IMIGRANTES NEGROS: NA CONTRAMAO DA HISTORIA

July 7, 2017 | Autor: Elaine Rocha | Categoria: Race and Racism, Modernization, Negros, Imigração
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Imigrantes negros: na contramão da história 1 Elaine Pereira Rocha Frederick Alleyne Millie gone to Brazil Oh Lawd, poor Millie Millie gone to Brazil Oh Lawd, poor Millie Wid de wire wrap round she waist And the razor cut up she face Wid de wire wrap round she waist And the razor cut up she face

Millie Gone to Brazil, é uma das mais populares canções de Barbados, sendo desde os anos 1920 parte do folclore. A música fala sobre uma mulher que deixou Barbados e desapareceu, o que não era um acontecimento raro nas primerias décadas do século XX, quando muitos barbadianos deixaram a ilha a bordo de navios que iam para o Brasil e nunca mais voltaram. Claro que, no caso de Millie, ela havia sido assassinada pelo próprio marido e jogada num poço de uma das praias locais. A música, baseada em fatos reais, registrou não apenas a tragédia de Millie, mas a emigração de barbadianos para Brasil. A motivação da partida era a mesma de todos os emigrantes: a busca da fortuna fácil, mas o que os imigrantes caribenhos encontraram no território brasileiro? Como explicar a presença de imigrantes negros numa sociedade que havia eleito o imigrante europeu como o trabalhador desejável e o elemento capaz de elevar a “raça brasileira” através do branqueamento? A abolição tardia da escravidão no Brasil chegou, já no final do século XIX, junto com as idéias eugênicas e com a propagada noção de uma hierarquia racial defendida pela ciência e divulgada nos mais diversos meios de comunicação. Este quadro determinou a exclusão econômica, social e política de milhões de brasileiros, com um efeito arrasador que fez com que as duas coisas prevalecessem por mais de um século: as teorias pseudocientíficas de superioridade racial dos brancos e a exclusão dos negros e pardos. Juntamente com a gradativa libertação dos escravos, alimentava-se a noção de periculosidade dos descendentes de africanos. A noção dos negros como uma “raça perigosa” e a criminalização da pobreza e da cor no Brasil 1

Este artigo é parte de um projeto em andamento sobre a memória dos imigrantes caribenhos no Brasil, desenvolvido atualmente através de um convênio entre a UWI e a UFPA, é também parte das pesquisas de doutorado de Frederick Alleyne, sob a supervisão de Elaine Rocha. Imigrantes negros: na contramão da história - p. 306-319

tem sido explorada por historiadores, sociólogos e juristas e é também uma das consequências do racismo justificado da passagem entre os séculos XIX e XX. 2 Para o historiador George Andrews (2004), a combinação de fatores como a popularidade das teorias racistas, a resistência das classes superiores em reconhecer nos negros o trabalhador livre e a disponibilidade de imigrantes europeus, levou os governos a investirem na importação de trabalhadores estrangeiros, relegando os trabalhadores negros e pardos à marginalidade. Seguindo a tendência racista que favorecia os trabalhadores brancos, o governo brasileiro criou barreiras para a imigração de trabalhadores vindos da China, Índia e de países africanos. Nos primeiros anos da república, um decreto governamental sobre a imigração de trabalhadores estrangeiros especificava que pessoas vindas da Ásia ou da África só poderiam ingressar no país mediante autorização específica, e para evitar qualquer desvio na aplicação da lei, agentes diplomáticos e policiais foram posicionados nos portos para prevenir o desembarque desses estrangeiros, bem como de mendigos e indigentes (SKIDMORE, 1989). Durante a República Velha (1890-1930), quando mais uma vez o governo pregava o projeto de modernização e um grande surto de urbanização se desenvolvia, especialmente no sudeste brasileiro, onde a indústria nacional estabelecia suas raízes, muitos imigrantes europeus saíram da zona rural, transferindo-se para as cidades, onde encontraram trabalho nas indústrias, comércio e serviços com muito maior facilidade que os trabalhadores nacionais negros e mestiços. Desde as últimas décadas do século XIX até aproximadamente 1940, a concentração de imigrantes estrangeiros – na zona rural ou nas áreas urbanas – deu-se nos estados do sul/sudeste, devido às condições naturais como o clima, econômicas, como o desenvolvimento da lavoura cafeeira, e dos incentivos governamentais para a colonização estrangeira, com alguma exceção para a imigração de japoneses para o Pará e, durante auge da economia da borracha, de portugueses para o Amazonas. . As outras regiões não conseguiram atrair imigrantes europeus como o sul/sudeste, fosse pela decadente economia regional, fosse pela impossibilidade de oferecer as mesmas vantagens que o sul/sudeste ou pelas agruras do clima e outras condições naturais. Ainda no século XIX, o governo imperial estimulou a emigração interna de trabalhadores atingidos pela seca nos estados do nordeste para o Amazonas 2

