IN MEMORIAM. Eric Hobsbawm (1917-2012): marxismo, Lula da Silva e grande história.

June 3, 2017 | Autor: I. Carneiro de Sousa | Categoria: Marxism, Contemporary History, Social History, Eric Hobsbawm, Lula da Silva
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In Memoriam

Eric Hobsbawm (1917-2012):
marxismo, Lula da Silva e grande história



No passado dia 1 de Outubro do ano, após prolongada doença, morreu num
hospital de Londres com 95 anos o mais importante, conhecido e traduzido
historiador britânico: Eric Hobsbawm. Apesar da notícia ter corrido muitos
media, produzindo mesmo os obituários mais contraditórios, o facto tem
algum interesse em hospedar-se a um jornal referencial de Macau em língua
portuguesa, pelo menos para se visitarem algumas lições interessantes sobre
a circulação e influência da obra do grande historiador nos países em
lusofonia a que a RAEM pretende oferecer prestimosa plataforma. É que,
apesar de sofrivelmente editado em Portugal, Eric Hosbawm era o autor
estrangeiro mais traduzido, publicado e lido no Brasil nos últimos vinte
anos, para além de se ter tornado assumidamente a mais importante
referência intelectual do antigo presidente Luiz Inácio Lula da Silva com
quem manteve demorada amizade, contactos muitos e correspondência
abundante.
Eric Hobsbawm nasceu longe, no tempo e no espaço, em Alexandria, no
Egipto, em 1917, o ano da revolução bolchevique na Rússia, de pai britânico
e mãe austríaca, ambos judeus praticantes. Quando tinha dois anos, a
família mudou-se para Viena e, depois, fixou-se em Berlim de onde saíria
para o Reino Unido, em 1933, depois da vitória eleitoral do Partido
Nacionalista e da chegada de Hitler ao poder. Hobsbwam tinha 14 anos e
decidiu aderir ao Partido Comunista Britânico. Depois de se doutorar em
Cambridge – que o rejeitou para professor – viria a desenvolver
inteiramente a sua carreira académica no Birkbeck College de Londres desde
1947 até se reformar como seu presidente em 2002. Em 1978, tornou-se
membro da Academia Britânica e, em 1998, recebeu de Tony Blair o título
importante de companheiro de honra. Eric Hobsbawm legou-nos mais de trinta
livros e centenas de artigos espalhados pelas melhores revistas académicas,
destacando-se na sua bibliografia os quatro volumes que consagrou à
história mundial dos séculos XIX e XX, traduzidos em mais de quarenta
línguas: A Era das Revoluções (1789-1848), A Era do Capital (1848-1875), A
Era do Império (1875-1914) e A Era dos Extremos (1914-1991). Publicou o seu
último livro, Como Mudar o Mundo, em 2011, reflectindo com especial
inteligência sobre a crise económica que se instalou (para ficar?) na
Europa desde 2008, procurando sugerir novas vias de organização da economia
e de desenvolvimento social.
Apesar de ter estudado com atenção estas quatro obras mais conhecidas
(e que não apreciei especialmente), comecei a frequentar com respeitosa
atenção a historiografia de Hobsbawm quando, em 1986, li e reli a edição
inglesa de A invenção das tradições, livro genial que, contando também com
a colaboração de Terrence Ranger, ajudava a esclarecer quanto a «tradição»
deve mais às invenções oitocentistas dos nacionalismos e muito menos a
qualquer história arcana. Conheci depois Hobsbwam por 1989, em Madrid, no
último congresso da Associação de História Económica Mundial, uma
organização que havia sido tradicionalmente dominada por historiadores
soviéticos e da Europa do Leste de que acompanhei os congressos em 1984 e
1986, em Moscovo e São Petersburgo (na altura ainda Leninegrado). Apesar do
seu português bastante correcto, nunca consegui nos anos seguintes
mobilizar uma instituição académica que o convidasse a partilhar estudos e
ideias em Portugal: os departamentos de história das universidades públicas
eram ainda bastante conservadores para além de não saberem ler o que
circulava em inglês. Hobsbawm nunca visitou, assim, um país de que conhecia
bastante bem a história e a que se referia com o maior interesse.
A história é completamente outra no Brasil onde, popularmente
conhecido por Henrique Hobsbawm, se tornou nas últimas décadas o autor de
língua inglesa mais estudado e citado. A sua influência académica e
política é enorme. Em 1975, convidado pela Universidade Estadual de
Campinas (a UNICAMP), Eric Hobsbawm participa activamente com as suas
ideias no processo de democratização do Brasil, tema a que consagraria
investigação, escritos e muitas conferências organizadas em várias
universidades britânicas, europeias e norte-americanas. Em 1995, volta ao
Brasil para se desdobrar por várias palestras e debates, conhecendo e
passando a apoiar activamente Lula da Silva. Não admira, assim, que no
extraordinário discurso de tomada de posse como Presidente do Brasil, a 1
