Implicações éticas da compaixão

July 4, 2017 | Autor: Vitor Coutinho | Categoria: Compassion
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IMPLICAÇÕES ÉTICAS DA COMPAIXÃO Vítor Coutinho

1. COMPAIXÃO E MORAL: UMA RELAÇÃO PERTINENTE? O interesse pela vida e pela experiência de fé da pastorinha Jacinta Marto motivou-nos a explorar a atitude de compaixão não só como categoria hermenêutica da personalidade desta criança, mas também como categoria heurística para repensar diversas dimensões da existência humana e da opção cristã. É neste sentido que nos propomos abordar a compaixão a partir da perspectiva da moral e tentar perceber se nela podemos encontrar implicações relevantes para a reflexão ética. O ponto de partida desta reflexão é a vida e a personalidade da pequena Jacinta. Nela é visível uma capacidade de se deixar tocar pelas realidades dolorosas que encontra, de assumir como sua a tarefa de compensar com amor e bondade o mal que descobre no mundo, deixa que o sofrimento alheio (da Igreja, do Papa, do mundo pecador) seja determinante na atitude interior que assume e nas opções concretas que toma. Reconhecemos que as suas escolhas e opções brotam duma atitude fundamental de compaixão. As experiências de contacto com a realidade dos outros constitui um verdadeiro encontro que suscita nela a compaixão e provoca o compromisso. Não há dúvida de que esta atitude recolhe o respeito e a admiração da generalidade das pessoas, uma vez que é reveladora de uma bondade interior, que se exprime em entrega, dedicação, fidelidade, generosidade, gratuidade, compromisso, paixão. Sem pôr em causa a bondade desta atitude, podemos, contudo, questionar, do ponto de vista da ética, se a compaixão de uma pessoa tem validade moral evidente e se é, em si mesma, fonte de um agir moralmente bom. É também necessário perceber se o contacto com o sofrimento tem em si a capacidade de nos motivar positivamente. Poderá parecer estranho o simples facto de pormos em causa a positividade da compaixão e de questionarmos se o encontro com o 219

Vítor Coutinho sofrimento tem efeitos positivos. Trata-se, contudo, de questões oportunas, já que na ética aprendemos que os sentimentos e as emoções não podem ter um peso determinante nas opções morais. Justificar escolhas fundadas somente em sentimentos e emoções seria adoptar uma posição ética que se designa por emotivismo, que pode ser considerada uma forma de relativismo moral. A história da humanidade e as nossas vidas mostram-nos muitas situações em que a compaixão pode levar a decisões eticamente erradas, a cometer acções moralmente más e a aceitar situações que violam princípios éticos fundamentais. Por compaixão justifica-se homicídios de pessoas em estado de sofrimento, ou a eliminação de indivíduos em situações que outros consideram desumanas. Por compaixão alimentam-se relações destrutivas e aceitam-se situações carregadas de injustiça. Por compaixão pode tolerar-se a violação de princípios morais e de direitos elementares.

2. O SOFRIMENTO: A AMBIGUIDADE DE UMA INTERPELAÇÃO Para percebermos que o contacto com o sofrimento não provoca necessariamente atitudes moralmente positivas e inequívocas basta uma breve reflexão sobre o que se passa, a este nível, nas sociedades modernas. Verificamos que a mediatização constante, por imagens ou relatos, da dor e da tragédia, de violência e de sofrimento, não são por si mesmas geradoras duma autêntica compaixão, com compromisso e envolvimento pessoal, não resultam sempre em manifestações de solidariedade. É interessante, a este propósito, a análise que a escritora norte-americana Susan Sontag faz do efeito das imagens de guerra e violência. O registo fotográfico de atrocidades pode originar reacções contraditórias: rejeição do belicismo e empenho pela paz, mas também apelos à vingança e à eliminação dos criminosos. Neste sentido, será importante, por exemplo, perceber se as ondas de solidariedade provocadas pelo confronto com algumas tragédias resultam duma atitude solidária enraizada nas pessoas e são expressão de opções morais de fundo, ou se são apenas resultado de emoções superficiais e efémeras provocadas por sensações pontuais e epidérmicas. &I66217$*2OKDQGRRVRIULPHQWRGRVRXWURV*yWLFD/LVERD



