Imigrantes na narrativa portuguesa contemporânea

May 23, 2017 | Autor: M. Fernández García | Categoria: Portuguese and Brazilian Literature
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Christian LAGARDE, Ilda MENDES DOS SANTOS, Philippe RABATÉ et Ana-Clara SANTOS (éds.), La part de l’Étranger, HispanismeS, n°1 (janvier 2013)

 

Imigrantes na narrativa portuguesa contemporânea Mª JESÚS FERNÁNDEZ (Universidad de Extremadura)

Résumé La société portugaise des dernières décennies est devenue destinataire d'un important phénomène migratoire. Le discours littéraire, comme les autres discours culturels, a commencé à considérer cette présence dans le quotidien portugais actuel en l'incorporant à travers le personnage de l'étranger immigrant dans des romans publiés au début du XXIe siècle. L'origine du personnage, son importance dans le récit et la rencontre de l'immigrant avec la langue portugaise seront quelques-uns des items étudiés afin de d’apprécier la formation d'un imaginaire de l'immigration. Mots-clés : roman portugais contemporain, immigration, identité, langue portugaise. Abstract In recent decades Portuguese society has become an important destination for immigration. The literary discourse, like other cultural discourses, began to consider this everyday presence in modern Portuguese society incorporating it in novels published at the beginning of the 21st century. The origin of the character, his relevance in the story, his meeting with the Portuguese language will be some of the items that are being studied in order to assess the formation of a collective imaginary about immigration. Keywords: contemporary Portuguese novel, immigration, identity, Portuguese language.

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Introdução: Uma nova sensibilidade na literatura portuguesa A partir das últimas décadas do século

XX,

algumas sociedades tradicionalmente

emigrantes, como a portuguesa e a espanhola, têm-se visto confrontadas com fluxos migratórios em direção contrária, tornando-se em pouco tempo países de acolhimento quando apenas uma década antes continuavam a exportar mão de obra para a Europa desenvolvida. A prosperidade económica, impulsionada pela entrada no espaço europeu, produziu o chamado «efeito chamada», atraindo trabalhadores de países ligados pela história colonial às antigas metrópoles e outros que, graças ao alargamento político da união europeia, exploram a partir do leste as possibilidades do oeste. O novo mapa humano resultante, pluricultural e multiétnico em graus diferentes, problematiza a noção de identidade nacional questionando a visão monolítica e o poder uniformizador do conjunto de traços supostamente comuns1 em que toda comunidade tenta reconhecer-se e com o qual pretende proteger-se. Novas identidades precárias, nómadas ou mistas por causa do encontro com o outro imigrante abrem caminho nos países de acolhimento, desfocando o retrato que se pretendia nítido das identidades nacionais clássicas. O estrangeiro imigrante irrompe nas sociedades como «emblema de la otredad»2, que altera os paradigmas em que assenta a perceção do mundo e do seu funcionamento nas comunidades recetoras,

obrigando-as

a

atuar

nalguma

direção

(multiculturalismo,

integração,

interculturalidade, educação para a diversidade, etc.). Embora fenómeno recente em sociedades como a portuguesa ou a espanhola, se comparadas com outros estados centroeuropeus, nos últimos vinte anos ambos os países tiveram de promover políticas de imigração face às ondas de trabalhadores estrangeiros chegados até à Península Ibérica e às suas ilhas. Como noutros sistemas literários europeus, também na narrativa portuguesa contemporânea, ao iniciar-se o século

XXI,

se percebe o interesse por refletir um fenómeno

que abre a porta à denúncia social e também à ficionalização de uma das formas do drama humano mais corrente nas sociedades da Europa da prosperidade económica. Esta passagem da realidade social para o discurso literário realiza-se através da figura do imigrante, personagem através da qual chega a representação de problemáticas sociais e, em consequência, reflexões identitárias resultantes do encontro com o outro estrangeiro. Ainda que, como veremos, se trate de um recém-chegado à literatura, a sua existência revela o                                                                                                                         1

Benedict ANDERSON, Comunidades Imaginadas, México, Fondo de Cultura Económica, 1993. David CONTE, «Espacios discursivos de la inmigración», Montserrat Iglesias (ed.), Imágenes del otro. Identidad e imigración en la literatura y el cine, Madrid, Editora Biblioteca Nueva, 2010, p. 33.

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impacto que os fluxos migratórios tiveram na sociedade portuguesa, como já advertiu o discurso sociológico3, gerando um imaginário sobre a imigração através da produção de diversas representações simbólicas do Outro. Sem dúvida, entre todos os discursos sobre a imigração o mais determinante na fixação de determinadas imagens é o discurso dos mídias, pela facilidade com que este chega a um maior número de interlocutores e, sobretudo, pela capacidade para sintetizar e cristalizar traços (até chegar ao estereótipo) simplificando a essencial complexidade do fenómeno, tornando-o mais compreensível para a maioria do público, mas também apagando os matizes para aproveitar o ingrediente sensacionalista. Neste continuum de vozes a interpretar o tempo presente e dar-lhe sentido ou, pelo contrário, a revelar o seu absurdo, a ficção literária, e em geral os discursos artísticos, contribui, por um lado, transformando números e dados estatísticos em experiências singularizadas e em personagens com perfis concretos, que por serem ficcionais podem ser lidos como metonímia das diversas formas de desenraizamento que a imigração provoca; por outro, projetando imagens, algumas das quais passaram a fazer parte dos imaginários coletivos. Como já analisou nos anos 70 Eduardo Lourenço no seu imprescindível ensaio O Labirinto da Saudade, a literatura portuguesa contribuiu durante séculos para a criação da consciência nacional e de uma autoimagem por vezes contraditória. A reflexão identitária nacional intensificou-se nas décadas posteriores à Revolução de 1974 transformando Portugal e a sua história recente num dos grandes temas para a ficção literária4. Em relação a um meio artístico tradicionalmente vocacionado para a autogénese5, poderíamos pensar que a presença na vida real de estrangeiros imigrantes, procedentes das antigas colónias, mas também de países sem nenhuma ligação histórica com Portugal, representaria um interessante questionamento da maneira como a identidade coletiva está a modificar-se nestes tempos de globalização e amolecimento das fronteiras políticas. No entanto, como veremos, a presença do imigrante na narrativa portuguesa é ainda escassa, sobretudo se comparada com outras artes, como o cinema, onde teve um desenvolvimento apreciável6, e com outros sistemas                                                                                                                         3

Estudos sociológicos que começaram a realizar-se desde há várias décadas, e dos quais só recolhemos alguns títulos como: Maria do Céu ESTEVES (org.), Portugal, país de imigração, Lisboa, Instituto de Estudos para o Desenvolvimento, 1991; José Luis GARCÍA (org.), Portugal migrante: emigrantes e imigradores. Dois estudos introdutórios, Oeiras, Celta, 2000; João LOPES FILHO, Imigrantes em terra de emigrantes, Lisboa, Instituto da Biblioteca Nacional e do Livro, 2007. 4 Ana Isabel BRIONES GARCÍA, «Algumas tendências no romance português mais recente (1987-1990)», Revista de Filología Románica, 9, 1992, p. 207-223; Mª Jesús FERNÁNDEZ, «Portugal y su historia reciente como tema», Mª Jesús Fernández (coord.), Historia de la literatura portuguesa, Mérida, GIT, 2011, p. 421-425. 5 Eduardo LOURENÇO, O Labirinto da Saudade, Lisboa, Gradiva, 1978. 6 Com títulos como Terra estrangeira (1996), de Walter Salles e Daniela Thomas; Swagatam (1998), de Catarina Alves Costa; Entre Muros (2002), de João Ribeiro e José Filipe Costa; Lisboetas (2004), de Sérgio Tréfaut;

