Imigração Portuguesa e Casamento: um olhar a partir do gênero, da geração e da atividade (Belém, 1908-1920)

July 12, 2017 | Autor: Daniel Barroso | Categoria: Portuguese Studies, Brazilian History, Migration, Migration Studies, História do Brasil, Migração
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ENTRE MARES O Brasil dos portugueses

Maria de Nazaré Sarges Fernando de Sousa Maria lzilda Matos Antonio Otaviano Vieira Junior Cristina Donza Cancela orgs.

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� � Belém/Pa 2010

Copyright© 2010 dos a utores Título origina l

Entre Mares: o Brasil dos portugueses Ca pa, projeto gráfico e editoração

Káyra Matos Quadros, gráficos e ta belas

Rosivan da Rocha Ferreira Daniel Souza Barroso Revisão

Ana Conceição Oliveira Editora Paka-Tatu

Rua Oliveira Belo, 386, salas 8 e 9 Umarizal, CEP: 66.050-380, Belém-PA [email protected] www.editorapakatatu.com.br

Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP) Entre mares: o Brasil dos portugueses I Maria de Nazaré Sarges .. [et ai.]. -Belém: Editora Paka-Tatu, 201O.

348 p.

Inclui bibliografia.

ISBN 978-85-7803-056-8

1. Brasil- Relações -Portugal.2. Portugal- Relações- Brasil. 3. Portugueses- Brasil­

História.4. Imigrantes -Brasil- História.I.Sarges, Maria de Nazaré.11. Sousa, Fernando de.

III. Matos, Maria lzilda.IV. Vieira Junior, Antonio Otaviano. v Cancela, Cristina Donza. CDD- 22. ed.981.00469

I M I G RAÇÃO P O RTUGUE SA E CASAMENTO : UM OLHAR A PARTI R DO G ÊNE RO , DA G E RAÇÃO E DA ATIVIDADE ( B E LÉM, 1 908- 1 920)

C RISTINA OONZA CANCELA* DAN I E L SOUZA BARRO S O **

A paraense Maria de Nazaré Martins entrou, no Juizado de Órfãos, com uma ação de Suprimento de consentimento para casamento contra sua mãe, a portuguesa Isaura de Jesus Martins. Por ser menor de idade (a maioridade no período se dava a partir dos 21 anos) , Nazaré necessitava do consentimento paterno para casar-se. Mas, por ser órfã de pai, o consentimento deveria ser dado por sua mãe. Na ação, ela argumentava que sua mãe não autorizava seu casamento por motivos frívolos, dentre os quais, um se destacava: o fato de seu pretendente não ser de origem portuguesa como sua mãe e, muito possivelmente, seu pai. Em sua inquirição, Isaura declarou não estar mais interessada no casamento de sua filha, que para ela havia "morrido". Além disso, pedia também para não ser mais incomodada com o assunto.1 Embora esse auto seja de 1930, abrangendo um período um pouco posterior ao que iremos trabalhar neste artigo, ele nos ajuda a pensar o casamento entre os portugueses que viviam em Belém, nas duas primeiras décadas do século

XX

,

suas escolhas e preferências

claramente esboçadas pela mãe de Maria, ao desejar que a aliança de sua filha ocorresse com um conterrâneo. Aparentemente uma história específica, o embate entre Nazaré Martins e sua mãe pode nos ajudar a pensar determinadas questões associadas aos casamentos ocorridos em Belém, que envolviam portugueses. Faz-nos pensar, por exemplo, até que ponto pode ter prevalecido à homogamia nas alianças matrimoniais, envolvendo os imigrantes portugueses. A partir das próximas páginas procuraremos responder a essa e outras questões, ao definirmos o perfil dos casamentos envolvendo portugueses, ocorridos em Belém, entre 1908 e 1 920, por meio da análise serial de 809 registras civis de casamento, onde ao menos,

um português era cônjuge. Nossas discussões incidirão na tendência à endogamia ou à exogamia; na inserção no mercado de trabalho e nas a,tividades desenvolvidas; na idade e no estado civil ao casar. Porém, antes mesmo de adentrarmos em nossas reflexões, façamos algumas considerações iniciais. Entre o final do século XIX e o início