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Implicações éticas da compaixão Pode haver uma solidariedade que traduz uma bondade moral do sujeito, mas também é de admitir uma solidariedade que resulta apenas das sensações e emoções causadas pela apresentação dramatizada de situações. 2.1. O sofrimento na superficialidade dos contactos Compreendemos melhor algumas atitudes perante o sofrimento, se reflectirmos sobre as consequências da sua extrema mediatização, que nos confronta constantemente com uma grande quantidade de imagens de crueldade humana e com relatos trágicos que diariamente ouvimos e lemos. Este permanente e interpelante contacto com a dor não é garantia de uma maior sensibilidade a ela. Em muitos casos são visíveis efeitos perversos que resultam de procedimentos habituais neste âmbito: o constante confronto com a tragédia e a crueldade humana (a quantidade e a insistência destas notícias), a exposição quase obsessiva das vítimas de todos os tipos de violência e catástrofes (a necessidade de figurantes ilustrativos), a invasão despudorada do drama de pessoas (a busca de proximidade dos intervenientes), a mediatização de experiências de sofrimento (entrevistas a pessoas em luto, mortes em directo), a curiosidade mórbida por conhecer os pormenores e a intimidade de quem sofre (o deleite em testemunhar). Esta mediatização, com todos os procedimentos típicos que referimos, tem múltiplos e profundos efeitos na forma como valorizamos antropologicamente o sofrimento e no desenvolvimento de diversas atitudes perante a dor e o mal. Indico apenas algumas destas consequências: 1. A insignificância humilhante do sofrimento na globalização da informação. A quantidade de factos com que somos confrontados, inseridos habitualmente numa dimensão global e dispersos na imensidão de tragédias que constantemente são registadas e noticiadas, leva a considerar insignificante a experiência concreta dos indivíduos afectados e a desvalorizar o seu sofrimento. 2. A banalização do sofrimento e do mal é resultado da leveza e da frequência com que os dramas humanos são apresentados e rapidamente esquecidos. Em sociedades onde a importância dos acontecimentos é determinada pela efemeridade ou permanência das notícias, também os dramas das pessoas se perdem na dispersão de interesses 221

Vítor Coutinho e na quantidade de notícias semelhantes que se tornam vulgares na aldeia global. 3. A instrumentalização de pessoas e o desrespeito da dignidade pessoal dos indivíduos é o resultado da necessidade de figuras que dêem credibilidade aos relatos. Com frequência, na apresentação e exposição de vítimas de tragédias ou de sujeitos em sofrimento, as pessoas são usadas como “figurantes” que dão o rosto a uma história que é preciso contar, mas são ignoradas como sujeitos de uma história em que não conseguem ser protagonistas. 4. A expropriação do sofrimento. A exposição mediática do sofrimento e do mal pretende transmitir a um público anónimo, e que é indiferente às vítimas, os elementos de uma experiência que, em si mesma, é indizível. Há um pudor necessário a quem sofre, que, ao ser violado, impede os próprios de viver com dignidade algo que não pode ser objectivado nem exteriorizado. Esta invasão da intimidade própria de qualquer drama pessoal expropria o sujeito de uma experiência que não se pode diluir na simplificação da comunicação mediática. Perante o sofrimento do outro impõe-se também uma distância necessária. 5. A espectacularização e a insensibilidade. A espectacularização da tragédia, da crueldade e da dor é um efeito frequente da exigência de noticiar, da necessidade de informar. A inflação de imagens de sofrimento humano provoca uma insensibilidade paralisante. 6. O alívio da observação. A observação da tragédia ou da dor alheia e o contacto com o sofrimento de outros nem sempre é motivado por um desejo de se compadecer. Trata-se, com frequência, de um fascínio mórbido por ver a dor dos outros ou ser espectador de situações trágicas, pois isso provoca em quem observa a sensação de que se pode distanciar, de que não é ele a vítima da situação dolorosa, está fora dela. Há um alívio por esse sofrimento não afectar quem observa, pois é “o outro” que sofre. Não sou eu que sofro, não é a minha morte. Estes contactos com a dor podem dar origem a uma atitude de superioridade, de quem olha o sofrimento do outro a partir de cima, isto é, com a consciência de que estar na situação do outro seria algo que me diminuiria. É humilhante a compaixão do outro que é experimentada como observação ofensiva da própria debilidade. 222