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literários como o vizinho espanhol, por não falar do francês onde existem, para além de escritores imigrantes, segundas gerações a narrar o difícil caminho da criação e aceitação de uma identidade híbrida7. Não podemos esquecer, no entanto, que, se bem que os fluxos migratórios das últimas duas décadas tenham transformado o país em destino de milhares de imigrantes, Portugal foi tradicionalmente e até data recente (anos 80) um país de emigrantes e o discurso literário produziu importantes romances sobre esta temática, de maneira que a literatura da emigração ou da diáspora portuguesa constitui um sub-género temático narrativo que deu e continua a dar romances de interesse: desde títulos como Emigrantes de Ferreira de Castro, publicado em 1928, até Livro de José Luís Peixoto, de recente aparição (2010), passando por Gente Feliz com Lágrimas (1988) de João de Melo, repetidamente premiado e levado ao cinema. Desde o início do século

XXI,

em que a figura do imigrante se torna visível nalguma

narrativa recente podemos considerar que a «literatura da emigração» convive no sistema literário português com uma «literatura sobre ou da imigração». Porém, por serem ainda poucas as obras em que aparece representado o imigrante não se pode falar de uma autêntica corrente de «literatura da imigração» em Portugal8. A atenção que a crítica tem dado a esta temática é igualmente escassa, podendo assinalar-se apenas o estudo do escritor e crítico Miguel Real9, que focaliza muito exatamente a personagem imigrante de origem eslava em                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                     Entre nós (2006), conjunto de curtas-metragens de vários realizadores; Retratos: Portugal e os portugueses vistos pelos imigrantes (2007), de Luísa Homem; Chinês, China (2007), de João Pedro Rodrigues e João Rui Guerra de Mata; Cidade de Ouro (2008), de Andrey Romashov; Zé da Guiné. Crónica dum africano em Lisboa (2011), de José Manuel S. Lopes. Entre julho e agosto de 2011 decorreu no Pequeno Auditório da Fundação Gulbenkian (Sala Eduardo Prado Coelho) um ciclo de cinema intitulado «Ficheiros da Imigração», composto por algumas destas produções. 7 Só em relação ao sistema literário francês, que tomamos como exemplo, existe desde os anos noventa uma sequência de trabalhos publicados relativos à literatura sobre a imigração em França: Michel LARONDE, Autour du roman beur. Immigration et identité, Paris, L’Harmattan, 1993, e L’écriture décentrée, la langue de l’autre dans le roman contemporain, Paris, L’Harmattan, 1996; Charles BONN, Littérature des immigrations. Vol.1. Un espace littéraire émergent, Paris, L’Harmattan, 1995; e Odile CAZENAVE, Afrique sur Seine, une nouvelle génération des romanciers africains à Paris, Paris, L’Harmattan, 2003. Também em relação à literatura espanhola, começou no início do século XXI uma linha de investigação visto o incremento que a temática experimentou na narrativa espanhola. Hoje são vários os títulos que estudam o discurso literário sobre a imigração em Espanha: Irene ANDRES-SUÁREZ, Marcos KUNZ e I. D’ORS, La inmigración en la literatura española contemporánea, Madrid, Verbum, 2002; Marcos KUNZ, Juan Goytisolo. Metáforas de la migración, Madrid, Verbum, 2003, Dolores SOLER-ESPIAUBA (coord.), Literatura y pateras, Universidad Internacional de Andalucia-Akal, 2004. 8 Nem de uma literatura da imigração no sentido de haver autores imigrantes ou escritores de segunda geração a narrar a sua própria experiência. 9 «Imagens de imigrantes eslavos na literatura portuguesa – o caso de A Sopa, de Filomena Marona Beja», conferência proferida na International Conference Iberian and Slavonic Cultures in Contact and Comparison: Towards Crisis and Prosperity, Lisbon, University of Lisbon, Faculty of Letters, 26-28 April, 2007. Existem mais dois trabalhos da professora da Universidade de Vigo Isabel Morán Cabanas, ainda no prelo, que igualmente focalizam a imigração eslava: «Abordagens da imigração eslava nas literaturas portuguesa e espanhola do século XXI. Uma análise comparativa», International Conference: Peripheral Identities. Iberia and

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narrativas como A Sopa de Filomena Marona Beja, publicada em 2004, O Sol da Meia-Noite de Manuel da Silva Ramos e Meu único, grande amor: casei-me, de Manuela Gonzaga, ambas de 200710. Para além das obras recolhidas11 por Miguel Real que representam o imigrante eslavo, poderíamos alargar o corpus com títulos como O vento assobiando nas gruas (2002) de Lídia Jorge, O meu nome é legião (2007) de António Lobo Antunes, Náufragos do Mar da Palha (2007) de João Medina, Apocalipse dos trabalhadores (2008) de Valter Hugo Mãe e Myra (2008) de Maria Velho da Costa. A este conjunto de obras da autoria de escritores portugueses consagrados nos sistema literário, deveríamos acrescentar o romance A verdade de Chindo Luz (2006), primeira obra de um autor de origem caboverdiana, Joaquim Arena, que representaria aquilo que se costuma chamar a «segunda geração» e, portanto, acrescenta o interesse de um novo olhar, uma visão que parte da própria experiência no relato de uma procura identitária dividida entre Portugal e Cabo Verde. Em todas estas obras, de perspetivas estéticas (e ideológicas) diferentes, tenta-se tornar visível a existência do imigrante, africano e eslavo, imerso em histórias do quotidiano português. Sem interesse pelo discurso marcadamente ideológico, estas narrativas conseguem, no entanto, compor um mapa social do qual não podem ser apagados aqueles grupos que com a sua existência estragam a ilusória equidade/benignidade do sistema capitalista. Ao propiciar a visibilidade de novos elementos da paisagem social portuguesa (imigrantes, sem-abrigo, retornados, etc.), os relatos põem diante dos olhos dos leitores situações que evidenciam as falhas do Estado do Bem-estar e das relações entre as classes sociais que nele coabitam, apelando, com diferente intensidade, ao seu sentido de justiça social, mas igualmente convocando a sua compreensão para o drama identitário que a imigração acarreta12.                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                     Eastern Europe between dictatorial past and European Present, Universidade Técnica de Chemnitz, 2007, e «Representações de imigrantes eslavos na narrativa portuguesa dos últimos anos (2004-2007): personagens e discursos», Conferência Internacional de Intercâmbio Ibero-eslavo: intra-Muros, Ante-Portas, Lisboa, Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 2008. 10 Também se refere o crítico à peça de teatro Quarto Minguante de Rodrigo Francisco, representada no mesmo ano, onde aparece uma enfermeira de origem eslava, calada e trabalhadora. 11 Dentre as citadas por Miguel Real só fazem parte da nossa reflexão A Sopa de Filomena Marona Beja e O Sol de Meia-Noite de Manuel da Silva Ramos. 12 Parece que o propósito de denúncia da injustiça social e o compromisso humanitário com os imigrantes são traços comuns à literatura sobre a imigração em todas as latitudes. Assim acontece, por exemplo, na literatura espanhola sobre esta temática segundo Montserrat Iglesias Santos e Marco Kunz. No caso dos romances portugueses que estamos a considerar, este desejo de crítica da ordem social injusta é mais explícito em romances como A Sopa de Filomena Marona Beja, O vento assobiando nas gruas de Lídia Jorge e em O meu nome é legião de António Lobo Antunes, obra em que, para além de inculpar a toda a sociedade portuguesa pela existência destes grupos de jovens africanos delinquentes, o autor não deixa de tratar os traumas individuais que sempre o interessaram: a incomunicabilidade, a solidão, etc., de que, habitualmente, as relações de família resultam ser a causa.

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O imigrante não é só um estrangeiro. Não são imigrantes os futebolistas das grandes equipas mundiais, nem os grandes diretores de empresas ou os reformados ingleses e alemães que escolhem Portugal, ou Espanha, como destino: Poco tienen que ver estos casos con aquellas personas que hoy abandonan sus países de origen en busca de una vida mejor, o simplemente de una oportunidad para vivir, huyendo de la pobreza, la necesidad y la violencia. Y es que la pobreza, y la marginación que la pobreza conlleva, es la marca fundamental de la construcción de ese Otro con respecto al cual se define la sociedad europea contemporánea […]13.