XX

,

Belém foi o destino

de um intenso e contínuo fluxo migratório, constituído, principalmente, por migrantes "nordestinos" e portugueses. O impacto demográfico ocasionado por este fluxo migratório foi tão significativo que, em pouco menos de meio século, o número de habitantes da cidade quadruplicou. Sua população, que em 1872 contava com 6 1. 997 moradores, subiu para 96.560 em 1900 e superou o patamar dos 200 mil em 1920, com 236.402 pessoas.2 À

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época, cerca .de um quinto a um quar.to da população do Pará morava em sua capital. E era justamente em Belém, onde se concentravam os casamentos envolvendo os lusos, sendo esses enlaces numericamente pouco significativos para o interior da P�ovíncia. Na capital, em um de cada cinco casamentos, havia portugueses, como pelo menos um dos cônjug�s. O fluxo migratório de portugueses ao Brasil foi, no entre séculos, constante e numericamente expressivo para diversas províncias, com destaque para o Rio de Janeiro e para o Pará, No que diz respeito à Belém, o Recenseamento de 1 872 apontava para a presença de 1 2% de estrangeiros na população total da cidade. Quando nos atemos

especificamente rros estrangeiros, ganham destaque os lusos, cuja presença é marcante não apenas pelos levantamentos populacionais, mas por praticamente quaisquer outros corpos documentais que pesquisemos. Esta presença pode ter sido ainda maior, se levarmos em conta o possível impacto causado pela "Grande Naturalização" de 189 1 na população de origem portuguesa, que pode ter ocasionando uma invisibilidade de parte destes imigrantes. A Constituição de 189 1 previa a naturalização de todos os estrangeiros que estivessem no Brasil em 1 5 de

novembro de 1 889 (Dia da Proclamação da República) e que não declarassem o desejo de "conservar sua nacionalidade" num prazo de até seis meses, após a Constituição entrar em vigor. Ou seja, os estrangeiros que desej assem continuar legalmente como tal teriam até o final de agosto de 189 1 para declarar o interesse em permanecer como estrangeiros e não serem, por conseguinte, naturalizados brasileiros.3 Para fins de nossa análise, o possível impacto da "Grande Naturalização", ao qual nos referimos há pouco, refere-se detidamente a dois aspectos. Primeiramente, a representatividade dos "casamentos portugueses", em comparação à tendência geral, pode ser mais impactante do que mensuramos, isto porque diversos noivos, descritos nos registros como brasileiros, poderiam ser, na realidade, de origem portuguesa (nem sempre havia referência ao local específico de nascimento). Em segundo lugar, porque a naturalização poderia tornar invisíveis diversos "casamentos portugueses", onde os noivos possuíssem mais de 35 anos de idade, pois esses poderiam já estar naturalizados no momento do casamento (ver, mais adiante, a reflexão sobre as idade ao casar). Os migrantes portugueses que moravam lfa cidade formavam um grupo bastante heterogêneo, em variados aspectos. Iam desde grandes empresários e banqueiros, envolvidos com o comércio da borracha, até pequenos comerciantes e produtores rurais. Entretanto, como veremos mais especificamente, havia um "ponto de convergência" entre estes grupos sociais de migrantes portugueses: em sua maioria, eles estavam, de alguma forma, envolvidos em atividades ligadas ao comércio, seja como donos de estabelecimentos comerciais ou mesmo como empregados. Para o estudo dos comportamentos matrimoniais dos portugueses em Belém, os recortes de gênero e de geração tornam-se imprescin�veis. Primeiro, pelo fa�o de

a presença lusa na cidade ser predominamemente masculina e, em segundo lugar, para

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podermos refletir sobre as nuances relativas às idades ao casar de homens e mulheres de origem portuguesa, por meio de uma análise comparativa que procura investigar se as tendências comportamentais, verificadas para estes imigrantes, assemelham-se ou não àquelas verificadas para o conjunto da população geral.