Implicações éticas da compaixão Não basta ver o mal, mas é necessário assumir a responsabilidade de pensar o que implica estar perante ele. Nem toda a aproximação ao sofrimento e à tragédia é resultado de uma autêntica compaixão. Nem sempre as visões dos “infernos” deste mundo nos levam a uma vontade de o reparar. O encontro com o sofrimento não é sempre um estímulo a uma paixão gratuita e comprometida. 2.2. Compaixão na profundidade de um encontro com o sofrimento É interpelante a expressão de S. Sontag: “Talvez as únicas pessoas que têm direito a ver imagens de sofrimento verdadeiro sejam aquelas que podem fazer alguma coisa para o aliviarem […] ou aquelas que possam aprender com isso alguma coisa. O resto de nós somos voyeurs, quer queiramos quer não.” Por outras palavras, o encontro com o sofrimento e o mal, ou nos torna espectadores indiferentes e cobardes ou suscita em nós a consciência de que o sofrimento nos envolve e de que o mal exige a nossa responsabilidade. Nas palavras de Theodor Adorno, “a necessidade de deixar que a dor se torne eloquente é condição de toda a verdade”. O sofrimento pode ser visto, antes de mais, como um meio de conhecimento da verdade sobre a pessoa, sobre si próprio e o outro. A eloquência desta realidade humana e experiência pessoal só é perceptível se for considerada como expressão de uma dimensão constitutiva do humano e não como defeito ou negação da possibilidade de existir enquanto pessoa. Para isso é necessário explorar as possibilidades de uma integração positiva do sofrimento, que seja reveladora de perspectivas da verdade da pessoa humana. A desejada integração construtiva do sofrimento só é possível se este não impedir o indivíduo de se considerar protagonista da vida, se não tiver força para o alienar da sua própria história, por outras palavras, se a pessoa não o vir como um obstáculo para ser sujeito moral e para manter um sentido da sua existência. 6217$*2OKDQGRRVRIULPHQWRGRVRXWURV  7 : $'2512 1HJDWLYH 'LDOHNWLN LQ *HVDPPHOWH 6FKULIWHQ  6XKUNDPS )UDQNIXUW  

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Vítor Coutinho Levar a sério o sofrimento humano supõe reconhecer o outro na sua alteridade, com a identidade de um rosto. É no sofrimento que se esbatem todas as distâncias artificialmente construídas e nos tornamos verdadeiramente próximos, a partilhar uma mesma condição, solidários numa dor que afecta e implica todos os seres humanos. Porque nos torna próximos, o sofrimento torna-nos responsáveis, implica-nos. É aqui que podemos falar de uma culpa pela recusa a “reparar” a dor que desfigura a humanidade. Perante um sofrimento que não nos deixa indiferentes e um mal que nos responsabiliza tem lugar a atitude de compaixão. Susan Sontag refere-se a uma incapacidade real quando afirma que “nenhum «nós» deveria ser dado por garantido quando se trata de olhar para o sofrimento dos outros”. É certo que há algo indizível, impossível de captar e de mostrar, no sofrimento de um ser humano. É sempre uma experiência tão única como é único cada indivíduo. No entanto, divergimos da autora por entendermos que só a possibilidade de alguma identificação e partilha da situação do outro nos permite olhá-lo com dignidade e sentirmo-nos solidários numa humanidade comum. É necessário superar uma concepção meramente sentimental da compaixão: não a consideramos como uma simples capacidade de se comover ou emocionar, como uma bondade genérica, difusa e anónima para com toda a humanidade, como uma sensibilidade do coração à qual cedemos forçosamente. Também não usamos o termo compaixão para indicar o incómodo que a generalidade das pessoas sente perante a desgraça e a dor dos outros. Esta atitude leva muitas vezes a evitar o confronto com o sofrimento, a não integrá-lo na própria vida nem nas relações com os outros, a retirar-se nas situações dolorosas. A compaixão é, sobretudo, expressão de uma atitude existencial que permite viver com o outro a sua situação identificando-se com a sua experiência, sem o desapropriar de uma experiência que só a ele pertence. Consiste em pôr-se no lugar do outro aceitando fazer também seu o peso da realidade que o outro está a viver. Mais do que um sentimento, a compaixão envolve diversas dimensões da pessoa humana, comprometendo-a a diversos níveis. 6217$*2OKDQGRRVRIULPHQWRGRVRXWURV



