Imprensa, clandestinidade e República: uma leitura de seis jornais oitocentistas
Descrição do Produto
Media, Jornalismo e Democracia Novembro de 2010
Imprensa, clandestinidade e República: uma leitura de seis jornais oitocentistas Ana Teresa Peixinho
1. Considerações Prévias O século XIX foi, entre muitos outros aspectos, o século do florescimento da imprensa no nosso país e um pouco por todo o mundo. Centenas de títulos invadiram o espaço público, muitos deles de curtíssima duração, outros suficientemente sólidos para se manterem até aos nossos dias. Foi o século em que o jornal assumiu um grande protagonismo no desenvolvimento da História, na dinâmica de debate da esfera pública e no incremento de novos hábitos socioculturais. Concomitantemente, foi durante esta centúria que Portugal viveu um conjunto de amplas mudanças estruturais e políticas que, de certa forma, ditaram o seu futuro próximo, nomeadamente em termos de regime político. Se,
neste ano de 2010, comemoramos o centenário da República, não é menos verdade que o novo regime se foi preparando ao longo de todo o século XIX, suportado não apenas pela elite dos homens de letras mas fermentando também num espaço público que, cada vez mais, se alimentava da imprensa. Neste sentido, escolhemos para tema de reflexão um ano crucial deste século XIX – o ano de 1848 – em que um conjunto de transformações radicais invadiram os principais países da Europa ocidental, arrastando já consigo sinais de mudança de mentalidades e de regimes. Esta escolha resultou em parte da feliz coincidência de a Biblioteca Nacional ter recentemente disponibilizado em linha um conjunto de seis jornais portugueses, precisamente desse remoto ano de 1848. O interesse destas publicações reside em dois aspetos que consideramos cruciais e que serão as bases de onde partimos para a nossa reflexão: por um lado, têm em comum o facto de serem jornais clandestinos, muito efémeros, alguns de um só número, dialogando estreitamente, através dos seus sugestivos títulos, com a conjuntura política da época; por outro lado, em todos eles é veiculada a ideia de República, de republicanismo, como solução redentora para os povos. Como é do conhecimento geral, o ano de 48 do século XIX foi um ano extremamente conturbado e, em muitos aspectos, crucial para o futuro da Europa. A Primavera dos Povos1, como ficaram conhecidas um conjunto de revoluções sociopolíticas que assolaram o velho continente, também ecoou no nosso país. A imprensa não podia 1
Expressão por que ficaram conhecidas as vagas de revoluções europeias de 1848. Expressão utilizada por Eric Hobsbawm, na célebre obra A Era das Revoluções: 1789-‐1848, em que o autor defende ter sido esta uma revolução global.
1
Media, Jornalismo e Democracia Novembro de 2010
deixar de ser o reflexo e testemunho dessas mudanças, sobretudo porque se afirmara, desde a Revolução Liberal, como um poderoso instrumento de afirmação e consolidação do espaço público burguês. Tentaremos, neste breve estudo, perceber o papel dos seis jornais acima referidos, na construção clandestina de um ideário republicano que, em Portugal, se vai consolidando e cimentando ao longo de toda a centúria. Interessa-‐nos, sobretudo, perceber como circularam estes jornais na clandestinidade, a que público se dirigiam, que ideais deixavam transparecer e, acima de tudo, que discursos os alimentaram. Por outras palavras, neste trabalho exploraremos a dimensão discursiva destas publicações, tendo sempre em atenção a sua posição na história da imprensa da época, por um lado, e, por outro lado, a sua participação na criação de um filão ideológico que, umas décadas mais tarde, facilitará o nascimento da imprensa