Implicando-(se) na pesquisa... Tornando-(me) pesquisadora (entre) encontros com pessoas que não veem (apenas) com os olhos

May 30, 2017 | Autor: Leidiane Macambira | Categoria: Paisagem Sonora, Cidade; Sonoridade; Paisagem, Encontro, Cegueira, Diferenças
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Implicando-(se) na pesquisa... Tornando-(me) pesquisadora (entre) encontros com pessoas que não veem (apenas) com os olhos

MACAMBIRA, Leidiane (FFP-UERJ) Bolsista CAPES [email protected] Resumo Este trabalho desdobra-se do Projeto de pesquisa “Tensões entre políticas e experiências (da-na diferença) na rede municipal de ensino de São Gonçalo” coordenado pela Prof. Anelice Ribetto na Universidade do Estado do Rio de Janeiro-UERJ-FFP. Neste projeto buscamos pensar com outros, (entre) políticas, práticas e poéticas, como nós, sujeitos da educação, negociamos cotidianamente os diferentes modos de ser e estar no mundo para nos relacionarmos e trabalharmos coletivamente. Nesta empreitada, vimos compondo, por muitas mãos, a pesquisa em andamento, intitulada provisoriamente, por “Encontrar(se), (não)ver(se), diferir(se): platôs para pensar a educação de pessoas que não veem (apenas) com os olhos” durante o curso de mestrado em educação através do Programa de pós-graduação em educação: processos formativos e desigualdades sociais. Nesta pesquisa, buscamos cartografar através de encontros com pessoas que não veem (apenas) com os olhos, suas experiências e os percursos de vida em relação ao mundo em que vivemos, materializado, neste caso, pelo Instituto Benjamin Constant (IBC); seus processos de deslocamento possíveis neste espaço institucional e os efeitos que produzem na própria invenção de outros espaços ao viver-resistir-(re)existir na composição de mundos (outros) possíveis de serem habitados. Perpassando pelo conceito de cartografia, paisagem sonora, experiência etc. Escolhemos, para esta mesa de trabalho narrar as experiências acontecidas no próprio movimento de composição desta pesquisa.

Palavras-chave: Diferenças; Paisagem sonora; Imagens; Pessoas que não veem (apenas) com os olhos.

A gente se inventava de caminhos com as novas palavras. (BARROS, 2013, p. 430) Invento para me conhecer. (Idem, p. 425)

No presente trabalho trago para a discussão algumas das experiências acontecidas durante a pesquisa de mestrado em educação em andamento intitulada provisoriamente por “Encontrar(se), (não)ver(se), diferir(se): platôs para pensar a educação de pessoas que não veem (apenas) com os olhos” pelo Programa de pósgraduação em educação: processos formativos e desigualdades sociais, orientada pela professora Drª Anelice Ribetto. Buscamos conhecer através de encontros com pessoas que não veem (apenas) com os olhos, suas experiências e os percursos de vida em relação ao mundo que vivemos - abundantemente visual; seus processos de deslocamento possíveis e os efeitos que produzem na própria invenção de outros modos de vida ao viver-resistir-(re)existir na composição de mundos (outros) possíveis de serem habitados. O método que comporta esta pesquisa é o da cartografia. Entendida aqui, com Kastrup, Passos e Escóssia (2014), como um modo de pesquisar em que os objetivos e desejos a priori não são imutáveis, pelo contrário, eles coemergem da relação do pesquisador com todos os campos de força que compõem a pesquisa. O cartógrafo acompanha os processos e constrói o caminho investigativo na medida em que for caminhando. A cartografia como método de pesquisa é o traçado desse plano da experiência acompanhando os efeitos (sobre o objeto, o pesquisador e a produção do conhecimento) do próprio percurso da investigação. (Idem, 2014, pág. 18) Deste modo, essa pesquisa vem sendo cartografada. E por muitas mãos e dispositivos vamos compondo seus movimentos: diários de pesquisa, cartas, bilhetes, paisagens sonoras, pessoas que não veem (apenas) com os olhos que fazem reabilitação no IBC, colegas da orientação coletiva, orientadora, autores interlocutores, pesquisadora e muitos outros que não couberam nestas linhas. As experiências, aqui entendida como Larrosa (2014), como um acontecimento provocado na relação com o outro, que nos atravessa, nos desloca e nos transforma. Estas experiências vem me ajudando a compor o texto dissertativo, 2