Partindo, pois, de que o imigrante é nos discursos dos mídias uma figura unida à representação da necessidade material e da violência e, portanto, surge como a face mais visível da exclusão social, vamos analisar como é a imagem que trasladam para o imaginário coletivo dos leitores os textos de ficção que na última década foram publicados em Portugal. Entre os diversos aspetos que poderiam ser analisados ligados à construção desta personagem, vamos considerar apenas a procedência geográfica dos imigrantes e a sua relevância na diegese, ou seja, a sua condição de personagem principal ou secundária, para distinguir quando se trata de uma construção individualizada e quando corresponde a uma representação grupal, em que a identidade do imigrante surge como uma abstração. A cartografia da imigração: brasileiros, eslavos y africanos A primeira evidência em relação à origem geográfica e cultural das personagens imigrantes que aparecem nas narrativas do nosso corpus tem a ver com o desencontro entre a eleição feita pelo discurso literário e a realidade social portuguesa. Segundo os dados estatísticos, a população estrangeira em Portugal era constituída em 2010 por 443.055 estrangeiros com título de residência, dentre os quais a procedência brasileira era a mais representada, com 116.583 residentes14. No entanto, são escassas as personagens brasileiras a trazer para os romances portugueses os problemas vitais específicos de uma imigração procedente do Brasil. Como assinalam os diferentes estudos sociológicos realizados sobre a população brasileira em Portugal15, trata-se de um tipo de imigração que conheceu diversas                                                                                                                         13

Montserrat IGLESIAS (ed.), Imágenes del otro..., op. cit., p. 11. Dados do Anuário Estatístico de Portugal 2010 que podem consultar-se na página do Observatório da Imigração e do Alto Comissariado para a Imigração e Diálogo Intercultural . 15 Igor José de Renó MACHADO (org.), Um mar de identidades: imigração brasileira em Portugal, São Carlos, Edufscar, 2006; Benalva da SILVA VITORIO, Imigração brasileira em Portugal: identidade e perspetivas, Editora Universitária Leopoldianum-Universidade Católica de Santos, 2007. 14

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ondas, até ao ponto de se apresentar como uma «migração rotineira», sentida como um movimento de «sempre»16 e altamente diversificada em relação aos «sectores distintos do mercado de trabalho, de estratos sociais diferenciados de migrantes, de agrupamentos de brasileiros seguindo critérios variados [...]»17 o que torna realmente complexa a sua representação como coletividade, sintetizando a imagem e as problemáticas de um tipo de imigrantes. Nas representações sobre o Brasil insistem os autores em identificar uma figuração estereotipada que sobressai sobre qualquer outra, a da mulher brasileira como prostituta: «O Brasil, sempre no lugar do mestiço, acaba sendo ele todo transformado no corpo feminino da mulata: como tal é sexualizado»18. Com efeito, em Myra de Maria Velho da Costa, única narrativa em que encontramos uma personagem desta nacionalidade, a protagonista acaba prisioneira numa casa de prostituição, regida por uma brasileira, Adalgisa, onde aliás moram outras duas mulheres, «a Nereide, que é brasileira, e a Nina, que é ucraniana»19 e duas crianças de origem portuguesa. No espaço do prostíbulo, género e nacionalidade (brasileiras e ucranianas) ligam-se, dando lugar a uma representação da exclusão que afeta especialmente as mulheres. O imigrante mais representado na narrativa portuguesa recente é oriundo dalgum país do leste da Europa. Na realidade social esta é a segunda procedência mais numerosa no quadro da imigração em Portugal. Entre 1998 e 2008, o país recebeu numerosas vagas de imigrantes provenientes fundamentalmente da Ucrânia, Roménia e Moldávia até ultrapassar o número de cem mil trabalhadores em 201020. Ao contrário da brasileira, a imigração eslava enfrentava o problema da distância cultural e linguística e, no entanto, apresenta como vantagem no acesso ao trabalho o facto de possuir, em geral, habilitações profissionais mais altas do que os imigrantes africanos, embora tenham passado igualmente a empregar-se na construção civil21. Mais do que a brasileira e a africana, como dizíamos, foi esta imigração que chamou a atenção dos escritores portugueses. Se calhar porque representa um tipo de imigrante novo, desconhecido em Portugal antes de entrar no clube dos países prósperos da Europa. A                                                                                                                         16

Igor José de Renó MACHADO, «Reflexões sobre a imigração brasileira em Portugal», Nuevo Mundo Mundos Nuevos, Debates, 2007 [consultado el 16 enero 2012] . 17 Id. 18 Id. 19 Maria VELHO DA COSTA, Myra, Lisboa, Assírio & Alvim, 2008, p. 211. 20 Anuário Estatístico de Portugal 2010 . 21 Sobre esta imigração, pode ver-se: Fátima VELEZ DE CASTRO, A Europa do Outro - A Imigração em Portugal no Início do Século XXI. Estudo de Caso dos Imigrantes da Europa de Leste no Concelho de Vila Viçosa, Lisboa, ACIDI, 2008.

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distância cultural entre o âmbito mediterrânico e o caucásico (raça e língua fundamentalmente) faz com que o eslavo represente, mais do que africanos e brasileiros ligados historicamente a Portugal, o «outro radicalmente diferente»22. Em A sopa de Filomena Marona Beja aparecem, entre os marginais portugueses residentes numa fundação de acolhimento e apoio aos sem-abrigo, um grupo de imigrantes conhecidos genericamente como «os russos», que acode cada dia à porta do estabelecimento para receber alguma comida quente. Nas suas aparições ao longo do romance, é reiterado, como traço que lhes define, o silêncio, metáfora da impossibilidade de comunicação e, portanto, do encontro com a alteridade: Impressionava aquilo de os russos não dizerem nada. Seria de esperar que, pelos menos, trocassem umas palavras entre eles. Contudo, fundiam-se no silêncio. Possivelmente por desconfiança, deixavam-se ficar no exterior da Fundação como se não existissem. O vento que enrijava vindo do rio, batia-lhes nos corpos. Continuavam parados. Sem gestos23.

Contrária a esta imagem de mutismo, no romance de João Medina, Náufragos do Mar da Palha, obra de feição mais ensaística que ficcional, uma ucraniana, Ludmila, representa a vontade do estrangeiro de se integrar, comunicando sempre que possível com os nativos. Ludmila atende como empregada de mesa os pedidos do grupo que se reúne aos sábados num pequeno café do bairro de Alcântara, chamado Mar da Palha, em torno à figura de Tito, antigo professor de filosofia, que expõe perante alguns antigos alunos do liceu a sua visão fortemente crítica com a deriva histórica de Portugal, cético com projetos como a união europeia, descrente igualmente em relação às soluções nascidas do discurso nacional e do processo pós-nacional. O retrato da Ludmila, que saiu de Ucrânia pensando estar a emigrar para Espanha e, no entanto, chegou a Portugal com o seu filho Boris à procura de emprego, é do mais positivo, sublinhando o narrador a sua facilidade para a integração: No dia seguinte estava no «Mar da Palha», a servir à mesa, com a sua farta cabeleira loira ao vento, os seus peitos enormes e o seu sólido corpo de amazona eslava, sempre sorridente e bem-disposta, mesmo em dias de céu cinzento e chuviscos, agradando a todos, nunca se enganando nos trocos, falando um português correcto e com um sotaque divertido, tratando toda a gente como se tivessem sido seus colegas na escola primária24.

