Imperialismo e Instituições Internacionais: Política externa estadunidense e os desafios à consolidação da ordem internacional

June 30, 2017 | Autor: Aline Piva | Categoria: International Relations, International Studies, International Security, Politics
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Aline Cristiane Piva

Imperialismo e Instituições Internacionais: Política externa estadunidense e os desafios à consolidação da ordem internacional

Artigo apresentado como pré-requisito parcial para a obtenção do título de Especialista em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília. Orientador: Prof. Dr. Virgílio Caixeta Arraes

Brasília, 2013.

Imperialismo e Instituições Internacionais: política externa estadunidense e os desafios à consolidação da ordem internacional Aline Cristiane Piva1 Resumo: A consolidação dos Estados Unidos como principal potência imperialista é resultado de mudanças historicamente ocorridas no contexto internacional, mas também de um processo estratégico e racional de construção de um ordenamento internacional que não somente embasasse e legitimasse a ação imperialista, mas que também fornecesse e consolidasse um modelo ideológico e cultural que naturalizasse determinadas formas de ação e de construção social, fundamentais à segurança dos interesses imperialistas em um momento histórico em que esse é exercido indiretamente, através de formas diversificadas de dependência, e não mais através da dominação direta do território. Para que esse processo seja esclarecido, faz-se necessário o entendimento das razões que movem a ação estatal no âmbito internacional, bem como dos conceitos de regimes e instituições internacionais e de imperialismo e neoimperialismo. Essa base conceitual será articulada com dois casos concretos, as intervenções no Iraque de 1990 e 2003, as quais fornecem exemplos bastante ilustrativos da forma como os organismos internacionais são utilizados para que os interesses imperialistas sejam atingidos e mantidos. Palavras-chave: Imperialismo, instituições e regimes internacionais, política externa estadunidense. Abstract: The consolidation of the United States as the main imperialist power is the result of historical changes within the international context, but also of an strategic and rational construction process of a world order that not only bases and legitimates an imperialist action, but also provides and consolidates an ideological and cultural model that naturalizes certain forms of action and social construction which are fundamental to the security of imperialist interests in a historic moment where it is exercised indirectly, through diversified forms of dependency, and no longer through direct domination of a territory. For that process to be made clear, its necessary to understand the reasons that move State action within the international scene, as well as the concepts of international regimes and institutions and of imperialism and neoimperialism. Such a conceptual basis will be articulated within two specific cases: the intervention in Iraq in 1990 and 2003, which provide quite illustrative examples of how international organizations are used so that imperialist interests are reached and maintained. Key-words: Imperialismo, international institutions and regimes, U.S. foreign policy.

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Graduada em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Londrina; Especialista em Direito Internacional pela mesma instituição. Contato: .

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Introdução

O presente trabalho busca compreender a ordem internacional a partir de três eixos interpretativos: a formação e construção da ordem internacional, a política externa estadunidense e sua relação com o neoimperialismo, e legitimação da ação hegemônica imperialista através dos mecanismos institucionais internacionais e do discurso teórico legitimador. Para tanto, serão apresentados brevemente os conceitos considerados fundamentais à análise, seguidos de uma perspectiva histórica da política externa estadunidense e, por fim, as intervenções no Iraque de 1990 e 2003 serão analisadas como exemplo concreto do tipo de política externa que os Estados Unidos da América (EUA) buscam realizar, desde o ponto de vista da construção do discurso legitimador por meio dos organismos multilaterais até intervenções unilaterais justificadas pelo discurso da segurança nacional e da proteção dos interesses estadunidenses. O entendimento da ação estatal no contexto internacional, especialmente no que tange às suas fontes de legitimidade, pressupõe, em um primeiro momento, a análise das teorias das relações internacionais que buscam compreender as motivações que a impelem, ou seja, entender porque Estados soberanos dispõe-se a fazer parte de determinadas configurações relacionais que podem vir a limitar sua liberdade de ação, através da análise embasada em, principalmente, quatro correntes teóricas das relações internacionais: Realismo, Racionalismo ou Escola Grociana, Escola Inglesa2 e Liberalismo.

Em um segundo momento, a compreensão do

conjunto normativo que rege as relações entre os Estados, bem como suas limitações, exige uma reflexão acerca de entendimentos básicos da disciplina, tais como a noção de regimes e o processo constitutivo das instituições internacionais. Um terceiro e último momento, fundamental à análise ora proposta, é a exposição do conceito de Imperialismo, relacionando-o com os conceitos apresentados anteriormente, bem como com a forma com que os EUA atuam no sistema internacional, buscando compreender em que sentido os mecanismos da ordem internacional são utilizados

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Segundo classificação apresentada por FONSECA JR, 1998.

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para legitimar ações e objetivos imperialistas, e como estes se articulam na manutenção e consolidação deste neoimperialismo, através da análise de dois casos concretos: as intervenções no Iraque em 1990 e 2003.

A ordem internacional e a construção do discurso legitimador - perspectivas teóricas

A primeira perspectiva teórica a ser abordada, o Realismo, entende a ordem internacional como essencialmente anárquica, no sentido de que não há uma autoridade ou governo supranacional, uma vez que esta é composta por estados soberanos, que são atores centrais das Relações Internacionais e cujos poderes, necessários para garantir sua sobrevivência (preservação territorial e soberania) em um ambiente eminentemente conflituoso, são ilimitados. De acordo com Hans Morgenthau, os estados são atores racionais, capazes de decidir qual o interesse nacional e traduzi-lo na forma de poder. A esfera política é autônoma, e sua ação é balizada por preceitos morais não universais. Dessa forma, o cumprimento dos preceitos das normas internacionais é colocado em segundo plano, uma vez que “até mesmo os compromissos jurídicos formalizados pelo Estado geralmente apresentam validade precária, bastando a simples ameaça aos interesses políticos ou econômicos para que sejam relegadas a plano secundário as soluções jurídicas”3. O que determinará o cumprimento das normas acordadas, tacitamente ou não, serão os custos de oportunidade envolvidos em cada situação concreta, sendo a lei somente uma expressão epifenomênica do jogo político4, de maneira que as decisões acerca de envolver-se ou não em uma guerra ou conflito internacional, são, em última instância, the product of all states’ involuntary participation in eternal quests for power and security due to an international political enviroment in wich each state fears the actual or potential hostility of other states. Leaders rattionally calculate wars’ costs and benefits in terms of their states’ 3 4

NADER, 2010, p. 75. FONSECA JR, 1998, p. 53 et seq.

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power and security. States’ international behavior thus reflects the constraints imposed on their actions by their relative power position 5.