Ver, dentre outros, Ribeiro (1995); Campos (2005); Skidmore (1989); Azevedo (1987); Cunha (Olivia 1995/6). Imigrantes negros: na contramão da história - p. 306-319

e áreas vizinhas (Rondônia, Roraima, Acre e Amapá). Os seringais da região norte também foram o destino de pessoas indesejáveis nas primeiras décadas da república, notadamente os envolvidos na Rebelião de Canudos, na Revolta da Vacina e Revolta da Chibata, além de prostitutas, capoeiras, vadios, etc.. No caso da Revolta da Chibata, aproximadamente duzentos marinheiros condenados foram levados em navio do Rio de Janeiro para Rondônia, onde deveriam trabalhar como forçados na construção da ferrovia Madeira-Mamoré, mas não foram aceitos devido às precárias condições físicas em que chegaram a Porto Velho. Alguns seringalistas tomaram aqueles marinheiros que demonstravam condições mínimas de saúde para trabalhar e, junto com os rebeldes condenados, chegaram duzentos e noventa e dois homens condenados por vadiagem e quarenta e quatro prostitutas (Rodrigues; Oliveira, 1999). De acordo com os estudos de Weinstein (1983) e Dean (1987), durante o boom da borracha pessoas de diferentes partes do Brasil e também de outros países foram atraídas para a região Amazônica, não apenas para trabalhar nos seringais, mas para as nascentes cidades que se desenvolviam a todo o vapor na região. A limitação das fontes e a ausência de controle oficial sobre essa população que transitava pela região tornam impossível julgar quantos teriam sido os que imigraram internamente ou externamente. Outra característica importante desse movimento migratório é que, sendo a borracha um produto de extração, os trabalhadores eram levados a mudar-se de uma área para outra com frequência, tentando produzir o máximo possível. Também havia o movimento entre as cidades e seringais, quando os trabalhadores optavam por um ou outro, dependendo das condições de trabalho e da possibilidade de ganho rápido. A demanda por serviços no setor de urbanização – eletrificação, bondes, telégrafos, abertura de estradas, vias e melhorias dos portos – veio seguindo o ritmo da produção da borracha, oferecendo outras áreas de trabalho (Prado; Capelato, 1997). Entre os ‘outros imigrantes’ presentes nessa região, o trabalhador nacional conviveu com estrangeiros vindos de diferentes países, como os vizinhos Peru, Bolívia, Guiana, ou grupos vindos de Portugal, como já dito, uns poucos vindos da Itália e Espanha, e até mesmo chineses. Porém o objeto da nossa atenção para este artigo são os trabalhadores estrangeiros negros que desembarcaram nos portos dessa região, chegando na contramão da história, num momento em que a influência do pensamento eugênico entre a intelectualidade e o governo brasileiro atingiam seu ponto máximo. Como os brasileiros acolheram esses estrangeiros que eram ao mesmo tempo tão iguais às nossas massas de trabalhadores – fisicamente – e tão diferentes na Imigrantes negros: na contramão da história - p. 306-319