republicana, representada pelos sobejamente conhecidos O Século e O Mundo2. A nossa abordagem, submetendo-‐se aos constrangimentos espácio-‐temporais, decorre de uma seleção criteriosa: apenas analisaremos os primeiros números das publicações, não só por acreditarmos que o número de lançamento é suficientemente representativo do jornal, permitindo captar uma possível linha editorial, mas também porque alguns destes periódicos não passaram do primeiro número. Antes, porém, impõe-‐se uma abordagem contextual e histórica, que enquadre estes jornais e que nos permita tecer as ligações entre o discurso veiculado por estes títulos clandestinos e o seu enquadramento político. 2. O ano de 1848 em Portugal O conturbado ano de 1848 foi, por toda a Europa, mas especialmente em França, um processo de recuperação e perpetuação dos ideais da Revolução Francesa, que surge agora mitificada e filtrada por uma visão romântica de História, enquadrada num contexto político em que a questão social assume especial acuidade: problemas da massa de trabalhadores, instauração da República, o sufrágio universal, a união entre trabalhadores e luta política3. Como salienta Maria Manuela Tavares Ribeiro, esta revolução de 48 não foi apenas uma imitação da revolução setecentista, conseguindo algumas importantes conquistas: a abolição da pena de
2
Limitamo-‐nos a referir os dois mais importantes jornais do final do século XIX, em termos de afirmação da imprensa republicana. Segundo José Tengarrinha, …. 3 Como explica Manuela Tavares Ribeiro, a Revolução Francesa foi o grande mito histórico da primeira metade do século XIX, alimentado pela literatura romântica, tanto de raiz popular como de matriz elitista. Uma literatura que confere ao povo um protagonismo e uma importância que antes não tinha. “A Revolução Francesa – idade de ouro, mais mítica do que histórica – é um referente perante o qual os revolucionários de 1848 manifestam uma autêntica atitude de veneração, talvez porque dela têm uma imagem demasiado perfeita. Poderoso mito, sem dúvida o maior da primeira metade do século XIX, alimentado, naturalmente, pela visão romântica da história.” (Ribeiro, 1989: 357).
2
Media, Jornalismo e Democracia Novembro de 2010
morte, o sufrágio universal, o apelo à abolição da escravatura nas colónias. No fundo, traduziu uma “esperança de consumar uma idealização dessas mesmas revoluções, isto é, de concretizar essa imagem positiva numa revolução pacífica e humana que conseguiria a sua plenitude na vivência da Fraternidade Universal, simultaneamente sonhada e vivida no quotidiano.” (Ribeiro, 1989: 359).
Assim, assistimos neste período a um espaço discursivo em ebulição, onde proliferavam os panfletos, os jornais, formas de literatura popular que, sendo a voz daqueles anseios, construíam narrativas que traduziam e cristalizavam uma memória comum, criando novos protagonistas, enfatizando certos temas, veiculando discursos marcados pelo tom inflamado, comprometido e próximo dos leitores. Tratava-‐se, no fundo, de eleger a imprensa, fosse a oficial ou a clandestina, a porta-‐voz de uma personagem coletiva – o Povo – afinal motor e simultaneamente objeto de todo um conjunto de transformações estruturais que procuravam renovar o discurso e as práticas político-‐sociais. “Ora, é para o Povo e em nome do Povo, envolto numa auréola messiânica, que republicanos e socialistas apregoam a regeneração da Nação pela República, portadora de virtudes e princípios evangélicos.” (Ribeiro, 1989: 360). Já Almeida Garrett no célebre texto «Memória ao Conservatório Real, datado de 1843, afirma efusivamente que: “Este é um século democrático: tudo o que se fizer há-‐de ser pelo povo e com o povo… ou não se faz.”
