[Impressão] Contra o Formalismo – Flávio R. Kothe

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Contra o Formalismo* Flávio R. Kothe É sabido que o Formalismo russo constitui um sistema teórico, cuja dominante é a categoria do estranhamento. A dominante, enquanto princípio organizatório, é a própria dimensão das possibilidades mas também dos limites do sistema. Quando a dominante é questionada, todo o sistema fica abalado. Quem melhor criticou esta dominante do Formalismo russo foi Pavel Medvedev1, em 1928. Só em 1976 este livro recebeu uma tradução, para o alemão, depois de quase meio século de olvido. Como o Formalismo russo tem tido bastante e merecida repercussão no último decênio, além de ter recebido uma boa atualização em várias escolas a crítica – a Escola de Praga, o Estruturalismo francês, a Escola de Tartu –, aquela crítica guarda muita atualidade, apesar de o Autor, em 1935, tê-la considerada como não mais necessária devido à superação do Formalismo. Como este livro – O Método Formal na Teoria da Literatura – permanece aqui quase totalmente desconhecido, cabe fazer uma resenha bastante detalhada. Pavel Medvedev (1892-1938) foi o professor de literatura russa em Leningrado e pertenceu ao Círculo de Bakhtine. Este círculo funcionou mais ou menos de 1926 a 1933, colocando-se numa perspectiva de crítica imanente ao Formalismo. A fundamentação disso a nível de Filosofia da Linguagem foi feita por Valentin Volosinov e a aplicação maior a nível dos estudos especificamente literários foi feita por Michail Bakhtine. A intenção desse Círculo não era tanto a de desenvolver os postulados do Formalismo, antes, pretendia assumir uma perspectiva crítica totalmente diversa. Em primeiro lugar, como o termo “ideologia” desempenha um papel muito importante no livro de Medvedev, é preciso assinalar que ideologia não é entendida por ele como falsa consciência subjetiva, mas sim como uma realidade sígnica existente na interação social. Equivale ao conceito de supra-estrutura. Para Medvedev, a Teodoria ou Ciência da Literatura (Literturwissenschaft) é um ramo da Ciência das Ideologias. Esta Ciência deveria determinar as supra-estruturas gerais, suas funções na totalidade da vida social e suas relações com a base econômica. A literatura é, portanto, uma parte da ideologia, mas este termo tem para ele um sentido totalmente positivo. Daí a própria possibilidade de ele postular uma Ciência das Ideologias, termos que aparentam ser interexcludentes. A literatura espelha em si o horizonte ideológico, do qual ao mesmo tempo, ela faz parte. Os erros da historiografia literária geralmente são: 1) só ver o espelhamento literário dos outros

                                                                                                               

* Nota de transcrição: Esse artigo foi encontrado como foto do periódico em que foi publicado – o Suplemento Literário de Minas Gerais da Imprensa Oficial, Belo Horizonte, No 578, 29 de outubro de 1977, cujo acervo estava disponível para consulta em http://www.letras.ufmg.br/websuplit/ no em março de 2015. Transcrição feita por Eduardo Souza (Recife, 2016).

1 – Medvedev, Pavel. Die formale Methode in der Literaturwissenchaft. Stuttgart, Metzler Verlag, 1976.

 