cultura, diferentes também da figura idealizada do imigrante estrangeiro. Quem eram eles? Eles foram chamados de “Barbadianos” No Caribe, o porto de chamada situava-se em Bridgetown, na pequena ilha de Barbados. De lá trabalhadores vindos de outras ilhas como Saint Lucia, Saint Vincent, Grenada, Jamaica, Martinique, Dominica e até mesmo do Haiti, embarcaram para o Brasil, contratados por companhias inglesas ou dos Estados Unidos para trabalhar na construção da estrada de ferro Madeira-Mamoré, ou para as obras de urbanização em Belém e Manaus. Outros vieram por terra, via Guiana, atraídos pelo ciclo da borracha. Todos tinham o mesmo sonho, o de encontrar fortuna fácil e voltar para as ilhas com um status melhor do que tinham quando saíram. Cledenice Blackman registrou o testemunho de descendentes de imigrantes caribenhos que chegaram a Rondônia durante a construção da grande ferrovia que deveria ligar a Bolívia ao porto de Belém (PA), utilizando-se das rotas fluviais. A rota de imigração nem sempre foi a mesma, como no caso do pai do senhor Arthur Winter, que já se encontrava em Manaus em 1925, quando se mudou para Porto Velho para trabalhar na estrada de ferro (Blackman, 2007). Com referência ao tipo de imigrante que os caribenhos representavam, o pequeno número, em comparação aos outros grandes grupos como os japoneses e os italianos, fez com que um estudo detalhado desse fenômeno fosse por muito tempo negligenciado. Segundo o historiador paraense Vicente Salles (2005): Na verdade, não houve migração convencional. O movimento migratório de barbadianos foi dirigido pelos capitalistas ingleses que, obtendo sucessivas concessões para a exploração de serviços no Pará e Amazonas, necessitaram de mão-de-obra qualificada, do ponto de vista da língua e da cultura, provavelmente. Os negros de Barbados, domesticados pelos ingleses, foram trazidos pelos navios da Booth Steamship Co. Limited, que fazia a linha New York-Manaus, com escala na ilha de Barbados e Belém. Muitos foram destinados também à construção da ferrovia Madeira-Mamoré (Salles, 2005: 84).

O trecho acima reproduzido, publicado pela primeira vez em 1971, deixa transparecer a ausência de uma pesquisa apurada, pois estudos recentes sobre o assunto têm mostrado que havia uma preferência em contratar pessoas com escolaridade mediana para a época e aqueles que apresentassem alguma experiência em grandes projetos de construção, como o do canal do Panamá, por exemplo. DeveImigrantes negros: na contramão da história - p. 306-319

se também ressaltar que a afirmação de que os barbadianos foram ‘domesticados’ pelos ingleses é um tanto quanto problemática e dificilmente se poderia relacionar a palavra ‘domesticados’ a um processo colonial de mais de trezentos anos. Os chamados Barbadianos começaram a chegar na Amazônia por volta do final do século XIX, provavelmente vindos da região das Guianas, tentando encontrar seu lugar entre os seringueiros e, depois de alguns anos, passaram a trabalhar em outros projetos; ou ainda contratados na primeira leva de operários que foi? trazida pela Madeira-Mamoré Railway Co. Ltd., a qual aportou em Santo Antônio (no antigo território do Guaporé) em 1873, com aproximadamente mil trabalhadores vindos de diversas partes do mundo (Fonseca; Teixeira, 2009). A maioria, porém, desembarcou no porto de Belém nas primeiras décadas do século XX contratada por companhias inglesas que, a princípio, os empregava em projetos como a ferrovia ou em outras obras de modernização das capitais do Pará e do Amazonas. A brecha aberta na legislação, a qual proibia a imigração de negros para o Brasil, foi possível devido ao status privilegiado que a Inglaterra possuía junto ao governo brasileiro desde o Império e devido ao fato desses imigrantes terem vindo como trabalhadores com contratos temporários para projetos específicos; em outras palavras, a permanência deles como imigrantes não estava prevista. A denominação ‘barbadiano’ foi encontrada em Porto Velho, RO e em Belém, PA, e acabou sendo um tipo de apelido usado com uma conotação negativa. ‘Barbadiano’ é o negro diferente, que fala inglês, que não é católico, que se acha britânico, que não se mistura. Eu conto mais é da ilha de Granada onde papai nasceu… o que ocorre é que aqui em Porto Velho... eles acham que toda pessoa de cor é barbadiano... todo mundo que fala inglês aqui, dizem que é barbadiano (Blackman, 2007:21).

