Improvisações livres e mediações: problematização acerca das maneiras pelas quais se dão (PPGMUS, 2017)

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Improvisações livres e mediações: problematização acerca das maneiras pelas quais se dão Stênio Biazon PPGMUS-ECA/USP – [email protected]

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presente artigo trata da pesquisa de mestrado intitulada “Improvisações livres enquanto heterotopias anarquistas situadas na sociedade de controle: formulação acerca das maneiras pelas quais se opera discutida a partir de problematizações emergentes” e orientada por Rogério Costa. Para as reflexões aqui apresentadas foram depreendidas pistas metodológicas e filosóficas de Michel Foucault e Max Stirner. Valendo-me destas, tenho estudado os enunciados acerca das maneiras pelas quais se dão as práticas de improvisação musical livre, atentando-me às problematizações que deles podem ser condição de possibilidade. O recorte trazido neste texto diz respeito a múltiplas discussões acerca de como questões envolvendo mediações são problematizadas por autores que tratam das improvisações livres. Procura-se aqui também demonstrar que tais discussões referem-se a liberações relativas, recusando uma suposta liberdade absoluta e universal.

Considerações metodológicas e filosóficas Ao estudar as improvisações musicais livres, procuro não o fundo da coisa, sua natureza ou a coisa em si, mas sim aquilo que está, num certo sentido, “na superfície”. De um lado, trata-se de uma atitude cética diante da essência ou “profundidade” das coisas, sendo mais urgente estudar as maneiras pelas quais se dão as práticas em questão. De outro lado, a referida escolha metodológica concerne à atenção dada à maneira pela qual a “coisa” é tratada discursivamente, sendo o próprio discurso então um objeto de pesquisa. Dito de outro modo, não suponho que há uma essência da improvisação livre em si tampouco que esta seria representável através do que se diz.

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Max Stirner, que no XIX publicou breves escritos e seu único livro, preocupou-se com questões das quais depreendo algumas das reflexões supramencionadas: Diz-se que a “natureza da coisa” e o “conceito de relação” é que me devem guiar no tratamento da coisa e na instituição da relação. Como se existisse, em si, um conceito da coisa, e não o conceito que fazemos da coisa! Como se uma relação em que entramos não devesse a sua especificidade apenas à daqueles que nela entram! (STIRNER, 2004 [1845], p. 81, negrito meu)

Interessado no terreno, no carnal e no corpóreo, Stirner questionou também a atenção dada à essência ou espírito das coisas:

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Para que a Terra se movesse, Arquimedes achava que era necessário um ponto de vista fora dela. Os homens continuaram em busca deste ponto de vista, e cada um o assumiu como podia. Este ponto de vista estrangeiro é o mundo do espírito, das ideias, dos pensamentos, dos conceitos, das essências, etc.; é o céu. O céu é o “ponto de vista” a partir do qual a Terra se move, a vida terrena é observada e... desprezada. Como a humanidade lutou dolorosa e incansavelmente para assegurar o céu, para assumir de forma estável e eterna o ponto de vista celestial! (idem, idem, p. 56, negrito meu)

Acerca disto, ainda considerou: “podemos ter o espírito, mas o espírito não nos deve ter a nós” (ibidem, ibidem, idem). Michel Foucault debruçou-se sobre as “coisas” que nos sujeitam aos saberes com estatuto de verdade – sexualidade, loucura, delinqüência, direito, etc.. Ainda assim, seus escritos despertam suspeita, no caso de minha pesquisa, em relação a qualquer “coisa” (e as menções ao fundo das coisas) que venham a se ligar às práticas de improvisação livre1. É também 1 Acredito que uma “coisa” discursivamente associada às práticas de improvisação musical livre – e que, embora não seja tratada neste artigo, deverá ser discutida na mencionada dissertação de mestrado – é o “direito de fazer música” e o “direito à criação artística”.