4
Na sua tese de doutoramento inteiramente dedicada à influência Revolução de 48 em Portugal, Manuela Tavares Ribeiro demonstra, de forma circunstanciada como os ideais da Revolução Francesa de 1848 entraram em Portugal, tendo sido acolhidos entre os demo-‐liberais portugueses. 3. A imprensa e a revolução A imprensa neste período viveu momentos especialmente difíceis, sobretudo devidos à ditadura de Costa Cabral5 que governou, com mão de ferro, os destinos da nação. Beneficiando sobretudo a alta burguesia financeira, rodeando-‐se da aristocracia, 4
A Memória ao Conservatório Real foi lida, por Almeida Garrett, em conferência no Conservatório Real de Lisboa, a 6 de Maio de 1843, a propósito do Frei Luís de Sousa. 5 “António Bernardo da Costa Cabral (Algodres, 9 de Maio de 1803 — Porto, 1 de Setembro de 1889), o 1.º conde e 1.º marquês de Tomar, mais conhecido simplesmente por Costa Cabral, foi um político português que, entre outros cargos e funções, foi deputado, par do Reino, conselheiro de Estado efectivo, ministro da Justiça e Negócios Eclesiásticos, ministro do Reino e por duas vezes presidiu ao Ministério (cargo equivalente ao do actual Primeiro-‐Ministro). Defensor da Revolução de Setembro de 1836, a sua conduta política evoluiu num sentido mais moderado e, depois de nomeado administrador de Lisboa, foi o principal obreiro da dissolução da Guarda Nacional. Durante o seu primeiro mandato na presidência do ministério, num período que ficaria conhecido pelo Cabralismo, empreendeu um ambicioso plano de reforma do Estado, lançando os fundamentos do moderno Estado português. Considerado um valido da rainha D. Maria II, apesar das suas origens modestas, foi feito conde de Tomar e depois elevado a marquês de Tomar. Foi uma das figuras mais controversas do período de consolidação do regime liberal, admirado pelo seu talento reformador, mas vilipendiado e acusado de corrupção e nepotismo por muitos. Foi obrigado a exilar-‐se em Madrid na sequência da Revolução da Maria da Fonte, mas voltaria poucos anos depois, demonstrando uma extraordinária capacidade de recuperação e persistência, a ocupar a chefia do governo.” (www.wikipedia.pt)
3
Media, Jornalismo e Democracia Novembro de 2010
Cabral criou uma “oligarquia de facto”6, centralizando o poder, e gerando fortes descontentamentos sociais que desembocaram, como é do conhecimento geral na revolta da Maria da Fonte em 1846 e na Guerra Civil (a Patuleia) que dura de outubro de 1846 a junho de 1847. Na verdade, como explica Tengarrinha, durante os nove anos de cabralismo, “a imprensa oposicionista (…) viveu um dos “períodos mais duros e, porventura, mais gloriosos, da história da nossa imprensa” (Tengarrinha, 1982: 160). Sujeita a inúmeros procedimentos censórios, decorrentes de leis e de processos de abuso de poder, a imprensa vive o final da década de 40 de um modo sobressaltado, assistindo ao encerramento compulsivo de jornais bem como ao assalto a tipografias, a título de pôr cobro à erupção de escritos em que se “proclamava a anarquia” e “tudo se ultrajava”, segundo palavras do próprio Costa Cabral. A partir de 1848, a censura intensifica-‐se sobretudo como forma de evitar que fossem veiculados os ideais revolucionários da Primavera dos Povos, contaminando a opinião pública com os germes subversivos7. Neste contexto, é fácil perceber a explosão do jornalismo clandestino, como forma de contrariar as prepotentes decisões de coartação à liberdade de imprensa. Diz-‐nos Manuela Tavares Ribeiro: “num período em que a formação da opinião pública se processava
essencialmente
através
da
imprensa,
preocuparam-‐se
alguns
«progressistas» portugueses, mais radicais, em dar a público panfletos, opúsculos, proclamações e periódicos de feição republicana e socializante, em pequeno formato, muitos deles editados e distribuídos clandestinamente e com uma finalidade didática.” (Ribeiro, 1987: 414). A importância da imprensa nas revoluções de 48 é um dado histórico comum à maioria dos países europeus: França, Alemanha, Estados Italianos, etc8. Num artigo já antigo mas ainda inovador sobre esta matéria, Manuela Tavares Ribeiro procede à caracterização pormenorizada da feição política e ideológica das publicações 6
Expressão utilizada por Manuela Tavares Ribeiro: “A criação das grandes companhias, com carácter especulativo, a fiscalização efectiva das eleições, isto é, a prática do sufrágio censitário e indirecto, permitiram um reforço do aparelho de Estado centralizado que contava com a base social de apoio e uma nova aristocracia liberal, a dos «barões» e «viscondes».” (Ribeiro, 1989: 361). 7 Explica José Sardica que “o móbil da repressão passou a ser o perigo de contágio da opinião pública pelos germes revolucionários da «Primavera dos Povos», que lavravam por toda a Europa. Entre 1848 e 1850, a estatística do Ministério da Justiça contabilizou 120 querelas a jornais.” (Sardica, 2000: 33)
8
Num artigo de 2009, Rafael Venâncio analisa a decisiva participação dos jornais nos processos revolucionários em vários países, como a França, a Alemanha, os Estados Italianos, a Áustria, etc. , demonstrando a sua força na propagação das palavras-‐de-‐ordem da Revolução.