níveis ideológicos; 2) só ver o espelhamento literário da infraestrutura; 3) não ver qualquer espelhamento ideológico. Pavel Medvedev enfatiza a necessidade de distinguir entre o espelhamento literário das relações e forças de produção de uma época, e o espelhamento literários dos outros espelhamentos ideológicos. Segundo ele, a análise literária deve conjugar a ambos. Quanto mais intensas e tempestuosas as transformações do horizonte ideológico, quanto mais isto for expresso em uma obra literária, tanto mais intensa e engajada a reação do público ante esta obra. O crítico erra quando encara opiniões expressas dentro da obra como sendo declarações do próprio autor, pois elas fazem parte do processo de desenvolvimento e construção da obra. A tarefa central do crítico é analisar a obra como um todo e não isolar um dos ideologemas da função que ele exerce em relação aos demais. O horizonte ideológico não é refletido apenas no conteúdo, mas na obra como um todo. A História da Literatura deve pesquisar a vida concreta da obra na unidade do processo de desenvolvimento do meio literário. Este deve ser analisado no processo de desenvolvimento do meio ideológico, que, por sua vez, deve ser analisado no desenvolvimento da esfera socioeconômica. O trabalho do historiador literário deve sempre considerar a correlação da literatura com a história de outras ideologias e com a historia socioeconômica. O Formalismo peca por crer que a especificidade dos estudos literários só seja possível através do seu isolamento absoluto. De fato, porém, a especificidade de cada fenômeno ideológico decorre de sua interação viva com outros fenômenos. Quanto mais se examina a literatura em correlação com outros setores ideológicos e da vida socioeconômica, tanto mais se mostra a especificidade literária. Cada fenômeno literário é determinado simultaneamente de fora e de dentro: de dentro, pela própria literatura; de fora, pelos outros setores da vida social. Mas enquanto a obra literária é determinada de dentro, ela se submete ao mesmo tempo à determinação externa, pois a literatura como um todo, determinando-a de dentro, é, por sua vez, determinada por fatores externos. E ao ser determinada de fora, a obra subjaz simultaneamente à determinação interna, pois os fatores externos determinam a obra em todas as suas propriedades específicas e em correlação com a situação literária global. Um fator externo, quando influi na literatura, torna-se fator interno para a evolução literária, mas torna-se, enquanto fator literário interno, externo para os outros setores ideológicos: a reação daí oriunda torna-se, porém, fator externo para a literatura. O formalismo não consegue entender que um fator social externo, ao influir na literatura, pode tornar-se um fator intrínseco da própria literatura, um fator de sua evolução imanente. Ao contrário do que pensam os formalistas, a estrutura artística é social (enquanto que uma estrutura química, por exemplo, não o é): senão, a História da Literatura seria uma luta permanente contra as agressões extraliterárias.

Não é isolando a literatura das outras forças e energias da vida social e ideológica que se alcança a especificidade dos estudos literários. A preocupação construtivista dos formalistas corresponde mais às experiências dos futuristas do que à arte em geral. A arte realista é tão construtivista quanto a arte construtivista. Os conceitos básicos desenvolvidos na primeira fase do Formalismo (linguagem transracional, procedimento, material, estranhamento) estão impregnados de uma tendência negativa e niilista: estão mais preocupados em negar o velho do que em descobrir o novo. Para definir o centro de seus estudos (a linguagem poética), o Formalismo a contrapôs totalmente à linguagem cotidiana, sem diferenciar os vários níveis existentes nesta e fazendo com que a linguagem poética só existisse enquanto negação inovadora do automatismo “característico” da linguagem cotidiana. A dominante do sistema constituído pelo Formalismo russo é a categoria do estranhamento (ostranenie). Na definição desta não foi, porém, inicialmente acentuado que a palavra é enriquecida por novos elementos construtivos significativos, mas, pelo contrário, limitou-se a acentuar a destruição do velho. Para definir estranhamento, Sklovskij baseou-se em Tolstoi, mas não foi capaz de entendê-lo. O estranhamento não é, para Tolstoi, mero objeto de diversão e prazer. Pelo contrário, ele usa o estranhamento para poder distanciar-se do objeto estranhado e poder apresentar um determinado valor moral. Assim, o estranhamento não é realizado apenas por diversão ou para “tornar a pedra mais pétrea”, mas sim devido a um valor moral que se torna mais claro e visível aí como portador de significado ideológico. O Formalismo absolutizou a importância do procedimento, do modo de construção da obra, às custas do sentido, do pensamento da verdade e do conteúdo social da obra. Tudo isso, aliás, nem existe para o primeiro Sklovskij. O Formalismo chegou à sua teoria eliminando matizes básicos da obra. Mas, só por mera subtração, não se chega a algo novo. Todas as suas teses, segundo Medvedev, são polêmicas e unilateralmente exageradas. Eliminando o significado, os formalistas perderam boa parte da obra. Pavel Medvedev resume em sete tópicos sua crítica à primeira fase do Formalismo: 1) a ligação do Formalismo com o Futurismo limitou-lhe o horizonte literário; 2) ele mais combateu a outras correntes artísticas do que a correntes teóricas; 3) ele se elaborou de modo totalmente polêmico, a ponto de a polêmica determinar até as novas análises do princípio construtivo das obras; 4) faltou-lhe explicitação e reflexão metodológica por não ter ocorrido um bom debate teórico; 5) não lutou contra o Positivismo e isolou a obra literária do contexto ideológico e histórico; 6) a luta contra a separação idealista entre sentido e material levou o Formalismo à negação do próprio sentido ideológico da obra literária; 7) até a dimensão construtiva da obra foi extremamente simplificada, pois o Formalismo não viu a sua ligação com o significado ideológico.