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por conta disso que a pesquisa dá atenção àquilo que se faz das “coisas” ´(e práticas) discursivamente: Não se trata, aqui, de neutralizar o discurso, transformá-lo em signo de outra coisa e atravessar-lhe a espessura para encontrar o que permanece silenciosamente aquém dele, e sim, pelo contrário, mantê-lo em sua consistência, fazê-lo surgir na complexidade que lhe é própria. Em uma palavra, quer-se, na verdade, renunciar às "coisas", "despresentificálas"; [...] substituir o tesouro enigmático das "coisas" anteriores ao discurso pela formação regular dos objetos que só nele se delineiam; definir esses objetos sem referência ao fundo das coisas, mas relacionando-os ao conjunto de regras que permitem formá-los como objetos de um discurso. (FOUCAULT, 2005a [1969], p. 53, negrito meu)

Desse modo, o que importaria com o estudo dos discursos não seria a “coisa” por detrás deles, mas as problematizações das quais eles dependem mutuamente e que circundam práticas e “coisas”, conforme depreendo também de Foucault: [Gostaria de] analisar, não os comportamentos, nem as ideias, não as sociedades, nem suas ‘ideologias’, mas as problematizações através das quais o ser se dá como podendo e devendo ser pensado, e as práticas a partir das quais essas problematizações se formam. (idem, 1998 [1984], p. 15)

A partir de reflexões como estas, devo ainda indicar que pesquisa está interessada “não na descoberta das coisas verdadeiras, mas nas regras segundo as quais, a respeito de certas coisas, aquilo que um sujeito pode dizer decorre da questão do verdadeiro e do falso” (idem, 2005b [1984], p. 235, negrito meu). Em outras palavras, busca-se “as condições nas quais [se] ‘problematiza’ o que [se] é, e o mundo no qual [se] vive” (idem, 1998 [1984], p. 13, negrito meu). Também a partir desta lógica é que a pesquisa atenta-se, sobretudo, não às pretendidas “verdades gerais [e] trans-históricas”, mas àquelas (que se reconhecem como) “verdades de pormenor”; ou ainda,

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dispõe-se somente a encarar as primeiras como sendo as segundas (VEYNE, 2009, p. 16-7, 56). Enfim, com estas reflexões recusar-se-ia a “ideia de que existe um absoluto e que esse absoluto tem de ser assimilado, sentido e pensado por nós” (STIRNER, op. cit., p. 57-8), evitando também “[considerar] que a verdade, sendo pensamento, só existe para o homem pensante” (idem, p. 71). Stirner ainda ironizava: “não deves ter nenhum pensamento, pronunciar nenhuma sílaba, fazer nenhuma acção que só tu possas justificar!” (ibidem, p. 82) Quem sabe, dito à maneira de Foucault, estar-se-ia sinalizando que “muita pouca verdade é indispensável para quem quer viver verdadeiramente e que muito pouca vida é necessária quando se é verdadeiramente apegado à verdade" (FOUCAULT, 2011 [1984], p. 166).

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Performer e performance: relação mediada por algum/qual saber? O improvisador Derek Bailey analisou a maneira pela qual se dá a prática dos(as) improvisadores(as) livres no que concerne ao uso dos chamados idiomas musicais2: a diferença entre aquele que é ativo dentro das fronteiras de um idioma particular e o livre improvisador está na maneira com que este lida com este idioma... Idiomas particulares não são vistos como pré requisitos para o fazer musical, mas sim como ferramentas que, em qualquer momento podem ser usadas ou não... da mesma maneira o ponto de partida do livre improvisador contém uma recusa em se submeter a qualquer idioma particular ou tradicional (BAILEY apud COSTA, 2012, p. 65)

Bailey ainda considera que, para a realização das improvisações livres, “a habilidade e conhecimento requerido é 2 Improvisação idiomática é aquela que “se dá dentro do contexto de um idioma musical, social e culturalmente delimitado histórica e geograficamente” (BAILEY apud COSTA, 2003, p. 28), por exemplo, dentro do choro ou do rock. Nela, ainda que haja criação em tempo real, as “conversas” (discursos e suas interações) se dão em uma única ”língua” (COSTA, 2003, p. 56).

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aquele que estiver disponível” (BAILEY apud COSTA, 2007, p. 2). Afirmação esta que, por extensão, pode se desdobrar na noção de base de conhecimento expandida, cunhada por Rogério Costa e Stéphan Schaub a partir do que Jeff Pressing chamou de base de conhecimento (knowledge base)3. Em relação ao supracitado, acrescentar-se-ia a relevância do repertório sonoro não propriamente musical e da noção de som puro. Para a improvisação livre deveríamos ampliar este conceito para que ele envolvesse todo o ‘background’ musical dos performers. Neste sentido, poder-se-ia dizer que, para a improvisação livre, a base de conhecimento não é limitada por uma (ou mais) linguagens musicais, mas constituída por todas as experiências sonoras e musicais do improvisador e pelo o que é “anterior” e está por “detrás” destas linguagens, isto é, o som puro, sua natureza e suas qualidades (COSTA; SCHAUB, 2013, p. 5-6, tradução minha)