Alianças, gênero e geração Iniciando a análise dos registras de casamento, vemos que nos 809 casamentos envolvendo portugueses pesquisados, casaram-se 769 noivos e somente 253 noivas, de origem lusa. A predominância numérica masculina nesta migração reitera um padrão de comportamento de deslocamento já apontado em trabalhos anteriores.4 Ao pensarmos os casamentos, este dado induz-nos à seguinte indagação: qual era a tendência comportamental dos portugueses no tocante à escolha dos cônjuges por origem? Eles casavam entre si, com nativos ou com pessoas de outras nacionalidades? Em resposta, vejamos o gráfico a seguir: G ráfico 0 1

Preferências matri moniais p or origem do cônj uge 90.0%

80,0%

70,0% 60,0%

50,0%

40,0%

• Hom ens

30,0%

• Mulheres

20,0%

1 0,0% 0,0%

Pará

Portugal

Outras

regiões do Brasil

Outros pai ses

Fonte: Centro de Memória daAmazjinia. Banco de dados de casamentos civis de Belém (1 908-1920).

Como é possível observar, homens e mulheres portugueses apresentavam comportamentos matrimoniais diferenciados. Tomando por base um recorte de gênero, constatamos que os homens portugueses casaram-se preferencialmente com mulheres paraenses, sendo que apenas 26,4% deles casou-se com uma conterrânea. O percentual

de casamento com mulheres brasileiras originárias de outras províncias também foi expressivo - correspondendo a 17,7% - e mais comum que o enlace com mulheres de outras nacionalidades, equivalente à apenas 9,75%.

Esse comportamento matrimonial masculino mostrou-se bem diferente em relação

às mulheres lusas que, ao contrário, casaram-se preferencialmente com seus conterrâneos

(80%) . Somente 1 0% das portuguesas casaram-se com paraenses ou com homens de outras

nacionalidades, com destaque para os espanhóis. Conforme mencionamos anteriormente,

estes comportamentos diferenciados encontrados entre homens e mulheres podem ser

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compreendidos em função de esta migração ter sido majoritariamente masculina.5 A migração feminina foi bem mais tímida. O que explica, em parte, o alto índice de casamento entre homens portugueses e mulheres paraenses. Entretanto, isso não significa afirmar que, caso houvesse mais mulheres portuguesas, as paraenses seriam preteridas. Em outros trabalhos verificamos que, muitas vezes, o casamento com mulheres locais poderia ser extremamente vantajoso para os imigrantes recém chegados, em particular os comerciantes.6 Além disso, alguns processos-crime revelaram casos em que mulheres portuguesas acusavam seus maridos por abandono ao lar e amasiamento com as brasileiras. Alguns enviavam a família para Portugal, onde os filhos permaneciam realizando seus estudos, e passavam a viver com mulheres paraenses durante um longo período de tempo. Estas situações vinham corriqueiramente à tona durante os processos de partilha e inventário, quando os filhos da relação "ilegítima", ou mesmo suas mães, reivindicavam o direito à partilha.7 Sobre as preferências matrimonias por origem dos cônjuges, uma última questão precisa ser observada. Se as mulheres portuguesas que se casaram em Belém, entre 1908 e 1920, não representavam sequer 1/3 da quantidade de seus conterrâneos homens que casaram no mesmo período, isto pode ser justificado não apenas pela representatividade de homens e mulheres na migração lusa ao Brasil, visto que também devemos considerar que parte das migrantes portuguesas que vieram ao Pará poderia ser casada, seja do ponto de vista formal ou consensualmente. Ao pesquisarmos os registras civis, encontramos 16 casos em que os nubentes declaravam viver em amasiamento. Em geral, à época do casamento, havia pelo menos um ou dois filhos frutos dessa relação, o que fazia com que, nesses casos, os nubentes comumente justificassem seu casamento pelo interesse em legitimá-los. Os portugueses que se casaram em Belém no período analisado, geralmente faziam­ no pela primeira vez. Dos 1.021 indivíduos pesquisados, encontramos somente sete viúvos e catorze viúvas. Em apenas três casos, viúvos portugueses casaram entre si. Quanto ao estado civil ao momento do casamento, é importante destacarmos que a partir de novembro de 1910, o divórcio seguido de recasamento foi permitido em Portugal, diferentemente do que ocorria no Brasil. Apesar de não ter havido casos em que divorciados portugueses(as) casassem em segundas núpcias em Belém, isso ocorreu com franceses e estadunidenses. O divórcio em Portugal, instituído por uma República �ecém instaurada, não foi um ato isolado. Ao contrário, compôs uma "tendência europeia". Vale lembrarmos que o divórcio passou a vigorar na Inglaterra em 1858,8 no Império Germânico em 1875 e na França em 1884.9 Uma vez analisadas as preferências de aliança dos nubentes, passemos a olhar o casamento a partir do cruzamento do gênero e da geração. Vejamos, inicialmente, o gráfico a seguir:

