livros sobre Teoria da História tais como: O campo da história: especificidades e abordagens, 2004, O projeto de pesquisa em história, 2004, e Cidade e história, 2007, todos publicados pela editora Vozes, Petrópolis.

Leandro Santos Bulhões de Jesus Doutorando no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade de Brasília, em estágio de doutoramento, no período de 01/03/2011 a 28/02/2012, no Curso de Doutoramento em História de África da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, com bolsa da CAPES.

Márcia Pereira dos Santos

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Professora do Departamento de História e Ciências Sociais da Universidade Federal de Goiás, Câmpus Catalão, desde 1998. Mestre em História Social pela Universidade Federal de Uberlândia e doutora em História Política pela Universidade Estadual Paulista – Câmpus Franca. Atualmente é líder do Grupo de pesquisa NIESC (Cnpq) e coordenadora do Laboratório de Ensino e Pesquisa em História do CAC / UFG.

Maria Clara Tomaz Machado Professora dos cursos de graduação e do Programa de Pós-graduação

em História da Universidade Federal de Uberlândia. É mestre e doutora em História Social pela Universidade de São Paulo. Dedica-se atualmente às pesquisas sobre cultura popular e religiosidades, têm coordenado vários simpósios sobre o tema na ANPUH regional e nacional e no Simpósio Nacional de História Cultural que ocorreu em 2010 em Brasília. Além disso, tem publicado vários artigos, capítulos e organizado livros tais como: Caleidoscópio de saberes e práticas populares, Uberlândia, EdUFU, 2007; Caminhos das pedras: inventário temático das fontes documentais em Uberlândia, 290

Uberlândia, EdUFU, 2008; São Marcos do sertão goiano: cidades, memórias e cultura Uberlândia, EdUFU, 2010.

Maria Emilia Prado Doutora em História Social pela Universidade de São Paulo, com pós- doutoramento em Ciência Política pelo IUPERJ. Professora titular de História do Brasil da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Publicou artigos em periódicos especializados nacionais e internacionais. Atua na área de história intelectual e possui livros publicados tais como: Joaquim Nabuco: a política como moral e como história, Rio de Janeiro, Editora do Museu da República, 2006; Memorial das desigualdades: os impasses da cidadania no Brasil (1870-1902), Rio de Janeiro, Revan/FAPERJ, 2005; Nas terras dos canaviais: Campos dos Goitacazes 1920/1935, Rio de Janeiro, NEPC/ UERJ, 2002.

Maria Izilda Santos de Matos Doutora em história pela Universidade de São Paulo e professora tituem História. Principais obras: Trama e poder, 6. ed., Rio de Janeiro, Sette Letras, 2003; Por uma história das mulheres, São Paulo, EDUSC, 2000; Cotidiano e cultura: história, cidade e trabalho, Bauru, EDUSC, 2002; Âncora de emoções, Bauru, EDUSC, 2005.

Nancy Alessio Magalhães Doutora em História pela Universidade de São Paulo. Professora permanente do Programa de Pós-Graduação em História e do Programa de Pós-Graduação Desenvolvimento, Sociedade e Cooperação Internacional, ambos da Universidade de Brasília. Publicação mais recente: livro (co-org.) Entreveres: memórias de estudantes angolanos e de moradores Kalunga (Brasil-Angola). Brasília, LGE, 2009.

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lar da Pontifícia Universidade Católica - SP, do Programa de Pós Graduação

Regma Maria dos Santos Professora associada da Universidade Federal de Goiás - Câmpus Catalão. Professora colaboradora dos Programas de Pós-graduação em Teoria Literária e História da Universidade Federal de Uberlândia. Autora dos livros: Memórias de um plumitivo: impressões cotidianas, história e memória nas crônicas de Lycidio Paes, Uberlândia, Asppectus, 2005 e Foto(gramas): pequenos ensaios e textos sobre cinema e memória, Uberlândia, Asppectus, 2008 e organizadora do livro Brevidades (crônicas de Lycidio Paes), São Paulo, EdUC, 2003. Atualmente realiza o pós-doutorado em Metodologia do Ensino de História – no Programa de Educação (UFU).

Rogério Bianchi de Araújo Doutor em Antropologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e mestre em Filosofia Social pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas. Professor do Departamento de História e Ciências Sociais da Universidade Federal de Goiás – Câmpus Catalão. É pesquisador na área de Antropologia do Imaginário e também atua na área de Estudos dos SisteImaginário e representações: entre fios, meadas e alinhavos

mas Complexos.

Rubens de Freitas Benevides Graduado em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Goiás

(2000), mestre em Sociologia pela Universidade Federal de Goiás (2003) e doutor em Sociologia pela Universidade de Brasília (2008). Atualmente é professor adjunto I da Universidade Federal de Goiás - Câmpus Catalão, onde é editor e membro de corpo editorial da revista Emblemas e membro de corpo editorial da revista Opsis.

Temis Gomes Parente Doutora em História, pós-doutoranda pelo CEDEPLAR - Centro de

Desenvolvimento e Planejamento Regional da Universidade Federal de Mi292

nas Gerais, pesquisadora do CNPq, professora do curso de História e dos mestrados em Desenvolvimento Regional e em Ciências do Ambiente da Universidade Federal do Tocantins e coordenadora do Núcleo de Estudos das Diferenças de Gênero. É autora, entre outros, dos seguintes livros: O avesso do silêncio, Goiânia, EdUFG, 2006; História e sensibilidade, Brasília, Paralelo 15, 2006, e Linguagens plurais: cultura e meio ambiente, Bauru, EdUSC, 2008.

Teresinha Maria Duarte Professora adjunta no Departamento de História e Ciências Sociais da Universidade Federal de Goiás - Câmpus Catalão. Doutora em História pela Universidade de Brasília. É autora do livro Se as Paredes da Catedral Falassem. A Arquidiocese de Goiânia e o Regime Militar (1968-1985), Goiânia, UCG, 2003, e organizou o livro As relações de gênero na Igreja Católica. Um estudo do Instituto das Irmãs Catequistas de Nossa Senhora da Visitação (1962-1995), Goiânia, UCG, 2008.

Doutor em História pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, professor do Departamento de História e Ciências Sociais da Universidade Federal de Goiás - Câmpus Catalão. Pesquisador CNPq. É autor, dentre capítulos e artigos, dos seguintes livros: Cenas urbanas: imagens do Rio de Janeiro em Machado de Assis, Uberlândia, Asppectus, 2000; Imaginário familiar: história da família, do cotidiano e da vida privada na obra de Machado de Assis, Uberlândia, Asppectus, 2007.

Virgínia Célia Camilotti Bacharel e licenciada em História pela Universidade Estadual de Campinas (1985), mestre em História Social do Trabalho (1997) e doutora em História pela mesma universidade (2004). Atualmente é professora do Cur-

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Valdeci Rezende Borges

so de História da Universidade Metodista de Piracicaba. Pós-doutoranda Universidade de Estadual de Campinas/FAPESP. Autora do livro: João do

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Rio: idéias sem lugar, Uberlândia, EDUFU, 2008.

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