Em um cenário internacional sui generis, considerando-se o fim da Guerra Fria como um ponto de inflexão essencial no novo equilíbrio de poder internacional, onde “[the] [u]nipolar dominance after the Soviet Union’s collapse created incentives for the [United States] to deemphasize collective security and to rely more heavily on its own military”6, fornece um primeiro ponto para a reflexão proposta, e cuja resposta parece insatisfatoriamente contemplada pela perspectiva realista: se o que baliza a ação estatal internacional são somente relações de força e busca da segurança nacional, porquê a maior potência bélica empreenderia tamanho esforço, como pode-se observar desde o final da I Guerra Mundial, na construção de um arcabouço institucional internacional? Os Racionalistas, por sua vez, inspirados na tradição do pensamento Grociano, também entendem o Estado como ator central das relações internacionais, porém aqui sua liberdade de ação não é ilimitada. Essa vertente do pensamento internacionalista procura encontrar os pontos de convergência estatal, identificando as fontes de autoridade que regem as relações no sistema internacional, ainda que não haja um governo supranacional (ou seja, nessa corrente, o sistema internacional é também entendido como anárquico, porém é aperfeiçoável, uma vez que é fruto de esforços políticos). Baseados nos ideais iluministas, buscam uma forma de articulação das instituições internacionais que não diminua a soberania estatal, mas que estabeleça formas legítimas de contenção de sua ação. As forças sociais são entendidas como tendentes a se generalizarem, ensejando um arranjo cooperacional nas relações estatais que conduziria, no extremo, à paz mundial, em uma clara influência kantiana7.

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LIEBERFELD, 2005, p. 2 – 3. LIEBERFELD, 2005, p. 3. Ainda que a unipolaridade estadunidense possa ser alvo de discussão dependendo da perspective que se adote, entende-se que, do ponto de vista de poderio bélico e militar não há, na atual conjuntura internacional, potência bélica capaz de fazer frente aos EUA, concedendo-lhe, assim, amplas possibilidades de atuação não constrangida pelos organismos multilaterais e pelos preceitos do Direito Internacional. 7 FONSECA JR, 1998, p. 58 et seq. 6

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Nessa linha interpretativa, o Direito Internacional é constituído sobre uma base conceitual sólida, permitindo balizar claramente o comportamento estatal em termos de legalidade ou ilegalidade; e sendo um reflexo da crescente sociabilidade no plano internacional, que traz como conseqüência a necessidade de instituição de formas legais para a sobrevivência estatal, de modo que se torna conveniente aos interesses do Estado a adoção das normas jurídicas, constituindo o Direito Internacional na “expressão de convergências que se transformam progressivamente em constrangimentos institucionais crescentes e cada vez mais fortes para o comportamento do estado”8, levando à criação de “procedimentos institucionalizados de prevenção e ajuste de diferenças e contenciosos, sempre movidos pela vontade deliberada dos Estados”9. Porém, quando confrontados com a realidade objetiva historicamente colocada, percebe-se que os conceitos dessa Escola situam-se em um plano majoritariamente utópico, pela razão essencial de que os organismos responsáveis por implementar as normas e ações no plano internacional encontram-se com seus processos decisórios monopolizados pelos interesses das potências políticas internacionais – haja visto, por exemplo, o mecanismo de veto que ainda vigora nas tomadas de decisões do Conselho de Segurança da ONU (CS). Também de inspiração Kantiana, ou seja, idealista, é o Liberalismo mencionado por Lieberfeld (2005, p. 6), para quem essa teoria entenderia que decidions on war derive from states’ internal characteristics, particularly their type of governement, and from the influence of international Law. Global security and prosperity depend on the spread of democracy and trade, and on the conflict-regulation function of international institutions. As with realism, ‘liberalism’ subsumes several related theories [...]. Kantian/Wilsonian idealism is based on the idea that more democracy causes more peace [...]. In prescriptive terms, therefore, ‘crusading liberals’ favor using force to replace dictatorships with democracies, insofar as propagating democracy and human rights enhances [United States] national security and that of others democracy.

Essa perspectiva explicita de forma bastante interessante um ponto importante: o uso dos mecanismos e instituições internacionais para propagar um 8 9

FONSECA JR, 1998, p. 70. ibidem, p. 71.

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determinado modelo de sociedade, que atenda aos anseios, objetivos e necessidades das potências imperialistas, sempre buscando construir um discurso legitimador que corrobore a intervenção internacional para a manutenção e segurança destes. Uma última perspectiva teórica a ser mencionada, proposta por Hedley Bull, talvez o mais conhecido expoente da chamada Escola Inglesa, entende que os Estados, ao se organizarem, “passam a se referir a um conjunto de normas, processos e práticas cujo propósito é garantir três objetivos: a vida, a verdade e a propriedade”10. Bull entende que o surgimento do Estado Moderno advém do desmantelamento da organização feudal, onde há a supressão da autoridade supranacional, até então (séculos XVI e XVII) exercida pela Igreja, e de forma que os Estados, agora soberanos, encontram-se incumbidos de zelar por sua própria proteção. A ordem na vida social geraria padrões de comportamentos que levariam à preservação dos princípios elementares e universais supracitados, “[o]u seja: ao se organizarem, os grupos sociais criam normas, práticas e processos que buscarão assegurar proteção contra a violência [...] [e] o cumprimento dos entendimentos e acordos de estabilidade das posses de tal sorte que não sejam submetidos a desafios constantes e sem limites”11. Percebe-se, desse modo, que o conceito de ordem dentro dessa perspectiva está imiscuído de uma carga valorativa, inerentemente subjetiva, qual seja: a segurança e estabilidade de um determinado modo de organização social, defendido como universal e necessário, independentemente das especificidades históricas e sociais dos diversos Estados. Apesar do reconhecimento e ampla aceitação e disseminação de princípios básicos, como a doutrina da guerra justa, pacta sunt servanda e o reconhecimento mútuo das soberanias, a busca por consensos acerca dos interesses básicos dos Estados se torna extremamente complicada, uma vez que há grande heterogeneidade de valores (e interesses) que balizam o comportamento estatal no âmbito internacional. E, efetivamente, é o que se tem constatado na ação internacional: ainda que embasados em discursos legitimadores fornecidos pelos diversos regimes 10 11

NOGUEIRA e MESSARI, 2005, p. 47. FONSECA JR, 1998, p. 37.