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G ráfico 02

Distribuição percentual dos n u bentes portug ueses por faixas etárias e por sexo Maior de 65 anos

60-64 anos 55-59 anos 50-54 anos

45-49 anos 40-44 anos • Hom ens

35-39· anos

• Mulheres

30-34 anos 25-29 anos 20-24 anos 1 5- 1 9 anos

Menor de

15 anos

�-,---r-----,--+---r--,--,

40,0%-30,0%-20, 0%-1 0,0% 0 , 0%

1 0 ,0% 20,0% 30,0% 40,0%

Fonte: Centro de Memória da Amazônia. Banco de dados de casamentos civis de Belém (1 908-1 920) .

Este gráfico, construído a partir do cálculo percentual da distribuição dos nubentes portugueses em faixas etárias, evidencia claramente uma diferença na idade de casamento entre homens e mulheres. Os homens começavam a se casar de forma mais expressiva a partir dos vinte anos de idade, quando possivelmente já poderiam ter encaminhado seus estudos, ou mesmo, estar inseridos no mercado de trabalho. Essa entrada mais tardia no casamento, por parte dos homens, pode ser justificada pelo fato de o provento ao lar ser, à época, um papel social associado ao masculino. Por exemplo, poucos homens se casaram entre os 1 5 e os 1 9 anos e nenhum com menos de 1 5 anos 10• Mas, os homens não apenas entravam como também saiam tardiamente do mercado matrimonial. As mulheres, por sua vez, casavam-se mais cedo, sendo expressivo o percentual das nubentes portuguesas que se casaram a partir dos 1 5 anos de idade. Porém, elas também saiam do mercado matrimonial mais cedo, visto que poucas mulheres casavam-se com trinta anos ou mais: uma realidade bastante diferente dos homens� cujos enlaces mantêm-se significativos nesta faixa et�ria. A partir dos trinta e, principalmente, dos 34 anos de idade, muito dificilmente uma mulher se casaria, em especial, pela primeira vez. A presença de mulheres com uma idade mai� avançada pode ser justificada pela existência pr�via de uniões consensuais e/ ou casamento religioso, ou mesmo pelo casamento �m segundas núpcias. Uma idade média de casamento r:pais baixa entre as mulheres também. pode indicar çer.ta preocup�ção com suas idades reprodutivas, ou melhor, ,com as idades que,. no período, poderiam apr.esentar uma taxa de fecundidade mais significativa. Por outro lado, não era pensado , às mulheres a necessidade de concluir os estudos e trabalhar para efetivar um casamento. Mas, até que ponto essas tendências encontradas estavam também presentes nos enlaces envolvendo o conjunto da população de Belém? Para respondermos a esta questão, observemos o gráfico a seguir:

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G ráfico 03

Distribuição geral dos n ubentes por faixas etárias e por sexo Maior de 65 anos 60-64 anos 55-59 anos 50-54 anos 45-49 anos 40-44 anos

• Homens

35-39 anos

• Mulheres

30-34 anos 25-29 anos 20-24 anos 1 5- 1 9 anos Menor de 15 anos 3000

2000

1 000

o

1 000

2000

3000

Fonte: Centro de Memória da Amazônia. Banco de dados de casamentos civis de Belém (1 908-1 920) .

