IMPORTÂNCIA DO REGULAMENTO DA LEI DE TERRAS DO IMPÉRIO (DECRETO N.º 1.318, DE 1854) PARA COMPREENSÃO DAS ORIGENS DO DOMÍNIO PRIVADO ABSOLUTO SOBRE A TERRA EM GOIÁS

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IMPORTÂNCIA DO REGULAMENTO DA LEI DE TERRAS DO IMPÉRIO (DECRETO N.º 1.318, DE 1854) PARA COMPREENSÃO DAS ORIGENS DO DOMÍNIO PRIVADO ABSOLUTO SOBRE A TERRA EM GOIÁS

IMPORTANCE OF THE REGULATION OF THE LAND LAW OF THE EMPIRE (DECREE No. 1,318, OF 1854) FOR UNDERSTANDING THE ORIGINS OF THE ABSOLUTE PRIVATE DOMAIN OVER THE LAND IN GOIÁS

Cláudio Grande Júnior∗ RESUMO Trata-se de pesquisa que examina as causas das atuais dificuldades que emergem na maioria das vezes que se tenta empreender uma análise jurídica rigorosa a respeito da validade da origem das propriedades particulares sobre terras localizadas em território goiano. Demonstra que, em grande medida, essas dificuldades decorrem de algumas soluções imediatistas adotadas pelo Decreto n.º 1.318, de 1854, que veiculou o Regulamento da Lei de Terras do Império, somadas a outras condicionantes históricas e jurídicas. Atualmente,



essas dificuldades são de complexa superação, quando não Mestre em Direito Agrário pela Universidade Federal de Goiás. Especialista em Direito Constitucional pela Universidade Federal de Goiás. Especialista em Direito Administrativo Contemporâneo pelo Instituto de Direito Administrativo de Goiás. Procurador do Estado de Goiás. E-mail: [email protected].

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insuperáveis, o que tem levado o Estado de Goiás a presumir a validade da origem do domínio particular em várias situações, principalmente invocando o art. 150 da Constituição Estadual de 1947. PALAVRAS-CHAVES: Direito Agrário. História do Direito. Regulamento da Lei de Terras do Império. Propriedade Privada Imobiliária. Terras Devolutas. ABSTRACT It is a research that analyzes the causes of the current difficulties that emerge, most of the time, when attempting to undertake a rigorous legal analysis regarding the validity of the source of private properties on lands located in goiano territory. It demonstrates that, to a large extent, these difficulties stem from some shortsighted solutions adopted by Decree no. 1,318, of 1854, which conveyed the Regulation of the Land Law of the Empire, summed up the other historical and legal constraints. Currently, these difficulties are complex overrun, when not insurmountable, which has led the State of Goiás to assume the validity of the source of the private domain in several situations, mainly by invoking the art. 150 of the State Constitution of 1947. KEY-WORDS: Agrarian Law. History of Law. Regulation of the Land Law of the Empire. Private Real Estate. Untitled Public Lands. INTRODUÇÃO

Revista de Direito PGE-GO, v.28, 2013.

A análise dos registros imobiliários de propriedades privadas sobre terras localizadas no Estado de Goiás provoca inevitavelmente a seguinte indagação: por que a maioria das cadeias registrais imobiliárias só começa no século XX e sem mencionar a causa de origem do domínio particular? Para que tenha origem jurídica válida, a propriedade particular da terra precisa ter se constituído conforme autorizado pela Lei de Terras de Império, seu Regulamento, e pelas leis federais e estaduais subsequentes sobre o assunto. Mas, nos dias atuais, ainda é sempre possível uma análise rigorosa disso? O presente artigo busca respostas a essas indagações. A hipótese é a de que certas soluções capengas adotadas pelo Decreto n.º 1.318, de 1854, que baixou o Regulamento da Lei de Terras do Império (Lei n.º 601, de 1850), somadas a outras condicionantes históricas e jurídicas, dificultam sobremaneira, quando não impossibilitam, o levantamento até a origem da cadeia dominial completa de várias propriedades rurais localizadas no Estado de Goiás. A pesquisa realizada foi em grande parte bibliográfica. Mas também foram examinados documentos, principalmente as informações prestadas pelo Serviço de Agrimensura da Procuradoria-Geral do Estado de Goiás. Portanto, a pesquisa foi desenvolvida em caráter não experimental do tipo bibliográfica, bem como documental e de estudo de casos. O método de abordagem inicialmente utilizado foi o hipotético-dedutivo. Contudo, o método indutivo despontou na análise do material documental colhido e dos resultados dos estudos de caso. O trabalho tem por referencial teórico norteador a proposta de Niklas Luhmann de compreensão do direito como subsistema social autopoiético. Vários raciocínios partiram também da tese de Laura Beck Varela (2005) sobre a transição, no Brasil, da propriedade fundamentada pelo cultivo para a propriedade abstrata da terra. 1

DAS

SESMARIAS

AO

RECONHECIMENTO

ABSOLUTO SOBRE A TERRA NO BRASIL

DO

DOMÍNIO

PRIVADO

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Quando chegaram à América, os europeus viviam os primórdios do mercantilismo, sob as rédeas dos Estados absolutistas recém-formados. Em Portugal, um capitalismo precoce afirmou-se em torno da Casa Real, anexo ao Poder Público. Esse capitalismo, monárquico e comercial, se expandiu a partir das navegações e o tesouro real foi alimentado pelos lucros das aventuras mercantis. Acentua o historiador Manuel Nunes Dias (1963, p. 359) que só a Coroa, e mais ninguém, dirigia o empreendimento, que era seu monopólio inalienável, incluindo as novas terras descobertas, que, como se fossem conquistadas, pertenciam, de direito e de fato, à monarquia. Desse modo, durante a conquista e colonização portuguesa, não se cogitava em propriedade privada da terra. À medida que avançava pela América, o Estado Português, confundindo-se com sua Coroa, adquiria o domínio de todas as terras que suas armas protegiam. Não era juridicamente possível a aquisição do domínio particular por ocupação ou usucapião sobre as novas terras conquistadas pela Coroa Portuguesa no ultramar, porque as Ordenações Manuelinas, de 1521, proibiam a apropriação de matas nunca antes lavradas (Liv. IV, tít. 67, §§ 8º e 14) (GRANDE JÚNIOR: 2012, p. 281). Todavia, a Coroa era incapaz de explorar diretamente todas as terras descobertas, por isso concedia o direito de exploração das mesmas através do instituto jurídico das sesmarias. Em geral, é muito citada a aplicação deturpada das sesmarias em terras brasileiras. Contudo, a verdade é que as Ordenações Manuelinas proibiam quaisquer pessoas de se apropriarem, para si ou para as ordens e entidades religiosas, dos matos maninhos ou das matas e bravios que nunca foram lavrados e aproveitados, mandando deixá-los aos sesmeiros, para que estes verificassem se podiam ser dados em sesmarias (Liv. IV, tít. 67, §§ 8º e 14). As Ordenações Filipinas, de 1603, só repetiram tal disciplina jurídica. Por isso, Ruy Cirne Lima vislumbrou inevitável o transplante do instituto das sesmarias para as terras brasileiras, “suposto que meio legal diverso não havia para povoamento da imensa gleba, ainda inviolada” ( 1954, p. 32). Por outro lado, é importante lembrar que os europeus ainda não tinham formado uma mentalidade que admitisse a propriedade privada incondicional e abstrata sobre a terra.