A questão da emigração do Caribe Britânico para países como os Estados Unidos, Canadá, Inglaterra, Panamá, Costa Rica, Cuba, Porto Rico, Guiana e Brasil tem sido objeto de estudos de historiadores caribenhos preocupados com os acontecimentos internos que levaram a uma emigração em massa desde fins do século XIX e que se estende aos dias de hoje. Paralelamente ao problema da extensão territorial das ilhas que pertenceram ao Império Inglês até 1965, somam-se outros fatores como a concentração da propriedade agrícola nas mãos de poucas famílias descendentes dos colonizadores, os baixos salários pagos aos trabalhadores negros, Imigrantes negros: na contramão da história - p. 306-319

especialmente no período entre 1870 e 1940, as crises econômicas relacionadas ao preço da cana de açúcar, principal produto de exportação, as convulsões políticas internas e os desastres ambientais como terremotos, tempestades e furacões que destruíam as propriedades e afetavam a oferta de trabalho na região. A ilha de Barbados, por exemplo, com 430 km2 é considerada uma ilha de médio porte para o Caribe, embora seja aproximadamente trezentas vezes menor do que o estado de Santa Catarina. As condições de vida no final do século XIX eram marcadas por pequenas vivendas feitas de madeira, em geral dois cômodos construídos de forma precária (chattel houses), sobre terrenos alugados ou cedidos dentro das fazendas de açúcar. Mudar de emprego, em geral, significava mudar-se de casa ou, mais comumente, mudar a casa, pois as chattel houses eram casas móveis. O empregador tinha, dessa forma, amplo controle sobre as condições de trabalho e o empregado via-se limitado em suas possibilidades de negociação por melhores condições (Beckles, 2006). A tais problemas somam-se as medidas tomadas pelas autoridades coloniais para controlar a classe trabalhadora nos anos que se seguiram à abolição, as quais assumiram a forma de leis anti-vadiagem, contratos de trabalho que beneficiavam somente aos empregadores e que vinculavam o trabalhador livre à propriedade em que este fora escravo, limitando a capacidade de negociação de salários e benefícios entre patrões e empregados. No mesmo período foi estabelecida uma força policial, cuja função era manter a paz social (Beckles, 2006; Bryan, 2000; Brodber, 2004) A escravidão foi abolida entre 1834 e 1838 em todas as colônias britânicas, num movimento iniciado no início daquele século e que incluía a propagação de escolas ligadas às igrejas, as quais davam livre acesso a negros e mulatos. Isso determinou uma mudança social que não foi acompanhada por uma alteração profunda na situação econômica dos ex-escravos e seus descendentes, para os quais as parcas possibilidades de ascensão social incluíam a emigração. O fato desses imigrantes chegarem ao país com escolaridade mediana para a época foi marcante na diferenciação entre os negros brasileiros e os estrangeiros no período pós-abolição no Brasil. A contratação era feita por intermediários, agentes contratadores que visitavam as ilhas recrutando possíveis trabalhadores, a grande maioria homens. Barbados era um porto de chamada, ou seja, um porto de referência para embarcações que vinham do norte ou do sul e que ali recolhiam mercadoria e passageiros vindos das ilhas Imigrantes negros: na contramão da história - p. 306-319

vizinhas. Haviam porém muitos riscos, pois a fiscalização das ações dos contratadores não era eficaz e depois de chegarem ao destino final os emigrantes tinham poucas garantias ou instituições de apoio em caso de problemas. Um jornal barbadiano, The Agricultural Reporter, de junho de 1910, trazia um artigo no qual alertava para os perigos da emigração para o Brasil, para a região amazônica: Eles foram levados deste país sem proteção do governo ou de agents da emigração, ou de qualquer outra pessoa. Eles foram para lugares onde estão sujeitos a atrocidades como as coisas horríveis expostas por Mr. Labouchera in “Truth”. A região onde a ferrovia está sendo construída é um verdadeiro inferno de febres. 3