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Implicações éticas da compaixão Apontamos alguns sentidos da compaixão, com especial relevância ética: 1. Compaixão como reconhecimento do outro. Quem age por compaixão assume como seus os interesses do outro. O reconhecimento de que o outro ser humano experimenta, como nós próprios, os mesmos sentimentos e o mesmo sofrimento que é comum a todo o humano leva a uma compreensão compassiva do outro, isto é, leva à compaixão. A compaixão é considerada como a expressão de um verdadeiro reconhecimento do outro. Ao permitir reconhecer o outro, a compaixão dá-lhe a possibilidade de experimentar que a sua condição não lhe retira dignidade, nem o impede de ser sujeito da sua própria história. 2. Da percepção da vulnerabilidade à compaixão. O reconhecimento do outro na sua condição própria leva naturalmente a identificar as suas necessidades, as suas fragilidades e o seu sofrimento. É da consciência das fragilidades e dores do outro, da percepção interiorizada da sua vulnerabilidade que brota uma solidariedade existencial na qual se funda a compaixão. 3. Da compaixão ao reconhecimento da própria vulnerabilidade. A compaixão é, justamente, a identificação com um sofrimento que é de outro, mas que também fala da própria realidade e revela uma condição comum. A compaixão não se refugia no privilégio de ser “o outro” a sofrer, mas aceita partilhar uma vulnerabilidade comum a si e ao outro, identifica-se com a raiz dessa realidade que está na base do sofrimento de todo o ser humano e do mal de que ele é vítima e sujeito. Isto supõe, naturalmente, que a compaixão inclua também uma capacidade de se tornar vulnerável, de se deixar tocar pela situação do outro. Ter compaixão equivale a não conseguir ficar indiferente ou neutral, perante o outro, perante o sofrimento e o mal. É por isso que a compaixão torna vulnerável aquele que se compadece. 4. A compaixão como participação no sofrimento do outro. Partilhar a experiência da fragilidade do outro não é apenas dar-se conta dela, mas reconhecê-la como sua, isto é, a vulnerabilidade do &I$6&+23(1+$8(5*HGDQNHQ]XU(WKLN%HFKWOH0QFKHQ &I6&+23(1+$8(5*HGDQNHQ]XU(WKLN

 

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Vítor Coutinho outro compromete-nos e implica-nos, exige tomar o seu partido e “com-padecer-se”. Neste sentido, a compaixão é participação na dor do outro e revelação de uma mútua dependência. A compaixão é uma atitude que parte da percepção de um sofrimento alheio, no qual não só tomo parte, mas que também me impele a um empenho por assumir como próprios os desafios por ele levantados.

3. O TESTEMUNHO “AJUDA A DEUS”

DE UMA MOTIVAÇÃO: COMPAIXÃO COMO

A concretização de uma atitude compassiva perante o sofrimento, que é indicadora de uma motivação, pode ser encontrada no sugestivo testemunho de Etty Hillesum, que nos inquieta e abre à esperança diante de todo o sofrimento e tragédia humana. Perante o terror instituído e a crueldade organizada, esta jovem judia, a viver na cidade de Amesterdão ocupada pelas tropas nazis, vai percebendo nessa realidade extremamente dolorosa uma possibilidade de acesso a Deus. No mal vê mais a ausência da humanidade do que da divindade: “Não é Deus que nos deve explicações, mas nós a ele.” No confronto com as vítimas, Etty intui que Deus está do lado dos que sofrem, levando-a, deste modo, a colocar-se do mesmo lado, a assumir em si mesma a compaixão de Deus, comprometendo-se para que essa compaixão divina se faça presente através de si mesma. Por isso escreve: “Vou ajudar-te, Deus, a não me abandonares, […] tu não nos podes ajudar, nós é que temos de te ajudar, e, ajudando-te, ajudamo-nos a nós próprios. E esta é a única coisa que podemos preservar nestes tempos, e também a única que importa: uma parte de ti em nós, Deus. E talvez possamos ajudar a pôr-te a descoberto nos corações