apresentado, estética e politicamente, em forma de platôs: muitos planos que não tem uma ordem a priori de leitura. Sua entrada acontece pelo meio, no entre das relações ali cartografadas que, como anéis quebrados (DELEUZE; GUATTARRI, 2011), estão abertos a novas conexões, novas experiências. Propor-me ao exercício de narrar minha aproximação a este plano de experiência (KASTRUP, 2014) não tem sido tarefa demasiada tranquila. Segundo Perez de Lara e José Contreras (2010), (…) la experiencia es irreductible a pensamiento. Siempre abarca más dimensiones de las que son traducibles a pensamientos y siempre supone una multidimensionalidad y simultaneidad de las que es imposible dar cuenta ajustada en el pensar. (…) Por eso, para poder decir algo de la experiencia, el pensamiento tiene que inventar. Tiene que inventar para decir en otro plano (el de las ideas y las palabras) lo que sólo acontece viviendo (P. 37).

Por isso, este trabalho, tal como a pesquisa aqui enunciada, é uma invenção! Faz-se necessário, para narrar a experiência, dizer em outro plano: de palavras e de ideias... Por isso, ao passo que me encontro com pessoas que não veem (apenas) com os olhos a fim de conhecer e cartografar suas experiências de vida neste mundo saturado de profusões visuais, e também as experiências padecidas a cada encontro... venho também desconstruindo, questionando, desmantelando os modos de pesquisar hegemônicos e reinscrevendo outros modos de fazer ciência. Neste sentido, a desconstrução (...) consiste em desfazer, sem nunca destruir, um sistema de pensamento hegemônico e dominante. Desconstruir é de certo modo resistir à tirania do Um, do logos, da metafísica (ocidental) na própria língua em que é enunciada, com a ajuda do próprio material deslocado, movido com fins de reconstruções cambiantes (DERRIDA & ROUDINESCO, 2004, p.9 APUD PEDROSO JUNIOR, 2010, p.12)

Desconstruir para decompor uma estrutura, estranhar seu funcionamento, por em questionamento suas verdades... Experimentar a pesquisa, questionando-a, inventando modos (outros) de fazer ciência, não o novo, a novidade, muito menos a pretensão por tomar o lugar de hegemonia, mas de experimentar modos possíveis de narrar as experiências que acontecem no entre destes encontros, modos (outros) de compor esta pesquisa. Ao passo que me encontro com Eli, Regina Célia, Joaquim, Amélia e Sandra, desconstruía-se o que entendia como pesquisa... desconstruía-se o que 3

entendia como formação... desconstruía-se o que entendia por visão, por visualidades, por imagens... Por uma composição movente...

Provisoriamente venho experimentandocompondoescrevendo no entre de cada movimento da pesquisa. Mas como acompanhar o movimento? Como escrever este processo? Em que língua contar as experiências dos encontros entre pessoas que não veem (apenas) com os olhos? Como dizer o que é indizível? Tais perguntas vem me acompanhando. Como nomear as estratégias empregadas na pesquisa, quando elas não se enquadram bem no modelo da ciência moderna, que recomenda métodos de representação de objetos preexistentes? (KASTRUP, PASSOS, ESCÓSSIA, 2014, p.9) O ponto de apoio para cartografar é a experiência – o que de nossa vivência nos passa, nos atravessa e nos modifica (LARROSA, 2014). A Cartografia como método de pesquisa-intervenção pressupõe uma orientação do trabalho do pesquisador que não se faz de modo prescritivo, por regras já prontas nem com objetivos previamente estabelecidos. No entanto, não se trata de uma ação sem direção, já que a cartografia reverte o sentido tradicional de método sem abrir mão da orientação do percurso da pesquisa. (KASTRUP, PASSOS, ESCÓSSIA, 2014, p.17)

