IMPROVISAÇÃO NA MÚSICA POLIFÔNICA DO SÉCULO XVI

May 24, 2017 | Autor: Giulia Tettamanti | Categoria: Renascimento, Improvisação Musical, Música Instrumental
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IMPROVISAÇÃO NA MÚSICA POLIFÔNICA DO SÉCULO XVI: A ARTE DE DIMINUIR COM OGNI SORTE DE STRUMENTO ET CANTO

Giulia da Rocha Tettamanti Instituto de Artes da UNICAMP – [email protected]

Resumo: Este artigo discute a preceptiva da diminuição no século XVI. Por diminuição definimos um certo tipo de ornamentação improvisada adicionada ao contraponto no ato da execução, seja ela vocal ou instrumental. Tal prática foi documentada por uma série de manuais didáticos publicados pelos mais célebres cantores e instrumentistas da época entre os anos de 1535 e 1620. Para este pequeno estudo comparativo de fontes fizemos um recorte de todas as obras fundamentais até o ano de 1585, pois elas correspondem à primeira fase desta tratadística. Obras mais tardias mostram uma crescente influência dos ornamentos típicos do novo estilo inaugurado com a Seconda Prattica no início do século XVII. Palavras-chave: Diminuição. Improvisação. Polifonia. Renascimento. Abstract: This paper discusses the perceptive of diminution in the sixteenth century. By diminution we define a certain type of improvised ornamentation added to counterpoint during the performance, whether it be vocal or instrumental. This practice was documented in a series of textbooks published by the most famous singers and instrumentalists between 1535 and 1620. For this small comparative study of sources, we made a cut out of all the fundamental works until 1585 because they correspond to the first phase of diminution treatises. The later works show us an increasing influence of Seconda Prattica typical ornaments of the seventeenth century. Keywords: Diminution. Improvisation. Polyphony. Renaissance.

1. Introdução Este artigo é fruto de pesquisa de mestrado concluída em 2010 no Instituto de Artes da UNICAMP, na qual traduzimos e analisamos a Obra Intitulada Fontegara de Silvestro Ganassi dal Fontego (1492 - c.1557), primeiro tratado a abordar sistematicamente a arte da diminuição. Diminuir con ogni sorte di strumento et canto, isto é, “com qualquer tipo de instrumento e canto” é uma expressão muito conhecida na Itália do século XVI, constante na maioria dos títulos de livros e coletâneas de música publicados na época, todos eles destinados ao público amador. Nos manuais de diminuição, a expressão aparece em quase a totalidade das obras e reflete a vasta gama de possibilidades interpretativas e variantes de instrumentação que cada peça musical a ser executada carrega.