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Implicações éticas da compaixão atormentados de outros.” “Ajudar Deus” é, neste sentido, não resignar-se à inevitabilidade da dor humana, é não ceder à aparente supremacia da maldade, é aceitar ser expressão da presença compassiva de Deus. Já depois de se apresentar como voluntária para entrar no campo de concentração de Westerbork com a missão de ajudar os prisioneiros, de partilhar a sua situação e de os consolar, Etty Hillesum afirma que “quando uma pessoa leva uma vida interior, talvez nem haja assim tanta diferença entre estar fora ou dentro dos muros de um campo [de concentração]”. Deste modo ela intui, provavelmente, que ao reconhecermo-nos solidários com o sofrimento da humanidade, é quase irrelevante se ele é próprio ou alheio, será sempre também “meu”. Perante a “miséria terrível” que se vive, a atitude de Etty Hillesum é claramente de responsabilidade por não deixar que o mal fosse a única realidade: “A cada novo crime ou horror deveremos contrapor um novo pedaço de amor e de bondade que teremos conquistado em nós próprios.” Isto só é possível se aceitamos que a possibilidade de inserir no mundo alguma bondade não nos é retirada pela força do mal e da dor. Encontramos aqui, em parte, um paralelismo com a atitude reparadora que os Pastorinhos de Fátima assumiram, que resulta de uma compaixão que se concretiza necessariamente em gestos de bondade, em manifestações de solidariedade, em formas de consolação, em expressões de amor. O vigoroso testemunho de Etty Hillesum estimula-nos a pensar que a compaixão vivida como “ajuda a Deus”, não só se traduz numa inquietação que exige compromisso e acção, mas pode também abrir à esperança todo o sofrimento e tragédia humana. As suas opções encontram acolhimento numa reflexão teológica cristã, que nos permite ver a compaixão, antes de mais, como uma expressão, ou imitação, do agir de Deus e proporciona-nos também uma motivação ao propor que, perante o sofrimento, possamos compreender a atitude de compaixão como forma de cooperação com Deus. +,//(680'LiULR +,//(680'LiULR  (+,//(680/HWWHUHGD:HVWHUERUNLQ'LDULR$GHOSKL0LODQR  

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Vítor Coutinho O evangelho da cruz revela-nos um Deus que quer que O ajudemos. Perante o sofrimento da humanidade, que é também o sofrimento do Crucificado, não nos compete exigir a Deus que evite a dor do homem na história, mas permanecer com Ele na compaixão pelo mundo sofredor. O Deus dos cristãos pede a presença dos crentes junto das dores da humanidade, que são também as dores de Deus. “Ajudar Deus” é expressão de um sentir e agir entendidos como mediação e concretização da compaixão divina.

4. DA COMPAIXÃO NA ÉTICA A UMA MORAL COM PAIXÃO A ligação entre moral e compaixão é verdadeiramente estimulante para novas vias de reflexão ética e sugestiva na procura de atitudes morais fundamentais. É, no fundo, isto que exprime a formulação interpelante, quase provocadora, de Joan-Carles Mèlich: não há ética por sabermos o que é o «bem», mas porque vivemos e somos testemunhas do mal; não há ética por cumprirmos o «dever», mas porque a nossa resposta foi adequada ao sofrimento; não há ética porque somos «dignos», porque temos dignidade, mas porque somos sensíveis aos indignos, aos que “não são pessoas”; a ética é a resposta compassiva que damos «aos feridos» que nos interpelam nos diferentes trajectos da nossa vida, quando descemos de «Jerusalém a Jericó». A título de exemplo vejamos algumas explicitações possíveis desta relação entre ética e compaixão. 4.1. Uma ética centrada no sujeito A aceitação da compaixão como referência moral exige uma ética centrada no sujeito, que tenha em conta, de forma mais consequente, as qualidades morais da pessoa, ou seja, as suas virtudes. O esquecimento desta dimensão leva muitas vezes a fazer avaliações éticas apenas com base no cumprimento formal de princípios externos, esquecendo a importância, por exemplo, das motivações que estão na base das opções. Uma “ética da compaixão” faz-nos considerar como decisivo na acção da pessoa não apenas o cumprimento rigoroso de princípios ou a forma correcta das acções, mas também a implicação &I-&0Ë/,&+eWLFDGHODFRPSDVLyQ+HUGHU%DUFHOoRQD