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Em Portugal, ao final da Idade Média, o domínio do indivíduo sobre a terra só era respeitado se amparado pelo efetivo aproveitamento da mesma. Laura Beck Varela (2005, p. 19-21) noticia que o cultivo, como fundamento jurídico para apropriação da terra, foi explicitamente consagrado pela Lei de Sesmarias de 1375. Ademais, essa lei formalizou a permanente obrigatoriedade do cultivo para que o indivíduo continuasse a auferir proteção ao seu direito sobre a terra. Portanto, o instituto jurídico da sesmaria estava longe de ter o significado de propriedade imobiliária abstrata, como a concebemos hodiernamente, cujo conteúdo só foi forjado muito depois, no século XVIII, e definitivamente agregado aos ordenamentos jurídicos ocidentais apenas no século XIX. Vale registrar que, orginalmente, sesmeiros não eram os beneficiários contemplados com os imóveis, mas os servidores da Coroa encarregados da repartição e distribuição das terras. Contudo, no Brasil, não havia sesmeiros que fiscalizassem a aplicação do instituto, tanto devido ao pequeno número de funcionários da Coroa disponíveis, como em função de o território da colônia ser dezenas de vezes maior do que o da metrópole. Em face da ausência de fiscalização, Cirne Lima cita Frei Vicente do Salvador: “Os donatários são sismeiros das suas terras” (LIMA: 1954, p. 35). Essa frase explica a modificação que o significado da palavra sesmeiro teve no Brasil, deixando de designar os servidores da Coroa encarregados da repartição e distribuição de terras, para identificar os próprios beneficiários contemplados com os imóveis (GRANDE JÚNIOR: 2012, p. 299). De qualquer modo, por exigência do ordenamento jurídico, as cartas de sesmarias previam que as terras seriam retomadas e dadas a outras pessoas, se não devidamente aproveitadas pelos beneficiários. Entretanto, conforme já explicado, sempre foi muito precária a fiscalização do cultivo no Brasil, até ser completamente negligenciada no século XIX. Em razão disso, surgiu grande polêmica sobre a natureza das sesmarias no Brasil, se enfitêutica (JUNQUEIRA: 1976, p. 30) (MARQUES: 2009, p. 23), mera concessão administrativa (LIMA: 1954, p. 36 e 39) ou dominial privada nos moldes do direito romano, desde que cumpridas todas as exigências legais (PORTO: 1979, p. 114). Por evitar anacronismos, a

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melhor tese parece ser a de Laura Beck Varela (2005, p. 69 e 75): “forma de propriedade essencialmente condicionada” ao cultivo, uma dentre as múltiplas formas dominais da sociedade portuguesa da época, mas que se tornou regra geral no Brasil. “ [...] uma propriedade não-absoluta, cuja condição sine qua non, razão de ser, reside no dever de cultivar”. Convém lembrar que o Regimento de Tomé de Souza permitia a alienação da concessão após três anos. José da Costa Porto (1979, p. 50 e 51) informa que é possível verificar a comercialização de sesmarias já no século XVIII. Porém, qualquer que seja a natureza jurídica defendida para as sesmarias daquela época, não se pode perder de vista que a concessão não se tinha por perfeita e acabada antes da confirmação régia. E, desde 1753, a confirmação dependia de medição e demarcação judicial das terras. Na prática, o cumprimento das exigências era difícil. Havia carência de topógrafos e nem sempre a identificação da área era possível por divisórios naturais. Por isso, muitas sesmarias concedidas nunca foram confirmadas, nem mesmo demarcadas e medidas, permanecendo no decorrer dos anos como meros direitos decaídos à utilização da terra. Mas, mesmos as sesmarias validamente demarcadas, medidas e confirmadas não podiam ser consideradas propriedades imobiliárias na acepção da abstrata propriedade moderna, de molde napoleônico-pandectístico, porque tinham por fundamento o cultivo e a efetiva continuidade dele. É certo que a fiscalização do cultivo no Brasil, na prática, foi quase inexistente. Porém, ela estava expressa e inequivocamente prevista no ordenamento jurídico. Vários diplomas legais, que constituíam o chamado estatuto jurídico das sesmarias no Brasil, previam a obrigatoriedade de cultivo a ser fiscalizado pelas autoridades “e, em caso de descumprimento, as terras deveriam reverter ao Estado e ser dadas a quem as cultivasse” (VARELA: 2005, p. 91), porque “seriam tidas como devolutas as terras que não fossem aproveitadas” (VARELA: 2005, p. 92). Aos agraciados, as sesmarias eram concedidas para sempre como coisa sua própria, desde que as fizessem e as mantivessem produtivas. A instituição formal da propriedade privada absoluta sobre a terra, independente desse dever de cultivo, só seria consagrada muito depois, com a Lei de Terras do Império, de 1850, e seu Regulamento, de

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1854. Isso porque, comenta Carlos Frederico Marés (2003, p. 17-28), a ideia de apropriação de uma gleba de terras, independentemente de cultivo da mesma, é construção humana bem recente. Só a partir de John Locke e com o desenvolvimento do capitalismo, transformou-se em um direito subjetivo não mais condicionado ao cultivo da terra, dando origem à chamada propriedade absoluta, que forjaria a mentalidade dos juristas luso-brasileiros do início do século XIX. Antes, porém, outro fenômeno influenciaria decisivamente a elaboração e o conteúdo desses dois diplomas normativos: o desmedido apossamento não autorizado de terras da Coroa por particulares, que em muito superou as sesmarias como modo prático de acesso à terra. Isso acontecia porque só recebiam sesmarias pessoas com recursos financeiros e algum trânsito político que lhes permitissem influenciar, direta ou indiretamente, as aspirações econômicas e militares da Coroa. A primeira de produzir para o mercado internacional e a segunda de assegurar o domínio da Coroa sobre as novas terras frente às potências europeias. Em razão disso, foram esquecidos os indivíduos, que, sem relações com o Poder, apenas sobrevivam ou conseguiam se enriquecer lavrando o solo, respectivamente em menor ou maior extensão. Mas sempre é bom lembrar que tais posses, além de irregulares, eram ilegais, uma vez que as Ordenações Manuelinas e as Ordenações Filipinas não permitiam a apropriação e nem mesmo o apossamento espontâneo de terras da Coroa por particulares. Todavia, em meados do século XVIII, o sistema sesmarial se curvou ante a realidade da multiplicidade de posses e, nos embates judiciais, as sesmarias sucumbiam perante as posses com cultura efetiva. Já não mais se fazia despejar moradores de qualquer terreno por causa de sesmarias posteriormente concedidas e, sendo estas anteriores, deveriam os posseiros ser judicialmente convencidos, facultando-lhes embargar as medições e demarcações (GRANDE JÚNIOR: 2012, p. 317). Esse quadro contribuiu para o Príncipe Regente Dom Pedro suspender a concessão de novas sesmarial aos 17 de julho de 1822. Poucos meses depois, foi declarada a independência do Brasil. As terras da Coroa Portuguesa transferiram-se ao domínio do Império do Brasil. A Constituição Imperial, de