Com a preocupação relativa ao social e ao ideológico muito presente na literatura russa depois da Revolução, o Formalismo se viu negado pelo seu próprio objeto de estudos. Mesmo que as soluções por ele propostas pelo Formalismo sejam erradas, acabe a ele o grande mérito de ter formulado certos problemas, como o da especificidade literária e o da construção da obra, de modo tal que eles não podem mais ser esquecidos. Um método não é bom em si – ele só é bom se se adequa à especificidade de seu objeto. Abstrair o objeto ideológico das ligações sociais em que ele está inserido e às quais ele representa (como o Formalismo fez com a obra literária), é acabar com o objeto. É uma ilusão crer que definições linguísticas e qualidades poéticas coincidam. Potebnia não postulou um sistema de linguagem poética, mas a poeticidade da linguagem em si. Segundo Medvedev, isto é um erro, pois não vê que a linguagem só adquire qualidade poética dentro do poema. Achar que a Poética seja uma parte da Linguística é uma opinião muito parcial de alguns linguistas. A análise linguística de uma obra poética não dispõe de critérios para distinguir o que seja poeticamente essencial e não-essencial. Não é possível falar de sistema da linguagem poética: os marcos do poético não estão na linguagem em si nem em seus elementos, mas na construção poética. Só se pode falar de função poética da linguagem na construção de obras poéticas. A “função poética” não se torna por si e em si um princípio de construção. Faltou senso crítico as formalistas quando adotaram o conceito de linguagem poética como um sistema específico da linguagem e quando trataram de descobrir leis e marcos apenas linguísticos para o poético. Segundo Medvedev, eles se deixaram levar demais pelos devaneios futuristas, a ponto de confundirem o poético com o futurista. A base do Formalismo foi a contraposição entre linguagem poética e linguagem cotidiana. Sendo esta comunicativa, aquela foi vista como não-comunicativa e nela foi enfatizada a linguagem transracional (o significante sem significado), que não é típica para a poesia. Enfatizaram só o dessemelhante, o diferente entre ambas. Transpuseram, por conseguinte, marcos da linguagem comunicativa com o sinal avesso para a linguagem poética. E a sua linguagem prática cotidiana é uma construção arbitrária, simplificadora e sem base real. Os conceitos básicos do método formal – linguagem transracional, quebra do automatismo, deformação, forma dificultada – não passam, afinal, de negação das características correspondentes da linguagem prática cotidiana. Assim, a linguagem poética não é aí definida pelo que ela é, mas pelo que não é. Catalogar diferenças entre linguagem poética e linguagem cotidiana repousa no pressuposto não-discutido de que essas diferenças são essenciais, mas com o mesmo direito pode-se supor o contrário. Em Tynianov, a construção dinâmica da linguagem poética aparece só como destruição contínua do automatismo. A definição formalista da linguagem poética apenas como negação da linguagem cotidiana é improdutiva, pois a linguagem poética só pode então estranhar o que existe como produto nos outros sistemas da linguagem: ela só poderia, portanto, deixar de perceber algo não-perceptível