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Implicações éticas da compaixão interior do sujeito nas opções que toma, o seu empenho e implicação pessoal nos actos que realiza. Ter a compaixão como categoria de referência ética leva-nos a centrar a atenção não tanto nos aspectos formais do acto moral ou nos elementos externos das acções do indivíduo, mas nas raízes da própria acção, isto é, nas atitudes fundamentais da pessoa, nas qualidades morais do sujeito, nas suas motivações e objectivos, nos valores que lhe são prioritários e nos seus critérios de referência existencial. Actualmente é constatável uma forte tendência para privilegiar um formalismo de critérios de referência moral e um esvaziamento da moral dos seus conteúdos de bem e de verdade. Parece-nos, por isso, que faz todo o sentido e é totalmente oportuna a insistência em reforçar as perspectivas de uma ética da virtude, na qual a vida moral tenha como acento principal as qualidades de carácter e privilegie a bondade do comportamento que seja resultado de atitudes habituais. 4.2. O reconhecimento do “outro” real A elevada mediatização do nosso contacto com o mundo é, entre outras, uma expressão significativa daquilo que poderíamos considerar a “cultura da virtualidade real” que condiciona em grande parte as opções e atitudes pessoais, a nossa concepção da vida e os valores que nos orientam. Falamos de “virtualidade real” porque “a própria realidade está plenamente imersa num cenário de imagens virtuais, num mundo de representação, em que os símbolos não são apenas metáforas, mas constituem a experiência real. É virtual porque os materiais recebidos chegam por via informática, jogos de computador, televisão ou cinema. É real porque configura a cultura (ideias, valores, condutas) dos que acedem a ela.” Esta virtualização da realidade não nos aproxima mais do mundo global, nem dos outros, mas põe-nos em contacto com mais factos. E facilmente nos impede de captar a profundidade das experiências humanas, o alcance do sofrimento, as raízes do mal. -0$57Ì1(=&RQFLHQFLDPRUDO\JOREDOL]DFLyQWHQVLRQHVSDUDODpWLFDFULVWLDQDLQ 058%,2 GLU /DpWLFDFULVWLDQDKR\+RUL]RQWHVGHVHQWLGR(360DGULG  

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Vítor Coutinho As consequências destas marcas culturais reflectem-se ao nível da concepção moral. Antes de mais, porque é nesta “virtualidade real” que se vão construindo categorias morais, modelos de referência, critérios éticos de avaliação da realidade. E tudo isto com a mesma volatilidade que caracteriza esta realidade virtual. A banalização do espanto, causada pelo constante confronto com o mal, exposto de forma inconsequente, influencia determinantemente tanto a capacidade de discernimento moral como a identificação de critérios e valores morais que não estejam sujeitos à mesma efemeridade das emoções que causam em nós os sofrimentos. Não é de admirar que toda esta cultura dê lugar a uma moral do sentimento e da emoção, que faz depender as nossas opções e compromissos do efeito que têm em nós as estratégias de captação de atenção. 4.3. Implicações político-sociais da compaixão A recepção do conceito de compaixão como categoria relevante duma ética social encontra um impulso significativo nas propostas teológicas de J. B. Metz. Este teólogo adverte para a tendência de um excesso de moralização que possa despolitizar as realidades sociais e de um predomínio do sentimento que distraia das injustiças dominantes. A inclusão duma acentuação “política” no conceito de compaixão será, certamente, inspiradora de uma política da paz e um bom contributo para repensar a ética das relações internacionais. A capacidade e disponibilidade para reconhecer os interesses do outro, para ser sensível à sua dor e para compreender as suas posições, constituem uma base imprescindível para a procura duma convivência pacífica. Não é suficiente o reconhecimento da simetria de relações, uma vez que, deste modo, essa simples igualdade de acesso ao debate é claramente desvantajosa para os sujeitos que, de alguma forma, não têm a mesma capacidade de intervenção nem de poder argumentativo. Em sociedades que vivem regidas pelas leis da concorrência, do mercado, da visibilidade mediática, da capacidade de produtividade, das possibilidades de influência, ou de qualquer tipo de força dissuasora, é &I0(7=,OFULVWLDQHVLPRQHOSOXUDOLVPRGHOOHUHOLJLRQLHGHOOHFXOWXUHLQ$QQDOLGLVWXGL UHOLJLRVL   