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1824, deu início às mudanças, mas estas ocorreram muito lentamente, porque, embora tivesse previsto o direito fundamental à propriedade, nada dispôs sobre sua regulamentação em se tratando de imóveis, nem sobre o necessário processo de privatização das terras do Império. Também houve inércia do Poder Legislativo na normatização desses pontos, porque os parlamentares não alcançavam um consenso mínimo sobre os modos de aquisição da propriedade imobiliária. A legislação portuguesa recepcionada continuou em vigor por muito tempo, com o regime sesmarial suspenso e sem regulamentação substitutiva. Se, antes, os colonos já se apossavam sem constrangimento das terras da Coroa, o vácuo normativo conduziu à inevitabilidade de tal prática, no período que se estendeu de 1822 a 1850 e ficou conhecido como “extralegal” ou “das posses”. Surgiu a crença popular num hipotético costume que permitiria a aquisição de direitos sobre as terras mediante posse e cultivo das mesmas. Houve juristas que tentaram dar-lhe amparo jurídico, como, por exemplo, através da lição de Viterbo, de 1798, sobre o “direito de fogo-morto” e a de Lobão, de 1813, sobre os maninhos que os moradores lavraram e cultivaram “por connivencia dos povos, e ficando estas porções suas e allodiaes” (LIMA: 1954, p. 51). Mas o ordenamento jurídico vigente nada dispunha que pudesse corroborar a apropriação espontânea dessas terras pelos particulares. Não havia possibilidade jurídica de usucapião ou prescrição aquisitiva, em razão das Ordenações Filipinas continuarem em vigor, inclusive as disposições sobre sesmarias, estando apenas suspensa a concessão de “sesmarias futuras” (JUNQUEIRA: 1976, p. 69 e 71.). Assim, com relação ao reconhecimento de direito real sobre a terra, só estava garantida a situação de quem se amparava em sesmarias e outras concessões não caídas em comisso. Os demais tinham, no máximo, posse. Finalmente, conciliando todos esses interesses e evitando o confronto com a realidade consolidada, a Lei de Terras de 1850 possibilitou o reconhecimento jurídico do domínio privado absoluto sobre boa parte das terras que, naquele momento, se encontravam possuídas e cultivadas por particulares. Todavia, a forma atrapalhada como o Regulamento de 1854 disciplinou isso, somada à falta de um sistema registral imobiliário e à inércia do Poder Público em identificar e delimitar as terras que, naquela ocasião, não eram possuídas por

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particulares, legou para as gerações futuras o problema, cada vez mais difícil de solucionar, da identificação e delimitação das terras devolutas. 2 HIPÓTESES DE RECONHECIMENTO DO DOMÍNIO PRIVADO ABSOLUTO PELA LEI DE TERRAS DO IMPÉRIO (LEI N.º 601, DE 1850) E SEU REGULAMENTO (DECRETO N.º 1.318, DE 1854) O reconhecimento de certas liberdades individuais na Inglaterra, que possibilitaram o desabrochar da Revolução Industrial, a independência dos Estados Unidos da América, a Revolução Francesa e a elaboração das Constituições nacionais, a partir de então, forneceram os alicerces para a consolidação da propriedade moderna. “O Estado moderno foi teoricamente construído para garantir a igualdade, a liberdade e a propriedade.” (MARÉS: 2003, p. 18). Envolvidos por essa nova conjuntura, os juristas luso-brasileiros do final século XVIII e início do século XIX assimilaram a “mentalidade proprietária moderna”, como engrenagem de um contexto maior de livre mercado, e afastaram decididamente o cultivo do “conteúdo proprietário”. Desse modo, encaravam as sesmarias com perplexidade, como uma instituição arcaica atentatória aos direitos individuais (VARELA: 2005, p. 215-216). “O instituto jurídico das sesmarias encontrou o seu fim, não por uma deliberação isolada do governante da época, mas por sua absoluta incompatibilidade com o novo sistema jurídico estruturado no final do século XVIII e começo do XIX.” (MARÉS: 2003, p. 63). O art. 179, XXII, da Constituição Imperial de 1824, lei fundamental desse novo sistema jurídico, garantiu o direito de propriedade “em toda a sua plenitude”. Entretanto, conforme já explicado na seção anterior, não havia previsão legal de como ocorreria a efetiva transferência de domínio absoluto das terras do Império para os particulares. Enquanto isso não acontecia, as pessoas não podiam adquirir o direito abstrato de propriedade, como concebido hoje, sobre as terras localizadas em território brasileiro, muito menos comercializálos regularmente, o que dificultava também o oferecimento de direitos reais de garantia sobre

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imóveis. Mesmo os titulares de sesmarias confirmadas não tinham exatamente um domínio absoluto da terra, porque condicionado à continuidade do cultivo. A normatização do atual regime dominial imobiliário teve início com a promulgação da Lei de Terras do Império (Lei n.º 601, de 1850). Laura Beck Varela sintetiza o feixe de situações que a lei teve que enfrentar e disciplinar, nesse período de transição das situações de posse e de domínio condicionado para a de domínio absoluto ( 2005, p. 117): O quadro fundiário brasileiro caracteriza-se, assim, por um complexo de situações, que só mais tarde seriam reguladas pela Lei nº 601, de 1850. Havia sesmarias concedidas e integralmente regularizadas — demarcadas, confirmadas e aproveitadas (cultura ou criação), sobre as quais o concessionário tinha domínio sobre a gleba. Havia também as sesmarias em que os concessionários tinham só a posse, e não o domínio, pela ausência de algumas exigências legais. Também as glebas ocupadas por simples posses, sem título, eram situações de fato; ocupações com ou sem exploração. E, por fim, as terras sem ocupação (terras devolutas do império) — “não concedidas ou já revertidas ao poder público, por não atendimento das exigências legais, se anteriormente objeto de concessão de semarias”.

A Lei de Terras normatizou a constituição do domínio absoluto a partir de cada uma dessas situações. Contudo, seus preceitos não tiveram imediata aplicação, porque não foram logo regulamentados, dadas as dificuldades do Governo em tentar contemplar interesses de difícil conciliação (SILVA: 1996, p. 167). A execução da Lei só se tornou possível a partir de 1854, quando foi editado o Decreto n.º 1.318, que baixou o Regulamento da Lei de Terras. O cerne do reconhecimento jurídico do domínio privado absoluto sobre a terra gira em torno dos arts. 3º ao 8º da Lei de Terras e arts. 22 ao 27 do Regulamento. A análise conjunta desses dispositivos dá a entender que as soluções práticas adotadas pelo segundo visaram reconhecer o domínio privado absoluto da forma menos onerosa possível aos fazendeiros, descurando-se da segurança jurídica mínima exigível para a constituição da propriedade imobiliária em um título oponível contra todos, inclusive o Estado, o que possibilitou a perpetração de fraudes e o fenômeno da grilagem de terras. A Lei Imperial de Terras alçou, da natureza de domínio condicionado ao cultivo à de domínio privado alodial absoluto, as sesmarias que, naquele momento, não se encontravam