A este espaço que é o café Mar da Palha, metonímia do Portugal contemporâneo, arribam náufragos de vária procedência: para além dos cidadãos portugueses do círculo íntimo de Tito                                                                                                                         22

Montserrat IGLESIAS (ed.), Imágenes del otro, op. cit., p. 16. Filomena Marona BEJA, A Sopa, Porto, Âmbar, 2004, p. 28-29. 24 João MEDINA, Náufragos do Mar da Palha, Lisboa, Livros Horizonte, 2007, p. 30. 23

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e da ucraniana Ludmila, há outros estrangeiros imigrantes como Abulkarim, de origem indiana y Félix, moçambicano. No entanto, só a mulher eslava se apresenta disposta à integração na cultura de acolhimento, a começar pela apropriação da língua, enquanto os outros estrangeiros ficam instalados no isolamento e no silêncio, como veremos. Voltamos a encontrar uma personagem de origem eslava no romance Apocalipse dos trabalhadores de valter hugo mãe. Numa pequena cidade do interior português, cenário pouco frequente na literatura e no cinema, mais habituados a escolher as grandes urbes como focos dos problemas de marginação social, desenvolve-se a existência de uma série de personagens ligadas pela necessidade de sobreviver tanto económica como emocionalmente. Esta sobrevivência do ponto de vista dos sentimentos e da comunicação com os outros torna-se central na diegese. Neste ambiente de operários, destacam-se as figuras de duas mulheres portuguesas, a Maria da Graça e a Quitéria, que trabalham como mulheres a dias e ocasionalmente como carpideiras. Como figuras de fundo, aparece um grupo de trabalhadores de origem eslavo, russos e ucranianos, que partilham um apartamento e trabalham na construção civil. Entre eles perfilam-se mais nitidamente o russo Mikhalkov e, sobretudo, o ucraniano Andriy. Quitéria e Andriy são amantes. Embora inicialmente Quitéria só procurasse nele a beleza e a virilidade de um corpo jovem, ao longo do romance há de experimentar mudanças que atingem a sua identidade individual. A mais recente das narrativas que vamos considerar, Myra, é obra de uma veterana escritora portuguesa, Maria Velho da Costa, que viu atribuído ao seu romance o prémio Máxima de Literatura em 2009. A personagem central deste relato é uma menina russa, Myra, que parte para uma viagem de iniciação após a fuga da casa miserável onde morava com os pais e outros imigrados. Vítima de violência e da prostituição, Myra encontra logo depois da sua fuga um cão ferido numa luta de cães e entre eles surge uma relação de entendimento, onde não faltam os diálogos e conversas, como nas fábulas e contos tradicionais ou no realismo mágico. A presença do cão protege a menina e vice-versa. Myra percorre diversos espaços, da costa de Caparica para o sul e de novo para o norte, e experimenta diversos encontros, com portugueses e com outros estrangeiros. Myra inventa em cada encontro uma procedência diferente, servindo-se da origem nacional e cultural como de uma máscara com a qual se proteger dos outros, condicionando a atitude deles. Este romance é, dentro dos do conjunto, o que mais incide na questão da identidade como construção e da origem do estrangeiro como estigma de exclusão ou de aceitação.

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Vemos, pois, que dos romances que estamos a comentar, na maioria aparece representado o imigrante de origem eslava como personagem, enquanto que os de origem africana têm uma presença muito menor25. Esta escassez na representação literária da imigração africana já foi sublinhada por Ana Margarida Fonseca num trabalho sobre O meu Nome é Legião de António Lobo Antunes: Se são relativamente escassas as representações do colonizado na literatura portuguesa, são ainda mais raras as representações de africanos em Portugal, sejam eles refugiados ou imigrantes. Rompendo este silêncio, [...] a narrativa de António Lobo Antunes O meu Nome é Legião possibilita uma reflexão sobre o póscolonialismo26.

No entanto, em 2002, o romance de Lídia Jorge, O vento assobiando nas gruas27, colocava o leitor diante das relações conflituosas entre famílias, uma portuguesa, tradicional e rica noutro tempo, e a família Mata, de procedência cabo-verdiana, chegada a Portugal à procura do bem-estar, deslumbrada pela riqueza material que o sistema capitalista promete. Ligados por uma relação desigual de patrão-empregado, português-estrangeiro, branco-preto, o namoro da menina Milene com o filho dos Mata, Antonino, desencadeia as reações cruéis, e hipócritas, da família Leandro que tenta manter as distâncias que a tradição consagrou no relacionamento entre colonos e colonizados. Embora o casamento seja finalmente promovido pela própria família de Milene, esta será antes esterilizada, sem o seu conhecimento, para assim manter o estatuto social da família e o bom nome, tornando impossível a existência de descendentes. Esta é a solução que a família Leandro encontra face ao «medo de ver suas identidades, concebidas até então como estáveis e estabelecidas, naufragarem em contacto com o processo de diferenciação que se estende em sua sociedade»28. De esta maneira, fica anulada por meio da violência física qualquer possibilidade de mistura racial29.                                                                                                                         25

Não acontece assim no âmbito da sociologia em que existem diversos estudos que analisam esta imigração, com títulos entre outros como: Ana de SAINT-MAURICE, Identidades reconstruídas: cabo-verdianos em Portugal, Oeiras, Celta, 1997; Neusa Maria MENDES DE GUSMAO, Os filhos de África em Portugal: antropologia, multiculturalidade e educação, Lisboa, Imprensa de Ciências Sociais, 2004; Fernando Luís MACHADO, Contrastes e continuidades: migração, etnicidade e integração dos guineenses em Portugal, Oeiras, Celta, 2002. 26 Ana Margarida FONSECA, «O meu nome é solidão: representações da pós-colonialidade na ficção de António Lobo Antunes», VI Congresso Nacional Associação Portuguesa de Literatura Comparada, Universidade do Minho, 2009-2010, p. 4 [consultado a 13 de setembro] . 27 Grande Prémio de Romance e Novela da Associação Portuguesa de Escritores 2003. 28 Raquel TRENTIN OLIVEIRA, (2011), «O romance português contemporâneo e a representação de conflitos sociais: O Vento Assobiando nas Gruas, de Lídia Jorge», Terra roxa e outras terras – Revista de Estudos Literários, vol. 21, 2011, p. 120. . 29 Ibid., p. 119.

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A vida da família Mata, numa fictícia cidade de Valmares, desenrola-se ameaçada pela pobreza e pela falta de expectativas de ascensão social, apesar dalgum episódio que cria neles tal ilusão, como a aparição num show televisivo do filho Jamina Mata King a cantar em inglês. As fronteiras entre ambos os mundos afirmam-se e à frente dos filhos dos Mata só aparece o universo da marginação, representada pelo trabalho ilegal e a venda de droga. O espaço sublinha esta representação da exclusão a que os membros da família parecem estar destinados: ao regresso de uma viagem a Lisboa, surge o Bairro dos Espelhos, cenário simbólico do insucesso do falso discurso da tolerância e da integração dos imigrantes: O Bairro dos Espelhos não passava de um aglomerado raso, sem nome no mapa, e era assim chamado, porque, a partir das cinco da tarde as chapas de alumínio e os vidros incrustados nas janelas uniam-se em milhares de reflexos, como se fossem lamelas duma estação orbital construída à semelhança dum olho de mosca [...]. A maioria das pessoas que habitava o Bairro dos Espelhos provinha de terras inscritas na faixa marítima do Sahel, pedaços desgarrados de África [...]30.

Por sua vez, no romance O meu nome é legião, António Lobo Antunes, tendo como espaço principal também um bairro de lata, o Bairro 1º de Maio, «cenário (pouco frequente na literatura portuguesa)»31, focaliza as atividades de um grupo de jovens delinqüentes, que acompanhamos através do relatório policial, das vozes de pessoas próximas dos adolescentes e dos monólogos dos próprios jovens. O polícia encarregado de os perseguir e deter vincula a sua procedência africana aos modos de vida antisociais numa relação direta e incontornável: ao mesmo tempo que os suspeitos em número de 8 (oito) e de idades compreendidas entre os 12 (doze) e os 19 (dezanove) anos no Bairro 1º de Maio situado na região noroeste da capital e conhecido pela sua degradação física e inerentes problemas raciais isto é um pudim de edifícios de matérias não nobres, fragmentos de andaime, restos de alumínio, canas e habitado por gente de Angola, criaturas mestiças ou negras e portanto propensas por natureza à crueldade e à violência o que leva o signatário a questionar-se de novo preocupado à margem do presente relatório sobre a justeza da política de imigração em curso enquanto convocava o ajudante ‒Vamos embora daqui32.