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Implicações éticas da compaixão evidente que é necessário introduzir mecanismos de compensação para que sejam tidos em consideração todos os indivíduos que nem sequer chegam a ser parceiros de um diálogo socialmente relevante. 4.4. O testemunho de uma Igreja compassiva O Deus compassivo da fé cristã só pode ser entendido no contexto de vivências concretas de compaixão. A relação com este Deus e a experiência da sua compaixão fazem sentido e são compreensíveis apenas por quem se reconhece como objecto de um amor compassivo e aceita viver numa atitude fundamental de compaixão. A compaixão é um imperativo para a Igreja enquanto tal. Ela deve ser, ao mesmo tempo, sinal e mediação da compaixão divina, ou seja, deve ser sacramento do amor compassivo de Deus. As pessoas não procuram, na Igreja, tanto princípios e normas, mas sobretudo acolhimento e ajuda para carregar as suas dores e aceitar as suas fragilidades. A credibilidade da Igreja não estará tanto na sua capacidade de dar respostas a todas as questões da humanidade ou de apresentar princípios universalmente válidos, nem sequer na sua exemplaridade moral, que é desejável. As pessoas confiarão numa Igreja que seja capaz de acolher as suas próprias fragilidades, de ter espaço para a sua realidade pecadora e estar a seu lado nas dores que vivem. D. António Marto costuma dizer que os ministros da Igreja têm como missão principal cuidar da beleza do povo de Deus. Seguramente que esta beleza inclui a bondade, a saúde, a felicidade, a paz. Apresentando esta mesma convicção noutra perspectiva, afirmamos que uma tarefa privilegiada da Igreja é, precisamente, ser uma presença de compaixão junto das dores do seu povo, junto do sofrimento de toda a humanidade e de cada ser humano. A Igreja de Jesus Cristo terá que ser cuidadora das vulnerabilidades humanas e curadora de todas as feridas que desfiguram o rosto da humanidade.

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Vítor Coutinho

5. JACINTA MARTO: A COMPAIXÃO COMO ATITUDE Aproximemo-nos de novo da pequena Jacinta. Propusemo-nos verificar se os sentimentos que a moviam podem ser considerados uma verdadeira compaixão e se a sua reacção ao sofrimento e ao mal pode ser vista como uma atitude moral elevada. Uma leitura atenta da sua biografia e uma análise da sua personalidade revelam-nos elementos significativos para esta resposta. Antes de mais, encontramos uma sensibilidade nesta criança, que não é simplesmente uma reacção superficial e sensorial às imagens fortes com que é confrontada. É verdadeiramente uma disposição para se deixar tocar por dentro, para se impressionar no fundo de si mesma. Sofre porque outros sofrem e isso inquieta-a, quer saber mais, interroga a prima sobre os contornos desse “inferno” que descobriu. Nas suas interrogações não encontramos manifestação de qualquer curiosidade mórbida, mas apenas o desejo de captar e compreender o alcance desse mal e a realidade do sofrimento que isso representa. O mal e o sofrimento têm para ela um significado, porque dá lugar a um processo de “representação”, isto é, o processo de apreender a dimensão humana dos acontecimentos e captar a profundidade do seu alcance. Um indicador da profundidade com que é tocada pela dor dos outros é a ligação directa que faz entre as referências ao sofrimento e a expressão imediata da vontade de fazer algo que esteja ao seu alcance. Faz sua a tarefa de carregar com as consequências e com o peso da existência destas dores do mundo e de Deus. Partilha a responsabilidade pela existência de um mal que não deveria ter lugar. É de uma verdadeira compaixão que aqui falamos. A existência universal do mal não é motivo para se resignar, mas para escolher aquela forma de solidariedade que lhe é possível. Por outro lado, encontramos na vida desta criança muitos pequenos gestos de solidariedade com quem está mais vulnerável, os mais pobres com quem partilha os poucos bens que tem. Os diversos episódios biográficos desta criança mostram-nos que os pequenos gestos e opções da Jacinta não são resultado de meras emoções pontuais ou apenas reacção a sensações que a tenham impressionado. Pelo contrário, o conjunto da sua vida e das suas palavras 232