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incursas em comisso por falta do cumprimento das condições de medição, confirmação e cultura. Fez o mesmo com outras concessões governamentais já confirmadas e que não se encontravam em comisso por falta de medição ou cultura (art. 3º, § 2º, segunda parte). A Lei foi omissa sobre a emissão de títulos de propriedade em substituição à extensa e dispersa documentação comprovadora da concessão, medição, demarcação, confirmação e inocorrência da sanção do comisso por falta de continuidade do cultivo. Aproveitando-se da brecha, o Regulamento simplesmente previu, no seu art. 23, a desnecessidade de expedição de novos títulos. Por causa disso, a verificação da origem válida dos domínios particulares constituídos sobre sesmarias foi se tornando cada vez mais difícil, com o passar dos anos. No Estado de Goiás, não é fácil conferir se um título atual de propriedade sucede de uma sesmaria devidamente demarcada, medida, confirmada e em cultivo na década de 1850. Nos arquivos do Estado há apenas as cartas de concessão das sesmarias. Entretanto, esse foi o menor dos problemas criados pelo Regulamento, porque os casos de sesmarias e outras concessões confirmadas eram os que menos se verificavam na prática. A maioria era de sesmarias não confirmadas e de terras de algum outro modo possuídas por particulares. O principal problema foi o excessivo alargamento conferido pelo Regulamento à noção de título legítimo de domínio previsto na Lei de Terras. Se a segunda e mais extensa parte do texto do § 2º do art. 3º da Lei de Terras cuidava das terras que se encontravam no domínio particular por sesmarias ou outras concessões não incursas em comisso, a primeira e sucinta parte do dispositivo tratava das terras que estavam no domínio particular por qualquer título naquela ocasião considerado legítimo. Art. 3º São terras devolutas: [...] § 2º As que não se acharem no dominio particular por qualquer titulo legitimo, nem forem havidas por sesmarias e outras concessões do Governo Geral ou Provincial,

Cláudio GRANDE JUNIOR, Importância do regulamento da Lei de Terras... não incursas em commisso por falta do cumprimento das condições de medição, confirmação e cultura. [sublinhou-se]

A partir daí, de modo que atualmente seria considerado inusitado, o Regulamento reconheceu o domínio a todo possuidor de terras que tivesse adquirido sua posse por algum titulo que, pela legislação da época, também fosse hábil à aquisição do domínio, ainda que essas terras tivessem sido originariamente adquiridas por meras posses de seus antecessores ou por concessões de sesmarias não medidas, ou não confirmadas, nem cultivadas. Essa transformação de vários títulos de aquisição de posse em títulos de aquisição de domínio é o ponto de mais difícil compreensão da legislação da época, dado o sutil jogo de palavras estabelecido entre a Lei de Terras e seu Regulamento, a partir do seguinte dispositivo do último: Art. 22. Todo o possuidor de terras, que tiver titulo legitimo da acquisição do seu dominio, quer as terras, que fizerem parte delle, tenhão sido originariamente adquiridas por posses de seus antecessores, quer por concessões de sesmarias não medidas, ou não confirmadas, nem cultivadas, se acha garantido em seu dominio, qualquer que for a sua extensão, por virtude do disposto no § 2º do Art. 3º da Lei nº 601 de 18 de Setembro de 1850, que exclue do dominio publico, e considera como não devolutas, todas as terras, que se acharem no dominio particular por qualquer titulo legitimo.

Combinado com este outro: “Art. 25. São titulos legitimos todos aquelles, que segundo o direito são aptos para transferir o dominio.”. Desse modo, o Regulamento reconheceu o domínio pleno a todo possuidor de terras que tivesse adquirido sua posse por algum titulo que, pela legislação da época, também fosse hábil à aquisição do domínio. O domínio era reconhecido por tal fórmula tanto em terras concedidas por sesmarias não medidas, ou não confirmadas, nem cultivadas, como até mesmo em terras que tinham sido originariamente adquiridas por simples posses dos antecessores. Para tanto, bastava que o segundo “ocupante”1 tivesse adquirido a posse do anterior por título que também fosse apto à transferência do domínio (GRANDE JÚNIOR: 2012, p. 362). 1

As expressões “ocupante” e “ocupação” serão empregadas, deste ponto em diante do trabalho, sem o sentido técnicojurídico relacionado ao instituto da ocupação, previsto nos arts. 592 e 593 do Código Civil de 1916 e no art. 1.263 do Código Civil de 2002.

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O entendimento de Messias Junqueira (1976, p. 84) é o mesmo: E como o propósito principal da lei 601 foi conduzir à titulação quem não tinha título, considerou perfeito o domínio de quem já possuísse um título. Por exemplo, quem adquirisse uma sesmaria, comprando-a ao primeiro sesmeiro, tinha domínio, não se lhe exigindo promover revalidação alguma do seu título. Quem houvesse comprado uma posse, pagando sisa em tempo anterior à vigência da lei, tinha o seu título em ordem, não necessitando legitimar sua posse.

Igualmente, Laura Beck Varela (2005, p. 158) comenta que o Regulamento da Lei de Terras “afirma, em seu art. 22, proteção aos possuidores e sesmeiros, os quais seriam garantidos ‘em seu dominio’, quando ‘detentores de qualquer titulo legitimo’.”. Ainda sobre o “título legítimo”, na época vigiam as Ordenações Filipinas, que não previam registro em cartório imobiliário para a transferência do domínio da terra. A aquisição do domínio de imóveis era muito parecida com a de móveis, a transferência do domínio se dava por juridicamente perfeita e acabada com a tradição do imóvel, acompanhada ou precedida de título hábil (Ordenações Filipinas, Liv. IV, títulos iniciais, principalmente o título 5º, e, posteriormente, Consolidação Teixeira de Freitas, art. 908). Reputavam-se títulos hábeis os contratos, as disposições de última vontade e as decisões judiciais, como, por exemplo, as de adjudicação e as sentenças de inventário, bastando que o adquirente tomasse as providências para obter a posse do bem, sem necessidade, como hoje, de se promover o registro imobiliário desses títulos. Também o escrito particular, quando o valor do contrato permitisse que fosse celebrado com tal simplicidade, desde que recolhido tempestivamente o respectivo tributo. O Regulamento não deixa dúvida sobre isso: Art. 26. Os escriptos particulares de compra e venda, ou doação, nos casos em que por direito são aptos para transferir o dominio de bens de raiz, se considerão legitimos, se o pagamento do respectivo imposto tiver sido verificado antes da publicação deste Regulamento: no caso porêm de que o pagamento se tenha realisado depois dessa data, não dispensarão a legitimação, se as terras transferidas houverem sido adquiridas por posse, e o que as transferir tiver sido o seu primeiro occupante.

Em razão de tudo isso, Cirne Lima defende que estava liberada a apropriação das terras pelos particulares até 1850 e que a Lei de Terras veio exatamente reconhecer “a

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aquisição da propriedade pela ‘posse com cultura efetiva’” (1954, p. 53-54). Também considera a Lei Imperial de Terras uma errata aposta à legislação de sesmarias e, “ao mesmo tempo, uma ratificação formal do regime das posses” (1954, p. 60 e 61): Da mesma sorte, porém, resguarda a lei a situação dos adquirentes, a título legítimo, das terras simplesmente possuídas, já tratando-se de posses pròpriamente ditas, já tratando-se de sesmarias caducas. Aos títulos legítimos de aquisição de terras nessas circunstâncias, reconhece a lei efeito translativo de domínio, sem cogitar da extensão das terras adquiridas e sem indagar se a posse dos alienantes diretos se teria estabelecido, nas condições da lei ou do costume. [LIMA, 1954, p. 63]

Mas, muito pior do que reconhecer o domínio particular sobre terras até então meramente possuídas, foi o Regulamento não ter exigido a expedição de novos títulos em substituição aos antigos. De forma afobada, o decreto regulamentar equiparou os possuidores com título legítimo aos titulares de sesmarias e outras concessões governamentais não incursas em comisso: Art. 23. Estes possuidores [os mencionados no art. 22], bem como os que tiverem terras havidas por sesmarias, e outras concessões do Governo Geral, ou Provincial não incursas em commisso por falta de cumprimento das condições de medição, confirmação, e cultura, não tem precisão de revalidação, nem de legitimação, nem de novos titulos para poderem gozar, hypothecar, ou alienar os terrenos, que se achão no seu dominio.