Há também que ressaltar que uma pesquisa que deseja acompanhar processos, reconhece e reafirma a potência do caminho. Deste modo, todo o processo de composição de uma pesquisa entra com força expressiva no corpo do texto. Ou seja, os resultados ou as conclusões de uma pesquisa não são tão primados, mas sim, o seu processo, a experiência padecida entre os sujeitos da pesquisa, incluindo também o pesquisador. Deste modo, a intervenção sempre se realiza por um mergulho na experiência que agencia sujeito e objeto, teoria e prática, num mesmo plano de produção ou de coemergência - o que podemos designar como plano da experiência. (KASTRUP, PASSOS, ESCÓSSIA,

2014, p.17)

O plano de experiência... O plano por onde se passa toda esta pesquisa...

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Um plano composto por diversas linhas e de natureza diferentes (emaranhadas, alocadas, realocadas ou até mesmo descartadas) na medida em que nos permitimos ser atravessados pelos acontecimentos forjados a cada encontro. O grupo é composto por seis pessoas. Dentre elas, cinco “reabilitandos” do Instituto Benjamin Constant i (IBC)– a saber: Eli, Joaquim, Amélia, Regina Célia e Sandra; e também a pesquisadora, que se incorpora como sujeito da pesquisa, por entender que toda pesquisa é intervenção (...) [pois] sempre se realiza por um mergulho na experiência (PASSOS; BARROS, 2014, p. 17). Deste modo, a pesquisa não está lá, num campo a priori, esperando para ser desvelada. Ela coemerge desse plano de experiência agenciado pelas experiências de todos os sujeitos que a compõe. Deste modo, não há um campo empírico delimitado, esta pesquisa transborda contornos visíveis, esgarça fronteiras que delimitam um campo. Por isso, o IBC, torna-se apenas um dos espaços nos quais nos encontramos. O IBC –durante a pesquisa– passou de ser “o campo” e se transformou em uma das linhas que compõem o plano de encontros: é aqui onde a gente se encontra, mas não é apenas aqui onde o encontro acontece. Neste emaranhado de linhas se compõe a pesquisa, planos de experiência, a superfície, a pele da pesquisa. Uma composição em platôs (DELEUZE; GUATTARI, 2011). pla·tô (francês plateau) O que tem na palavra “platô”?/ Tem muitos planos/ Diferentes intensidades/ Planícies esculpidas pela intensidade da experiência/ Platôs, escrita rizomática/ Rizomas/ Conhecimento transversal/ Caótico/ Que pulsa/ Subversão da ordem paradigmática arborescente/ Vegetação expandida com múltiplas raízes/ Não há um ponto central/ Mas pontos abertos que podem se interligar a outros pontos/ Que se encontram com outros pontos/ Suas conexões não são horizontais e nem verticais/ Transversais/ A entrada é possível de ser feita por qualquer ponto/ A leitura-escrita, neste sentido, não se preocupa em formular conceitos como verdades, mas almeja à produção de sentidos... e sentidos... e sentidos.../ Uma pesquisaescritaleitura que nos force a pensar sobre o nosso próprio pensamento/ Uma leitura que nos provoque sentidos outros que nos exija inventar outras línguas para conversar/ Uma pesquisaescrita em platôs/ No plano da superfície.../ Planície sensível/ A pele da pesquisa... sentida, friccionada, rasgada, reinventada/ Estar disponível ao que passa para que atravesse e nos arrepie a pele/ (Trecho do verbete produzido pela autora, presente no texto da qualificação)

Talvez, produzir uma pesquisa-dissertação que aposte numa composição em platôs seja um modo de resistência e (re)existência. (DELEUZE; GUATTARI, 2011). 5