4
Media, Jornalismo e Democracia Novembro de 2010
portuguesas em análise. De um modo bastante sintético, pois nem de outra forma o podemos fazer, e seguindo a leitura daquela estudiosa, podemos afirmar que todas estas publicações, além da clandestinidade, partilhavam também intuitos de doutrinação política declarados, visando angariar militantes para a causa, como se verifica inclusive pelo tipo de linguagem utilizada, oscilando entre a retórica parlamentar, a literatura romântica e o discurso engagé9. Curiosamente, este mesmo estilo panfletário, a retórica de propaganda, o discurso inflamado são características que se retomarão umas décadas mais tarde, nos grandes jornais do final do século, aquando da propaganda republicana, desta vez abrilhantados por uma plêiade de homens de letras como Teófilo Braga, Sampaio Bruno, Consiglieri Pedroso, entre muitos outros. 4. Os jornais em análise: breve descrição material Os seis jornais em análise têm, como já referimos, algumas características comuns: trata-‐se de publicações que circulavam clandestinamente, muitas vezes no interior de jornais oficiais, como A Revolução de Setembro, jornal progressista de larga divulgação, como se sabe; são jornais meteóricos, reduzindo-‐se muitas vezes a um número único, como foi o caso do A Fraternidade, saído a 8 de maio de 1848, ou tendo no máximo oito edições, como sucedeu com A República (de 25 de abril a 20 de junho); eram impressos na capital e distribuídos clandestinamente pelo resto do país; eram jornais muito baratos (10 réis), acessíveis, portanto, a camadas da população mais desfavorecidas; eram publicações anónimas, pois em nenhuma delas encontramos uma única assinatura, nem possuem ficha técnica que, à época, já constava de muitos jornais. É curioso que, em alguns deles, encontramos os textos subscritos por pseudónimos significativos: nos jornais O Regenerador e É Tarde, surge no final o nome do editor responsável – “Patuleia”, remetendo naturalmente para o nome da Guerra Civil de 184610. Outro exemplo expressivo do caráter clandestino e anónimo
9
Tengarrinha, José, (1974),«A oratória e o Jornalismo no Romantismo», Estética do Romantismo em Portugal, Lisboa, Centro de Estudos do Grémio Literário, pp.185-‐190. 10 Patuleia, ou Guerra da Patuleia, é o nome dado à guerra civil que, após a Revolução da Maria da Fonte e a ela estreitamente associado, foi desencadeada em Portugal pela nomeação, na sequência do golpe palaciano de 6 de Outubro de 1846, conhecido pela Emboscada, de um governo claramente cartista presidido pelo marechal João Oliveira e Daun, Duque de Saldanha. A guerra civil teve uma duração de cerca de oito meses, opondo os cartistas (com o apoio da rainha D. Maria II) a uma coligação contra-‐natura que juntava setembristas a miguelistas. A guerra terminou com uma clara vitória cartista, materializada a 30 de Junho de 1847 pela assinatura da Convenção de Gramido, mas apenas após a intervenção de forças militares estrangeiras ao abrigo da Quádrupla Aliança. (www.wikipedia.pt).