Os aclamados perigos não foram o suficente para baixar os números de candidatos à emigração. Em 1907, a lista dos barbadianos que partiram para o Brasil incluía treze pessoas, entre as quais duas mulheres apenas. A idade variava entre 16 e 32 anos, o que indica que um dos pré-requisitos para ser aceito era a idade considerada mais produtiva na época. Os registros são parcos e parte do controle de passageiros locais que deixavam a ilha era feita pela delegacia de polícia, sem separação por destino. 4 Outra fonte importante são os registros de correspondência recebida do exterior em Barbados, nas duas primeiras décadas do século XX, indicando o volume de correspondência trocada entre o Brasil e Barbados, mas também entre Peru e Barbados. 5 Não eram negros como outros quaisquer Em Belém e em Porto Velho, nas primeiras décadas do século XX encontravam-se negros com sobrenomes ingleses: White, Burnnet, Shockness, Dudley, Maloney, Alleyne, Taitt, Scantlebury, Chase, Deane, Skeete, Lynch, Busby, Banfield, Holder, Winter, Davis, Corwell, Johnson, Brown, Blackman, Challender, King, entre muitos outros cujos nomes se mantêm ou foram alterados de geração a geração (Lima 2006; Blackman, 2007). Nos primeiros anos dessa imigração, a marca

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No original: They have been taken from this country without protection being afforded them by the Government, or Emigration Agent, or any other person under the sun. They have gone to a place where they are subjected to atrocities like those horrible ones exposed by Mr Labouchera in “Truth”. The region where the railway is being constructed is a veritable hell of fever. Emigration to Brazil and its perils 1904-1905. The Agricultural Report, Bridgetown, 3/06/1910, p.3. Tradução nossa. 4 Barbados Department of Archives. Coleção The emigration register 1904-1918. 5 As fontes indicaram que trabalhadores recrutados em Barbados foram – através do território brasileiro – levados para trabalhar no território peruano. De lá muitos deles voltaram para o Brasil, conforme aponta Sir Roger Casement, in Heart of Darkness, The 1911 Documents, organizados por Angus Mitchell. Dublin, Irish Manuscripts Commission, Government of Ireland, 2003. Imigrantes negros: na contramão da história - p. 306-319

da forte cultura inglesa, presente não apenas na língua falada, mas na religião, nos hábitos alimentares, no modo de vestir e na consciência de serem, mesmo no Brasil, súditos da rainha da Inglaterra. Pesquisadores brasileiros encontraram a tendência desses imigrantes em exercerem cargos especializados tanto na construção das estradas de ferro como nas outras empresas, bem como uma propensão a abrir um negócio próprio, conforme indicaram Fonseca e Teixeira (2009), Blackman (2007), diferenciando-os dos negros nacionais encontrados na Amazônia, segundo Teixeira (2009), descendentes de escravos e de quilombolas que permaneceram na região mesmo depois dos fazendeiros brancos partirem para outras regiões em busca de fortuna. Os estrangeiros sabiam de seu status superior em comparação aos negros brasileiros, e reivindicaram melhores condições de trabalho. Por outro lado, as famílias caribenhas continuaram seu esforço pela escolarização e, por manterem-se ligadas à cultura britânica, rejeitaram a cultura afro-brasileira e seus elementos mais comuns, como o candomblé, a capoeira, os batuques e os sambas. A historiadora Maria Roseane Pinto Lima registrou parte de uma conversa que se deu em 2004, sobre a militância negra em Belém: “Quando eu tentava convencer a minha mãe de que ela deveria se assumir como negra, ela, depois de tanto relutar, afirmou: eu não sou uma negra, sou uma barbadiana!” (Lima, 2006: 26). Em Belém, de acordo com a pesquisa elaborada por Lima, os barbadianos que inicialmente chegaram em posições de trabalho diferenciadas, empregaram-se nas companhias inglesas encarregadas dos serviços de urbanização e modernização da capital paraense. Companhias como a Pará Electric, Port of Pará e Booth Line, dentre outras, fazem parte das memórias dos negros imigrantes por ela entrevistados. Nesses relatos há referências às empresas que executavam obras de infraestrutura, como viação pública e iluminação a gás (Pará Electric Railway and Lighting Company), implantação de linha telegráfica por cabos submarinos (the Amazon Telegraph Company, substituída posteriormente pela Western Co.) e serviços de navegação nos portos de Belém (Amazon River, Port of Pará) (Lima, 2006:118).