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Sabemos que a polifonia vocal foi o gênero de composição predominante no Renascimento,1 porém sua performance ao longo do século foi realizada de diversas maneiras, isto é, através de conjuntos puramente vocais, puramente instrumentais ou de uma combinação entre os dois anteriores.2 Sendo assim, de acordo com a iconografia, as obras que permaneceram e as descrições contidas nos tratados, os principais modos de executar uma peça polifônica renascentista apenas utilizando instrumentos, podem resumir-se em: a) execução através de consorts de flautas doces, de charamelas, de violas da gamba, etc., isto é, conjuntos constituídos por diversos instrumentos de uma mesma família construídos em diferentes tamanhos de acordo com os registros vocais (soprano, alto, tenor e baixo) muito empregados nas cortes e cidades de toda Europa; b) execução solo através do uso de tablaturas para alaúde, isto é, o uso de transcrições adaptadas para que todas as vozes sejam executadas ao mesmo tempo por um único instrumento harmônico, neste caso de cordas dedilhadas. O primeiro livro deste tipo, dentre uma longa série de tablaturas para o instrumento, foi impresso por Otaviano Petrucci em quatro volumes entre os anos de 1507 e 1508, sendo que a maior parte do volume I foi composta por transcrições do Odhecanton3, primeiro livro impresso de música da história; c) execução solo através do uso tablaturas para teclados. Este procedimento é semelhante às transcrições para alaúde, porém possuem notação diferente e são geralmente destinadas à execução ao órgão ou ao cravo. As obras de Marco Antonio Cavazzoni, Girolamo Cavazzoni e Andrea Gabrieli estão entre as mais significativas; d) execução através de conjuntos de vários instrumentos de sopro e/ou de cordas. Na Inglaterra, essa formação é chamada de broken consorts, já na Itália, um ótimo exemplo deste tipo de conjunto são os piffari do doge de Veneza, isto é, o grupo oficial da Ilustríssima Senhoria, que utilizavam em sua formação cornetos, sacabuchas, trompetes, charamelas e flautas doces. Quando acrescentamos a voz aos grupos instrumentais, podemos verificar apenas duas variantes, a primeira delas refere-se à execução coral com acompanhamento de órgão, instrumentos de sopro e/ou de cordas. Um bom exemplo desse tipo de conjunto encontra-se nos cori spezzatti (coros divididos) de Giovanni Gabrieli, compostos para serem tocados pela orquestra4 da capela ducal de São Marcos em Veneza, sob direção do cornetista Giovanni Bassano; 5 já a segunda variante consiste na execução vocal ou instrumental solo com acompanhamento de instrumentos de teclado ou alaúde. É importante ressaltar que esta prática de acompanhar um solista com um instrumento harmônico que faz a redução das demais vozes de um moteto, madrigal ou chanson foi precursora da monodia acompanhada por baixo contínuo e da sonata do período barroco. A partir da análise do repertório encontrado nos manuais de diminuição e das indicações dadas pelos autores, verifica-se, portanto, que toda obra polifônica, em qualquer uma das instrumentações descritas acima – ogni sorte d’strumento – pode ser diminuída por um 1

HORSLEY, Imogene. Improvised Embellishment in the Performance of Renaissance Polyphonic Music. Journal of the American Musicological Society, Berkeley, vol. 4, n. 1, pp. 3-19, 1951. 2 Ibidem, p. 4. 3 REESE, Gustave. Music in the Renaissance. New-York: Norton, 1959, p. 521. 4 O termo orquestra está sendo empregado como sinônimo de “agrupamento de vários instrumentos de sopro e corda” e portanto muito longe da conotação que se tem hoje em dia. 5 ARNOLD, Denis. The significance of cori spezzati. Music &Letters, Oxford, vol. 40, n.1, pp. 4-14, 1959; SELFRIDGEFIELD, Eleanor. Bassano and the Orchestra of. St Mark’s. Early Music, Oxford, vol. 4, n. 2, pp. 152-158, 1979.