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internacionais, os quais buscam estabelecer padrões mínimos de conduta ou, pelo menos, gerar uma expectativa de comportamento, os Estados vêm reiteradamente utilizando as intervenções internacionais tanto para demonstrações de força quanto para garantir que seus interesses nacionais sejam preservados, mesmo que princípios basilares do Direito Internacional, como a soberania nacional, sejam abertamente violados. Dois conceitos ainda parecem ser fundamentais para o entendimento da questão proposta: regimes internacionais e instituições internacionais. A articulação desses conceitos entre si, com os conceitos apresentados na próxima seção e com os casos em análise poderá, espera-se, fornecer bases mais amplas para o entendimento do contexto internacional em foco. Assim, o primeiro conceito refere-se ao conjunto de “principles, norms, rules and decision-making procedures around wich actor expectations converge in a given-issue area”12, de forma a tornarem-se fatores mediadores entre, por um lado, os fatores causais básicos da ação estatal, tais como poder, interesses e valores, e os resultados e comportamentos efetivamente observáveis. Ou seja, a partir do momento que se constroem regimes em torno de um determinado aspecto da vida social estatal, a ação dos Estados, ainda que movida por interesses egoístas, encontra uma limitação, qual seja: a expectativa da comunidade internacional de que a ação empreendida esteja de acordo com certos padrões de condutas estabelecidos e aceitos pelo sistema internacional de Estados, uma vez que, aparentemente, é corrente a percepção de que as ações baseadas em interesses estatais egoístas levam a resultados indesejáveis, tais como à insegurança e à instabilidade do sistema. Assim, ao serem instituídos, os regimes podem facilitar acordos, reduzir custos de transações por meio da facilitação do acesso às informações, bem como representar uma base mais clara de princípios em torno dos quais orbitarão os consensos fundamentais das relações interestatais.

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KRASNER, 1982, p. 185.

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Porém, devido às assimetrias de poder relativo13 entre os atores que constituem o sistema internacional, os Estados mais poderosos podem “manipular” e/ou influenciar as decisões dos outros atores menos poderosos e, consequentemente, a criação dos regimes, de forma que esses sejam expressão de seus próprios interesses nacionais, e não do consenso internacional: “[u]nder certain configurations of interest, there is an incentive to create regimes and the provision of these regimes is a function of the distribution of power”14 – conclusão amplamente embasada na realidade histórica internacional. As instituições, por sua vez, são entendidas através da análise de duas categorias conceituais: o processo de institucionalização e a durabilidade ou persistência destas no sistema internacional. Por institucionalização, entende-se a conformação do comportamento à determinada estrutura institucional, ou seja, a determinados princípios, normas e regras, os quais podem ser formais, informais, explicitamente formulados ou mesmo imersos na cultura, sob a forma de tradição ou senso comum. A persistência ou durabilidade, por sua vez, refere-se à característica de certas conformações internacionais de permanecerem inalteradas em seus princípios, normas e regras, a despeito de mudanças na conformação do sistema que possam ocorrer no decorrer do tempo15. É importante ressaltarmos que [t]he greater the conformity between behavior and institutional rules, the higher the level of institutionalization. The most highly institutionalized patterns are those that are taken for granted. [...] The most weakly institutionalized environments are those wich institutional structures exist but have only the most limited impact in the actual pattern of behavior16.

As estruturas institucionais levam a uma internacionalização de padrões de comportamento. Quanto maior a aceitação desses padrões, mais bem sucedido será o arranjo institucional, e maior legitimidade terá a ação levada a cabo em conformidade às expectativas geradas por esse arranjo, ou seja, aquelas ações 13

Note-se que os Estados são, de acordo com o princípio da isonomia, iguais perante o Direito Internacional. Porém, essas assimetrias os tornam desiguais em suas relações, visto que Estados mais poderosos podem usar seu poder para impor seus interesses e expectativas aos Estados menos poderosos. 14 KRASNER, 1982, p. 199. 15 KRASNER, 1999, p. 56. 16 idem.

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pautadas no consenso amplamente aceito sobre princípios, normas e regras basilares da comunidade (internacional, no caso em questão), de modo que, infere-se, será ilegítima a conduta unilateral dos autores embasada somente em princípios egoísticos ou valores não-universais e que, sobretudo, afronte as expectativas da conduta estatal. Em suma, dois seriam os principais propulsores da disposição do Estado em compartilhar sua soberania em arranjos institucionais. O primeiro seria a principal expectativa gerada por esses arranjos, ou seja, a expectativa de reciprocidade. Ações embasadas no amplo consenso representando pelas instituições tendem a serem reciprocadas, bem como entendidas como legítimas. O oposto também seria verdadeiro: ações que afrontem esse consenso levariam a respostas coercitivas da comunidade internacional ao Estado transgressor, o que nos leva ao segundo ponto: os custos envolvidos na transgressão. Sendo os Estados atores racionais orientados para a maximização dos eventuais ganhos resultantes do empreendimento de determinada ação, os custos políticos e econômicos de se transgredir não somente as normas e regras mas, principalmente, os princípios basilares do sistema internacional (que, apesar de em geral serem pontuais, acabam sendo entendidos como uma ameaça ao sistema como um todo) devem necessária e indissociavelmente estar presentes na tomada de decisão, ainda que soberana, do empreendimento da ação em desconformidade aos arranjos institucionais. Um exemplo que poderia ser invocado é a instituição do regime de segurança coletiva, que visa criar mecanismos para evitar ou, quando necessário, suprimir atos de agressão entre Estados, especialmente através de arranjos que facilitem a resolução das disputas, subordinando o uso da força à autorização internacional e estabelecendo tanto as possibilidades quanto as restrições ao uso da mesma17. Ainda que não seja de competência exclusiva, em geral é do Conselho de Segurança (CS) da Organização das Nações Unidas (ONU) a primazia da responsabilidade do tratamento de questões relativas à manutenção da paz e 17

Atualmente, o uso da força está proscrito, de acordo com Carta das Nações Unidas, exceto nos casos de autodefesa, autodefesa coletiva, ou quando há ameaça à segurança coletiva, caso em que é necessária a autorização do Conselho de Segurança da ONU para que a intervenção seja levada a cabo.

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segurança internacionais, bem como a investigação de situações que possam vir a evoluir para conflitos, a busca da resolução pacífica de conflitos através de dispositivos como a mediação e recomendação de métodos de diálogo, regulação e regulamentação de armamentos, determinação da existência de atos de agressão e tipos de sanções que deverão ser aplicadas em tais casos, entre outras. Um primeiro problema que se apresenta é de que a decisão de como e quando agir em casos de agressão é de inteira discricionariedade do CS18, revelando a vulnerabilidade do sistema, uma vez que os interesses da grande maioria dos Estados não estão, ao menos diretamente, representados nesse órgão. Em segundo lugar, e diretamente relacionado ao primeiro, tanto o CS quanto a Assembleia Geral da ONU (AGNU) - a qual também tem competência para tratar de questões relativas à segurança internacional - por serem ambos órgãos eminentemente políticos, muitas vezes revestem as decisões de intervir em e/ou sancionar um determinado país de aspectos políticos, afetando a legitimidade e objetividade dos mecanismos de segurança coletiva. Esse fato pode ser compreendido como uma derivação das características peculiares que o arranjo entre unidades soberanas empresta aos regimes internacionais, limitando-os em sua objetividade e subordinando as decisões – ainda que estas sejam tomadas em foros multilaterais – não só às questões políticoestratégicas e de poder, mas também aos interesses de setores nacionais como, por exemplo, do capital financeiro, da indústria bélica e petroleira, entre outros, que influenciam e informam a ação estatal no teatro internacional, levando a efeitos perversos no Sistema Internacional, como por exemplo, a adoção de double standards nas decisões do CS19.