O desenho da pirâmide etária da idade de casamento dos portugueses assemelha­ se bastante com o quadro geral das idades de casamento do período, conforme podemos verificar em diálogo com trabalhos anteriores.11 Entre as idades ao casar dos portugueses e as idades gerais de casamento da população que se casou em Belém, existe apenas uma pequena diferença: as idades de casamento dos homens portugueses estão concentradas, principalmente, entre os 25 e os 29 anos, enquanto que o perfil geral apresenta certa homogeneidade entre as três faixas etárias que compreendem o casamento dos homens entre os vinte e os 34 anos, havendo um significativo decréscimo apenas na quantidade de homens que se casavam a partir dos 35 anos de idade. As portuguesas, por sua vez, casavam-se com idades muito próximas àquelas encontradas no perfil geral. Contudo, os portugueses não acompanharam as tendências gerais de casamento em todos os aspectos. Por exemplo, ao mapearmos a sazonalidade dos casamentos que envolviam portugueses ao longo dos anos pesquisados, percebemos uma determinada homogeneidade. Ou seja, diferentemente do quadro geral de casamentos, os po�tugueses não apresentavam preferênci�s em casar-se em certos meses. Enquanto a distribuição sazonal geral dos casamento�, aponta para um leve acréscimo na quantidaqe de enlaces em maio, e um leve decréscimo em agosto, os casamentos que envolviam portugueses mantiveram-se constantes ao longo dos anos pesquisados, mesmo nesses meses destacados. Inclusive, a te,presentatividade· dos casamentos portugueses (em torn_o dos 2Q%) também permaneceu�com poucas oscilações, entre 1908 e 1920. Por. fim, chegamos ao último recorte na análise das alianças conjugais relativo às

atividades em que os noivos e noivas portuguesas encontravam-se envolvidos. ' Ao · chegarem- a Belém, os migrantes inseriam-se

ne>

mercado · .de trabalho,

desempenhando uma variedade , de atividades, concentradas, principalmente, nos setores

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Entre mares - O Brasil dos portugueses

secundário e terciário da economia: eram alfaiates, carpinteiros, artistas, comerciantes, médicos, advogados etc. Em percentual muito maior do que de pessoas de outras origens, os homens portugueses estavam ligados à atividades comerciais, seja no papel �o comerciante em si, ou apenas como auxiliares e empregados no comércio. Não era incomum, inclusive, que esses migrantes trabalhassem preferencialmente em estabelecimentos de outros portugueses. Ao refletirmos especificamente sobre os casamentos em que havia portugueses, ou seja, acerca dos 809 registras, temos, por meio da descrição das ocupações que esses migrantes exerciam, uma ideia de sua inserção social e profissional no cotidiano de Belém. Desse modo, é nas ocupações que, essencialmente, percebemos sua presença em sua plenitude. Assim, dando asas a nossa imaginação, é possível pensarmos em portugueses comprando e vendendo suas mercadorias, fabricando pequenos artesanatos, advogando, construindo casas e prédios públicos. A fim de padronizarmos as ocupações encontradas, nos valemos da codificação sócio-profissional proposta por Maria Luíza Marcilio.12 Obviamente, devido à codificação ser relativa a outro contexto (século XVIII e início do século XIX) , fizemos algumas alterações com vistas a contextualizá-la e adequá-la, a contento, as nossas reflexões. Tabela 0 1

Codificação socioprofissional dos n ubentes portugueses (somente os homens) Primário (Agricultura/Pesca)

Secundário

Têxtil , vestuário e alimentação Construção civil

12

1 ,5%

1 23

1 6%

26 5

Industrial

7

Madeira e mobiliário

10

Outros artesanatos

75

Terciário Atividades comerciais e comerciantes

600

78%

529

68, 8%

Profissões l iberais

12

Transporte e comunicação

30

Igreja Outros serviços

28

Não declaradas

34

4,5%

Fonte: Centro de Memória da Amazônia. Banco de dados de casamentos civis de Belém (1908-1 920)

Analisando a tabela, vemos que os portugueses que se casaram em Belém, entre 1908 e 1920, exerciam ocupações predominantemente concentradas no setor terciário, com

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grande destaque às atividades comerciais. Aliás, o comércio não era apenas a atividade predominante dos portugueses, mas de grande parte dos homens que se casaram em Belém. Para esse período, aproximadamente em um de cada quatro casamen�os o nubente era "comerciante". As atividades comerciais, em si, representam um rol de atividades no qual se incluem: comerciantes, empregados e auxiliares no comércio, negociantes, ambulantes, livreiros, caixeiros e guarda-livros. Além disso, podemos dizer que Belém era, há algum tempo, uma cidade essencialmente comercial. Viajantes e naturalistas que passaram pela cidade no transcorrer do século XIX, a exemplo de Spix e Martius, Alfred Wallace, Daniel Kidder e Henry Bates, confirmam, mediante os seus relatos, a grande presença das atividades comerciais no cotidiano da cidade. O famoso geógrafo Elisée Reclus, em viagem a Belém em 1893, relatou que Belém