Muitos imigrantes barbadianos relataram, tanto em Belém como em Porto Velho, terem vindo para o Brasil a partir da Guiana Inglesa. Este fato é explicado pelo desenvolvimento econômico daquela colônia inglesa, que oferecia, além de melhores salários, a possibilidade de expandir as terras para a lavoura. De acordo com Walter Rodney (1977), aproximadamente trinta mil barbadianos emigraram para a Guiana Imigrantes negros: na contramão da história - p. 306-319

Inglesa entre 1835 e 1875, logo após a abolição da escravidão nas colônias britânicas. Novamente, nas primeiras décadas do século XX, provavelmente devido às mesmas condições que os levaram a emigrar para o Panamá e Brasil, mais de quarenta mil barbadianos

entraram

na

Guiana

Inglesa,

recrutados

por

agentes

ou

independentemente, em busca de trabalho na lavoura canavieira. Pressionadas pelos fazendeiros, as autoridades britânicas tentaram impor leis que dificultariam essa emigração, levantando a oposição de um grupo de intelectuais mestiços e negros. Entre eles, Samuel Jackman Prescod que publicou um artigo no jornal local repudiando abertamente as medidas autoritárias e as condições precárias impostas aos trabalhadores de Barbados. O primeiro é um ato que proíbe trabalhadores de saírem da ilha, a não ser que eles não tenham pai, mãe, avô ou avó, esposa ou filhos, ou, se os tiverem, que tenham o suficiente para sustentálos durante essa ausência. Como nós não acreditamos que este seja o caso da maioria, conclui-se que este Ato terá esse efeito, até a política ou justiça de obrigar um pobre a sustentar sua família se torne questionável. (O Liberal, 19 jan. 1837, p.1) 6

As batalhas pelo direito de ir e vir que seguiram durante boa parte do século XIX, cederam lugar à necessidade de se controlar a população pobre e descontente com as condições sociais, econômicas e políticas. A partir de 1867, na Jamaica iniciam-se uma série de greves e revoltas contra as precárias condições de trabalho, as quais se repetiriam em 1868, 1878, 1884, 1894, 1900, 1901 e 1902, as chamadas labour revolts (Bryan, 2000). Em Barbados, situação semelhante ocorrera a partir de 1863, repetindo-se em 1876. Beckles (2006) indica que entre 1907 e 1910 pelo menos cento e dez organizações de classe ou de apoio mútuo foram fundadas na pequena ilha de Barbados. Segundo o historiador, esse movimento mantinha estreita ligação com o desenvolvimento de uma cultura organizacional desenvolvida por aqueles que haviam emigrado para o Panamá e por parte das sociedades de apoio mútuo, as quais foram fundadas com o dinheiro que os emigrantes enviaram do país estrangeiro. Nos anos de 1920, a influência de Marcus Garvey se fez sentir grandemente nas ilhas do Caribe, chegando à América Central (continental) através dos emigrantes