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solista ou em grupo. Neste caso, a diminuição deve ser feita em turnos, para evitar o caos e não adulterar o contraponto original com dissonâncias, quintas e oitavas paralelas. 2. Os manuais e a arte da diminuição Por diminuição entendemos o processo de “quebrar” de diferentes maneiras longas notas (semibreves, mínimas) de uma melodia preenchendo-as com notas de menor valor (colcheias, semicolcheias, etc.). Desta forma, cria-se uma ornamentação baseada em notas de passagem entre a estrutura principal de uma obra. Embora seja um tipo de ornamentação muito livre, a diminuição renascentista tem algumas características bem determinadas que a separa das formas de ornamentação sucessivas: 6 1) Estilo livre e não estereotipado; 2) Linhas melódicas homogêneas e balanceadas de acordo com as características das composições da época; 3) Cuidado com a preservação das consonâncias verticais da obra, tem-se liberdade melódica e rítmica somente entre tais consonâncias; 4) Não há diferença, a princípio,7 entre música vocal e instrumental no que diz respeito à confecção dos ornamentos: autores geralmente tomam o cuidado de especificar que as diminuições são igualmente apropriadas para o canto e para instrumentos de sopro e cordas, conforme a indicação dos títulos: per diminuire con ogni sorte di strumento et canto. Tais características são constantes em inúmeras obras didáticas publicadas na Itália entre os anos de 1535 e 1620. Estas obras, conhecidas com manuais de diminuição, foram escritas em língua vernácula e quase todas publicadas em Veneza. Elas têm como objetivo explicar a arte da diminuição, assim como também oferecer uma vasta gama de exemplos em ordem crescente de dificuldade de como ornamentar os diferentes intervalos e cadências. Algumas delas trazem uma série de ricercari compostos especialmente para aperfeiçoar a técnica, além de trechos e diminuições completas de obras consagradas do repertório recente (motetos, madrigais e chansons). Os manuais de diminuição são importantes ferramentas para a compreensão da música do século XVI porque testemunham uma visão prática da execução musical renascentista, uma vez que foram escritas e publicadas por refinados e habilidosos instrumentistas profissionais, músicos atuantes nos palácios, igrejas e à serviço do Estado. O primeiro destes manuais, Opera Intitulata Fontegara,8 é uma obra didática9 para flauta doce publicada em 1535 por Silvestro Ganassi dal Fontego (1492 – c.1557), músico da Ilustríssima Senhoria de Veneza, atuante em diversos grupos da cidade, bem como no serviço musical da capela de São Marcos. 6 HORSLEY, Imogene. Op.cit., p. 5. 7 É importante observar que com o decorrer do século as diminuições instrumentais passaram a ser cada vez mais virtuosísticas que as vocais. 8 GANASSI, Silvestro. Opera Intitulata Fontegara, la quale insegna a sonare di flauto chon tutta l’arte opportuna a esso istrumento massime il diminuire il quale sarà utile ad ogni istrumento di fiato et chorde: et ancora a chi si dileta di canto, composta per Sylvestro Ganassi dal Fontego sonator della Ill ma. Sa. D. Va. Veneza, 1535. Bolonha: Arnaldo Forni, 2002. 9 A Fontegara foi o primeiro tratado na história da música dedicado inteiramente à prática de um único instrumento. Mais informações em BROWN, Howard M. Silvestro di Ganassi dal Fontego. In: The New Grove Dictionary of Music and Musicians. London: McMillan Publishers Limited, 1980 e TETTAMANTI, Giulia da Rocha. Silvestro Ganassi: Obra Intitulada Fontegara. Um estudo sistemático do tratado abordando aspectos da técnica da flauta doce e da música instrumental do século XVI. Dissertação de mestrado. 295p. Campinas: Unicamp, 2010.

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Nesta obra, após discutir a respeito dos problemas básicos da técnica do instrumento, como sonoridade, dedilhado e articulação, Ganassi dedica treze dos vinte e cinco capítulos à arte da diminuição. Segundo o autor, cada um pode diminuir variando três aspectos: proporção,10 ritmo e melodia. Essas diminuições são diferentes umas das outras de acordo com os valores das figuras utilizadas (mínima, semínima, colcheia e semicolcheia) e divididas em dois grupos: a) Diminuições simples: que contêm somente notas do mesmo valor; b) Diminuição composta: que utiliza vários tipos de figuras rítmicas.11 Nos dois capítulos que se seguem, Ganassi discorre a respeito das diversas combinações entre os três aspectos (ritmo, proporção e melodia) e os dois tipos de divisão acima mencionados (simples e composto). A partir disso, ele organiza sua vasta tabela de exemplos em quatro regras de acordo com a proporção métrica envolvida: Regola Prima: na qual se diminui utilizando quatro semínimas para cada semibreve 4/1; Regola Seconda: cinco semínimas para cada quatro da primeira regra 5/4; Regola Terza: diminuição em proporção sesquialtera 6/4 e Regola Quarta: sete semínimas para cada quatro da primeira regra 7/4.12 Nos capítulos finais,13 o autor define algumas regras complementares para a aplicação de fórmulas de diminuição em uma composição preestabelecida (ex. 1), observando que, as diminuições devem ser feitas de semibreve para semibreve, desconsiderando os valores menores; as consonâncias principais devem ser mantidas, por isso cada ornamento deve começar e terminar com as mesmas notas do intervalo diminuído (ex. 2), ou então, começar com a primeira nota (consonância) e chegar na segunda por grau conjunto (ex. 3); neste último caso, Ganassi comenta que devido à velocidade em que estes ornamentos são executados quaisquer eventuais dissonâncias passarão desapercebidas pelo ouvinte.14

Ex.1: Silvestro Ganassi, Opera Intitulata Fontegara, cap. 20, diminuição simples de ritmo e proporção em um trecho de composição.