18 19

Artigos 39, 40, 41 e 42 da Carta das Nações Unidas. CANÇADO TRINDADE, 2009.

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Imperialismo e política externa estadunidense: conceitos e perspectivas históricas

De acordo com Lênin20, o imperialismo é a fase mais avançada do capitalismo, sua fase monopolista, na qual grandes corporações dominam o acesso a matérias-primas, mão-de-obra, mercados, enfim, dos fatores de produção e reprodução essenciais ao capitalismo, sendo este processo o “desenvolvimento e [a] sequência direta das propriedades essenciais do capitalismo em geral”21. É também o momento histórico em que o capital financeiro é o resultado da fusão do capital de alguns grandes bancos monopolistas com o capital de grupos monopolistas de industriais; e [...] [em que] a partilha do mundo é a transição colonial que se estende sem obstáculos às regiões ainda não apropriadas por qualquer potência capitalista [...]22.

Além da concentração do capital (a qual origina o monopólio da exportação de capital e a criação de uma oligarquia financeira) e da concentração da produção, Lênin

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ainda cita duas características fundamentais do imperialismo: a

“formação de uniões internacionais monopolistas de capitalistas que partilham o mundo entre si” e o “termo da partilha territorial do globo entre as maiores potências capitalistas”, sendo necessário que novas formas de dominação sejam colocadas em prática – com todo o globo dividido entre as potências, só restaria a “transmissão de um ‘possuidor’ para outro e não [mais a] ‘tomada de posse’ de territórios sem dono”24. Outro aspecto bastante relevante levantado pelo autor25 está relacionado à questão do colonialismo versus o monopólio das matérias - primas:

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LÊNIN, 1987. É fundamental não perder-se de vista que Lênin escreve e publica essa obra entre os anos de 1916 e 1917, momento em que o neocolonialismo, caracterizado pela dominação nãoterritorial, ainda está em processo de formação e delineamento. 21 ibidem, p. 87. 22 ibidem, p. 88. 23 idem. 24 ibidem, p. 76. 25 ibidem, pp. 81 – 82.

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O que caracteriza particularmente o capitalismo atual é o domínio dos grupos monopolistas constituídos por grandes empresários. Estes monopólios tornam-se sólidos sobretudo quando reúnem apenas em suas mãos todas as fontes de matérias primas [...]. Somente a posse de colônias dá ao monopólio completas garantias de sucesso face a (sic) todas as eventualidades da luta contra seus rivais, mesmo na hipótese de estes últimos ousarem defender-se com uma lei que estabeleça o monopólio do Estado. Quanto mais o capitalismo se desenvolve, mais se faz sentir a falta de matérias-primas no mundo inteiro e mais brutal é a luta pela posse de colônias. (Grifo no original)

Esse processo tem como resultado, além do acirramento das tensões entre as potências imperialistas, o surgimento de diferentes nuances de dependência, onde a independência política serve, muitas vezes, para mascarar a dependência não só financeira, como também militar e diplomática – sendo essa dependência fundamental para manutenção e seguridade dos interesses imperialistas. Segundo Magdoff26, o domínio das fontes de matérias-primas é um requisito fundamental do processo, “sejam elas quais forem e incluindo novas fontes em potencial” (grifos no original). O autor também destaca a conquista e proteção de novos mercados, sendo os investimentos no exterior entendidos como uma ferramenta primordial nesse movimento. Ademais, “[a] procura de oportunidades de investimento exterior e de controle sobre mercados estrangeiros leva o nível de atividade política em assuntos econômicos a um novo grau de intensidade”, ou seja, recursos como ameaças, intervenções, sanções e até mesmo ocupação colonial do tipo clássico seriam justificáveis na defesa dos interesses econômicos dos países imperialistas. A análise apresentada por Magdoff27 é essencial, uma vez que fornece embasamento para o esclarecimento dos traços característicos do moderno imperialismo, que se inicia com a Revolução Russa e que apresenta como principal tarefa “conservar, tanto quanto possível, os benefícios econômicos e financeiros advindos das colônias”, uma vez que essas já estavam plenamente “entrelaçadas aos mercados capitalistas mundiais”. Assim,

26 27

1978, pp. 33-39. ibidem, p. 42.

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[o] que se entende geralmente por neocolonialismo é a existência de domínio estrangeiro considerável sobre uma nação nominalmente independente. No seu sentido mais estrito, significa isso um alto grau de influência sobre os assuntos e a política econômica de um país por outra nação ou interesses comerciais estrangeiros, acarretando, em geral também influência sobre sua orientação política e militar. Além disso, o termo é usado para sugerir o predomínio da cultura e dos valores das antigas potências coloniais28.

Em outras palavras, o principal elemento caracterizador da nova forma de colonialismo é que esse é capaz de existir sem a dominação formal do território. Ainda de acordo com Magdoff29, [a] explicação desse aparente paradoxo é que o colonialismo, considerado como aplicação direta da força militar e política, foi essencial para reformular as instituições sociais e econômicas de numerosos países independentes e ajustá-las às necessidades dos centros metropolitanos. Uma vez terminada essa reforma, as forças econômicas – os preços internacionais, a comercialização, os sistemas financeiros – foram suficientes para perpetuar e, na verdade, intensificar a relação de dominação e exploração [...]. Nessas circunstâncias, podia-se conceder à colônia uma independência política convencional, sem mudar coisa alguma de essencial e sem interferir demais nos interesses que haviam inicialmente culminado na sua conquista.

Tendo estas características gerais em vista, de que maneira e em quais aspectos a política externa estadunidense estaria voltada para a conquista de objetivos neoimperialistas? Ao analisarmos a política externa dos EUA, podemos identificar um padrão histórico, baseado em crenças e prioridades, que nascem com a República e que influenciam a formulação de estratégias adotadas no sistema internacional. Esses padrões adaptam-se às circunstâncias, e são atualizados de acordo com os temas de engajamento preferenciais. Segundo Mead30, pode-se identificar um “conjunto de valores e interesses tradicionais, sintetizados em preocupações estratégicas-chave, que são traduzidos, em uma determinada época e por uma determinada geração, de formas específicas”, bem como a existência de quatro prioridades estratégicas-chave: “liberdade dos mares (hoje traduzida em liberdade dos mares e dos ares), a abertura 28