se tornara uma grande cidade comercial, a quinta da República brasileira. Além disso, Reclus também destaca o papel dos portugueses no comércio, afirmando que eles detinham em suas mãos parte do comércio internacional e parte do comércio a retalho13• Afinal, como ocorrera em outras localidades, uma vez que as terras encontravam-se na posse de famílias proprietárias tradicionais, o comércio tornava-se a alternativa mais viável aos migrantes recém chegados à capital. Em relação às mulheres, percebemos a invisibilidade de seu trabalho. Possivelmente, os registras de casamento, assim como os próprios recenseamentos da época, não possuíam grande preocupação ao descrever as atividades exercidas por mulheres, o que se agrava ainda mais, devido ao diminuto mercado de trabalho formal acessível para os segmentos femininos, reduzido a poucas ocupações. As atividades das mulheres portuguesas concentravam-se nas chamadas ocupações domésticas (86%) . Nessa categoria, não temos como mesurar aquelas que eram remuneradas das que não o eram. Na verdade, sob essa categoria esconde-se uma multiplicidade de atividades como lavadeiras, engomadeiras, cozinheiras, criadas, enfim, inúmeras profissões exercidas pelas mulheres que por ocorrerem no âmbito doméstico e, ainda, pela desvalorização das atividades por elas realizadas, ficam invisibilizadas, dificultando sua análise e criando uma categoria genérica "serviços domésticos" que pouco nos revela.14 Ainda em relação ao trabalho das mulheres, não encontramos portuguesas exercendo, por exemplo, o magistério - uma ocupação feminina, à época, bastante comum. Estudos anteriores verificaram que o mercado de trabalho para essas migrantes não era amplo, pois havia em Belém poucas lojas ou fábricas que ofereciam empregos a mulheres, assim como também se verificou a ausência de ofertas de emprego em tabernas, mercearias, padarias ou lojas, excetuando-se, aqui, as costureiras.15 Assim, podemos afirmar que o mercado doméstico era a principal opção para as migrantes portuguesas, em especial, de camadas sociais mais baixas.

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Entre mares - O Brasil dos portugueses

Quanto às atividades exercidas pelos portugueses, vej amos -um dado interessante. No ano de 1923, aproximadamente 3. 500 portugueses requereram sua - inscrição no Consulado de Portugal, em Belém. Eram, ao todo, 3.314 homens e apena� 188 mulheres. Entre os homens, citando apenas as ocupações mais representativas, "[ ... ] havia 664 comerciantes, 177 chapeleiros, 119 carregadores, 1 58 padeiros

e

mais· 298 ·trabalhadores

envolvidos em atividades diversas. Entre as mulheres, por sua vez, havia 1 1 8 domésticas, 33 serviçais, 11 lavadeiras e 08 costureiras".16 Percebemos, entre os inscritos no Consulado, uma variedade de .ocupações, tanto masculinas como femininas, que se assemelha bastante àquela encontrada nos registras de casamento. Porém, cabe fazermos uma ressalva. A presença marcante dos homens portugueses em ocupações, ligadas ao comércio e das mulheres portuguesas nas tarefas do Lar, não limita sua inserção no mercado de trabalho a apenas estas atividades. Elas foram, de fato, as mais representativas, mas não as únicas. Os portugueses que moravam em Belém no irúcio do século XX desempenhavam profissões

muito diversas. Portanto, restringir sua participação somente ao comércio _ e ao Lar para, respectivamente, homens e mulheres, seria cometer um erro decorrente de vários aspectos, dentre os quais, reduzir a pluralidade de experiências sociais vivenciadas por estes migrantes. Ao longo destas linhas, buscamos delinear o perfil dos "casamentos portugueses" ocorrido em Belém, no irúcio do século

XX.

Partindo de uma abordagem demográfica,

analisamos uma série de casamentos a partir da perspectiva de uma intersecção entre gênero, geração e migração. A série documental levantada nos permitiu conhecer um pouco mais dos enlaces precipitados por estes sujeitos, homens e mulheres, que fizeram da capital paraense seu novo porto. Muitas investigações ainda precisam ser feitas, mas aqui encontramos um pouco mais de suas histórias.