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Ganassi é o único autor a utilizar proporção como possibilidade de diminuição em manuais. Ver: HORSLEY, Imogene. Op. cit., p. 6 e TETTAMANTI, Giulia da Rocha. Op.cit., p.170-172. 11 GANASSI, Silvestro. Op.cit., cap. 9-12. 12 Ibidem, cap. 13-17. 13 Ibidem, cap. 18-22. 14 Ibidem, cap. 13.

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Ex. 2: Silvestro Ganassi, Opera Intitulata Fontegara, Regola Prima: diminuição do intervalo de segunda quebrada ascendente e cadência.

Ex.3: Silvestro Ganassi, Opera Intitulata Fontegara, Regola Prima: diminuição do intervalo de quarta quebrada descendente.

Silvestro Ganassi foi também o autor do primeiro tratado de viola da gamba, publicado em dois volumes: Regola Rubertina, 154215 e Lettione Seconda, 1543.16 Na obra, ele menciona brevemente sobre as diminuições,17 reforça a importância de saber contraponto ao ornamentar uma passagem e, para que o aluno não evite o uso de diminuições nas cadências por motivos de dificuldade técnica, dá exemplos de diversos dedilhados na viola para que seja possível ornamentar sem mudar de corda.18 O autor também incluiu quatro ricercari em cada volume e um madrigal de Jacopo Fogliano, Io vorrei dio d’amore,19 arranjado para voz com acompanhamento de viola, que constituem os únicos exemplos práticos de suas regras de diminuição e de suas habilidades como músico. O próximo autor a discutir sobre a improvisação de ornamentos foi Adrian Petit Coclicus (1500-1563), em seu livro publicado em 1552 Compendium musices.20 Autodenominado discípulo de Josquin des Prez, Coclicus, em um dos capítulos do Compendium, De elegantia et ornatu, aut pronunciatione in canendo, nos dá numerosos exemplos de frases melódicas simples e diminuídas. Ele também inclui versões ornamentadas de canções para duas vozes (sem a parte simples) e uma fuga (simples e ornamentada). Suas diminuições são menos complexas do que as de Ganassi e, em momento algum, ele especifica alguma regra de como aplicar tais ornamentos em uma composição. Sua importância está no fato de Coclicus ser o primeiro a discutir quais das vozes de uma composição polifônica devem ser ornamentadas. A respeito desta questão, o autor insiste firmemente que a voz mais grave não deve ser ornamentada, uma vez que esta é a voz fundamental sobre a qual todas as outras se apoiam.21 15

GANASSI, Silvestro. Regola Rubertina. Regola che insegna sonar de viola d'archo tastada de Sylvestro Ganasi dal Fontego, Veneza, 1542. Bolonha: Arnaldo Forni, 1984. 16 GANASSI, Silvestro. Lettione Seconda. Lettione seconda pur della prattica di sonare il violone d'arco da tasti, composta per Silvestro Ganassi dal Fontego desideroso nella pictura, la quale tratta dell'effeto della corda falsa giusta e media et il ponere li tasti con ogni rason e prattica, et ancora lo acordar ditto violone con la diligentia conveniente in diverse maniere et accomode ancora per quelli che sonano la viola senza tasti con una tabulatura di lauto adottada di molti et utilissimi secreti a propositi nell'effetto dil valente di tal strumento e strumenti et ancora il modo di sonare piu parte con il violone unito con la voce. Opera utilissima a chi se diletta de imparare sonare, Veneza, 1543. Bolonha: Arnaldo Forni, 1978. 17 GANASSI, Silvestro. Regola Rubertina. Bolonha: Arnaldo Forni, 1984, cap. III, V e VI. 18 GANASSI, Silvestro. Lettione Seconda. Bolonha: Arnaldo Forni, 1978, cap. XVII. 19 Ibidem, cap. XVI. 20 COCLICUS, Adrian Petit. Compendium musices descriptum ab Adriano Petit Coclico, discipulo Josquini des Pres, Nüremberg 1552. 21 HORSLEY, Imogene. Improvised Embellisments [...], p. 10.