Considera-se então que, embora as improvisações livres difiram das improvisações idiomáticas no que concerne ao pré-requisito dos rigorosos idiomas, ela não consiste em um vale-tudismo. As exigências interativas e auditivas sinalizam a importância dada ao, já mencionado, chamado som pré-musical: há [...] aqueles que acreditam que a livre improvisação é uma espécie de vale-tudo e não se preocupam com o rigor da proposta de interação e com suas necessidades técnicas e auditivas [ligadas à escuta reduzida e ao som pré-musical ‘molecularizado’]. [...] Um vale-tudo experimental infantilizado está, portanto, descartado pelas exigências técnicas da performance devido ao fato de que ela se dá num terreno de interação e sobriedade (pois só há imaginação na técnica) (COSTA, 2007, p. 12).

3 A base de conhecimento – noção associada à de referente, que será mencionada à frente no artigo –, conforme definida por Pressing, está relacionada à memória de longo do(a) improvisador(a) acerca de um estilo. Em outras palavras, são as habilidades particularmente exigidas para improvisar com fluência neste estilo (PRESSING apud COSTA; SCHAUB, 2013, p. 2)

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Já que, conforme mencionado, entende-se que o som está por “detrás” do idioma, a ênfase no som não consiste no desprezo das habilidades idiomáticas:

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Parece evidente que quanto mais eu domino a técnica de um determinado instrumento mais condições eu possuo para participar de performances de improvisação. As razões são várias: meus dedos deslizam com rapidez e igualdade sobre as teclas ou chaves o que possibilita um fraseado homogêneo, sutil e controlado; a minha respiração funciona de maneira equilibrada para que eu obtenha as nuances de sonoridade desejada (timbres, dinâmicas, articulações etc.); eu conheço o repertório fundamental do meu instrumento e minha técnica se desenvolveu e evoluiu em estreito contato com as inúmeras peças que o constituem, o que contribui para que eu obtenha uma concepção sólida e consistente do que é musical e do que não é. Neste contexto, a minha relação com o instrumento gera uma espécie de máquina musical. É um tipo de acoplamento: homem-instrumento. (COSTA, 2009, p. 92)

Todavia, a própria fluência também pode ser tratada enquanto um empecilho para a liberação, já que tocar um instrumento “bem” não estaria apartado de tocá-lo “bem” dentro de uma linguagem ou discurso específico (COSTA, 2007, p. 2, 13-5, 2009, p. 97). Problematizar-se-ia, então, se não há na própria ausência de domínio técnico um interesse: [o corpo daquele que improvisa] está marcado por todas estas delimitações inevitáveis, complexas e diversificadas. Os dedos de quem toca um instrumento estão ativados pelas vivências que moldam as atuações e os gestos possíveis. A expressividade acontece no âmbito das linguagens sistematizadas. Por isso podemos dizer que talvez não seja tão bom tocar bem um instrumento se queremos escapar dos territórios idiomáticos, se queremos uma improvisação livre voltada para as virtualidades imprevisíveis ausentes dos sistemas devido à sua própria estabilidade. [...] O preço de se ter uma identidade ou pertencer a um território com “membranas muito rígidas” é não conseguir uma permeabilidade que torne possível a invasão de elementos provenientes do Caos, espaço onde as

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energias estão soltas, informes, ainda não se organizaram em sistemas e por isso não delimitaram fronteiras e territórios. Assim, para a prática da livre improvisação, poderíamos imaginar, como diria John Cage, que os sons são somente sons – não são ainda, linguagem, representação – e que, portanto, poderiam se juntar de formas imprevisíveis e novas (COSTA, 2009, p. 93-5, negrito meu)

Problematizar (e circunstancialmente recusar) a presença de elementos de outras práticas musicais – como os idiomas e as técnicas instrumentais consolidadas – nas performances de improvisação livre reforçaria, como pode-se depreender de Falleiros, que eles são constituintes da biografia do(a) improvisador(a): A biografia de um músico é uma condição da qual ele não pode se livrar porque, a partir dela é que esta improvisação estabelece um local para o seu discurso. Mesmo que ele negue a sua história, este posicionamento é justamente o que revela que ele teve esta história, esta biografia. (FALLEIROS, 2012, p. 141)

Viu-se até aqui um pouco do que se diz acerca: da (im)prescindibilidade e potencial recusa dos idiomas musicais e técnicas propriamente tradicionais e da atenção particular dada àquilo que se entende por escuta do som puro. Entendo que a problematização acerca de haver ou não mediações (pelos múltiplos saberes musicais e sonoros) entre performer e performance é condição de possibilidade das análises feitas pelos autores citados.