Filhos de retornados na maioria dos casos (e algum branco de origem eslava), a cor da pele condiciona a associação com a pobreza e com a exclusão num espaço metaforicamente representado pelo Bairro, espaço periférico em relação a um centro, que os jovens visitam só para o atacar, como o espaço colonial era relativamente à metrópole. Como vê Ana Margarida Fonseca, neste romance outras leituras entram no jogo dos conflitos identitários, em concreto aquelas que têm a ver com o pos-colonialismo e a autoimagem dos portugueses como «um                                                                                                                         30

Lídia JORGE, O Vento Assobiando nas Gruas, Lisboa, Dom Quixote, 2002, p. 46. Ana Margarida FONSECA, «O meu nome é solidão…», op. cit., p. 1. 32 António LOBO ANTUNES, O meu nome é legião, Lisboa, Dom Quixote, 2007, p. 30. 31

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colonizador benévolo, disponível tanto para a troca cultural como para a miscigenação racial»33 em clara contradição com a existência destes grupos de «semiafricanos» ou africanos de «segunda geração», voltados para a violência, habitando a irrealidade e desligados de qualquer sentimento de pertença a uma comunidade nacional. As personagens brancas, mesmo sendo vizinhos do bairro, olham para o outro mestiço ou «semiafricano» repetindo estereótipos animalizadores34 que inferiorizam os africanos e prolongam «em tempos póscoloniais», a relação colonizador-colonizado. Segundo Ana Margarida Fonseca, o romance de Lobo Antunes «problematiza estes estereótipos» sobre os africanos «instaurando um contradiscurso que convoca o discurso colonial para desconstruir os seus próprios mecanismos de coesão interna»35. Assim, pois, as obras de Lídia Jorge e de Lobo Antunes coincidem no propósito de tornar visível a contradição de um discurso que tradicionalmente assentou na tolerância e na capacidade para se aproximar e misturar com o outro estrangeiro a identidade portuguesa36. Um novo romance, A verdade de Chindo Luz, obra de um autor luso-descendente, Joaquim Arena, de origem caboverdiana, volta a representar literariamente a imigração africana que habita na orla da grande cidade, Lisboa. A história da família Luz em que assenta parte da diegese desta narrativa não coincide com as representações da exclusão do imigrante africano habituais nos discursos sociais e artísticos, embora se entrecruze com eles. Os pais, John Luzona e Nitinha, pertencem a uma onda de imigrantes caboverdianos anterior à Revolução dos Cravos37 e os quatro filhos nasceram em Portugal. Passam a sua infância e primeira juventude num bairro de maioria branca, integrados entre os seus vizinhos, migrantes da Beira e do Alentejo: Baldo se acordó de Pinela, de Luego-luego, de Joel Tocadiscos y de tantos otros amigos del barrio. En cierto momento, nadie hacía la más mínima distinción entre ellos: blanco, negro, mulato. [...] El primer día de escuela, Chindo y Baldo habían sido el centro de atención, pero la curiosidad no duro mucho tiempo38.

Na primeira parte do romance acompanhamos, pois, o relato das experiências de uma família que, mesmo sendo constituída por imigrantes de segunda geração, não sofre no seu                                                                                                                         33

Ana Margarida FONSECA, «O meu nome é solidão…», op. cit., p. 3. Ibid., p. 5-6. 35 Ibid., p. 11. 36 Raquel TRENTIN OLIVEIRA, «O romance português contemporâneo…», op. cit., p. 122. 37 Entre 1963 e 1973 chegaram a Portugal legalmente 104.767 caboverdianos . 38 Joaquim ARENA, La verdad sobre Chindo Luz, Tenerife, Ediciones Baile del Sol, 2008, p. 103 (citamos pela tradução espanhola do romance). 34

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meio as diversas formas da exclusão social devida à raça, embora partilhe com os habitantes do bairro as dificuldades económicas comuns a toda a classe operária. A banda de amigos em que se integram os irmãos Chindo e Baldo, mistura de brancos e pretos, é prova desta aparente «normalidade». Partindo dum espaço cultural semelhante (o bairro operário), alguns deles terão depois um futuro marcado pela exclusão e outros conseguem elevar-se até aos degraus mais altos da escala social. A reflexão sobre uma identidade racial diferenciada que é preciso reclamar e reforçar, baseada na pertença a uma comunidade afroeuropeia, chega à vida dos irmãos Luz mais tarde, quando o bairro há tempo que desapareceu, surgindo em seu lugar o moderníssimo Parque das Nações. No entanto, quando o romance arranca a família está a viver uma experiência especialmente determinante para o seu percurso posterior: Chindo transforma-se numa estrela televisiva graças à sua participação num reality show onde, perante milhares de telespectadores, inventa uma vida para a família coincidente com a imagem estereotipada da imigração africana, com a qual pretende conseguir a simpatia, inclusive a comiseração, dos portugueses. Chindo adequa, pois, o retrato dos irmãos e da mãe à imagem da família «retornada», que deixou um pai soldado morto nas guerras coloniais e que, extremamente pobre, teve de colocar os filhos numa instituição de ajuda. O episódio desta metamorfose inventada por Chindo, «de esta versión más comercial y sufrida»39 substituindo «la historia banal de uma familia de inmigrantes cabo-verdianos, igual a muchas otras»40, sublinha o papel preponderante que o discurso dos mídias tem na formação das representações que conformam o imaginário coletivo sobre a imigração africana (o outro permanentemente excluído, pobre e fracassado), circunstância que Chindo aproveita para sair ganhador do concurso. Só a mãe se sente traída com esta invenção e, depois de o filho ter desaparecido misteriosamente, decide voltar para Cabo Verde, numa viagem de regresso às origens. Neste romance a representação da imigração africana, identificada habitualmente com a pobreza, a violência e, em consequência, a exclusão social, vê-se confrontada com outra hipótese: a de haver uma imigração que partilhou vivências e acontecimentos coletivos do Portugal pré-revolucionário sem sentir uma identidade diferenciada da dos seus vizinhos portugueses, igualmente humildes, a experimentar idênticas dificuldades da sobrevivência diária. O acesso de Baldo, o irmão mais novo, ao ensino universitário representa a passagem dos círculos da periferia para o centro, evitando definitivamente a exclusão social por razões                                                                                                                         39 40

Ibid., p. 19. Ibid., p. 21.