MAGDOFF, 1979, p. 65. ibidem, p. 118. 30 apud PECEQUILO, 2005, pp. 29 e 30. 29

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de portas (visando a expansão dos interesses nacionais), o controle dos fluxos financeiros, comerciais e monetários e a proteção doméstica do país e a preservação do caráter específico de sua sociedade e política”31. Essas quatro prioridades estratégicas podem ser associadas com as características do modelo imperialista acima descrito. As duas primeiras, liberdade de mares e ares e a “política das portas abertas”, são fundamentais para a conquista e expansão de mercados, aspecto essencial à expansão tanto do comércio quanto dos investimentos estrangeiros32. Os outros dois aspectos, por sua vez, podem ser relacionados tanto ao monopólio da exportação de capitais quanto à necessidade de imposição cultural e ideológica que o colonialismo sem territórios necessita para se perpetuar. Nesse sentido, a disseminação de seus ideais e de seu modelo de sociedade, bem como o uso das Relações Internacionais como instrumental para alcançar o interesse nacional também são pilares básicos da política externa estadunidense (PE EUA). Porém, dois baluartes fundamentais da PE EUA, a liberdade para se autogovernar e para perseguir seus interesses de forma independente, levava os EUA a adotarem uma postura de neutralidade e isolacionismo no Sistema Internacional, bem como a manter parcerias flexíveis, que não engendrassem um comprometimento mais aprofundado. Essa postura começa a alterar-se no decorrer da I Guerra Mundial, culminância e estopim de dois movimentos históricos cruciais: por um lado, marca a ascensão e consolidação de novas potências mundiais para além da Inglaterra (EUA, Alemanha e Japão); por outro, impulsiona movimentos de contestação do imperialismo de tipo clássico, colocando em pauta a necessidade de novas formas de dominação e de manutenção dos interesses capitalistas. De início, os EUA mantiveram suas relações com os beligerantes sem envolverem-se no conflito. Porém, as ameaças ao seu poderio em ascensão devido à profundidade e extensão das mudanças que se colocavam, bem como os ataques 31 32

PECEQUILO, 2005, p. 30. MAGDOFF, 1979, p. 136.

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alemães a navios norte-americanos levaram, em 1917, ao engajamento direto no conflito. Para angariar o apoio da opinião pública interna, Woodrow Wilson, presidente à época, utilizou-se da retórica da defesa da democracia, a qual também estaria presente em seu famoso discurso dos Quatorze Pontos, onde enunciava os princípios norteadores da ordem internacional que estava sendo arquitetada no pósguerra e que culminaria com a criação da Liga das Nações. Parecia o anúncio de um novo posicionamento em política externa, porém o congresso americano não ratifica o Tratado de Versalhes de 1919, e os EUA retornam ao isolacionismo. O fracasso da Liga das Nações e o advento da II Guerra Mundial, de onde os EUA emergem como a grande potência capitalista mundial, sinalizam não somente o fim do isolacionismo, como o comprometimento norte-americano efetivo na construção de um ordenamento internacional que deveria ser embasado no multilateralismo, na proscrição do uso da força, no respeito aos direitos humanos e na manutenção a paz e segurança coletivos, bem como a consolidação de uma nova fase na PE EUA, que se pautaria, doravante, além dos temas tradicionais, na construção da ordem e na ideia de contenção. Como visto anteriormente, a criação de um arcabouço institucional internacional é fundamental tanto do ponto de vista prático quanto do ponto de vista ideológico, uma vez que consolida e legitima regras, preceitos, noções e práticas fundamentais para a manutenção do “imperialismo sem territórios”. Porém, o arranjo de forças bipolar que se estabeleceu no período subsequente levou a um engessamento dos foros multilaterais de solução de conflitos, especialmente do CS, uma vez que as questões eram resolvidas em termos de aliados e não-aliados, ou seja, a divisão global em termos de zonas de influência não mais estava somente relacionada aos interesses capitalistas, visto que havia agora uma forma de organização social alternativa e com interesses conflitantes ao que a ordem internacional arquitetada pelos EUA buscava consolidar, de forma que o fim da Guerra Fria representou um ponto de inflexão fundamental à ordem internacional, com o [d]esencadeamento, aprofundamento e a aceleração de algumas tendências, como a interdependência e a globalização e, mais especificamente, o reordenamento das posições específicas dos Estados.

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Nesse processo, o declínio do bloco soviético foi acompanhado pela ascensão do Ocidente e pela consolidação dos [Estados Unidos] como única superpotência restante [...]. Amplamente, foram liberados os constrangimentos do equilíbrio do terror e a política internacional pode voltar a seu padrão ‘normal’33.

Apesar das mudanças, esse momento pode ser entendido como de continuidade, uma vez que as estruturas básicas da ordem política, econômica e internacional criadas pelos EUA no pós-II Guerra Mundial foram mantidas, “fornecendo um arcabouço relativamente estável para a administração do sistema e o relacionamento entre as nações”34. Pode-se apontar como prioridades da PE EUA nesse momento a manutenção de sua liderança com vistas à preservação da estabilidade internacional, entendida como crucial tanto para a manutenção de sua inviolabilidade territorial como para a expansão de seus interesses e valores, a disseminação da democracia e do livre mercado, o combate às ameaças transnacionais à segurança e a prevenção do surgimento de potências regionais – objetivos claramente conectados aos interesses do neoimperialismo. Há uma recombinação das tradições, uma vez que, [s]e não podemos mais falar de contenção, pois o inimigo desapareceu, nem por isso essa estratégia foi descartada, permanecendo como possível alternativa caso surja um adversário comparável. A força do experimento aparece na promoção da democracia e do livre mercado, acentuando-se o ativismo, cujas raízes datam do wilsonianismo. Ao mesmo tempo, a preservação da ordem e da segurança mundial para a perseguição do interesse norte-americano revela a preocupação com as portas abertas e a preservação do império, ainda que informal. Além disso, a liderança corresponde ao exercício do unilateralismo, porém dentro de estruturas cooperativas35.

Era um momento de otimismo no contexto internacional, em que a potência restante, bem como sua antiga opositora, sinalizavam maior disposição para participar em processos colaborativos, especialmente no que tangia ao regime de segurança coletiva onusiano, e a invasão iraquiana ao Kwait, em 1990, serviria para colocar à prova o real descongelamento da política internacional, bem como os 33

PECEQUILO, 2005, p. 291. idem. 35 PECEQUILO, op. cit., pp. 292 e 293. 34

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mecanismos multilaterais. Mas, acima de tudo, confrontaria a retórica da ordem internacional advogada pelos EUA com um caso concreto, onde interesses e valores fundamentais eram confrontados.