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No original: The first is an Act which prohibits labourers from quitting the island, unless they have neither father, mother, grandfather, grandmother, wife or child, or having them, having sufficient to have to support them during the balance of their lives. As we are not of the opinion that this will be the case with the majority, it is to be concluded that this Act will have its effect, until the policy or justice of keeping a pauper to support his family becomes questionable. Tradução nossa. Imigrantes negros: na contramão da história - p. 306-319

que partiram para o Panamá e a Costa Rica. Era o início do movimento negro nas Américas e, graças à influência de Garvey, cresceu a consciência da importância da educação e de organização para vencer a exploração e a exclusão racial entre os caribenhos. Em seu trabalho sobre os imigrantes caribenhos na Costa Rica, Carmen Hutchinson-Miller (2011) alerta para a consciência de identidade e etnia entre os imigrantes negros e seu esforço para manter sua cultura de origem através da abertura de escolas lideradas por professores caribenhos e de práticas culturais, como o uso exclusivo da língua inglesa. Marc McLeod (1998) encontrou a mesma situação entre os jamaicanos que emigraram para Cuba entre 1912 e 1939; ele também enfatiza o fato dos trabalhadores das colônias inglesas, apesar de se empregarem inicialmente como cortadores de cana de açúcar nas grandes plantações, partirem para outros trabalhos por possuírem preparo profissional e melhor nível de educação. A cultura e erudição da comunidade barbadiana sempre foi citada pelos moradores mais antigos da cidade de Porto Velho. As mulheres da segunda geração responderam pelo ensino de inglês e de matemática, de piano e de música, além de serem elas as professoras da escola dominical da Primeira Igreja Batista de Porto Velho, fundada no ano de 1919 (Fonseca; Teixeira, 2009: 157).

O mesmo fenômeno encontra-se registrado por Lima (2006) em Belém (PA) e por Blackman (2007), Teixeira (2009) e Sampaio (2010) em Porto Velho (RO), onde a comunidade imigrante buscou, entre seus pares, os que tinham melhor preparo para tornarem-se professores ou mesmo importava professores das ilhas para assistirem as crianças. A política de escolarização iniciada no processo de emancipação rendia frutos quase setenta anos depois com a continuada propagação de escolas nas colônias britânicas do Caribe e na preparação de professores dentro das próprias comunidades. O investimento maciço na educação dos emigrados para o Brasil se reflete na presença de barbadianos entre os professores das primeiras décadas do século XX, no Pará e em Rondônia. Ser negro no Brasil: desafios do racismo cordial Segundo as pesquisas aqui citadas sobre os imigrantes caribenhos no Brasil, a segunda geração das famílias que aqui se estabeleceram encontrou trabalho nas áreas de educação, no setor hospitalar e na prestação de serviços, melhorando o nível econômico em relação às condições da chegada, com poucas exceções.