5
Media, Jornalismo e Democracia Novembro de 2010
destas publicações encontra-‐se n’ A República, em que, em todos os números, no final da última página, aparece a seguinte informação: “Sai quando aparece. – Vende-‐se aonde o há. – Não se fazem assinaturas. -‐ A correspondência será remetida a mim franca de porte. Tipografia de … amanhã o diremos Editor responsável – Sou Eu.” (A República, n.º1, 25 de Abril de 1848, p. 4)
Apesar de tudo, alguns destes jornais eram escritos por nomes reconhecidos, como Casal Ribeiro11, José Maria Nogueira, João Cândido de Carvalho ou até mesmo o famoso folhetinista Lopes de Mendonça, colaborador d’A Revolução de Setembro (Ribeiro, 1987). Do ponto de vista da sua composição gráfica, salientamos também algumas similaridades entre os seis jornais: cada edição tinha, no máximo, quatro páginas, com duas colunas cada; textos compactos apenas separados por um filete; uma mancha gráfica muito sóbria, com a qual contrastava o caráter apelativo (quer em termos visuais, quer em termos semânticos) do título. Retemo-‐nos na questão dos títulos pois ela parece-‐nos sintomática quanto ao radicalismo e ao cunho eminentemente político destes jornais, bem como à sua feição propagandística e fortemente apelativa. Se dois deles remetem claramente para a matriz republicana – O Republicano e A República – comum a todos eles, já A Fraternidade traz ecos do lema da agora mítica Revolução Francesa, anunciando a inauguração de uma nova era para o povo; A Alvorada, indo também neste sentido, remete para a ideia de renascimento, de começo; O Regenerador aponta para a urgência de mudança radical e de reforma da coisa pública, sentidos também presentes no título É Tarde. Entendendo os títulos como enunciados paratextuais de grande importância, com uma dimensão semântico-‐pragmática incontornável, julgamos que estes seis jornais já anunciam nos seus nomes muito daquilo que oferecerão aos leitores: jornais revolucionários (no sentido de subversivos opondo-‐se aos poderes monárquicos), empenhados cívica e politicamente, combativos, mensageiros de uma nova era para os povos, veículos de novos ideais e de novas políticas que deveriam constituir uma ressurreição da nação. 11
José Maria Caldeira do Casal Ribeiro (Lisboa, 18 de Abril de 1825 — Madrid, 14 de Junho de 1896), conde do Casal Ribeiro, foi um importante jornalista e político português do rotativismo de finais do século XIX. (www.wikipedia.pt)
6
Media, Jornalismo e Democracia Novembro de 2010
Por outras palavras, estes enunciados já contêm em si a função primeira do discurso destas publicações: persuadir o leitor. O recuso ao corpo tipográfico maior e a disposição central na página são instrumentos utilizados por todos estes jornais; o privilégio por enunciados curtos, concisos, claros e apelativos permitiria uma memorização mais fácil. Nestes termos, consideramos que já nestes títulos se inicia a estratégia persuasiva que subjaz a estas publicações, tentando manipular a audiência, levando-‐a a aderir a novas visões do mundo, motivando-‐a para a urgente ação, convencendo-‐a a tomar posição. Deixamos, no entanto, a pergunta: com a elevada taxa de analfabetismo, que públicos eram de facto atingidos por estas mensagens? Pese embora, à época, a leitura do jornal em voz alta e em grupo fosse um costume importante, será que o povo, principal destinatário destas publicações, seria permeável a estas mensagens? Por outras palavras, serão estes jornais representativos daquilo a que Habermas chama a opinião pública plebeia, mais tarde traduzida pela irrupção da imprensa operária? 5. A retórica de combate A dimensão persuasiva anunciada nos títulos destas publicações é consubstanciada no próprio discurso dos jornais. Antes de mais porque, embora nesta época ainda não tivéssemos entrado na era da imprensa noticiosa e informativa, muitos dos jornais a par de uma dimensão opinativa declarada e até partidária, continham secções de notícias. Neste caso particular, a maioria dos jornais não contém nenhuma secção específica reservada a informações, nem a breves. Exceção feita para o jornal A República, que devido ao seu formato mais convencional e também a uma maior consistência e sistematicidade, possui, na última página, uma coluna reservada às Cortes e a Notícias Diversas. Maioritariamente, estes jornais constroem-‐se através de textos, longos, dirigidos a um destinatário específico – o Povo – em que se defende, através de discursos acalorados e inflamados, a ideia de Revolução republicana. Assim, do ponto de vista dos grandes modos discursivos, julgamos que cabe ao discurso argumentativo assumir-‐se como dominante nestes jornais que evidenciam uma espantosa estrutura retórica, saída em parte da retórica parlamentar que caracterizara o período liberal das primeiras décadas do século12. Este discurso tinha como destinatário privilegiado o Povo, que surge como protagonista nestes textos, 12
A este respeito, veja-‐se Tengarrinha, 1974.