As ações no Iraque: intervenções versus interesses

A reação da comunidade internacional à agressão iraquiana ao vizinho Kwait foi imediata, e a ação se deu sob os auspícios da ONU e embasada no consenso internacional – valores basilares da ordem haviam sido afrontados, e a retaliação colocava-se como necessidade primeira. Assim, a operação “Tempestade no Deserto” foi lançada, em uma coalizão liderada pelos EUA e que tinha como objetivo o restabelecimento da soberania no Kwait, exaltando-se a democracia e repudiando uma agressão não provocada. Porém, para além dos motivos retóricos, escondiam-se interesses reais: o cerceamento do poder regional de Saddam Hussein, regime imposto e apoiado por EUA e Inglaterra desde o conflito Irã - Iraque36, bem como a tomada de controle das reservas petrolíferas iraquianas. Os interesses norte-americanos na região do Golfo remontam ao pós-II Guerra Mundial (ainda que potências européias já buscassem consolidar protetorados e zonas de influência na região desde meados do século XVIII), quando o petróleo transforma-se na principal fonte energética mundial, tornando crescente o interesse da indústria petroleira norte-americana em controlar de forma mais direta as reservas da região. Era também de interesse dos governantes locais a diminuição da influência inglesa na região, de forma que a aliança com os EUA configurava-se em alternativa bastante interessante37. No entendimento de Magdoff38, [o] Departamento de Defesa [estadunidense] opera através de uma lista de materiais estratégicos que serve de guia para um programa de acumulação de reservas. São materiais tidos como críticos quanto ao potencial de guerra do país e cujo abastecimento poderia antecipar dificuldades. [...] A perda de qualquer desses materiais, causada por uma agressão, seria 36

ALI, 2003, pp. 130 – 136. TORRES FILHO, apud FIORI, 2004. 38 1978, pp. 54 – 59. 37

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equivalente a uma derrota militar. [...] [Além disso,] [o] tema das fontes de matéria-prima como fator da política externa aparece não só no tocante aos requisitos diretos dos Estados Unidos, mas também no referente às responsabilidades desse país, como líder do ‘mundo livre’, de cuidar que a Europa Ocidental e o Japão tenham seus estoques de matéria-prima assegurados.

A operação Tempestade no Deserto atinge seus objetivos de forma muito bem sucedida e com rapidez, emprestando a almejada credibilidade e legitimidade às intervenções internacionais sob os auspícios onusianos, e, de quebra, preservando os interesses dos EUA e aliados na região e enfraquecendo o regime iraquiano, a custos humanitários altíssimos, mas salientando um aspecto fundamental na consolidação do império informal: a potência militar mundial estava indiscutivelmente consolidada, em um claro ato de demonstração de força. A política externa dos anos de 1990 a 1992 é classificada por Pecequilo39 como a fase da construção e consolidação do status quo plus, ou seja, [v]isava a preservação da ordem e do seu equilíbrio por meio do exercício da liderança e superava os exageros retóricos da nova ordem em nome de uma postura mais pragmática e realista. No caso, os Estados Unidos mantinham intactos seus relacionamentos com as grandes potências europeias e asiáticas, com a presença de tropas nos dois continentes e a preservação de seus intercâmbios e alianças. Também mereciam atenção os desenvolvimentos no antigo inimigo soviético, assim como se alertava para a necessidade de reforma das estruturas da ordem a fim de readequálas aos novos desafios do pós-Guerra Fria. No caso do plus do status quo, a prioridade era incentivar a consolidação das revoluções democráticas na Europa Oriental, avançar os interesses norte-americanos no hemisfério, promovendo a [...] reformulação nos termos de intercâmbio. Além disso, aqui podem ser incluídas as iniciativas mais diretamente identificadas com a questão da ‘nova ordem’: de repúdio à agressão e a intervenção de cunho humanitário.

Com a ascensão de Clinton ao governo, a política externa volta a ser colocada em função da promoção do desenvolvimento interno, e não mais em demonstrações de poder, como havia sido a Guerra do Golfo. As relações internacionais eram encaradas como uma plataforma de projeção e fortalecimento doméstico, ocorrendo um abandono do engajamento e da expansão direcionados que haviam predominado entre 1993 e 1997. Os constrangimentos internos na elaboração 39

2005, pp. 306 – 307.

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das estratégias de política externa eram crescentes, uma vez que inexistia uma clara ameaça externa capaz de arregimentar o consenso doméstico. Os anos de 1998 e 1999 são entendidos como bastante peculiares por Pecequilo40, uma vez que, “por um lado, existe a reconsolidação da América como nação indispensável no sistema, sustentada por uma economia em constante expansão e o aumento da participação no exterior”. Por outro lado, reconhece-se a intensificação das reações dos Estados Unidos no sistema e o uso da força torna-se “mais constante e menos controlado pelo restante da comunidade internacional em função das ameaças identificadas como prejudiciais ao interesse nacional, acentuando o unilateralismo. [...] Os Estados Unidos mostram-se prontos a intervir, fazendo uso de seus recursos de poder”, ainda que se mostrem relutantes em arcar com os custos do exercício da liderança. A eleição de George W. Bush representou a volta do conservadorismo ao governo norte-americano, iniciando a fase do “internacionalismo diferenciado”. A política externa proposta por W. Bush reservava maiores atenções à reequiparação das forças armadas, bem como à defesa dos interesses dos setores privados nacionais, especialmente o energético e o ligado ao complexo bélico-industrial. A ideia era construir a America Unbound, ou, seja, uma América totalmente livre e equipada para agir, ainda que à revelia dos atores e das normas e instituições da comunidade internacional41. Os atentados de 11 de Setembro de 2001 representam um marco crucial tanto na história da política externa estadunidense quanto na construção do regime de segurança coletiva. Internamente, a queda do mito da inviolabilidade territorial, bem como a escolha dos alvos, símbolos tradicionais tanto do modo de vida quanto do poder estadunidenses e a habilidade do governo para manipular o medo dos cidadãos42 acabou por legitimar a política agressiva e unilateral, visto que havia uma

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PECEQUILO, 2005, p. 324 ibidem. 42 Nesse sentido, Ali (2003, p. 165) aponta que: “O governo republicano utilizou o trauma nacional de 11 de setembro (sic) para criar no país um patriotismo da lei e da ordem no combate ao terrorismo que minimizou as discordâncias, enquanto cumpria no exterior uma pauta imperial audaciosa da qual a ocupação do Iraque promete ser apenas o primeiro passo”. 41

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percepção quase generalizada da necessidade de se lançar uma ofensiva para minimizar a sensação de insegurança, ou seja, de fortalecer a segurança nacional através do combate ao terrorismo, objetivo que passou a ser o principal legitimador e orientador da política externa estadunidense. Externamente, a formação do consenso em torno de uma ofensiva se deu por basicamente três razões: Primeiro, a ameaça e o combate ao terror são desafios presentes em quase todos os Estados; segundo, para combater o terrorismo, cada país tem interesse não somente na formação da coalizão global, mas na liberação de suas ações, aumentando o intervencionismo e a exacerbação da legalidade em nome de sua autodefesa [...]; terceiro, o apoio diplomático e logístico serve de moeda de troca entre Estados Unidos e seus parceiros, cujas contribuições são orientadas duplamente por suas possibilidades e interesses43.