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Porém, entre membros da terceira e da quarta gerações há um número significativo que enfrentou situações em que o empobrecimento e a perda da cultura matriz se somam. Entre uma geração e outra, histórias de racismo e discriminação permeiam as trajetórias dos que foram para Rondônia e dos que se fixaram no Pará. Lima refere-se à discriminação pela cor e pela cultura, onde as barbadianas (a maioria de seus entrevistados eram mulheres) eram definidas como inferiores, a própria palavra “barbadiano” virara um xingamento nas ruas de Belém, das quais a nova geração tentava, nos anos 40-50 se desvencilhar. Nos trabalhos de Teixeira, Sampaio e Blackman a referência ao bairro dos imigrantes como um local de bandidos e de gente mal cheirosa: o que para os imigrantes era, no início do século, Barbadoes Town, a população local batizou como “Alto do Bode”, referindo-se de forma pejorativa à estranha língua falada por seus moradores e, em outra versão, ao odor exalado pelos barbadianos. O isolamento cultural que contribuiu para a manutenção da identidade nacional/étnica foi possível principalmente devido à barreira da língua e da religião. Em Belém, cidade muito maior, localizada próxima ao litoral, e que concentrava grande parte da classe dirigente das grandes companhias inglesas, a Para Anglican Church foi inaugurada em 1912 com a vinda de um bispo inglês e o apoio econômico dos capitalistas britânicos e da Igreja Anglicana na Inglaterra (Barros, 2010). Com a igreja, veio a escola e a vida social. Em Porto Velho, isolada geograficamente, a religião dependia da visita de missionários, em sua maioria dos Estados Unidos, e boa parte dos caribenhos adotou a religião Batista ou outras pentecostais. Mas havia também o isolamento racial e econômico. Em Porto Velho, por exemplo, onde a construção da ferrovia marcou a fundação da cidade, as divisões de classe eram visíveis no posicionamento dos bairros e no exercício da socialização (Fonseca; Teixeira, 2009 e Blackman, 2007). Nas duas capitais, as pesquisas indicam a discriminação e a rejeição do negro que não se comporta como tal, de acordo com os padrões brasileiros para a época, educando-se e trajando-se no melhor estilo inglês, que incluía o uso de chapéus para homens e mulheres. A busca de uma vida melhor, seja através do exercício de funções nas companhias onde foram contratos, seja no exercício do magistério e no apreço à educação, somava-se à manutenção de hortas e criação de pequenos animais nos quintais (Fonseca; Teixeira, 2009) e no trabalho doméstico remunerado (Lima, 2006) entre famílias que – traço comum entre imigrantes de qualquer nacionalidade – Imigrantes negros: na contramão da história - p. 306-319

controlavam suas economias minuciosamente, evitando extravagâncias mesmo depois que o sonho de retornar à terra de nascimento já havia se desvanecido. A comunidade dos descendentes de afro-caribenhos da Amazônia já se encontra em sua quinta geração. As histórias de seus membros se confunde com a própria história local e a sua importância ainda não foi devidamente avaliada pelos estudiosos das questões étnicas e demográficas da Amazônia (Fonseca; Teixeira, 2009: 157).

Mesmo para aqueles que conseguiram se manter como classe média, continuando a tradição de investir na educação dos filhos, nos novos tempos enviando-os para a universidade, a questão da invisibilidade dentro da história regional e nacional prevalece. A negação do importante papel dos imigrantes negros para a economia regional aponta para um dos abusos da história (parafraseando Marc Bloch, 2003). A historiografia brasileira viu-se contaminada pela ideologia do branqueamento, e continua a sofrer desse mal, ao reforçar – junto com a mídia em geral, especialmente a televisão brasileira – que vê no europeu o imigrante e no negro o ex-escravo. Os negros brasileiros que imigraram de outras regiões para as cidades de São Paulo e Rio de Janeiro, tal e qual os negros estrangeiros que se concentraram em Porto Velho, Belém e, estudos também apontam, em Manaus, foram parte integrante do processo de modernização. Entretanto, a modernidade no nosso continente foi entendida como europeização e, nesse contexto, os negros representavam um retrocesso, uma onda migratória que seguiu na contramão das expectativas. Hoje, graças ao empenho de historiadores como os que seguem citados neste artigo e graças também ao esforço dos descendentes de barbadianos no Brasil e de seus parentes em Barbados, essa história vem se recompondo, juntando os fios de uma trama longa e larga. São fotos, cartas, histórias, documentos pessoais de diversos tipos que cidadãos dos dois países vêm apresentando aos historiadores dos dois lados do oceano, participando ativamente na reconstrução dessa história calada por tantos anos. Os traços da história do negro no Brasil insistem em não se apagar; eles estão nas pedras dos portos, nos prédios modernos, nas escolas, cemitérios, igrejas e, muito mais marcantemente, na cultura popular e na memória do povo. Aos historiadores cabe a tarefa de investigá-los, e às editoras e outros meios de comunicação, o papel de torná-los públicos, porque a história social do Brasil é uma larga via, de múltiplas mãos.

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