O art. 59 do Regulamento não obrigou, apenas facultou aos “proprietários pretenderem obter titulo de sua possessão, passado pela Repartição Geral das Terras Publicas”. A não exigência de outorga de novos títulos de domínio em substituição aos antigos criou, para as gerações subsequentes, a dificuldade de comprovação da origem válida do domínio privado. Hoje, há uma enorme dificuldade em encontrar os títulos legítimos de aquisição do “domínio” admitidos pelo Regulamento, principalmente quando se tratam de documentos particulares.

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Ao mesmo tempo em que dilatou as hipóteses de título legítimo de aquisição de domínio, o Regulamento estreitou as dos §§ 3º e 4º do art. 3º da Lei, que tratavam da legitimação de posses e da revalidação de sesmarias e outras concessões incursas em comisso. Desse modo, restringiu a necessidade de legitimação ou de revalidação para as situações previstas nos arts. 24 e 27 do Regulamento, ou seja, aos primeiros “ocupantes” e aos segundos “ocupantes” que não tinham adquirido suas posses por “título legítimo”. Isso diminuiu a quantidade de casos que o Estado precisava interceder formalizando um título de domínio, seja de legitimação, seja de revalidação, o que contribuiu para a formação do quadro de inexistência de títulos expedidos pelo Estado e de existência de outros títulos com paradeiro atualmente desconhecido, o que dificulta a análise da validade da origem do domínio privado. 3 POSSÍVEIS EFEITOS, EM GOIÁS, DO REGULAMENTO DA LEI DE TERRAS DO IMPÉRIO: ANÁLISE LIMITADA DA ORIGEM DO DOMÍNIO PRIVADO A PARTIR DOS REGISTROS PAROQUIAIS A legislação de terras do Império foi quase letra morta no que diz respeito à identificação e demarcação de terras devolutas, bem como quanto à legitimação de posses sem título legítimo e revalidação de sesmarias e outras concessões em comisso (SILVA: 1996, p. 187-225). Em Goiás, não foi diferente. Maria Amélia Garcia de Alencar (1993, p. 31-36) observa que a atuação das repartições públicas de terras, em Goiás, foi bastante contida e os dispositivos legais sobre identificação de terras públicas e devolutas surtiram efeito muito pequeno durante todo o período imperial. Conquanto, desde 1855, o Governo Central tenha requisitado medidas e informações para o cumprimento da legislação, o Presidente da Província, em 1873, reconheceu: “quase nada se tem praticado a respeito das terras públicas”, embora fosse do conhecimento das autoridades a existência de muitas terras devolutas, conforme relatórios elaborados quinze anos antes. Não tendo havido demarcação, não chegou a ocorrer a venda de terras devolutas, pelo menos não em hasta pública. “A primeira venda,

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por solicitação do interessado, foi realizada apenas em 1873. Dois anos mais tarde, outra operação do mesmo tipo foi realizada” e mais nenhum outro documento referente à alienação de terras devolutas, na Província de Goiás, foi encontrado. Igualmente falhos foram os trabalhos de revalidação de sesmarias e legitimação de posses. A autora descobriu menções a apenas setenta e três posses legitimadas entre 1860 e 1861. Não encontrou informações relativas aos outros anos, muito menos notícia de sesmaria revalidada. Pior que é muito difícil a verificação desses poucos casos de legitimação de posses e de vendas de terras devolutas ocorridas durante o Império. Atualmente, nem mesmo os órgãos públicos da pessoa jurídica Estado de Goiás tem controle dessas informações, conforme apurado no processo administrativo n.º 201200003011786. Pelo menos não nos órgãos que atualmente lidam com o problema: Procuradoria-Geral do Estado e Secretaria de Agricultura, Pecuária e Irrigação de Goiás (SEAGRO). Em regra, também não é possível a verificação dessas informações mediante consulta aos assentos dos Cartórios de Registro de Imóveis. Os registros imobiliários não retroagem até aquela época, porque, naquele tempo, não existia um sistema registral imobiliário obrigatório. Quando a Lei de Terras foi promulgada, as Ordenações Filipinas exigiam escritura pública para todos os negócios sobre bens de raiz cuja quantia da obrigação excedesse quatro mil réis (Liv. III, tít. 59). Todavia, não existia registro de propriedade imobiliária, apenas o “Registro geral de hypothecas”, criado pelo art. 11 da Lei n.º 317, de 1843, e regulamentado pelo Decreto n.º 482, de 1846, que se referiu unicamente à hipoteca, sem fazer menção alguma à transcrição das transmissões da propriedade imobiliária (VIEIRA, 2009, p. 39). Ou seja, “teve por fim resguardar o crédito, e não o domínio privado” (SANCHES: 2008, p. 68). E mesmo após a promulgação do Regulamento da Lei de Terras, pouco foi feito para dar publicidade segura ao domínio privado sobre a terra. O art. 11 da Lei n.º 840, de 1855, apenas atualizou valores, exigindo escritura pública para a compra e venda de bens de raiz, cujo valor superasse duzentos mil réis, abaixo disso, continuava validamente permitida por escrito particular.

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Não objetivando normatizar adequadamente a propriedade imobiliária, mas somente aperfeiçoar a proteção ao crédito, foi promulgada a Lei n.º 1.237, de 1864, que dispunha: “Art. 8.º A transmissão entrevivos por titulos oneroso ou gratuito dos bens susceptiveis de hypothecas (art. 2.º § 1.º) assim como a instituição dos onus reaes (art. 6.º) não operão seus effeitos a respeito de terceiros, senão pela transcripção e desde a data della.”. Grande controvérsia se instaurou acerca da interpretação desse artigo, agravada pelo Regulamento, plasmado no Decreto n.º 3.453, de 1865, que estabeleceu: “Art. 257. Até a transcripção, os referidos actos são simples contractos que só obrigão as partes contractantes.”. Prevaleceu a corrente de que o registro era dispensável para a validade da transferência do domínio entre as partes contratantes, de modo que a situação jurídica do adquirente era, conforme posteriormente explicou Clóvis Bevilaqua, de “proprietário somente em relação aos alienantes, anomalia jurídica resultante do sistema estabelecido, na lei hipotecária de 1864” (MOURA: 1946, p. 127-128). Um disparate jurídico que não faz o menor sentido em face da atual distinção entre domínio e propriedade, defendida por Ricardo Aronne (1999). E, mesmo que se entendesse o contrário, é pertinente a observação de Júlia Rosseti Vieira ( 2009, p. 68): Ao prever a figura da transcrição, a Lei Hipotecária não contribuiu para a descoberta do real proprietário do bem, uma vez que aquele ato apenas impunha ao adquirente os mesmos direitos do alienante, não corrigindo possíveis vícios. Assim, a lei não concorreu para a certeza do domínio, pois não possibilitava a determinação do verdadeiro titular.