Implicações éticas da compaixão mostra-nos que correspondem a uma atitude de fundo enraizada na sua própria pessoa, não é uma simples tendência do seu carácter, mas resultado de opções tomadas depois dos encontros e manifestações que as aparições lhe proporcionam. É num amor, simples e forte, que tem raízes a sua compaixão. As suas palavras mostram que quando falamos do amor da Jacinta não estamos a falar de um sentimento superficial ou de uma atitude intimista. Falamos de algo que a atravessa no íntimo do seu ser e que deseja ver alargado a todos: “Se eu pudesse meter no coração de toda a gente o lume que tenho cá dentro no peito a queimar-me e a fazer-me gostar tanto do Coração de Jesus e do Coração de Maria.” Pela mão da Pastorinha de Fátima somos conduzidos à experiência de um amor que nos enche, nos envolve e nos transforma, porque é a experiência de um encontro com Deus. Através da sua vida e espiritualidade podemos ler a Mensagem de Fátima como manifestação da misericordiosa compaixão de Deus para com os homens e mulheres do nosso tempo. O coração compassivo de Jacinta Marto é antecipação daquilo em que se viria a tornar, para muita gente, a experiência ligada às revelações da Cova da Iria: entre muitos outros aspectos, Fátima revelou-se também como abrigo de todos aqueles que necessitam da compaixão de Deus, seja pela sua vulnerabilidade física ou fragilidade moral, pelo seu sofrimento ou pela ausência de sentido. Como disse aqui em Fátima o Papa Bento XVI, “Maria, aparecendo aos três Pastorinhos, abriu no mundo um espaço privilegiado para encontrar a misericórdia divina que cura e salva.” Esperamos que a intercessão da Beata Jacinta nos ajude a experimentar a força curativa do amor compassivo de Deus e a ser manifestação de uma compaixão com espaço para todas as formas de sofrimento humano.

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Jacinta Marto: Do Encontro à Compaixão Teresa Messias Docente convidada da University of Saint Joseph de Macau, em colaboração com a Universidade Católica Portuguesa. Doutorada em Teologia Espiritual pela Universidade Pontifícia de Comillas de Madrid. Frequentou a Escola de Exercícios Espirituais dos Jesuítas. Nasceu em 1966.

Virgílio Antunes Reitor do Santuário de Fátima. Docente do Instituto Superior de Estudos Teológicos de Coimbra. Mestrado em Ciências Bíblicas pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma. Nasceu em 1961 e é presbítero da Diocese de Leiria-Fátima.

Vítor Coutinho Professor Auxiliar da Faculdade de Teologia da Universidade Católica Portuguesa. Professor convidado do Instituto de Bioética, da UCP, do Instituto Superior de Estudos Teológicos, em Coimbra, e do Instituto Politécnico de Leiria. Doutorado em Ética Teológica pela Universidade de Münster, Alemanha. Nasceu em 1966 e é presbítero da Diocese de Leiria-Fátima.

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Coordenação

Vítor Coutinho

Jacinta Marto do encontro à compaixão

Santuário de Fátima 2010

TÍTULO Jacinta Marto: Do Encontro à Compaixão COORDENAÇÃO Vítor Coutinho TRADUTORES Texto de Eloy Bueno (Espanhol) - por Manuel Luís Pinheiro Textos de Paolo Molinari e Peter Gumpel (Italiano) - por Artur Morão Texto de Jan Mikrut (Italiano) - por Fernando Ventura

CAPA E PAGINAÇÃO Rui Mendes

IMPRESSÃO

ISBN: 978-972-8213-74-9 Depósito legal: Tiragem: 1000 exemplares Editor: Santuário de Fátima, Agosto de 2010

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