Resistir e (re)existir como ato estético e político afirmativo de outros modos de fazer pesquisa. Longe de negligenciar as linhas duras que esta expedição demanda, mas, sobretudo, nessas linhas afirmar outros modos de compor uma pesquisa. Como aposta ética-estética-política possível. Compor em platôs o acontecimento da pesquisa e da escrita... Seria possível? Compor num plano de superfície... Compor como numa fotografia... Eternizar num papel fotográfico o acontecimento, que não se resume em cristalizar uma imagem representativa do movimento, mas compor na fotografia, através da escolha do foco, do ângulo, da lente, do momento do clique, aquela imagem que possa compor com quem a vê, uma história, um pensamento. Portanto, uma pesquisa em plano aberto... A família se reunira para posar para uma fotografia. Alinharam todos no quintal, o avô era o único sentado, bem no meio de todos. O velho Mariano, alegre, ditava ordens, distribuía uns e outros pelos devidos lugares, corrigia sorrisos, arrumava alturas e idades. Dispararam-se as máquinas deflagrando os flashes. Depois, todos risonhos se recompuseram e se dispersaram. Todos, menos o velho Mariano. Ele ficara, sentado, sorrindo. Chamaram-no. Nada. Ele permanecia como que congelado, o mesmo sorriso no rosto fixo. Quando o foram buscar notaram que não respirava. O seu coração se suspendera em definitivo retrato (COUTO, 2003, p. 57).

O velho estava lá... nem morto, nem vivo... Suspenso... Suspender talvez seja um modo outro de fugir do ponto final. Suspender... deixar no ar! Provocar fissuras... Manter as lacunas... Fazer voar... Dá abertura para outras composições... Esta pesquisa é como o estado de morte/vida do velho Mariano. Nem morto, nem vivo! Em morte-vida... entre... Por isso, a escolha, por experimentar-compor-escrever a pesquisa em platôs. Escritas em fragmentos, como as imagens – um fragmento da cena –, fragmentos estes 6

como ângulos e focos escolhidos pela pesquisadora para compor com outras imagens– visuais e não visuais –, um pensamento, uma dissertação. Imagens visuais e não visuais: Acontecimentos (in)visíveis de um encontro Em meio ao mundo contemporâneo em que a ditadura das imagens parece negar aos indivíduos o exercício de sua subjetividade, uma vez que tudo permanece muito na claridade (COELHO, 2006, p. 36), no visual, na razão, na informação já dada, o sentido da visão torna-se imperante, marginalizando, consequentemente, outros modos de vida. Modos estes que resistem e tornam-se instituintes. Os sujeitos [que não veem apenas com os olhos], ao que se percebe, fogem às obviedades, trazem outro foco e escapam à simples descrição de imagens, à reprodução do mesmo e da mesmidade. Fabulam em perceptos e afectos e produzem novidades, raridades, rarefação... É um novidadeiro? Um potencial fotógrafo daquilo que não está saturado ao visível (GAI; FERRAZ, 2013, p. 181).

Seriam estes outros modos de produzir visualidades? Poderíamos produzir imagens a partir de um som, de um cheiro, de uma brisa que toca a pele? Como o poeta Manoel de Barros, que através da poesia conseguiu – ou tentou, como ele mesmo coloca – fotografar o silêncio.

Madrugada a minha aldeia estava morta. Não se ouvia um barulho, ninguém passava entre as casas. Eu estava saindo de uma festa. Eram quase quatro da manhã. Ia o silêncio carregando um bêbado. Preparei minha máquina. O silêncio era um carregador? Estava carregando um bêbado. Fotografei este carregador. (O fotógrafo, 2013, p. 351)

Imagens do (in)visível... Oferecidas por Manoel de Barros – uma pessoa que não via (apenas) com os olhos, o poeta que tem o ver oblíquo – que tinha um olhar cheio de sol, de águas, de árvores, de aves (BARROS, 2013, p. 413).

No encontro passado pedi que levassem uma fotografia de si. Ninguém levou, com exceção de Sandra, que toda entusiasmada me mostrou sua fotografia. Para meu desconforto, a foto era um cartão-postal, esse que lhe envio. Ela me contando, disse que era a foto de sua amiga na praia de Botafogo. Claramente, aquela foto dizia muito de si... Não só dela, mas de todos que estavam ali... O apego à fotografia era meu! Eu tinha um mapa de desejos já

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construído antes de habitar aquele território. E as pessoas estavam me dizendo de muitas maneiras que queriam seguir outros caminhos, os quais eu não conseguia ver, ou resistia a ver devido a minha paixão pela fotografia. Mas, enfim, numa conversa com Filé, percebi que as imagens não se limitam às fotografias. Há imagens que não são visuais. Como a imagem narrada por Sandra, ao me apresentar este cartão-postal. Tem sido um deslocamento muito difícil para mim! Agora, tenho experimentado paisagens sonoras. (Trecho do diário de pesquisa produzido pela autora)