Estava lançada a guerra contra o terror, que deveria ser empreendida por meios de ações tanto preemptivas, ou seja, aquelas onde existe um inimigo ou um risco real e facilmente identificável, quanto por ações preventivas, que impeçam a emergência desse inimigo ou risco. O problema de ações desse tipo é que a determinação de uma situação eminentemente perigosa ou ameaçadora envolve cálculos complexos, cuja clareza e objetividade podem levantar questionamentos. Ainda que, tradicionalmente, os EUA sempre se reservem ao direito de agirem independentemente, a postura adotada era sempre de contenção e dissuasão, e não de ataques antecipados a possíveis e/ou prováveis agressões. Além disso, essa nova postura contribui imensamente para a crise de legitimidade do Sistema Internacional, uma vez que [i]ncentiva comportamentos equivalentes de outros Estados, levando a uma espiral maior de confrontação no sistema, perda de confiabilidade das leis e organismos internacionais. Em última instancia, qualquer ação pode ser justificada em nome da segurança nacional, quebrando-se tratados, limites ou evitando-se negociações em nome da autonomia plena44.

43 44

PCEQUILO, 2005, p. 385. ibidem, pp. 401 e 402.

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Porém o contexto internacional no período da segunda intervenção no Iraque era bastante diferente daquele da Primeira Guerra do Golfo: ainda que a ameaça terrorista tenha angariado simpatias, a ONU e outros foros multilaterais haviam se consolidado, e mais e mais se fazia necessário que os EUA legitimassem suas ações, dentro e fora do CS, tanto através da busca de suportes individuais dos Estados quanto através de negociações dentro do CS. Além disso, anos de sanções aplicadas com o aval da ONU haviam enfraquecido sobremaneira o Iraque, que não mais era percebido como uma ameaça nem no âmbito regional, quanto menos globalmente. Nesse sentido, Irã e Coréia do Norte apareciam como ameaças mais imediatas perante a opinião pública. Porém, uma nova intervenção no Iraque se adequava melhor aos cálculos estratégicos norte-americanos, devido não só ao interesse em suas reservas de petróleo, como também para a construção de uma zona-tampão no Oriente Médio, capaz de estrangular o Irã em futuras intervenções na região. Na análise de Fiori (2004), a segunda intervenção no Iraque teria um objetivo ainda mais fundamental para os interesses norte-americanos: deixar claro qual seria sua nova proposta de reorganização do sistema político internacional, uma vez que essa não havia sido discutida nem ao final da Guerra Fria, nem após a Primeira Guerra do Golfo. Assim, a Guerra do Iraque atingia dois propósitos: Em primeiro lugar, a Guerra do Iraque formulou uma proposta e fez uma ameaça direta às demais Grandes Potências, que são as maiores produtoras de armas de destruição em massa. Anunciou, de forma clara e inequívoca, que o objetivo último da nova doutrina de ataques preventivos é impedir o aparecimento, em qualquer ponto, e por um tempo indefinido, de qualquer outra nação ou aliança de nações que rivalize com os Estados Unidos. Uma estratégia de ‘contenção’ [...] só que agora visando um poder global que requer a contenção permanente e universal de todas as demais Grandes Potências. [...] Em segundo lugar, a guerra no Iraque enviou uma mensagem para os estados da periferia do sistema mundial. Daqui para a frente, haverá dois pesos e duas medidas: a ‘lei das selvas’, para os países ‘incapazes de assegurar seus próprios territórios nacionais’; e a ‘lei dos mercados’, para os demais países da periferia que aceitarem pacificamente o ‘imperialismo voluntário da economia global, gerido por um consórcio internacional de instituições financeiras como o FMI e o Banco Mundial’45.

45

FIORI, 2004, p. 99.

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Era a consolidação máxima do neoimperialismo. Sob a liderança dos Estados Unidos, a coalizão que atuou na segunda intervenção no Iraque era bastante assimétrica, além de politicamente fraca – porém todos os atores possuíam interesses diretos ou indiretos na região, no seu controle político e na segurança das reservas energéticas que lá se encontram. O que deveria ser uma ação rápida e pouco custosa, tanto em seus aspectos políticos e financeiros quanto em recursos humanitários acabou por alongar-se devido a erros de cálculo estratégico, especialmente no que concerne ao processo de transição política. Digno de nota foi a expressiva atuação da ONU nessa intervenção. A Resolução no 1483 do CS previa o fim das sanções que vigoravam para o Iraque desde o primeira intervenção, e garantia aos Estados Unidos e à Grã-Bretanha, assim como aos demais membros da coalizão, “a responsabilidade pela administração do processo de reconstrução física e política do Iraque até o fim da transição, legandolhes a autoridade completa para exploração do petróleo”46, assegurando, assim, o monopólio de fato da matéria-prima estratégica, bem como fornecendo os meios para que os investimentos estrangeiros pudessem ser facilmente direcionados para a região. Foi criada também uma missão da ONU em Bagdá, sem qualquer efetivo militar e sob o comando do brasileiro Sérgio Vieira de Mello, para auxiliar nas negociações entre as facções que ameaçavam transformar o conflito em uma guerra civil, porém sem grande alcance político. A escalada dos conflitos levou a ONU a estabelecer o Plano Brahimi para a transferência de poder político do Conselho de Governo Iraquiano, implementado pela coalizão, para uma entidade de governo indicada pela ONU, de acordo com consultas realizadas junto às forças de ocupação e ao Conselho de Governo. Porém, não previa a retirada das tropas, nem revelava uma preocupação mais pungente com a reconstrução infra-estrutural e econômica da sociedade iraquiana, de forma que o processo de transição democrática, tão caro aos Estados Unidos e tão propalado pela comunidade internacional, pudesse ser levado a cabo sobre bases reais.

46

PECEQUILO, 2005, p. 413.

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Assim, podemos perceber que, apesar da utilização dos foros e mecanismos multilaterais instituídos, o que move a ação internacional em última instância são cálculos estratégicos racionais (haja vista a ausência da armas de destruição em massa, principal justificativa para a intervenção no Iraque) direcionados para a consolidação e manutenção de interesses imperialistas, os quais são revestidos de uma retórica historicamente colocada e embasada em conceitos caros e fundamentais à sociedade estadunidense: seu destino manifesto e a importância de se levar o “império do bem-estar” a todos os cantos do globo, o que justificaria atrocidades e ações unilaterais, visando o “bem maior”47. Ligado a essas características, percebe-se que monopólio do uso da força no sistema internacional também é tema importante: Desse modo, o princípio que lutamos para preservar não é o da intervenção pela força militar nos assuntos de outros países. Trata-se, isso sim, do princípio de que os Estados Unidos, e somente os Estados Unidos, podem intervir nas questões internas de outros países para garantir a estabilidade política e até mesmo para reestruturar sua sociedade.48

A questão que resta talvez menos esclarecida do que se deveria esperar, em uma sociedade internacional organizada e voltada para interesses humanitários e não-egoísticos, seria a de definir a quem realmente interessa essa estabilidade política e essa reorganização social.