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De fundamental relevância foi também o Trattado de glosas sobre clausulas y otros generos de puntos em la musica de violones (Roma, 1553), do espanhol Diego Ortiz (ca. 1510 – 1570).22 A obra está dividida em duas partes: na primeira parte, Ortiz define três maneiras23 de diminuir muito semelhantes às de regras de Ganassi: a) “A primeira e mais perfeita” delas é quando a glosa24 começa e termina com as mesmas notas do intervalo diminuído, não alterando assim, a estrutura do canto (ex. 4); b) A segunda maneira, é quando a diminuição começa na primeira nota do intervalo e alcança a nota seguinte por grau conjunto, toma um pouco mais de liberdade e com ela é possível criar os mais belos e diversos floreios. Aqui, do mesmo modo que Ganassi, Ortiz comenta que as dissonâncias e erros criados por tais diminuições são de pouca importância devido à velocidade das notas (ex. 5); c) A terceira e última maneira é quando o músico foge da composição, elaborando as diminuições “de ouvido”, o que o autor condena veementemente pelo fato deste tipo de improvisação distorcer o original.

Ex.4: Diego Ortiz, Trattado de glosas: diminuição do intervalo de segunda descendente, segundo a primeira maneira.

Ex.5: Diego Ortiz, Trattado de glosas: diminuição do intervalo de segunda descendente, segundo a segunda maneira.

Ainda na primeira parte, o autor fornece uma série de exemplos de intervalos diminuídos e cadências (ex. 6) e aconselha consultá-los para ornamentar uma melodia de acordo com a seguinte metodologia: em primeiro lugar, deve-se separar a voz que se deseja glosar, em seguida, consultar o tratado para escolher os exemplos que lhe caem melhor para depois aplicálos às notas longas e em todos os lugares que se queira diminuir.25 É curioso observar que ele oferece muito mais exemplos de cadências do que de intervalos diminuídos fato que, embora não se tenha nada comprovado a respeito da obrigatoriedade de se ornamentar cadências, indica que essa prática era essencial para a ornamentação da época. 22

ORTIZ, Diego. Tratado de glosas sobre clausulas y otros generos de puntos en la musica de violones. Roma, 1553. Übertragen von Max Schneider. Kassel & New York: Bärenreiter, 1961. Ortiz foi compositor, organista e maestro de capela de Fernando Álvares de Toledo, terceiro duque de Alba e vice-rei da Espanha na corte de Nápoles. 23 ORTIZ, Diego. Tratado de glosas, libro I. 24 O termo glosa, correspondente em espanhol do termo italiano gorgia, isto é, “garganta”, foi empregado com frequência no século XVI como sinônimo de diminuição. Ver: TETTAMANTI, Giulia da Rocha. Op.cit., p. 177. 25 ORTIZ, Diego. Trattado de glosas, Libro I.

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Apesar dos modelos de ornamentação de Ortiz serem um pouco mais fáceis e bem mais convencionais metricamente (o autor apenas utiliza exemplos nas proporções quatro e seis semínimas para uma semibreve) do que os exemplos de Ganassi, tal simplicidade tende a deixar a diminuição mais próxima da melodia original. A única importante diferença entre os dois tratados está no fato de que Ortiz, ao invés de considerar somente as semibreves, e excluir as notas menores intermediárias de uma composição, trabalha com valores menores como a mínima e a semínima.

Ex.6: Diego Ortiz, Trattado de glosas: diminuição do intervalo de segunda ascendente de mínima, quinta descendente de semibreve e cadência com o final em ré.