Tanto é que o mesmo artigo da lei previa: “§ 4º A trancripção não induz a prova do dominio que fica salvo a quem fôr.”. Encerrando, o Regulamento não sujeitou ao registro as transmissões causa mortis ou por testamentos e os atos judiciais (art. 260). Por isso, os primeiros registros imobiliários do século XX fazem tantas menções a sentenças de inventário do século XIX, nunca levadas a qualquer registro. O Império não finalizou a normatização da propriedade privada imobiliária. Júlia Rosseti Vieira (2009, p. 81) entende que, em nenhum momento, o Governo se preocupou em disciplinar integralmente os mecanismos necessários para que o direito abstrato de

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propriedade sobre a terra pudesse ser exercitado regular e adequadamente. O mote da Lei de Terras eram as consequências do fim da escravidão e os desdobramentos da imigração estrangeira. O da Lei Orçamentária de 1843 e da Lei Hipotecária de 1864 era assegurar o crédito garantido por um bem imóvel. Todos esses casos exigiam abordar a propriedade imobiliária, mas sempre o mínimo possível, apenas de relance quanto ao indispensável. Mas como as legislações não visaram diretamente a regularização dos imóveis, foram publicadas com inúmeras lacunas e em alguns casos não tiveram qualquer eficácia, o estado das terras mantinha-se caótico. Imprecisão de medidas e limites, incerteza quanto aos reais proprietários, muito possuidores, fraude em títulos, indefinição das terras públicas e devolutas. Assim, o quadro de insegurança jurídica persistia, até mesmo no que era relativo ao crédito. [Vieira, 2009, p. 81]

E o problema não foi resolvido com os Decretos n.º 169-A e n.º 451-B, de 1890, editados pouco após a Proclamação da República. Somente com o Código Civil de 1916 o registro foi inequivocamente reconhecido como elemento intrínseco da transferência da propriedade imobiliária. Desse modo, apenas sessenta e seis anos depois da Lei de Terras do Império é que se conseguiu fulminar, do direito brasileiro, a transferência de domínio imobiliário destituída de publicidade e eficácia erga omnes. Ainda assim, entendeu-se que apenas as transmissões de domínio imobiliário de 1917 em diante exigiam registro imobiliário, ao passo que as anteriores não, porque já perfeitas e acabadas, ou seja, atos jurídicos perfeitos. Mário de Assis Moura (1946, p. 134) sintetiza a interpretação que prevaleceu na prática: Uma jurisprudência harmônica tem esclarecido que, para as transmissões de propriedade anteriores ao Código Civil, não se estava criando no Reg. 18.542 a necessidade de registos; a indicação preceituada no art. 228 devia restringir-se aos casos em que os registos eram indispensáveis, ou sejam os da transmissões verificadas no ano de 1917 em diante, tanto que o art. 234 do mesmo Regulamento n.º 18.542, assim dispõe: [...] O que há de significar, por sem dúvida, que são reconhecidos os casos em que as transmissões não estão sujeitas a registos, e tais são os anteriores a 1917, quando não haja debate entre títulos, para apuração da prevalência de um sôbre outro, ou se trate

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A partir desse entendimento, os Cartórios simplesmente registravam o documento de transmissão do domínio, sem indicação de qual era o título antecedente que amparava o suposto domínio do alienante e, muito menos, se esse título era reconhecido pelo Estado como de domínio. Ainda pior, não havia obrigatoriedade de encadeamento ou continuidade entre os registros. Tal questão só começou a ser disciplinada pelo Decreto n.º 18.542, de 1928. Em razão disso, a maioria das cadeias registrais imobiliárias arquivadas em Cartórios localizados no Estado de Goiás retroagem, sem solução de continuidade, apenas até a década de 1930, o que dificulta sobremaneira a pesquisa de eventuais registros referentes ao período anterior. Isso quando foram feitos registros imobiliários anteriores, porque, quando não foram, a cadeia imobiliária é constituída por títulos espalhados pelos arquivos de vários cartórios e fóruns, sendo alguns meros escritos particulares. Por esses motivos, o Registro Imobiliário Comum não tem presunção absoluta de veracidade, porque a maioria dos registros imobiliários não consegue certificar a origem do domínio privado sobre a terra, podendo seu conteúdo ser eventualmente questionado pelo Estado. Retornando à análise dos efeitos da Lei de Terras do Império e seu Regulamento, o registro das terras possuídas foi a tarefa que o Poder Público melhor cumpriu e conseguiu preservar os dados, tendo razoável controle das informações dela resultantes. Em Goiás, esses trabalhos tiveram início em outubro de 1856 e o último prazo encerrou-se em 1º de abril de 1860. Seus livros estão arquivados na Procuradoria-Geral do Estado. Consoante adiantado acima, o Registro Paroquial ou do Vigário não era um registro de propriedades imobiliárias, muito menos de transcrição de transferências da propriedade. O texto da lei deixa claro que era um registro tão somente “das terras possuídas” (art. 13). Além disso, tinha por base meramente “as declarações feitas pelos respectivos possuidores”, embora o citado dispositivo legal determinasse ao Governo prever multas e penas para quem fizesse declarações inexatas ou não as prestasse nos prazos a serem

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marcados. O Regulamento não fugiu dessa orientação e nominou seu capítulo IX como “Do registro das terras possuídas”. Obrigou ao registro “todos os possuidores de terras, qualquer que seja o titulo de sua propriedade, ou possessão” (art. 91). O Registro Paroquial consistiu num grande trabalho de cadastramento das terras possuídas por particulares, com ou sem título. Foi criado com o intento de nortear os trabalhos de identificação e demarcação das terras particulares, das terras legitimáveis e revalidáveis e das terras devolutas. O registro geral das terras possuídas orientaria o Império a localizar as terras que dependiam de legitimação de posse ou de revalidação de sesmarias ou concessões, bem como a identificar e demarcar as terras naquele momento desocupadas e não aplicadas a qualquer uso publico, ou seja, as consideradas devolutas, segundo o art. 3º da Lei de Terras. Contudo, dada a inação do Império em prosseguir com as tarefas subsequentes, o Registro Paroquial ganhou, no decorrer das décadas, a importância de ser, na maioria dos Estados, o único legado do Império em matéria de cumprimento da Lei das Terras. Daí sua utilização pelo Estado de Goiás para uma ágil verificação dos indícios de validade do domínio privado sobre a terra. Normalmente o Estado é perquirido a respeito disso nas desapropriações, principalmente para fins de reforma agrária, e em todas as ações de usucapião de terras particulares. No primeiro caso, porque o instituto jurídico da desapropriação é uma forma de reconhecimento da propriedade pelo Poder Público, tanto que obriga ao pagamento de uma indenização. No segundo, por força do art. 943 do Código de Processo Civil. A contínua análise dos registros paroquiais pelo Serviço de Agrimensura da Procuradoria-Geral do Estado permite afirmar que a maioria dos registros paroquiais faz referência à hipótese prevista no art. 3º, § 2º, primeira parte, da Lei de Terras do Império e no art. 22 do respectivo Regulamento. Ou seja, de “ocupantes” que adquiriram suas posses por algum titulo que, pela legislação da época, também era hábil à aquisição do domínio. Em uma amostra aleatória de 72 registros paroquiais analisados pelo Serviço de Agrimensura, 53 são de declarações de “donos” segundos possuidores com “título legítimo” à aquisição do domínio, ao passo que apenas 19 são de primeiros possuidores ou segundos possuidores sem “título legítimo”. Em percentuais, significa 73,6% de segundos possuidores