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raciais ou económicas. No entanto, a reflexão identitária, ligada à ideia da origem estrangeira e à diferença racial, aparecerá no romance em diversos momentos, sobretudo como inquietação para a qual Baldo, personagem central do relato, não acha respostas satisfatórias. A única identidade que finalmente lhe interessa definir é a construção de um espaço vital próprio, junto à mulher que ama, numa comunidade em Cabo Verde onde se sente útil. Vemos, assim, duas maneiras de representar a imigração africana em Portugal: por um lado, Lídia Jorge y António Lobo Antunes pretendem, como vimos, descobrir as próprias contradições do discurso colonial mostrando uma segunda geração, filhos de retornados, abocada à mais completa exclusão social, até serem eliminados fisicamente; por outro, no romance de Joaquim Arena, o autor, partindo da experiência pessoal por ele próprio ser imigrante caboverdiano, representa literariamente uma situação que se aproxima da ideia de «integração», mas que não a explica completamente, dado que a família Luz nunca sentiu a sua identidade portuguesa como problemática e as dificuldades de ascensão social diferentes daquelas que tinham os vizinhos portugueses do bairro. De perspetivas tão diferenciadas, acabamos por ter representados na ficção literária os complexos matizes da experiência da imigração que o discurso dos mídias apaga, mais interessado nos aspetos dramáticos e sensacionalistas do fenómeno. Como referimos acima, outras procedências são muito menos representadas ou, simplesmente, não aparecem41. No romance de João Medina, Náufragos do Mar da Palha, Abulkarim, o dono do café onde se reúne Tito com os seus discípulos, é um indiano, muçulmano emigrado para Moçambique e depois para Lisboa. Representa a figura do nómada sobrevivente de dois naufrágios: aquele que divide a Índia, obrigando a família a ir para o Paquistão (drama que tirou das suas terras a milhões de pessoas), e aquele que, depois da independência de Moçambique, faz retornar milhares de portugueses para a metrópole. Abdulkarim, sem se sentir um «retornado», termo depreciativo, arribou a Portugal nesta onda procedente de África. Uma vez no café, Abdulkarim sentava-se invariavelmente atrás do balcão, num recanto mais escuro, sem nunca partilhar da companhia de qualquer cliente sentado numa das seis mesas do acanhado «Mar da Palha», e ali ficava, esquecido e silencioso, conseguindo, apesar de tudo, ler com minuciosa atenção as páginas de uma edição inglesa do Corão, livro que o acompanhava sempre [...]42.                                                                                                                         41

O romance A Sopa inclui, para além dos eslavos, alguns personagens imigrantes de origens diversas, como o Boubacar, guineense, ou a Angelina, chinesa, o que permite ao narrador fazer alguma breve referência a este tipo de imigração. 42 João MEDINA, Náufragos do Mar da Palha, op. cit., p. 27.

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Abdulkarim representa a imagem do estrangeiro que não pretende qualquer aproximação dos habitantes do país de acolhimento, habitando a sua ilha cultural que poderia estar ancorada em qualquer parte do mundo: Deste modo austero e apagado levava Abdulkarim, nesta pátria emprestada, uma vida que podia ter sido vivida em qualquer outro recanto do mundo, pois este é sempre o mesmo [...]43.

A imagem do imigrante oriental fechado na sua cultura, hermético, desconhecido e enigmático vê-se representada literariamente nesta personagem. Inseparável da personagem do indiano surge Félix, o cozinheiro do Mar da palha, caracterizado como o «Adónis negro», «um garoto de 15 anos, órfão por via das guerras civis moçambicanas que se tinham traduzido no assassinato dos pais do negrinho»44. Na sua caracterização, destaca-se a sua beleza física e a suposta relação amorosa com o patrão, mas a sua figura provoca em Tito uma reflexão sobre a inutilidade da existência humana: O Félix, como exemplo de ser marginal e sem utilidade evidente num plano teleológico da História da Humanidade, simboliza a inutilidade final de todos nós, [...] já que, sem excepção, não passamos, como eu ou tu, de variantes mais ou menos sofisticadas do mesmo cozinheiro que nos prepara os caris do sábado45.

O imigrante, do grupo ao indivíduo A representação literária do imigrante apresenta-se muitas vezes abstrata, e, inclusive, desfocada quando a personagem aparece diluída num grupo. Nestes casos a identidade grupal substitui a identidade individual e as marcas de individualidade são elididas. Assim acontece, por exemplo, em A Sopa, onde os russos são caracterizados como grupo, personagens caladas, tímidas e distantes, que moram ilegalmente em Portugal como autênticos escravos, perdida a identidade individual numa viagem clandestina: Não se fazia ideia da altura em que aquela gente teria começado a aparecer. «Foi de repente», dizia-se. E quem teriam sido? Quais as suas vidas, antes de se arriscarem aos passadores? A esse propósito corriam muitas versões, algumas de espantar. Mas, com vistos caducados, sem contratos de trabalho nem números de contribuinte, sonegara-se-lhes a identidade. Agora eram clandestinos. «Ilegais», emendavam as autoridades.

                                                                                                                        43

Ibid., p. 171. Ibid., p. 168. 45 Ibid., p. 252. 44

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Chamassem-lhes como quisessem. Tudo indicava que se tinham tornado escravos46.

Sublinha-se assim a imagem do outro desconhecido e impenetrável. No entanto, entre eles Kiev, cujo nome autêntico é Sergei, aparece individualizado, com um nome próprio, um retrato físico e traços de caráter concretos, como o amor dele pela música47. Sergei é o único do grupo dos eslavos que consegue ultrapassar todas as fronteiras simbólicas: as individuais e culturais, ao apaixonar-se por uma jovem portuguesa, e as físicas, ao conseguir ser aceite como interno na Fundação, mas depois pagará com a sua vida tê-las atravessado, como se se tratasse de uma transgressão imperdoável para um estrangeiro. Quando, em O sol da meia-noite de Manuel da Silva Ramos, o narrador percorre alguns locais da cidade de Lisboa, o seu olhar compõe o puzzle dos ambientes noturnos da cidade, onde os imigrantes aparecem referenciados em grupos étnicos e culturais a fazer parte ativa de uma certa degradação48: O Largo do Intendente estava cada vez mais sinistro. As putas pretas encostadas aos fabulosos azulejos da Viúva Lamego [...]. Se o Intendente Pina Manique pudesse ressuscitar veria uma grande colonização africana em bares e no passeio coloquial, transporte de cargas e descargas [...], grupos de ucranianos em conversas bizarras, pretos ambulantes que vendiam roupa nova engordada de suor alheio... Depois de termos passado a zona dos bares com música alta, pretos no interior, e jovens feias e velhas gordas desdentadas cá fora, avançámos pela Rua do Benformoso...49

A visão grupal dos imigrantes entrecruza-se com os espaços que habita, os quais podem ser lidos como metonímia do próprio imigrante50. Assim, podemos pensar na importância que o bairro tem nos romances de Lídia Jorge, Lobo Antunes e de Joaquim Arena. O bairro, localizado na periferia da grande urbe lisboeta, é um espaço de identificação para o grupo e, no caso do romance de Lobo Antunes, é um território fora do controlo dos poderes civis. Quando a polícia cerca o perímetro do Bairro 1º de Maio, nome por outra parte de leitura simbólica, para capturar os delinquentes, está a marcar os limites físicos da marginalidade e este assédio evoca antigas guerras coloniais.                                                                                                                         46

Filomena Marona BEJA, A Sopa, op. cit., p. 29. Ibid., p. 109. 48 Não se aprecia neste romance qualquer interesse na figura do imigrante, a sua presença é completamente casual a fazer parte de uma paisagem urbana. No entanto, são muito habituais as mulheres estrangeiras e, entre os numerosos encontros sexuais que o narrador relata nesta obra, são frequentes aqueles que têm como protagonistas mulheres ucranianas, até ao ponto do narrador inventar, com o sentido do humor que exibe ao longo do romance, um neologismo a partir do nome Kiev para designar esta relação sexual: «Beijei-a no escuro dum cinema onde tínhamos entrado para isso e saímos logo depois para minha casa. Podem imaginar facilmente a kievaginação que foi», Manuel da SILVA RAMOS, O Sol da Meia-Noite, Lisboa, Dom Quixote, 2007, p. 103. 49 Ibid., p. 79. 50 David CONTE, «Espacios discursivos de la inmigración», op. cit., p. 36. 47

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Incluso quando se trata de personagens com marcas de individualidade bem definidas, como Ludmila ou Abulkarim em Náufragos do Mar da Palha, o imigrante costuma ficar na categoria de personagem secundária. Mesmo individualizadas, as personagens estrangeiras desta obra parecem ilustrar diversas formas já codificadas da representação do outro imigrante: a integração de Ludmila, o hermetismo de Abulkaim, o fetichismo erótico do homem africano representado por Félix. Como personagem secundária, o imigrante aparece como parte de um quadro social em que a marginação atinge igualmente os nacionais, como em A sopa, onde a Fundação alberga sem-abrigo portugueses, que nem sempre concordam com que sejam também ajudados os estrangeiros: Acreditavam pouco no sim da Directora. ‒...e ela tem razão! ‒Pois tem. ‒Não se pode começar a dar de comer a um e a outro. ‒Então com os russos a aparecerem de todo o lado. ‒...e com a rafa que eles passam por aí! ‒Dê primeiro aos de cá. ‒De cá ou de lá...desde que não tire nada à morca da gente…51

