Impressão - Conto - Revista Darandina - UFJF - Volume 8 - Número 2 - Maio/2016

June 3, 2017 | Autor: M. Almeida | Categoria: Literature, Fiction, Contos, Escrita Criativa, Criação Literária
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ISSN: 1983-8379

Impressão

Marcos Vinícius Almeida 1

Primeiro de tudo: o menino. Mas imagine a coisa toda vista de cima. A turma de oito ou sete desses homens em roupa de festa, ou missa ou roupa limpa, estilo velório. Camisa de linho, uma calça de brim que só vê o sol duas ou três vezes por ano (casamento, velório, eu já te disse). O importante é ver a coisa de cima: o menino mais afastado, isso é importante, porque o menino ainda não pertence àquele mundo. O menino ainda não tem idade pra beber, embora seja desde sempre obrigado a trabalhar como homem, a agir como homem, seja homem, ela sabe que precisa, isso também é importante. Mas o menino também não pode se afastar dali, porque um daqueles homens é o pai do menino – se reparar bem, em perspectiva, os dois, veja só, em perspectiva o rosto do homem é uma cópia degradada do menino, uma cópia abandonada debaixo do sol, dormindo no sereno, uma cópia puída e severa. Mas a essa altura dos fatos não é isso que importa: veja só como o menino olha tudo já assim se desculpando por tudo, o menino, rodeando sem falar nada, o menino é quase invisível àqueles outros homens, invisível porque ele quer ser, e também porque não quer nada. Esse é o menino, uma cópia aperfeiçoada do homem, esse é o homem, uma imagem mais ou menos degradada do menino. Isso em perspectiva, mas olhando de perto, veja só, esse terreno acidentando que é o rosto do homem, essa barba irregular e falhada, o nariz afundado na cara, os olhos vermelhos nas órbitas manchadas de um azul cinzento, pálido, isso não tem nada a ver com o menino, talvez o menino pensasse, nessa época, uma ou duas vezes por dia, embora só compreendesse essas coisas muitos anos depois, quando ele mesmo fosse uma cópia degradada de um outro menino, ou nem isso. O fato já está consumado: mas o menino a essa altura dos fatos não compreende toda a cena. O menino só conhece uma parte da história, o pai conhece outra parte, e até agora essas 1

Escritor, autor dos livros Inércia (ed. Multifoco, 2009) e Quebranto (e-Galáxia, 2014). Mestrando em Literatura e Crítica Literária na PUCSP. [email protected]

1 Darandina Revisteletrônica– Programa de Pós-Graduação em Letras/ UFJF – volume 8 – número 2

ISSN: 1983-8379

partes ainda não se encontram, se repelem ao mesmo tempo que se atraem, isso independe do menino, do homem, da degradação de seus rostos e de todo resto. A parte do menino talvez seja a mais importante, pelo menos para ele mesmo, não há nenhum equívoco em seus atos, veja só, quando ele saiu de casa, para contar ao pai, esse é o ponto mais importante, o menino saiu de casa para contar uma coisa muito importante para o pai, agora todos nós sabemos como isso termina, com o menino contando uma coisa muito importante para o pai, o menino saiu dali como um vitorioso, veja só como o menino está feliz da vida, saiu dali com um cabo de vassoura na mão, quebrado, partido, sujo de sangue, ainda com medo, mas vitorioso, saiu em disparada e largou a porta arreganhada, e a porta rangeu sozinha quando se fechou sozinha. Mas alguma coisa mudou no caminho, veja como o menino vai desacelerando enquanto corre, sozinho naquele descampado, o menino talvez tenha tido uma intuição, uma dessas intuições que mudam as coisas, em perspectiva, enquanto ele foi constatando por si mesmo o fim daquela história, aquela história que tinha começado muito bem, veja só como o menino vai percebendo, a mudança de fisionomia, porque cada corpo carrega uma verdade, que toda aquela aventura, toda aquele esforço, uma luta, o menino já tinha abandona aquele cabo de vassoura, o menino então meio que sabia que talvez tivesse entendido a coisa toda de uma forma equivocada, uma compreensão equivocada “Mas o senhor não disse nada”, é o que vai dizer mais à frente, e o pai, depois de um daqueles longos silêncios de puro ódio, o menino bem conhecia, “Em casa a gente conversa”. Quando o menino abriu a porta da casa, veja só, ele não percebeu de pronto, primeiro ele meio que sentiu um vulto passando atrás dele, da sala pra cozinha, uma sombra escorregando às suas costas, podia ser impressão, já tinha tomados uns passes, ouvido falar da necessidade de fechar a mediunidade, e foi nessas coisas que o menino pensou, nunca ia pensar em outra coisa, nunca numa bobagem tão simples, isso é o que menino pensou. Mas então ele viu o rabo do bicho, um rabo preto e peludo, e daí ele estremeceu inteiro, tanto medo que nem teve forças pra gritar, isso no primeiro momento, mas então o bicho apontou a fuça na cozinha e veio rosnando, aqueles dentes brancos e pontudos vazando no canto da boca, e o 2 Darandina Revisteletrônica– Programa de Pós-Graduação em Letras/ UFJF – volume 8 – número 2

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maldito do cachorro parecia o próprio diabo. Mas foi aí que o menino criou coragem e encarou o bicho, pelo do corpo erriçado. O menino pegou a vassoura desceu o malho no desgraçado, aquilo gemia e chorava como criança, mas menino estourou a cabeça daquele cão dos infernos. “Se você matou meu cachorro você vai ver comigo, moleque”, foi isso que o menino imaginou que o pai ia dizer, e o pai disse mesmo. E o menino imaginou que teria que enfiar aquele cachorro num saco e jogar no rio, e foi isso mesmo que o pai fez ele fazer. E quando eles voltavam do rio, o pai ainda disse que não tinha problema, arranjavam outro cachorro. E o menino respirou aliviado – só ficou sem ar em casa, e aqueles sinais do cabo de vassoura ainda não tinham saído de todo, ainda roxos, no dia do enterro do pai – 9h36 dum domingo bonito, caiu duro: sem mais, nem menos.

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