Mediação temporal e fluxo Embora, como acabo de mencionar, entenda-se que o(a) improvisador(a) “livre” carrega consigo sua biografia, seu passado, – indicando que esta é uma mediação temporal entre o(a) performer e a maneira pela qual ele(a) se coloca, ainda que pela negação, na performance –, a intensificação do presente é um assunto caro à improvisação livre, particularmente no que concerne à radicalização da criação em tempo real.

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A criação no presente momento, sem intermediações temporais é uma característica imprescindível da improvisação seja qual for a sua modalidade. O improvisador deve estar sozinho ou com outros improvisadores, criando no momento e não para depois. Esta condição característica da improvisação encontra no advento da Livre Improvisação uma expressão ainda mais radical em relação ao instante, já que o improvisador está lidando com os sons que cria e escuta no presente momento. (FALLEIROS, op. cit., p. 18)

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A problematização de Falleiros reitera que as demais práticas de improvisação, as idiomáticas, lidam com criação em tempo real, contudo, mantendo-se, sobretudo, dentro das fronteiras do idioma. Segundo esta argumentação, infiro, seria ele (e a base de conhecimento a ele relacionada) um dos elementos que faz das improvisações idiomáticas menos radicais em relação ao instante, mantendo um vínculo como passado mais evidente (e menos singular do que as particularidades da biografia): a filiação ao estilo propriamente dito. Retomando a discussão de Costa e Schaub a partir das noções de Pressing, teríamos, a respeito do referente (referent)4, mais uma radicalização em relação ao presente ou mais uma recusa de mediações temporais5: Considerando que o referente é algo compartilhado por todos os performers e serve para guiar o desdobramento temporal da presente performance, na improvisação livre, o passado da performance atual (envolvendo toda memória coletiva de curto e longo prazo) poderia ser considerado o único referente desta performance específica. (COSTA; SCHAUB, op. cit., p. 5, tradução minha)

4 Para Pressing, o referente é um conjunto de restrições que define uma performance. No jazz, por exemplo, o standard é o referente. Seus elementos, com o tempo, podem ainda ser incorporados à base de conhecimento do estilo (COSTA; SCHAUB, op. cit., p. 2-3). 5 Costa e Schaub referem-se, sobretudo, às “improvisações sem proposta”, definição que não será aqui discutida.

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[Acrescenta-se], o referente [é] construído no fluxo da performance. [...] [Um elemento] da base de conhecimento que poderia ser considerado essencial para a improvisação livre é a capacidade de fazer do passado e presente coletivos específicos daquela performance um referente gradativamente definido. (idem, p. 6, tradução minha)

Considerar que, nas improvisações livres, não há as mesmas mediações temporais – entre concepção/preparação e performance – das demais práticas musicais também possibilita reflexões acerca de como o(a) performer age e intervém no fluxo. Discussão esta que também traz à tona a problematização acerca da separação entre propositor(a) e executor(a) da música – que, minimamente, também pode reaproximar improvisações livres e idiomáticas. Por vezes, esta separação está materializada na mediação pela partitura. Pode ocorrer que o improvisador decida determinar o que vai tocar, instantes antes, ou até meses antes, mas a diferença é que é o próprio improvisador quem está propondo a música, assim ele não é uma espécie de “franquiado”, mas reúne ao mesmo tempo e na mesma figura, o propositor e o executor da música. [Por sua vez, o] solista em frente à orquestra sabe que outro músico não vai interagir em sua cadência caso este último se sinta inspirado a criar. Não estaria aberta a possibilidade de negociação criativa frente às determinações documentais da composição; a interlocução está abolida pelos limites prescritivos e pela substituição da presença viva do compositor (que poderia vir recompor juntamente com o músico inspirado), e restrita pelo seu documento legado. (FALLEIROS, op. cit., p. 17-8)