(por ser automatizado). Neste caso, a linguagem poética precisa primeiro esperar calmamente que ocorra uma automatização, para daí ela vir libertar heroicamente esta estrutura da automatização: ela mesma não pode criar nada... Na evolução literária, cada fenômeno histórico-literário só é visto pelo Formalismo como uma negação do fenômeno anterior: ele sempre é descrito à base do cânone a que destrói. Nesta descrição apenas negativa, a dialética também é apenas aparente. Aparentando justificar teoricamente o novo, o Formalismo acaba por reduzi-lo ao antigo, sem ver o surgimento de nada novo (exceto novas combinações de velhos procedimentos). Toda expressão verbal é orientada para comunicação: também a linguagem poética é comunicativa (até mesmo a linguagem transracional). O som não deve ser analisado como um em-si no poema: ele deve ser visto unido ao significado na construção do todo da obra. O som do poema não é parte da natureza e não pode, portanto, ser visto só como um fonema: o que é artisticamente organizado é o som como portador de significado social. Ele deve ser encarado, por isso, na relação comunicativa entre autor e público. Apesar do Formalismo não ter visto este aspecto, foi um progresso apontar para a importância da repetição de sons no poema. Segundo Medvedev, as obras literárias são parte da realidade ideológica, devendo serem confrontadas com outros produtos ideológicos, não bastando o mero confronto com a linguagem prática cotidiana. De qualquer maneira, a linguagem transracional é a melhor expressão literária das intenções concretizadas na teoria formalista. Enquanto tradicionalmente se dizia que a forma existe em função do conteúdo e que o conteúdo tem uma finalidade em si, os formalistas simplesmente inverteram essa tese, dizendo que o material motiva o procedimento e que o procedimento tem uma finalidade em si. Mantém-se, às avessas, o mesmo erro e a mesma insuficiência da posição anterior. Os formalistas, especialmente na primeira fase, não tinham nenhuma abertura no sentido de entender o material (isto é, valores éticos, cognitivos, etc.) também deve ser percebido e analisado. Entender isto devia levar à negação de toda a teoria formalista. O material é organizado na obra de modo tal que é impossível estabelecer na obra uma fronteira clara entre procedimento e construção. Sklovskij, ao analisar Tristam Shandy, não compreende a intenção do autor e não vê que esta obra é uma paródia não de um bom romance, mas de um mau romance e da má vida. Os exemplos dados por Sklovskij acabam se voltando contra a própria teoria dele. Medvedev procura marcar a sua distância quanto às teorias formalistas ao dizer que o material da poesia é a linguagem como sistema social de valores vivos e não como conjunto de todas as possibilidades linguísticas. A obra literária também não tem uma existência autônoma absoluta: ela existe dentro do gênero a que ela pertence e ela mesma se volta para as condições de sua recepção. Novos modos de construção de obras permitem ver novos aspectos da realidade, e quando há novos horizontes no real é preciso novos métodos para sua fixação.

Os formalistas erraram quando pretenderam alcançar o sentido dela, retirando-a da vida espiritual da sociedade. Querendo eliminar a subjetividade, eles a colocaram na base de todas suas teorias ao adotarem a desautomatização como dominante de seu sistema teórico. A obra literária não pode ser separada do processo de comunicação em que ela existe. Numa obra, o material é tanto mais percebido quanto mais caminhos ideológicos nele se cruzam, quanto mais diversificados forem os interesses que nele entram em contato. Neste sentido, a própria história do Formalismo demonstra o erro de seus postulados teóricos. Segundo a teoria da primeira fase do Formalismo pode acontecer o que quiser no mundo que a série literária se desenvolve impávida e só. O Formalismo viu a evolução literária como uma luta entre automatização e estranhamento, mas a luta em si não provoca a evolução literária. Podem surgir obras que nada têm a ver umas com as outras ou que não se sucedem apesar de terem se combatido entre si. O princípio “automatismo x percepção” é o fundamento do Formalismo, mas a negação do princípio de construção automatizado não precisa necessariamente atingir a essência deste nem ser determinado por ele. Tudo teria sido bem diferente se os formalistas tivessem conjugado a contraposição básica “automatismo x percepção” com as relações ideológicas e sociais da época. Na teoria formalista sobre a evolução literária falta a categoria central do tempo histórico: as suas premissas impedem-lhe o acesso à História. Como esta resenha procura mostrar, o livro de Pavel Medvedev, O Método Formal na Teoria da Literatura, guarda em si um tom polêmico e um impulso de destruição do Formalismo. Mostra-se pouco aberto no sentido de destacar a contribuição positiva desta corrente da crítica, especialmente o avanço representado por sua segunda fase. As mesmas forças que serviram para propagar um ponto de vista meramente formalista servem também para manter esta obra no olvido. Nem por isso deixa de ser extremamente agudo e pertinente a crítica destrutiva que Medvedev exerce não apenas em relação ao Formalismo russo, mas em relação a todas as correntes e todos os “críticos” que têm adotado um ponto de vista puramente formal nos estudos literários. Tanto para a compreensão das demais obras produzidas pelos membros do Círculo de Bakhtine, quanto para a avaliação do passo representado pelo surgimento da escola de Tartu, este livro de Medvedev é uma contribuição preciosa e imprescindível. Ele consegue ser uma crítica imanente que atinge o cerne e os pontos nevrálgicos de todo o sistema do Formalismo russo e, ao mesmo tempo, é capaz de apontar um modo de ultrapassar as limitações deste sistema. Permite compreender melhor o caráter sistemático desta corrente e serve, hoje, para reevocar nos estudos literários um conjunto de problema que a repressão e o medo subterraram, mas que nem por isso deixam de existir.

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