N OTAS * Universidade federal do Pará - UFPA. ** Universidade Federal do Pará - UFPA. 1 CMA/ U FPA. 1 • Vaia Cível (Cartório Santiago). Suprimento de consentimento para casamento, onde foi requerente Maria de Nazaré Martins e requerida Isaura de Jesus Martins. 1 936.

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2 IBGE, Sinopse do Recenseamento de 1 920. 3 Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, de 24 de fevereiro de 1 89 1 . Art. 69. 4 Cf.: CANCELA, Cristina Donza. "Imigração portuguesa, casamento e riqueza em Belém (1 870-1 920)". ln. SOUZA, Fernando; MARTINS, Ismênia & MATOS, Izilda. Nas duas margens: os portugueses no Brasil. Porto/Portugal, Edições Afrontamento, 2009, pp. 1 49-1 62; SCOTT, Ana Silvia. Famílias, formas de união e reprodução social no noroesteportuguês (séculos XVIII e XIX). Guimarães/Portugal, NEPS-Instituto de Ciências Sociais, 1 999. 5 Cf.: CANCELA, Cristina Donza. ''Imigração portuguesa, casamento e riqueza em Belém (1 870-1 920)", op. cit. 6 CANCELA, Cristina Donza. "Famílias de elite: transformação da riqueza e alianças matrimoniais. Belém 1 870-1 920". Topoi - Revista de História, Rio de Janeiro, 2009, pp. 24-38. 7 CANCELA, Cristina Donza. Casamento e relações familiares na economia da borracha. Belém 1870-1920. São Paulo, Universidade de São Paulo, 2006. 8 A partir de 1 858, o divórcio na Inglaterra passou a não depender mais de um Ato do Parlamento. E, por mais que o divórcio existisse anteriormente, era bastante incomum. Por exemplo: entre o-início do século XIX e 1 857, o Parlamento autorizou, em todo o pais, apenas 1 93 divórcios, ou seja, praticamente nada. Cf.: EHMER, Josef. "Marriage". ln: KERTER, David; BARBAGLI, Marzio (Orgs.) . The History of the European Fami!J:fami!J life in the long nineteenth century (1789- 1913). New Haven / London, Yale University Press, 2002, pp. 282-32 1 . 9 Idem, ibidem. 10 O casamento civil no Brasil estava, até 1 9 1 6, regulado pelo Decreto n. 1 8 1 de 24 de janeiro de 1 890, que o institui como a única forma legal de casamento no pais. O Decreto previa a idade rninima de casamento para homens e mulheres como sendo, respectivamente, 1 6 e 14 anos. A partir de 1 9 1 7, quando entra em vigor um novo Código Civil, esta limitação foi reajustada, passando a ser 1 8 anos para os homens e 1 6 anos para a s mulheres. 11 BARROSO, Daniel Souza. O casamento, em Belém, no início do século XX. Belém, Universidade Federal do Pará, 2009. 12 MARC ÍLIO, Maria Luiza. Crescimento demográfico e evolução agrária paulista (1 700- 1836). São Paulo, HUCITEC/EDUSP, 2000, pp. 60-61 . 1 3 Cf.: Elisée Reclus, Estados Unidos do Brasil: geographia, ethnographia, estatistica, p. 1 36 14 SAMARA, Eni de Mesquita; MATOS, Maria Izilda Santos de. "Manos femininas: trabajo e resistencia de las mujeres brasilei'ías". ln: PERROT, Michele (ed.). Histon'a de las mujeres, e! siglo XX Madrid, Taurus, 1 993. 15 Cf.: FONTES, Edilza Joana de Oliveira. "Prefere-se portuguesas: mercado de trabalho, racismo e relações de gênero em Belém do Pará." Cadernos do Centro de Filosofia e Ciências Humanas. Belém/UFPA, pp. 67-84, 1 993. 16BRITO, Eugênio Leitão de. Osportugueses no Grão-Pará. Belém, Conselho da Comunidade Luso-Brasileira do Pará, 2000, pp. 37-38.

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