Foto: Leidiane Macambira

– Está vendo a minha amiga? A estridente pergunta feita por Sandra, a qual continuamente soa aos meus ouvidos. Sandra me deu a ver muito mais do que esperava. [Deu a imagem] sem dar ao mesmo tempo o que diz a [imagem]. Ou, melhor, interrompendo todas as convenções que nos fazem dar a [ver] o que já temos como próprio, o que já sabemos [ver] (LARROSA, 2004, p. 20). Sem saber o que dizer, respondi: – Sim! Estou vendo! Entretanto, não conseguia enxergar a sua amiga! O que via sempre e repetidamente era aquele cartão de aniversário. Toda vez que olhava para a foto, via sempre o mesmo cartão. Dom Juan, o bruxo com quem Carlos Castañeda se encontrava em suas pesquisas no povoado de Sonora (México), falou que a [minha] razão [me] dizia o

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mesmo e, no entanto, eu presenciara [o cartão de aniversário] várias vezes (CASTAÑEDA, 1971, p. 294). Estamos acorrentados à nossa razão, aos nossos a prioris... Entretanto, não há nada para entender. Tal faculdade é apenas uma coisa muito pequena, muito pequena mesmo (CASTAÑEDA, 1971, p. 294). Enquanto não (des)automatizarmos nosso olhar, não conseguiremos ver o (in)visível. Continuaremos como Carlos Castañeda, vendo repetidamente a mesma coisa, porque nossa razão que nos diz ser possível. – Olha aí, Leidiane! Viste? Pergunta-me Sandra e todas as outras pessoas que não vêem (apenas) com os olhos. – Trate de abandonar suas certezas para então poder ver! Ver o que nós desejamos ao nos dispor para encontrar contigo. Veja e aprenda a língua com a qual vimos conversando desde o início dos nossos encontros. – Ver... ver... ver... – Olha aí! Viste? O olhar da academia (carregado pelo pesquisador) sendo desvelado em cegueira por pessoas que veem além do que os olhos podem enxergar. Por que insistir em depender apenas deste pequeno órgão para julgar a realidade? Quanta pretensão!

Paisagens sonoras (imagens não visuais): sonoridades no (in)visível Paisagem sonora é um conceito muito utilizado na música. Ele foi criado por Murray Schafer. Para ele, este conceito trata de todos os sons que compõem o ambiente, podendo ser estes ambientes reais ou construções abstratas, como composições musicais ou montagens de fitas (2001, p. 366). Como se o mundo fosse uma composição musical macrocósmica (Idem, 2001, p. 19). Uma música composta por muitos sons, silêncios, pausa e ritmos. Em seu livro A afinação do mundo (2001), trata dos sons do ambiente que vem sendo interpelado pelos novos sons advindos dos novos modos de vida, como a revolução industrial, por exemplo.

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Entretanto, para Giuliano Obici, o mundo não precisa ser afinado, como uma música. Em sua dissertação de mestrado “Condição da escuta: mídias e territórios sonoros”, trata de território sonoro que, segundo ele, são os sons que criamos para nos situarmos em meio ao caos. Podem ser os sons do ambiente com os quais nos relacionamos ou até mesmo o repertório de músicas que ouvimos num MP3 Player, por exemplo. O som não está fora do sujeito. Propomos pensar essas questões a partir de outra terminologia, a do território sonoro, que explicita as condições de sujeição da escuta, as relações de poder, delimitação de território, produção e fabricação de subjetividade, entre outras (OBICI, 2006, p. 72).