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com “titulo legitimo da acquisição do seu dominio” (art. 22 do Regulamento) contra 26,3% de possuidores sem “título legítimo” de aquisição e, pois, sujeitos à legitimação de posses (art. 23) ou à revalidação de sesmarias ou outras concessões incursas em comisso (art. 27). Ampliando o leque da pesquisa para 84 petições, protocolizadas entre abril e novembro de 2013, por meio das quais o Estado de Goiás manifestou desinteresse em questionar a validade da propriedade particular, 53 se ampararam nos acima citados registros paroquiais de declarações de situações de segundos possuidores com “título legítimo de domínio”. Em outras palavras, 63% da amostra de petições. A grande maioria é de posses possivelmente alçadas à qualidade de domínio por terem sido adquiridas a “título legítimo” de herança ou compra do possuidor anterior. Mas há outras situações registradas, como, por exemplo, de “títulos legítimos” de doações e de permutas de posses. Entretanto, como os registros paroquiais certificam, a partir de declarações do interessado, apenas a posse, é necessário, para se obter certeza sobre a origem válida do domínio particular, encontrar os títulos legítimos mencionados nos registros paroquiais. Isso hoje é extremamente difícil, por dois motivos já explicados ao longo deste artigo. Primeiro, porque o Estado não emitiu novos títulos em substituição aos antigos, muitos dos quais meros escritos particulares. Segundo, por causa da inexistência, até as primeiras décadas do século XX, de um sistema registral imobiliário obrigatório e com perfeito encadeamento dos registros. Dos registros paroquiais que não atestam segundo possuidores por título legítimo, a maioria é de primeiros ocupantes por apossamento original ou adquirido sem título legítimo à aquisição do domínio. Da coleta acima mencionada de 84 manifestações de desinteresse proferidas pelo Estado de Goiás, 19 se amparam em registros paroquiais de tais situações, ou seja, 22%. Nestes casos, além das dificuldades impostas pela inexistência de um sistema registral imobiliário minimamente organizado até 1928, há o problema de os órgãos do Estado de Goiás desconhecerem o paradeiro das informações sobre possíveis legitimações de posses ocorridas durante o Império. O ente estatal só tem organizadas as informações referentes às legitimações de posses ocorridas após a Proclamação da República, quando o domínio da

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maioria das terras devolutas foi transferido aos Estados-membros. Os respectivos livros de titulação começam mais exatamente a partir de 1900. Há uns poucos registros paroquiais que dão notícias sobre sesmarias, mas sem mencionar se devidamente confirmadas e não incursas em comisso. Na amostra acima mencionada, não se deparou com nenhum, mas em outras oportunidades sim. A verificação da confirmação é dificílima, porque nos arquivos do Estado de Goiás há apenas as cartas de concessão de sesmarias, sem informações sobre a ocorrência, ou não, de demarcação, medição, confirmação e verificação do cultivo das mesmas. A documentação pesquisada nos órgãos do Estado não dá certeza sobre a confirmação de nenhuma das sesmarias concedidas, embora eventualmente indique que isso possa ter ocorrido com relação a uma ou outra. Segundo Maria do Amparo Albuquerque Aguiar ( 2003, p. 60 e 63), em mais de mil pedidos e concessões de sesmarias, datados de 1726 a 1770, foram encontradas apenas 12 confirmações. E mesmo a totalidade das sesmarias concedidas, confirmadas ou não, cobria diminuta extensão do território goiano. Maior é o número de títulos provisórios e definitivos expedidos pelo Estado de Goiás após a Proclamação da República, porém ainda muito poucos se comparados com os títulos legítimos de segundo possuidores admitidos pelo Regulamento de 1854. Na mencionada amostra de 84 manifestações de desinteresse proferidas pelo Estado de Goiás, apenas 14% se amparam em títulos expedidos pelo Poder Público Estadual. São mais exatamente 12 títulos encontrados pelo Serviço de Agrimensura, sendo 7 títulos provisórios e 5 definitivos. Desse modo, o material documental acima pesquisado confirma que, em Goiás, poucas propriedades particulares imobiliárias têm origem em títulos formalmente emitidos pelo Estado. Analisando outros títulos expedidos, constantes em livros arquivados na SEAGRO, verifica-se que eles cobrem pequena extensão do território goiano e os definitivos, em sua maioria, são recentes, porque têm por origem terras devolutas cuja arrecadação ou a discriminação e demarcação só aconteceram na segunda metade do século XX. Há também na Procuradoria-Geral do Estado títulos de 1900 e dos primeiros anos do século XX, mas em grande parte títulos provisórios, porque atualmente o Estado não tem inteiro controle dos

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títulos expedidos em cumprimento à Lei Estadual n.º 134, de 1897. Neste caso, sabe-se que o particular pagou ao Estado a quantia na época considerada necessária para a aquisição da terra. Mas, sem encontrar o título definitivo, não se alcança certeza sobre a subsequente medição e demarcação exigidas para a expedição do mesmo. De qualquer modo, a quantidade de títulos de domínio expedidos pelo Estado de Goiás é pequena. Há poucas notícias de títulos expedidos no período imperial e, muito menos, durante a colonização. Fica claro, portanto, que, no Estado de Goiás, poucas propriedades particulares imobiliárias têm origem em títulos de domínio formalmente expedidos pelo Poder Público, seja durante a colonização portuguesa, o Império ou a República. Em razão disso, na maioria dos casos não é possível enquadrar a validade da origem da propriedade privada da terra no art. 1º (venda ou doação), nem no art. 3º, § 3º (revalidação de sesmarias e outras concessões) ou § 4º (legitimação de posses), da Lei de Terras do Império. À primeira vista, também não é possível enquadrá-la no § 2º do art. 3º da referida Lei, porque ele parece se referir apenas às sesmarias, concessões e outros títulos legítimos de domínio outorgados pelo Poder Público. Neste ponto, contudo, o Regulamento de 1854 demonstra sua enorme relevância, ao ampliar a noção de “título de legítimo de domínio” para muito além daqueles exclusivamente expedidos pelo Estado, reconhecendo também como legítimos de domínio outros títulos, que, a rigor, eram meros títulos de aquisição de posses entre particulares. Essa solução tacanha adotada pelo Império, para o reconhecimento do domínio particular absoluto sobre a terra, exigia que a discriminação e demarcação das terras devolutas fossem feitas imediatamente. O que, como se sabe, não aconteceu durante o Império, nem quando da República Velha. Isso, somado à falta, ao longo de várias décadas, de um registro imobiliário obrigatório, dificulta sobremaneira a verificação da origem válida da propriedade privada da terra, quando não a impossibilita. Em regra, o problema não pode ser solucionado pela usucapião. Atualmente, não é possível invocar a usucapião contra o domínio público. Dispõe o Código Civil: “Art. 102. Os bens públicos não estão sujeitos a usucapião.”. Nem é admissível, pois, invocar a redução de