Na segunda parte do Trattado de glosas, Ortiz enumera três tipos de execução utilizando o violone26 com acompanhamento de cravo (ou qualquer instrumento de teclado): a) os dois instrumentos improvisam livremente uma fantasia, para tal execução, o autor diz não ter nenhuma regra e que cada um o faz à sua maneira; b) o violone improvisa variações sobre um ostinato, enquanto o cravo o acompanha com consonâncias e algum contraponto; para exemplificar a segunda maneira, Ortiz compôs seis Recercadas (tradução espanhola do termo ricercari) sobre o baixo “La Spagna”; c) as quatro vozes de um madrigal são transcritas para o cravo enquanto o violone escolhe uma das vozes para improvisar diminuições; se escolher o discantus o cravo deverá omitir essa voz. Esse procedimento foi o ponto de partida para o desenvolvimento da sonata solo do século XVII. 26

Instrumento grave de cordas da família das violas da gamba (viola baixo).

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Para exemplificar o terceiro modo, Ortiz diminuiu o madrigal O felici occhi miei de Jacob Arcadelt e a chanson francesa Doulce memoire de Pierre Sandrin. O tratado ainda possui quatro exemplos de recercadas para serem tocadas com o violone sem acompanhamento do cravo. Sua finalidade corresponde ao que os renascentistas chamam de “fazer a mão”, isto é, estudos para praticar a soltura dos dedos e desenvolvimento da técnica no instrumento. Em 1556, Hermann Finck publicou em Wittenberg, Alemanha, o tratado Practica musica, exemplavariorum signorum, proportionum, et canorum, judicium de louis ac quaedam de arle suaviter et artificiose cantandi conhinens. 27 Em um de seus capítulos De arte eleganter et suaviter cantandi, o autor fala da técnica do canto e de como ornamentar. Para Finck, a arte da coloratura28 depende somente das habilidades individuais do cantor e, por isso, ele condena a prática de aplicar indiscriminadamente em todas as partes da composição ornamentos copiados de outros. Embora admita não haver um consenso sobre quais vozes de uma composição são mais pertinentes de serem diminuídas, Finck acredita que todas elas podem ser ornamentadas: não ao mesmo tempo, mas em turnos, de modo que não haja erros de contraponto e que cada coloratura seja ouvida claramente. Pelo mesmo motivo, vários cantores não devem ornamentar uma voz simultaneamente em execuções corais (mais de um cantor por voz). Os exemplos são muito semelhantes aos de Coclius, pequenas figuras melódicas e cadências em suas versões simples e ornamentadas. A grande diferença entre os dois é que os exemplos de Finck, convicto de sua opinião, aparecem nas claves de todas as vozes, inclusive para o baixo (ex. 7). Um moteto29 de sua própria autoria, com texto de Philipp Melanchthon, onde todas as vozes foram ornamentadas, foi incluído em seu Practica musica.

Ex.7: Hermann Finck, Practica Musica: diminuição para as vozes de contralto e baixo.

A respeito da prática vocal também escreve Camillo Maffei da Solofra30 em sua carta para o Illustrissimo Conte d’Alta Villa, a qual contém uma excelente discussão a sobre os princípios da emissão vocal, de como aprender a aperfeiçoar a técnica naturalmente, assim como fazer “floridas” ornamentações em obras polifônicas. Maffei foi o primeiro a usar o termo 27

Hermann Finck, Practica musica (Wittenberg, 1556), Liber quintus, De arte eleganter et suaviter cantandi. Apud: HORSLEY, Imogene. Op.cit., p. 12. 28 Coloratura significa “colorir”, o termo também foi empregado no século XVI como sinônimo de ornamentação, diminuição. 29 Ver partitura em: FERAND, Ernest T. Improvisation in nine centuries of western music: An anthology with a Historical Introduction. Colônia: Arno Volk Verlag, 1961, pp.75-79. 30 Giovanni Camillo Maffei da Solofra, Delle lettere del S. R. Gio. Camillo Maffei da Solofra. Libri due. Dove tra gli altri bellissimi pensieri di Filosofia e di Medicina vi è un discorso della você e del modo d’apparare di cantar di Gargantua, senza maestro non più veduto n’istam pato. Raccolti per Don Valerio de' Paoli da Limosano Nápoles, 1562. Apud: HORSLEY, Imogene. Op.cit. p. 12.