Em um dos encontros com Regina Célia, no ônibus, quando a acompanhava durante seu trajeto de volta para casa, na Rocinha. Fui interpelada por um modo outro de perceber o espaço. Regina, após ter acordado de um pequeno cochilo dentro do ônibus, virou-se para mim e perguntou: – Onde estamos? Olhei por todos os lados procurando através da janela alguma placa sinalizando o nome da rua, entretanto não tive êxito. Frustrada lhe respondi: – Não sei, Regina. Não conheço muito bem a cidade do Rio... Não sei onde estamos... – Espere um pouco! ... ... ... Alguns segundos em silêncio e ela me responde: – Estamos na rua São Clemente! – Como você sabe? – Pelo engasgo do ônibus. Nesta parte, como tem muito sinal, retorno e muito fluxo de carros, o ônibus engasga bastante. (Trecho do texto enviado para a qualificação)

Sons, engasgos, ruídos, leituras silenciosas de placas informativas, buzinas, canto dos pássaros... Talvez tudo isso compusesse uma música... Com uma afinação outra, um ritmo outro... uma estética outra... que nos solicita uma escuta outra... E se a escuta dissesse respeito à vida, a uma mobilidade vital, e fosse, por isso mesmo, uma questão política? (GODOY, 2011, p. 5). Uma música que nos desloca do tranquilo lugar da contemplação, para sermos músicos, compositores, maestros, espectadores... Na tentativa de subvertermos nosso olhar das imagens saturadas de ver, cheias de razão e de representação... Pensamos na possibilidade de produzir, com as pessoas que não veem com os olhos, outras imagens visuais e não visuais. Para dar a ver nossas experiências (LARROSA, 2014) naquele espaço. Que imagens visuais e não visuais as pessoas que habitam, cotidianamente, aquela instituição poderiam nos oferecer? Que imagens (in)visíveis dos lugares 10

praticados (CERTEAU, 2014) serão possíveis de serem construídas? Como capturar nossas experiências?

(A produção da) Paisagem sonora: Entulhos de uma edição Diante da fala de Regina, fiquei pensando o que acontecia durante seu trajeto de casa até o IBC que a fazia considerar uma viagem. Por que ficava tão tensa se precisasse ir sozinha. Encontramo-nos para, juntas, irmos para sua casa. Após toda a viagem, começa a edição. Quase três horas de áudio. Muitas conversas atravessando os ruídos, as buzinas, o som do motor do ônibus, os passos, suspiros, tosses, espirros... Tantos sons que me chamam a atenção! Mas nem todos continuarão após a edição. É preciso reduzir! Recortar... equalizar... normalizar... E os tantos outros procedimentos usados para tratar o áudio e compor esta paisagem. O que manter? Quais ruídos retirar? E o ronco do motor que resiste em aparecer durante quase toda a gravação? Às vezes, atrapalha o som que quero que fique no foco. O tempo também foi outra questão! Como reduzir quase três horas de viagem num tempo em que nossos ouvidos consigam aguentar! Na primeira edição, consegui reduzir para sete minutos. Entretanto, após a audição na orientação coletiva, percebemos o quanto era doloroso ouvir sons desalinhados sem nenhuma imagem visual de suporte. Incomodava! Parecia que os sete minutos desdobravam-se em 14, 21, 28 minutos. Aqui o encontro na diferença. Segui então uma segunda edição... Ainda é grande, tem quatro minutos, e incomoda a minha escuta cega... No entanto, vale deixar como está e manter viva a diferença. Paisagem sonora 1 – Da Urca até a Rocinha: https://www.youtube.com/watch?v=kq1Adt7yk7Q

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Paisagem sonora: minha escuta no Instituto Benjamin Constant. Sons de buzina... Motores de automóveis... Bengalas batendo no chão... Sinal sonoro... Conversas alheias pelo saguão... A cada ida ao IBC parece-me que os sons são sempre os mesmos. Passam despercebidos... quase neutralizados à minha audição. Perceber imagens (in)visíveis no demasiado conhecido é um exercício duro. Fazia-se necessário desautomatizar o olhar, (...) liberar o sonoro do domínio do audível, liberar a escuta do domínio exclusivo do sonoro e do musical (GODOY, 2011, p. 10). Como se a atenção ficasse flutuando e ao mesmo tempo focada em muitos pontos. E aos poucos o pedal da bicicleta começa a aparecer... o canto do pássaro ganha volume... os passos ganham destaque... A sonoridade daquele ambiente muda. Como se mudasse também o ambiente... E, até mesmo quem escuta. https://www.youtube.com/watch?v=y8pd4gSxgZY

A movimentar a pesquisa...