7
Media, Jornalismo e Democracia Novembro de 2010
sempre maiusculado e, a maioria das vezes, em posição de vocativo. Quase podemos ler estes textos como grandes cartas abertas, regendo-‐se por uma dimensão epistolar, em que essa personagem coletiva se assume como destinatário visado. Interessa a estes autores instigar o coletivo nacional à Revolução urgente, estimulando à luta, ao combate e à resistência. Uma leitura do texto de abertura do jornal A Fraternidade ilustra de forma modelar o que acabamos de expor: “Povo! Ouvi a palavra de um irmão vosso; de um homem como vós calcado e oprimido; a quem coram as faces de vergonha, a quem o coração bate de despeito, ao ver ainda erguido esse trono, calçado com as cabeças de nossos irmãos; abrilhantado com os sanguinolentos troféus de Torres Vedras 13
e Val-‐Passos!!” (A Fraternidade, n.º1, p. 1)
Salientamos, no texto que acabamos de citar, por o considerarmos modelar de uma tipologia que envolve todos estes jornais, a estratégia persuasiva: a aproximação do enunciador ao destinatário, a construção de um enunciador com poder e digno de confiança, o recurso ao imperativo, o recurso a uma linguagem do campo semântico da guerra, o apelo às emoções… Estas características discursivas identitárias desta imprensa leva-‐nos a lê-‐la como literatura panfletária, que, como se sabe, ganhou o sentido atual precisamente neste ano de 48, com o célebre Manifesto do Partido Comunista, por Marx e Engels14. As palavras de apresentação do jornal A República, escritas num pequeno texto do seu primeiro número, revelam esta matriz propagandística: Quando um dia vier, e que não dista muito, em que este nome entre nós se torne facto, a República, este pobre papelinho, que hoje aparece encapotado, culpa dos algozes do pensamento, será o guia do Povo, se o Povo o quiser por guia.
13
Ortografia atualizada; sublinhados nossos. O tipo de discurso inflamado, repleto de desafios da ordem prevalecente, o apelo ao combate ideológico, o convite directo aos cidadãos para participarem nesse combate e a linguagem desabrida são já características do novo género literário. O excerto do final desse manifesto testemunha estas características: “Finalmente, os comunistas trabalham para a união e o acordo entre os partidos democráticos de todos os países. Os comunistas consideram indigno dissimular as sua ideias e propósitos. Proclamam abertamente que os seus objectivos só podem ser alcançados derrubando pela violência toda a ordem social existente. Que as classes dominantes tremam ante a ideia de uma Revolução Comunista! Os proletários não têm nada a perder com ela, além das suas cadeias. Têm, em troca, um mundo a ganhar. PROLETÁRIOS DE TODOS OS PAÍSES, UNI-‐VOS!”. (e-‐Dicionário de termos literários, Carlos Ceia).
14
8
Media, Jornalismo e Democracia Novembro de 2010
A República, n.º 1, 25 de abril de 1848
Outro aspeto a ter em consideração na análise do discurso destes jornais diz respeito ao caráter popular da linguagem: vocabulário simples, construções sintáticas reduzidas e oralizantes, comparações correntes e metáforas de uso são algumas das características destes textos. A título de exemplo, veja-‐se o seguinte excerto do jornal A Fraternidade, em que se apregoa a renúncia da rainha como fator salvítico da nação: Irmãos! O lobo não se contenta com poucas presas; os que por ventura escapassem hoje, seriam vítimas amanhã. Desunidos ir-‐se-‐ia o rebanho todo; e o lobo folgaria ao ver, que não acudiam uns a defenderem os outros. A Fraternidade, n.º 1