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passaggio como sinônimo de diminuição, o termo passa a ser constante em obras da segunda metade do século XVI e início do XVII. Na carta, o autor define regras bem claras de aplicação das passagens em uma obra polifônica vocal, incluindo poucos exemplos e um madrigal a 4 vozes atribuído a François de Layolle31 com as todas as vozes ornamentadas em turnos (ex. 8). Suas regras podem ser resumidas da seguinte maneira:32 a) As passagens devem ser utilizadas preferencialmente nas cadências, embora alguns ornamentos possam ser feitos de uma nota para a outra antes de chegar na cadência; b) Em um madrigal, as passagens não devem ser utilizadas mais do que quatro ou cinco vezes (para cada voz), de modo que não canse o ouvido com tanta “doçura” (dolcezza). Em seu exemplo, a voz do soprano e do alto foram ornamentados com seis passagens cada, o tenor com quatro e o baixo com cinco; c) As passagens devem ser feitas na penúltima sílaba da palavra, de modo que o fim dela coincida com o final da palavra. Essa regra não se aplica a todos os exemplos do seu madrigal; d) As passagens soam melhor quando feitas sobre a vogal “o”; e) Em um grupo de quatro o cinco solistas as passagens devem ser executadas em turnos, porque de outra maneira a harmonia deixa de ser clara.

Ex. 8: Camillo Maffei, excerto do madrigal atribuído à François de Layolle com diminuição do autor.

Girolamo Dalla Casa, cornetista e maestro de’concerti da capela ducal de São Marcos em Veneza, publicou em 1584 o manual Il vero modo de diminuir.33 Dividido em dois 31

FERAND, Ernest T. Op.cit., p.13. HORSLEY, Imogene. Op.cit., pp. 12-14. 33 DALLA CASA, Girolamo. Il vero modo di diminuir, com tutte le sorte di stromenti di fiato e corde e di voce humana. Veneza, 1584. Bolonha: Arnaldo Forni, 2003. 32

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volumes, o manual inclui uma lista de todos os intervalos da escala diminuídos. É a primeira em vez que aparece diminuições em intervalos de sexta, sétima e oitava (ex. 9), o que nos revela que esses intervalos passaram a fazer parte das composições com maior frequência. O autor também apresenta exemplos do que ele chama de tremoli groppizati e groppi battutte (ex. 10), primeiro indício da preferência por uma ornamentação estereotipada amplamente presente no século XVII e que mais tarde transformar-se-á no que conhecemos como trilo cadencial.

Ex. 9: Girolamo Dalla Casa, Il vero modo di diminuir: diminuição do intervalo de oitava.

Ex. 10: Girolamo Dalla Casa, Il vero modo di diminuir: ornamentação de caráter estereotipado.

Embora Dalla Casa não defina regras para suas diminuições, ele diz que a maneira mais perfeita de diminuir é quando se utiliza uma combinação das quatro figuras rítmicas miúdas existentes, isto é, a colcheia, a semicolcheia, a treplicata (24 notas por semibreve) e a quadruplicata (fusas). A segunda parte do livro contém numerosos exemplos de madrigais e chansons de renomados compositores da época, como Cipriano de Rore, Willaert, Palestrina, Janequin e Orlando di Lasso, todos diminuídos pelo autor. A maioria dos exemplos têm a primeira voz diminuída e os ornamentos passam a ser cada vez mais velozes. Dalla Casa também inclui uma sextina de Cipriano de Rore, Alla dolc’ombra (ex.11), no qual todas as vozes estão diminuídas em turno, seguindo as indicações de Maffei e dos autores germânicos.

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Ex. 11: Girolamo Dalla Casa, Il vero modo di diminuir: sextina Alla dolce ombra

É curioso observar o sistema que o autor utiliza para notar as diminuições dos madrigais do primeiro livro, pois, ao contrário dos demais autores e dele mesmo no segundo livro, a diminuição não é feita de maneira corrida, do começo ao fim, mas intercala trechos do original com as suas respectivas diminuições, às vezes seguidas de uma segunda versão um pouco mais difícil (ex. 12). A metodologia utilizada por Dalla Casa deixa claro o caráter mnemônico das diminuições, assim como as diversas etapas de seu aprendizado. Portanto, devemos lembrar que o manual é apenas uma ferramenta didática e não um livro de canções, com o qual tocamos cada exemplo como se fosse uma música nova, escrita, mas cada trecho ornamentado, deve soar como improvisado e imediatamente vinculado em nossa memória com a melodia que o originou.