No entanto, nalguns dos romances mais recentes, observa-se uma deslocação do imigrante da periferia da diegese para o centro, até se tornar em personagem principal, como acontece em grande parte em O apocalipse dos trabalhadores de valter hugo mãe e em Myra de Maria Velho da Costa. No primeiro dos romances mencionados, o ucraniano Andry, sem ser a personagem principal, é uma das figuras destacadas até ao ponto de a diegese ser deslocada de Bragança para a cidade dele, Korosten, na Ucrânia, numa analepse que coloca o leitor no momento em que Ekaterina, a mãe do Andriy, vê partir o filho numa viagem de emigração que o levará para Portugal. Andriy distingue-se assim do grupo dos trabalhadores eslavos que partilham o mesmo apartamento e ganha uma identidade individual, ligada à existência dos seus pais, de uma casa, de uma cidade e de uma nação com uma história própria. O romance de Maria Velho da Costa, Myra, é o exemplo mais desenvolvido desta centralidade da personagem do imigrante, mas é ao mesmo tempo o relato que, tentando individualizar a figura da menina ucraniana, questiona mais profundamente o problema identitário do imigrante que tenta sobreviver. Na sua viagem de iniciação, Myra e o cão mudam continuamente de nome próprio, máximo identificador pessoal, passando de Sónia a Sophia, Maria Flor, Elena ou Ekaterina, assim como o cão é Rambo, César, Piloto, Douro ou                                                                                                                         51

Filomena Marona BEJA, A Sopa, op. cit., p. 57.

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Ivan. Myra escolhe nacionalidades (russa, alemã, romena, grega) e improvisa o relato da sua vida para conseguir fugir ao mundo dos adultos. Torna-se assim central neste romance o caráter problemático da identidade individual do estrangeiro, dado que será interpretada como identidade grupal pelo interlocutor e associada a determinadas representações simbólicas, inclusive estereotipadas: assim, quando Myra diz ser alemã, conta que é uma menina rica e que os seus pais estão à espera dela e os donos do bar acreditam. Com Myra, somos levados a aceitar que o nome e a nacionalidade podem ser empregues como máscaras para se defender do outro, condicionando a atitude do interlocutor: «[...] Myra pôs-lhe a tela. A si própria afivelou a preparação da máscara»52. Na sua deambulação Myra acaba por encontrar um espaço (ou interstício, do capítulo 11 ao 21) que se apresenta como autêntico paraíso multicultural, onde é acolhida por um jovem mulato, Gabriel Rolando-Orlando, homem rico que sofreu a crueldade dos outros no seu corpo mutilado durante uma viagem a África. Gabriel construiu um lugar fora da realidade, uma casa feérica, onde reuniu empregados das raças habitualmente excluídas dos benefícios do progresso: Igor, o porteiro ucraniano, as criadas mulatas Cremilda e Antónia, que falam crioulo entre elas, o negro Euclides e o jardineiro chinês, Wong. A quinta de Gabriel Rolando-Orlando quer ser uma espécie de ilha da Utopia onde as diferenças entre eles podem chegar a desaparecer, como numa noite de trovoada em que se reúnem a dançar valsas, mazurcas russas, danças africanas, a praticar «uma nivelação dos estados» numa espécie de família feliz. Inclusive o cão, feito para o combate, fala e entende-se com a gata persa, Brunilde. Durante esta história de amor entre Gabriel e Myra, a jovem quase consegue uma identidade: ‒Casa comigo, Kate. Não tens nada a perder. ‒Não tenho documentos nem nome certo. Não tenho nada excepto um cão. ‒Uma identidade também se forja e também se compra53.

Mas o tempo da felicidade acaba de maneira brusca e cruel, quando são atacados na viagem de regresso a Lisboa por um gangue de jovens portugueses. Gabriel é assassinado e Myra é raptada e levada para um apartamento onde moram várias prostitutas. Face ao espaço utópico e perecedouro, em que era possível a compreensão das raças e das culturas e a colaboração para a felicidade comum, a realidade da exclusão, de onde Myra provém e para

                                                                                                                        52 53

Maria VELHO DA COSTA, Myra, op. cit., p. 76. Ibid., p. 169.

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onde regressa, parece estar à sua espera, como um destino incontornável pelo facto de ser imigrante, mulher, branca, loira, eslava… Na individualização da personagem imigrante, resulta especialmente relevante o domínio da língua do país que acolhe, como caminho que lhe permite a aproximação aos seus habitantes e garante a comunicabilidade. No caso dos imigrantes brasileiros e africanos a distância linguística é representada literariamente na reprodução de um sotaque particular (a madrinha Adalgisa em Myra) ou através da presença de algum vocábulo crioulo (em Na verdade de Chindo Luz de Joaquim Arena). No entanto, a posse da língua portuguesa por parte dos imigrantes eslavos permite aos autores criar situações que reforçam a imagem de exclusão ou, ao invés, de integração na nova sociedade. Assim, para os eslavos de A sopa o desconhecimento da língua portuguesa é um muro que os impede de atravessar as portas da Fundação e os faz aparecer como silenciosos, quase «mudos»54, enquanto que o sucesso da ucraniana Ludmila em Náufragos do Mar da Palha se liga estreitamente à sua capacidade para empregar a língua portuguesa: Mãe e filho integraram-se com uma pasmosa facilidade no nosso país, aprendendo a língua de Camões e Rodrigues Lobo com uma facilidade extraordinária, transferindo todo o seu soviético heroísmo para a assimilação acelerada [...]. Agora, tanto Ludmila como Boris moviam-se como peixes exóticos dentre destas águas atlânticas e temperadas, manejando com destreza os segredos fonéticos e psíquicos mais idiomáticos do nosso linguajar, e até da nossa sensibilidade, falando o português com uma curiosa plasticidade que fazia o espanto e a delícia admirativa e divertida de muitos. Aquela planturosa e dinâmica criatura de cinquenta anos, capaz de utilizar o infinitivo pessoal e as subtilezas mais bizarras da língua sem tropeçar numa só sílaba ou num acento tónico, assim como o seu desembaraçado filho, mostravam bem como a necessidade é mãe da acção e a vontade doma todas as adversidades. E lá estavam [...] aclimatadas a Portugal, ao seu estilo de vida e aos seus costumes, usando o ditongo ão como se tivessem nascido com ele nas cordas vocais, [...] compreendendo os vícios, as tinetas, as birras e as fobias dos portugueses [...]55.

Para o ucraniano Andriy, em O apocalipse dos trabalhadores, a língua é um grande obstáculo que o impede de partilhar a suas preocupações mais íntimas com a sua amante: «Eu estar não feliz, meu pai mais doente e minha mãe com maldade em ucrânia. eu pensa nisso sempre e não tem pensar outra coisa»56. A Quitéria que, inicialmente reage suspeitando que o ucraniano está a pedir dinheiro, reflete mais tarde sobre este assunto e as consequências que pode ter não dispor das palavras exatas:

                                                                                                                        54

Filomena Marona BEJA, A Sopa, op. cit., p. 157. João MEDINA, Náufragos do Mar da Palha, op. cit., p. 101. 56 Valter Hugo MÃE, O Apocalipse dos Trabalhadores, Lisboa, Quidnovi, 2008, p. 44. 55

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  [...] era certo que o Andriy vinha de longe e, incapaz de falar bom português, acabava por lhes parecer substancialmente mais inapto do que seria, como se fosse sempre cômico, mesmo quando necessitado de ser sério, perdendo tanto a possibilidade de convencer os outros sobre a seriedade dos seus assuntos como, sobretudo, da inteligência do seu pensamento. [...] pensou um pouco, não havia nunca colocado a questão de saber se o amante seria particularmente inteligente. para ela, ele estaria bem assim, mas era revolucionário ponderar as coisas daquela maneira. se o Andriy falasse um português perfeito, e perfeitamente o entendesse, o que lhe diria a ela. [...] seria possível que ele lhe perguntasse solenemente sobre os seus sonhos, ou lhe explicasse importantemente a grande fome ucraniana dos anos trinta do século vinte57.