Do ponto de vista ideológico, estes seis jornais também evidenciam similaridades. A defesa de um novo regime – o republicano – e a urgente queda da monarquia é uma das linhas mais visíveis. Aliás, em muitos destes textos, D. Maria II é uma personagem importante, sobretudo porque, do ponto de vista narrativo, é construída por antítese ao Povo. Se este é miserável e oprimido, aquela é a metonímia da tirania e do despotismo. No entanto, a ideia de república aqui defendida prende-‐se mais com uma utopia revolucionária que representaria o renascimento dos povos, fundado na fraternidade universal. Mais do que uma ideologia, estes jornais defendem determinadas políticas radicais, em nome da revolução urgente. Não encontramos neles opiniões fundamentadas ou argumentações circunstanciadas sobre princípios políticos. Ao contrário, sob o discurso inflamado e excitado, apela-‐se à revolta, ao combate, em nome da liberdade, da igualdade e da fraternidade, ideias da revolução setecentista que, como explicámos inicialmente, se encontram mitificadas neste remake de 48. 6. Conclusões provisórias Bibliografia Ativa: (Jornais de 1848) A Alvorada A Fraternidade A República – Jornal do Povo É Tarde
9
Media, Jornalismo e Democracia Novembro de 2010
O Regenerador O Republicano Bibliografia Crítica:
ALVES, Augusto Santos, (2000), A opinião pública em Portugal: 1780-‐1820, 2.ª ed., Lisboa, Universidade Autónoma de Lisboa. ALVES, Augusto Santos, (2001), O desejo de um novo paradigma comunicacional nas primeiras décadas do século XIX, Sep. de: Actas de De Gutenberg ao Terceiro Milénio -‐ Congresso Internacional de Comunicação, Lisboa, pp. 187-‐206.
CORREIA, João Carlos, (1998), Jornalismo e Espaço Público, Covilhã, UBI. HOBSBAWM, E.J., (2001), A era das Revoluções: 1789-‐1848, 5.ª ed., Lisboa, Presença. RIBEIRO, Lia, (), O papel dos intelectuais na popularização cultural republicana RIBEIRO, Maria Manuela Tavares, (1987), A Imprensa Portuguesa e as Revoluções Europeias de 1848, Separata do Centro de História da Cultura da Universidade Nova de Lisboa, pp. 413-‐452. RIBEIRO, Maria Manuela Tavares, (1990), Portugal e a Revolução de 1848, Coimbra, Minerva. RIBEIRO, Maria Manuela Tavares, (1989), A memória da Revolução Francesa nas revoluções de 1848 em Portugal e no Brasil, Separata da Revista de História das Ideias, Vol. 11, Coimbra, Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, pp. 357-‐ 372. RIBEIRO, Maria Manuela Tavares, (1999), Livros e Leituras no século XIX, Coimbra, Revista de História das Ideias. RIBEIRO, Maria Manuela Tavares, (1984), Subsídios para a história da liberdade de imprensa: meados do século XIX, Coimbra, Arquivo da Universidade. SANTOS, Maria Helena C. dos, (1980) «Imprensa periódica clandestina no século XIX: «O Portuguez» e a Constituição», Análise Social, Vol. XVI (61-‐62), l.º-‐2.°,Lisboa, pp. 429-‐445. SARDICA, José Miguel, (2000), «Censuras à imprensa durante a monarquia: poderes políticos e liberdade de expressão no século XIX», Revista História, 3.ª série, Lisboa, n.º23, Março, pp. 28-‐37. SILVA, Cristina Nogueira da, (2009), «Conceitos oitocentistas de cidadania: liberalismo e igualdade», Análise Social, vol. XLIV (192), Lisboa, pp. 533-‐563.
10
Media, Jornalismo e Democracia Novembro de 2010
SOUSA, Jorge Pedro, (), «Pesquisa em jornalismo: O desbravamento do campo entre o século XVII e o século XIX», www.bocc.ubi.pt [Consulta em Julho de 2010] TENGARRINHA, José (1974), «A oratória e o jornalismo no Romantismo», Estética do Romantismo em Portugal, Lisboa, Centro de Estudos do Grémio Literário, pp. 185-‐190. TENGARRINHA, José, (1989), História da Imprensa Periódica Portuguesa, 2.ª ed., Lisboa, Caminho. VENÂNCIO, Rafael Duarte O., (2009), «Primavera dos Jornais: imprensa e revoluções de 1848», Anagrama, Revista Interdisciplinar de Graduação, Ano 2 – Edição 2, Dezembro de 2008 a Fevereiro de 2009, pp. 2-‐13.
11
Lihat lebih banyak...
Comentários