Improvisações livres de quê? As reflexões metodológicas que iniciaram o presente artigo não permitem que perguntas como esta fiquem de fora. Seria a liberdade da chamada improvisação musical livre um absoluto universal que apenas aguardava ser descoberto? De Tomás Ibañez depreendo a necessária desconfiança de qualquer discurso que se pretenda intrinsecamente liberador, sendo as liberdades sempre relativas e uma verdade nunca apartada dos procedimentos que a

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produzem, como já dizia Foucault (IBAÑEZ, 2014, p. 124-136) e havia sinalizado Stirner. Ao tratar da improvisação livre, Costa demonstrou que tal prática só poderia ser livre de algo, nunca totalmente livre: “é relativo o sentido da palavra liberdade. Para nós este sentido se configura caso a caso em relação a determinados sistemas e forças.” (COSTA, 2009, p. 97)

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A relatividade destas liberdades é, claro, uma das condições de possibilidade da maneira pela qual elas se dão e são tratadas discursivamente. Isto é, as improvisações musicais livres lidam com liberações6, sobretudo, em relação às demais práticas musicais e de improvisação. O(a) livre improvisador(a), retomando o início do artigo, não apegar-se-ia verdadeiramente a uma verdade, a um suposto absoluto que aguarda(va) ser assimilado através do pensamento. Ao contrário, musicistas de formações diversas, artistas advindos(as) das mais diversas artes e até aqueles(as) que anteriormente não tomavam para si a atitude de criação artística, podem encontrar nesta prática maneiras de liberar-se em múltiplos sentidos: transitar abertamente pelos variados idiomas musicais, desafiar-se à não-submissão a estes, fazer uso da técnica consolidada ou mesmo da nãofluência no instrumento, agir de maneira ativa e interventiva no fluxo da performance (por ser propositor(a) e executor(a) da música e por não ter um referente propriamente prédeterminado), ter o som como matéria prima (e não apenas o paradigma da nota ou outras matérias primas das demais artes), etc.. Interessa-nos as improvisações que são livres enquanto verdades de pormenor e que não se pretendem gerais ou trans-históricas, não podendo ser irrefutavelmente definidas como algo para “todos(as)” (noção absoluta e universalizadora). Procurou-se aqui dar algumas pistas de como a mediação – temporal, pela partitura ou por saberes particulares – é uma das problematizações que possibilitam que as práticas de improvisação musical livre e os discursos acerca delas sejam precisamente como são. A este respeito, reitero: as liberdades das improvisações livres são, sobretudo, relativas a outras 6 Para discussões que transitam pelas distinções entre liberação e libertação, ver Passetti (2002).

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práticas e por este motivo é que assim seriam tratadas discursivamente. É inevitável problematizar o quanto as improvisações livres podem produzir liberações também não explícita e diretamente relativas às demais práticas. Todavia, poder-se-ia sugerir que tais liberdades, por isto mesmo, não seriam tratadas ou previstas discursivamente – i.e., não ficariam retidas nas análises acerca das improvisações livres. Este artigo é resultado parcial de apenas uma das questões tratadas pela referida pesquisa de mestrado. São particularmente evidenciados por ele ao menos dois problemas para a pesquisa, os quais vêm sendo trabalhados. O primeiro diz respeito à viabilidade da discussão das condições de possibilidade do presente sem a devida atenção ao passado e suas condições de emergência7, já que a bibliografia aqui citada acerca das improvisações livres é notavelmente atual. É, assim, impreterível para as próximas etapas do presente trabalho que seja dada maior atenção, por exemplo, aos primeiros textos relacionados a estas práticas, como os de John Cage e Cornelius Cardew. O segundo problema concerne à problematizar a existência de uma essência do som – algo puro, anterior e por detrás das linguagens –, assunto que deve ainda ser estudado em confronto com as reflexões filosóficas caras ao trabalho. De um lado, pode ser que a pesquisa tenda a tratar o som puro apenas como horizonte utópico que se materializa conforme possível a partir de práticas como escuta reduzida, de Pierre Schaeffer ou escuta profunda, Pauline Oliveros (COSTA, 2015, p. 129). De outro lado, pode seguir as pistas de que na noção de escuta reduzida reside a castração de certos costumes e da imaginação, bem como um interessante paradoxo já que mesmo a “pureza” do proposto por Schaeffer não se desvencilhou da descrição “tátil” (HOLMES, 2009, p. 1). Sem dúvida, a presente pesquisa deve perguntar-se de que maneira se deu o encontro entre as práticas de improvisação livre e os saberes acerca do som.

7 Questão depreendida do prof. Júlio Groppa e um tanto modificada.

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