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prazo do parágrafo único do art. 1.242 do Código Civil e a proteção oferecida pelo art. 214, § 5º, da Lei de Registros Públicos (Lei n.º 6.015, de 1973). Conquanto a usucapião tenha natureza declaratória, podendo ser reconhecida sua consumação em épocas pretéritas, verifica-se que o obstáculo da imprescritibilidade dos imóveis públicos regride no tempo até a Lei de Terras do Império, mas nesta de forma polêmica. A Constituição de 1988 proibiu a usucapião de imóveis públicos, até mesmo sob as formas constitucionais especiais rural e urbana (art. 183, § 3º, e 191, parágrafo único). Antes, o Código Civil de 1916 foi confuso quanto à imprescritibilidade dos bens públicos dominicais, instaurando-se grande controvérsia doutrinária e jurisprudencial sobre a questão. Foram necessários o Decreto n.º 19.924, de 1931, e o Decreto n.º 22.785, de 1933, para explicitar, o primeiro, a imprescritibilidade das terras devolutas e o segundo a de todas as categorias de bens públicos. Somente para após a vigência desses decretos se obteve consenso sobre a imprescritibilidade dos bens públicos a que se referem. Para o período entre o início da vigência do Código Civil e o desses decretos continuou a divergência sobre a prescritibilidade das terras devolutas e de outros bens públicos dominicais. A questão foi definitivamente encerrada apenas em dezembro de 1963, com a aprovação do verbete n.º 340 da Súmula do Supremo Tribunal Federal: “Desde a vigência do Código Civil, os bens dominicais, como os demais bens públicos, não podem ser adquiridos por usucapião.”. A exceção admitida era a usucapião pro labore, criada pela Constituição de 1934, repetida na de 1937, alargada com a de 1946 e pela Emenda Constitucional n.º 10, de 1964, e parcialmente reestabelecida com a Lei n.º 6.969, de 1981. Antes do Código Civil de 1916 era admitida a prescrição aquisitiva de quarenta anos sobre os bens do domínio do Estado, classificação que atualmente abrangeria bens públicos de uso especial e, principalmente, bens dominicais. Todavia, as terras devolutas estavam submetidas a um regramento jurídico especial, do qual brotou a discussão, nunca solucionada, sobre a prescritibilidade, ou não, desta espécie de bem público. Mas há uma tendência em aceitá-la e os registros paroquiais são aceitos como prova de posse para tanto (GRANDE JÚNIOR: 2012).

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Além disso, o Estado de Goiás vem admitindo a ultratividade do seguinte dispositivo da Constituição Estadual de 1947: Art. 150 – O Estado não poderá exercitar direitos sôbre as terras que estiverem no domínio de particulares, por qualquer título de aquisição anterior a primeiro de janeiro de mil oitocentos e oitenta e sete, ou em virtude da posse, com cultura efetiva e morada habitual, também anteriores àquela data.

Outrora muito aplicado pelo Judiciário Goiano para julgar os casos mais controvertidos de discussão da validade do domínio particular, principalmente em ações discriminatórias, hoje é a própria Administração Pública Estadual quem o invoca, com certa flexibilidade, a fim de evitar inúmeros conflitos com os particulares. CONCLUSÕES À medida que avançava pela América do Sul, o Estado Português, confundindo-se com sua Coroa, adquiria o domínio de todas as terras que hoje compõem o território brasileiro. Não era juridicamente possível aos particulares se apropriarem dessas terras. O direito à utilização das mesmas era concedido por meio do instituto jurídico das sesmarias, que constituía uma forma de domínio condicionado ao efetivo cultivo e de propriedade que se externava pela continuidade deste, acompanhada do título conferido pelo Rei. Com a Independência, as terras antes do domínio da Coroa Portuguesa foram transferidas ao Império do Brasil. A inegável realidade do apossamento não autorizado dessas terras obrigou à suspensão do regime sesmarial e a mentalidade dos novos tempos exigiu a normatização da propriedade privada abstrata sobre a terra. A transição para o contemporâneo sistema de propriedade teve início com a Lei de Terras do Império de 1850. Seu Regulamento, de 1854, cujo estudo é muitas vezes negligenciado, teve uma enorme importância naquele momento, com consequências que perduram até hoje no Estado de Goiás, principalmente as resultantes de seus arts. 22 ao 27. O art. 22 reconheceu o domínio a todo possuidor de terras que tivesse adquirido sua posse por algum titulo que, pela legislação da época, também fosse hábil à aquisição do

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domínio, ainda que essas terras tivessem sido originariamente adquiridas por meras posses de seus antecessores ou por sesmarias e outras concessões governamentais caídas em comisso. Por sua vez, o art. 23 dispensou esses possuidores de retirar novos títulos de domínio, em substituição aos antigos, muitos dos quais simples escritos particulares hoje perdidos. A legislação da época também não exigia o registro destes títulos em cartórios com atribuições de registro de imóveis, o que só se tornou inequivocamente obrigatório a partir do Código Civil de 1916. Assim, atualmente, é muito difícil, quando não impossível, encontrar esses antigos “títulos legítimos” admitidos como de domínio pelo Regulamento de 1854. A inexistência, por muitos anos, de um sistema registral imobiliário obrigatório dificulta até mesmo estabelecer o liame entre os atuais registros de propriedade com os títulos de vendas e de legitimações de terras devolutas ocorridas antes de 1916 e até mesmo com as poucas sesmarias que foram devidamente confirmadas. No Estado de Goiás, a constituição do domínio privado sobre a terra se amparou, na maioria dos casos, sobre o art. 22 do Regulamento de 1854. Isso é verificável a partir dos registros paroquiais. A grande maioria deles faz referência à hipótese do art. 22 do Regulamento. Mais de 2/3 na amostra aleatória pesquisada. Os declarantes se apresentavam como segundos “ocupantes” com título legítimo de domínio, normalmente por herança ou compra. Porém, conforme explicado nos dois parágrafos anteriores, há uma enorme dificuldade, maior a cada dia, em encontrar os “títulos legítimos de aquisição de domínio” declarados nos registros paroquiais, principalmente quando se tratam de documentos particulares. Menos de 1/3 dos registros paroquiais analisados pelo Serviço de Agrimensura faz referência a primeiros ocupantes ou segundos “ocupantes” sem título legítimo. Tais pessoas deveriam legitimar suas posses ou providenciar a revalidação das sesmarias ou outras concessões semelhantes. Todavia, há poucos dados sobre posses legitimadas durante o Império e nenhum sobre revalidação de sesmarias e outras concessões. O Estado de Goiás só tem organizados os documentos sobre legitimações de posses e outras formas de titulação do domínio a partir de 1900. E são igualmente poucos, quando comparados com os registros paroquiais de segundos “ocupantes” que declararam ter título legítimo de domínio.

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Desse modo, o material pesquisado confirma que, em Goiás, poucas propriedades particulares imobiliárias têm origem em títulos formalmente expedidos pelo Poder Público. Eles cobrem pequena extensão do território goiano e em sua maioria são recentes, porque têm por origem terras devolutas cuja arrecadação ou a discriminação e demarcação só aconteceram na segunda metade do século XX. A maioria das propriedades imobiliárias rurais em Goiás possivelmente tem origem nos títulos legítimos reconhecidos como de domínio pelo Regulamento da Lei de Terras do Império. Em razão das históricas falhas na sistematização da propriedade imobiliária no Brasil, muitas vezes a única notícia que se tem atualmente desses títulos legítimos constam nos registros paroquiais, o que impossibilita uma análise rigorosa da validade da origem das propriedades sobre a terra. Por causa disso, o Poder Público Estadual tem admitido várias presunções para o reconhecimento da origem válida do domínio particular, como, por exemplo, a possível ocorrência de usucapião quarentenária anterior a 1917, mas, sobretudo, invocando maleavelmente o comando do art. 150 da Constituição Estadual de 1947, que impediu o Estado de exercitar direitos sobre as terras que estejam no domínio privado, por qualquer título de aquisição anterior a 1º de janeiro de 1887, ou em virtude da posse, com cultura efetiva e morada habitual, também anterior à mesma data. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AGUIAR, Maria do Amparo Albuquerque. Terras de Goiás: estrutura fundiária (1850-1920). Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2003. ALENCAR, Maria Amélia Garcia de. Estrutura fundiária em Goiás: consolidação e mudanças (1850-1910). Goiânia: Universidade Católica de Goiás, 1993.

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