Esta foi uma breve narrativa das experiências acontecidas durante todo este percurso de vida que venho percorrendo, no qual vivo, resisto e (re)existo por outros modos possíveis de continuar sendo pesquisadora, mulher, negra, professora, mãe, pessoa que não vê (apenas) com os olhos. Este breve parágrafo foi criado, não para encerrar este trabalho e todas as questões que ele nos solicita a pensar. Mas sim, para manter a pergunta viva, o pensamento ativo... Então, para que se mantenha o pensamento vivo e movente, interrompo este texto com a poesia que me inspirou a começá-lo.

A gente se inventava de caminhos com as novas palavras. (BARROS, 2013, p. 430) Invento para me conhecer. (Idem, p. 425)

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Referências Bibliográficas BARROS, Manoel de. Poesia completa. São Paulo: LeYa, 2013. CASTAÑEDA, Carlos. Uma estranha realidade. Rio de Janeiro: Editora Record, 1971 (9ª edição) CERTEAU, Michel de. A invenção do Cotidiano: artes de fazer. Petrópolis: Ed. Vozes, 1998. COUTO, Mia. Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. COELHO, Ana Carolina Sampaio. José Saramago e Evgen Bavcar: os paradoxos do olhar. Dissertação (mestrado) Universidade Federal de Pernambuco. CAC. Departamento de Letras, 2006. DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia 2, vol. 1. São Paulo: Editora 34, 2011. (2ª edição). GAI, Daniele Noal; FERRAZ, Wagner. (orgs.). Parafernálias I: diferença, artes, educação. Porto Alegre: INDEPIN, 2013. GODOY, Ana. Paisagens sonoras: quando a escuta recorta o invisível [divagações a propósito de algumas experimentações]. Alegrar, nº 08, ISSN 18085148, dez/2011. Disponível em: http://www.alegrar.com.br/revista08/pdf/paisagens_godoy_alegrar8.pdf, acessado em 01/11/2015. KASTRUP, Virgínia; PASSOS, Eduardo; ESCÓSSIA, Liliana da. (orgs.). Pistas do método da cartografia: Pesquisa-intervenção e produção de subjetividade. Porto Alegre: Sulina, 2014. LARROSA, Jorge. Tremores: escritos sobre experiência. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2014. _______________. Dar a ler... Talvez. IN: LARROSA, Jorge. Linguagem e educação depois de Babel. Belo Horizonte: Autêntica, 2004. OBICI, Giuliano. Condição da escuta: Mídias e territórios sonoros. Dissertação (mestrado) Pontífica Universidade Católica de São Paulo. Mestrado em comunicação e semiótica. 2006. PASSOS, Eduardo; BARROS, Regina Benevides de. A cartografia como método de pesquisa-intervenção. In: KASTRUP, Virgínia; PASSOS, Eduardo; ESCÓSSIA, Liliana da. (orgs.). Pistas do método da cartografia: Pesquisa-intervenção e produção de subjetividade. Porto Alegre: Sulina, 2014. 13

PEDROSO JUNIOR, Neurivaldo Campos. Jacques Derrida e a desconstrução: uma introdução. Revista Encontros de Vista, 5ª Ed., p.09-20, ISSN 1983-828x, jan./jun. 2010. Disponível em: http://www.encontrosdevista.com.br/Artigos/Neurivaldo_Junior_Derrida_e_a_desco nstrucao_uma_introducao_final.pdf acessado em 10.05.2016. PEREZ DE LARA, Núria; CONTRERAS, José Domingo. Investigar La Experiência Educativa. Madrid: Morata, 2010. SCHAFER, Murray. A afinação do mundo: uma exploração pioneira pela história passada e pelo atual estado do mais negligenciado aspecto do nosso ambiente: a paisagem sonora. São Paulo: Editora UNESP, 2001.

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Situada no Rio de Janeiro, o IBC funciona como centro de referência dentro da política de inclusão das pessoas com deficiência visual. Oferecem serviços educacionais como a educação básica, cursos técnicos e profissionalizantes, reabilitação, além de atividades culturais e médicas oftalmológicas.

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