Conclusão: Imperialismo estadunidense e os desafios à ordem internacional

Ainda que, na prática, possamos encontrar ações embasadas quase que exclusivamente em termos de poder, na atual conjuntura internacional as organizações internacionais, especialmente a ONU, por sua amplitude e alcance, produzem consequências tanto políticas quanto jurídicas que devem ser levadas em consideração no cálculo da ação estatal. As discussões em seus foros trazem 47 48

CHOMSKY, 2006. ibidem, p. 290.

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visibilidade às questões de segurança coletiva, mobilizando inclusive a opinião pública na condenação ao uso discricionário da força no Sistema Internacional, de forma que o monopólio do processo decisório, bem como do modelo ideológico, cultural e social que representa esse arranjo institucional são fundamentais para a manutenção do modelo neoimperialista. O interesse estatal nesse tipo de arranjo pode ser entendido tanto pela previsibilidade que os regimes internacionais emprestam à ação dos atores, tornando as relações mais seguras e confiáveis, quanto à legitimidade conferida a estas, tanto frente a outros atores quanto à opinião pública e outros fatores que, mais e mais, informam a ação estatal. Além disso, há um crescente entendimento da existência de uma complementaridade fundamental entre poder e legitimidade: os custos – financeiros, sociais e, sobretudo, políticos – de ações embasadas exclusivamente em demonstrações de força, bastante eficazes nos arranjos anteriores a 1945, tornam-se cada vez mais elevados devido à grande interdependência estatal que se apresenta no cenário internacional contemporâneo. Porém, o arranjo ainda apresenta problemas consideráveis, uma vez que essa previsibilidade e segurança do sistema estão intimamente relacionadas à manutenção dos interesses imperialistas, cerceando a diversidade e consolidando um discurso muitas vezes descolado da realidade objetiva de muitas sociedades, especialmente no que concerne às questões de segurança, uma vez que processo decisório do CS é monopolizado, como já salientado, pelos interesses das grandes potências. Ainda no que tange ao regime de segurança coletiva, um dos maiores desafios a serem superados são os double standards nas decisões sancionatórias tomadas pelo CS, e do qual as intervenções no Iraque são exemplos mais do que claros. Como aponta Cançado Trindade49 , [...] [o] futuro aprimoramento do atual regime de sanções das Nações Unidas passa pelo necessário abandono dos criticáveis double standards [...]. Um exemplo notório nesse sentido, mostrando as iniqüidades a que podem levar os double standards, é fornecido pela gritante discrepância de tratamento dispensado ao Iraque agressor (caso da invasão e ocupação do Kwait, 1990) e ao Iraque agredido (caso da missão e ocupação do Iraque, 2003). Enquanto no segundo caso tem prevalecido a mais completa impunidade pela agressão cometida pela autodesignada 49

2009, p. 472, grifos nossos.

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‘coalizão de Estados’, liderada pelos Estados Unidos e pelo Reino Unido, em violação ao artigo 2o (4) da CNU – o primeiro caso levou à aplicação de um dos mais abrangentes programas de sanções jamais aplicados em toda a história da ONU. No caso da invasão e ocupação do Kwait (1990), a resolução 661/1990 do CS aplicou contra o Iraque amplas sanções comerciais e congelamento de bens. A ela seguiu-se a célebre resolução 687/1991 do mesmo Conselho, que aplicou contra o Iraque um amplo embargo comercial e financeiro, prolongado – mesmo bem depois da desocupação do Kwait – de forma inalterada até fins de 1996. Esse embargo levou ao colapso de economia iraquiana, e gerou uma crise profunda nos setores públicos da saúde, educação e abastecimento alimentar, com um aumento considerável da mortalidade infantil. Em outros episódios, posteriores, e.g., o caso da invasão e ocupação do Iraque (2003), que poderiam ter sido perfeitamente qualificados pelo CS – ao menos este último – como ato de agressão por parte dos países invasores, optou o Conselho pelos incoerentes e inconseqüentes double standards, abstendo-se de sequer cogitar qualquer tipo de sanção, diplomática ou de outra natureza.

Fica, assim, patente a utilização dos foros multilaterais para alcance de objetivos e interesses de caráter imperialista: em 1990, quando a força regional de Saddam Hussein, que havia chegado ao poder com apoio dos EUA e Inglaterra, precisava ser cerceada, o CS legitimou a intervenção e usou do recurso às sanções para debilitar de forma irreversível o Estado e a sociedade iraquianas. Treze anos depois, o mesmo Iraque já amplamente enfraquecido foi alvo novamente de uma intervenção que sequer cumpria os requisitos básicos da CNU para que o uso da força pudesse ser legitimado, e mais: a questão de segurança que era usada para justificar a implementação da ação – a existência de armas de destruição em massa – não só não foi comprovada, como também se soube posteriormente que os dados a respeito haviam sido manipulados pela inteligência estadunidense. Além disso, se as armas de destruição em massa fossem realmente a preocupação central, porque não empreender uma ofensiva contra Irã ou Coréia do Norte? Ainda que o que movesse a ação fosse interesses de ordem humanitária, o que, acredita-se, não seja o caso, mesmo assim a ação seria falha uma vez que, no entendimento de Kofi Annan50, apesar da ONU ter ensejado o advento do conceito de segurança humanitária, ela não está adequadamente equipada para colocá-la em prática. Não há, na CNU, dispositivos prevendo a criação de um aparato bélico e

50

2004.

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militar onusiano. As missões de peacekeeping, peaceenforcement, peacebuilding ou qualquer outra que venha a ser empreendida pela organização internacional dependem do deslocamento de efetivos militares dos Estados-membros, o que abre espaço também para considerações e interesses políticos e estratégicos, não se atendo objetivamente à questão da manutenção da paz e da segurança coletivas. Para além desse fator, há a questão da reconstrução social, política e infra-estrutural dos países onde ocorrem as intervenções, da qual o Iraque também pode ser considerado como um exemplo explícito. Até recentemente, as intervenções e sanções autorizadas pelo CS eram pautadas pelo conceito de responsability to protect, bem como pela preocupação com a punição dos países “infratores”, ou seja, com dever de ingerência internacional e/ou com a punição naqueles casos em que estivessem ameaçados a paz e a segurança ou em crises humanitárias, sem maiores preocupações com as consequências. A criação das smart sanctions – ainda que sua efetividade possa ser questionada –, bem como do conceito de responsability while protect – uma contribuição da diplomacia brasileira ao regime, que vem de encontro ao tradicional entendimento de que não há transição democrática e sustentabilidade no processo se esse não for pautado pela preocupação com o desenvolvimento – buscam preencher as lacunas da CNU, ainda que ainda haja muito em que se avançar no sentido de construção de legitimidade plena do Sistema Internacional e, especialmente, do regime de segurança coletiva, para além dos interesses exclusivos que o modelo neoimperialista coloca à ordem internacional.

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