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Ex. 12: Girolamo Dalla Casa, Il vero modo di diminuir: diminuição de algumas passagens e cadências da obra de Filippo de Monti Cantai un tempo.

Em 1585, no ano seguinte à publicação do manual de Dalla Casa, Giovanni Bassano, sucessor deste como maestro de’concerto em São Marcos publicou seu manual de diminuições Ricercate, Passaggi et Cadentie, per potersi essercitar nel diminuir terminantemente com ogni sorte d'Istrumento: & anco diversi passaggi per la semplice voce.34 Reconhecendo a necessidade de aquisição de habilidades técnicas por parte dos instrumentistas de seu tempo, principalmente no ato de executar diminuições, Bassano inicia seu manual com oito ricercate especialmente escritas pra desenvolver a técnica (fazer a mão). Tais ricercate ou ricercari têm a escrita livre e são divididas em seções, assim como os ricercari polifônicos. Além disso, como não são restritas à uma melodia vocal preestabelecida, estão livres para desenvolver os vários motivos dados, e esses motivos têm uma concepção mais instrumental do que vocal. Deste modo, essas ricercate vão além da proposta de desenvolver a técnica através do uso de longas passagens baseadas em modelos de diminuição para se transformarem em peças didáticas de um estilo puramente instrumental. As duas primeiras seções da ricercata ottava (ex. 12) mostram longos saltos, figuras arpejadas e uso de uma extensão ampliada do instrumento, ou seja, fortes indícios de uma linguagem de origem claramente instrumental.

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BASSANO, Giovanni. Ricercate, Passaggi et Cadentie. Veneza, 1585. Münster: Mieroprint, 1996.

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Ex. 12: Giovanni Bassano, Ricercate, passaggi: Ricercata n. 8

Em seguida às ricercate, Bassano apresenta uma série de cadências e passaggi diminuiti em intervalos ascendentes e descendentes de segunda, terça, quarta, quinta e sexta. Por último, ele diminui em duas versões, o soprano do madrigal de Cipriano de Rore Signor mio caro. Os manuais de Dalla Casa e Bassano pertencem à fase de transição do Renascimento para o Pré-Barroco,35 na qual verifica-se uma mudança gradual em toda a técnica de ornamentação. Manuais que ensinam o velho estilo, manuais que ensinam o novo estilo e ainda aqueles que fazem uma mistura de ambos coexistem entre os anos de 1580 a 1630. No novo estilo de ornamentação, a performance instrumental passa a ser cada vez mais virtuosística e separa-se definitivamente da vocal; pequenos modelos de ornamentação são introduzidos para valorizar certas notas em uma frase e para enfatizar a expressão; figuras floridas (passaggi) permanecem, mas adquirem um outro caráter de acordo com o novo estilo de composição; os ritmos tornam-se mais “saltados” e descontínuos e as consonâncias em breve serão acompanhadas de apoggiature, onde a dissonância é que cai no tempo forte; e, finalmente, o tempo e o conteúdo emocional de uma composição, junto com a habilidade do executante, vão governar os tipos de ornamentos a serem usados. São também desse período os manuais de Riccardo Rognioni, Passaggi per potersi esercitare nel diminuire, 1592; Girolamo Diruta, Il transilvano, 1593; Giovanni Luca Conforto, Breve et facile maniera de esercitarsi [...] a far passaggi, 1593; Giovanni Battista Bovicelli, Regole, passaggi di musica, 1594 e Francesco Rognioni, Selva di varii passaggi, 1620. 35

ERIG, Richard. Preface. In: BASSANO, Giovanni, Ricercate, Passaggi et Cadentie, 1585. Zürich: Musikverlag zum Pelikan, 1976.

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