Ao colocar o problema nesta perspetiva, a Quitéria abre uma porta à comunicação com o seu amante por onde poderão transitar sentimentos, experiências, memória, costumes, em suma, a identidade do outro. Em relação à língua, Myra mantém-se todo o romance plurilingue, empregando tanto o russo como o português ou o inglês: Vamos Rambo, antes que eles venham, repetiu Myra em português de lei. Vamos, irmãozinho, em russo58.

Para Myra, a língua é um instrumento muito útil para se disfarçar e adotar outras identidades, imitando sotaques num falar «remendado»59. O conhecimento da língua portuguesa é um elemento que reforça a representação do imigrante ligada à imagem da exclusão ou da integração e a maior parte dos autores dá atenção a este aspeto, primário no sucesso das relações humanas. O estrangeiro imigrante não é ainda uma personagem muito presente nem desenvolvida na narrativa portuguesa, de modo que não se pode falar de uma autêntica «literatura da imigração». No entanto, como personagem de ficção recém aparecida, foi ganhando um espaço mais relevante, deslocando-se da periferia do relato enquanto personagem secundária nalguns romances, como A Sopa, para o centro mesmo da diegese, como acontece em A verdade de Chindo Luz ou Myra, suscitando assim através do discurso literário um dos debates mais intensos das últimas décadas do século

XX

e início do século

XXI:

a reflexão

sobre a identidade. Tratamos aqui relatos bem sucedidos, obra na maioria dos casos de autores conhecidos do público leitor, premiados e traduzidos, que se aproximam desta temática não apenas com o compromisso de denunciar a exclusão social que atinge os imigrantes (e também os nacionais), mas de representar, sempre de uma perspetiva de «nativos», uma                                                                                                                         57

Ibid., p. 45. Maria VELHO DA COSTA, Myra, op. cit., p. 15. 59 Ibid., p. 148. 58

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presença no quotidiano que nos obriga a todos a modificar tanto a perceção do outro como a do próprio eu. Não se observa na maioria dos romances que temos considerado ao longo destas páginas nem uma inclinação exagerada para um realismo documentalista, nem a sublimação positiva da figura do imigrante para provocar uma certa compaixão, nem um humanitarismo a reforçar boas intenções que malogre achados estéticos apreciáveis, falhas que os críticos costumam assinalar nas obras sobre esta temática60. Como vimos, a imigração eslava é a mais escolhida pelos autores portugueses, transitando da representação da exclusão (A sopa) para a da integração (Náufragos do Mar da Palha). Podemos, mesmo, considerar que o discurso literário veicula uma imagem «eslavizada» da imigração em Portugal, como em Espanha é uma imagem «africanizada», fundamentalmente pela abundância de relatos sobre a passagem do estreito61. Este tipo de imigração não provoca reflexões sobre o passado, como pode acontecer com a emigração africana, ligada historicamente ao processo descolonizador, que culpa o Estado revelando as contradições do discurso colonial e da política de reinserção daqueles retornados que ficaram nos bairros de lata. A imigração eslava é um movimento sem leitura histórica, que afetou igualmente outros países europeus, como resultado da abertura das fronteiras europeias, dos erros do sistema comunista e do processo de globalização do planeta. Outras etnias e culturas não estão ainda representadas na literatura, mas aparecem no cinema e, sobretudo, nos estudos sociológicos e antropológicos62, que confirmam a sua presença em Portugal, embora continuem a ter menor visibilidade. A questão da posse da palavra permite outras observações se tivermos em conta a condição de portugueses dos autores e as vozes narrativas que eles criam para cada um dos relatos. Na maioria dos casos, encontramos nos romances um discurso interposto63, construído por um autor que interpreta o imigrante. Só o romance de Joaquim Arena, como escritor pertencente a uma geração de descendentes de imigrantes africanos, pode representar as possibilidades da autorrepresentação. No entanto o autor parece querer afastar-se da interpretação autobiográfica escolhendo para o seu relato uma voz intermédia «nativa», a figura de um jornalista português, amigo da infância de Baldo, que é realmente o narrador da                                                                                                                         60

Domingo SÁNCHEZ-MESA, «Imágenes del inmigrante en la literatura española», Guadalupe Ruiz y Aurelio Ríos (eds.), Didáctica del español como segunda lengua para inmigrantes, Sevilla, Universidad Internacional de Andalucía, 2008, p. 158-190. 61 Ibid.; Montserrat IGLESIAS (ed.), Imágenes del otro, op. cit., p. 15. 62 Jorge MACAISTA MALHEIROS, Imigrantes na região de Lisboa: os anos da mudança, imigração e processo de integração das comunidades de origem indiana, Lisboa, Edições Colibri, 1996; José M. GONCALVES, Os chineses no Martim Moniz: oportunidades e redes sociais, Lisboa, Socinova, 2001. 63 Montserrat IGLESIAS (ed.), Imágenes del outro. Identidad e imigración en la literatura y el cine, op. cit., p. 12.

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história da família Luz. Como já está a acontecer na literatura espanhola64, temos de pensar que também em Portugal surgirão novos autores, filhos de imigrantes, que partirão do conhecimento direto da experiência da migração para a representar literariamente (se é que não existem já fora dos circuitos habituais). Quando isto acontecer, será altura de ver como evoluem as representações do imigrante e se esta temática transita para novas imagens em diálogo com as existentes. Para além desta interposição derivada de ser a maioria dos autores portugueses a projetar a imagem do imigrante, em todos os romances existe uma entidade narrativa intermédia, um narrador de terceira pessoa que só em certas ocasiões dá a palavra à personagem do imigrante nos diálogos e em trechos de discurso direto. Porém, não existe esta voz interposta na obra de António Lobo Antunes, o que corresponde mais uma vez a uma opção particular de seu estilo. Entre outras muitas falas, ouvimos a voz de dois dos jovens delinquentes «semiafricanos» e da irmã de um deles. Como sublinha Ana Margarida Fonseca em relação a O meu nome é legião, este romance «dá voz aos mestiços do Bairro 1º de Maio – algo que vale a pena destacar por ser raro, na literatura portuguesa, encontramos o outro (o estrangeiro, o que é diferente na cor, na classe ou na língua) na posse da palavra»65. Por último, não há ainda na literatura portuguesa uma simbolização da imigração como porta para o hibridismo cultural. Não há personagens a habitar o entre-lugar de que fala Homi Bhabha: «Essa passagem intersticial entre identificações fixas abre a possibilidade de um hibridismo cultural que acolhe a diferença sem uma hierarquia suposta ou imposta»66. Não encontramos personagens a viver uma experiência intercultural, nem muito menos exemplos de mestiçagem, embora a personagem de Quitéria, mulher a dias de uma cidade provinciana do interior de Portugal, caminhe para este questionamento, e a viagem que decide fazer acompanhando o seu amante ucraniano até à terra dele possa ser interpretada como um primeiro passo na direção de uma espécie de nomadismo cultural, de um autêntico encontro com o outro do qual não regressará sendo a mesma; mas esta situação ultrapassa o próprio romance e, portanto, fica fora das nossas hipóteses de leitura.

                                                                                                                        64

Domingo SÁNCHEZ-MESA, «Imágenes del inmigrante en la literatura española», op. cit.; Montserrat IGLESIAS (ed.), Imágenes del otro, op. cit. 65 Ana Margarida FONSECA, «O meu nome é solidão...», op. cit. 66 Homi BHABHA, O local da cultura, op. cit., p. 22.

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