de Janeiro de 2003, Luiz Inácio Lula da Silva tenha referido Eric Hobsbawm
como a sua mais importante referência intelectual. Paralelamente, Hobsbawm
lia a primeira eleição de Lula como a mais relevante mudança histórica do
século XXI, não apenas para o Brasil, mas para o mundo. Por isso, mais
tarde, em 2003, já com 85 anos, o historiador foi convidado de honra do
festival FLIC, em Parati, na Amazónia. O presidente Lula da Silva enviou
especialmente o seu Ministro da Cultura, Gilberto Gil, para o receber: era
então uma espécie de veneranda curiosa superstar entre os músicos e as
músicas mil do «país maravilhoso».
A influência académica, intelectual e política da obra e do pensamento
de Eric Hosbsbawm na América Latina é tão presente como gigantesca,
estendendo-se do Brasil ao México para se reproduzir através de
universidades e editoras importantes na Argentina ou no Chile.
Significativamente (ou será mesmo curiosamente?), esta frequência
referencial das obras do grande historiador faz-se precisamente pelas
mesmas razões que ditaram a sua excomunhão entre alguns meios académicos e
intelectuais europeus e norte-americanos: o seu assumido marxismo que,
generosamente renovado e requestionado pela sua investigação, decidiu não
renegar até à sua morte. A pergunta que divide (ainda bem) e invalida
(melhor ainda) a apreciação favorável unânime do seu legado parece ser
estranhamente esta: porque é que Eric Hobsbawm, indiscutivelmente um dos
maiores historiadores contemporâneos, permaneceu marxista mesmo depois do
fim da União Soviética e da queda do muro de Berlim, tendo mesmo chegado a
ousar defender a história do comunismo (que não os regimes comunistas)
ainda nos primeiros anos do século XXI?
Um homem da idade de Hobsbawm, nascido em 1917, pertence a uma geração
absolutamente singular que viveu tanto o colapso do capitalismo durante a
Grande Depressão quanto, ainda por cima como judeu, a aterradora ascensão
de Hitler e do nazismo na Alemanha. Nessa década de 1930 em que Hobsbawm se
tornou um estudante mais do que brilhante, muitos milhares de jovens
europeus devem ter enfrentado a opção absolutamente dicotonómica de estarem
com ou contra o nazismo. E mais ninguém parecia nesta época estar mais
contra os nazis do que os comunistas. Hobsbawm filiou-se no Partido
Comunista britânico ainda adolescente e foi provavelmente leal, à sua
maneira, até ao fim a um conjunto político e simbólico de experiências
históricas único mais do que a uma cartilha de ideias ortodoxas que sempre
criticou. O comunismo oferecia nas primeiras décadas do século XX, muito
mais do que quaisquer ideias não-religiosas actuais, um sentido especial de
comunidade. Pertencer então a um Partido Comunista obrigava a assumir um
compromisso com a conspiração, de lealdade para com os amigos que sofriam
ou haveriam de sofrer, firmando o sentimento colectivo de que a luta não
era em vão já que um mundo mais glorioso haveria de nascer. À semelhança de
muitas religiões escatológicas, o comunismo oferecia uma lógica de dor,
redenção e progresso: cada prisão, cada deportação para um campo de
concentração, cada execução não era apenas um momento de horror, mas mais
uma prova da brutalidade, decadência e, sobretudo, fraqueza do capitalismo.
A narrativa e simbólica revolucionárias sublinhavam ainda que o comunismo
podia consolidar e salvar mesmo a geração engolida pela guerra,
precisamente porque transcendia as gerações. O motor da história, como Marx
havia ensinado, residia inexorável nas mudanças dos modos de produção:
quando as estruturas básicas da economia começaram a mudar, a longa ordem
feudal agrária foi obrigada a ceder ao capitalismo nas cidades. A expansão
das indústrias multiplicara o proletariado que reclamava agora os frutos do
seu trabalho até que as fábricas e as cidades fossem partilhadas por todos.
A propriedade privada comparecia como o pecado original da história humana,
mas com a revolução proletária esse mal seria removido para se regressar à
natureza original da propriedade comum vazando-se em harmonia social e
prosperidade colectivas.
Esta ideia de história herdada de Marx tinha para os comunistas uma
lógica, mas também um forte elemento de fé. Fidelidade e lógica tinham de
operar conjuntamente, apesar de Hobsbawm privilegiar exclusivamente a
lógica: para ele, comunistas podiam ser grandes historiadores (fascistas
não...) porque o marxismo providenciava à história tanto uma metódica como
uma nova intriga comprometida com os movimentos e as transformações
sociais. Contudo, como se sabe, o comunismo no século XX não foi apenas uma
ideia, um sonho, mas uma realidade política e a sua ideia de história
transformou-se de profecia em edição retrospectiva. A União Soviética e as
suas políticas de exterminação eram largamente conhecidas: a fome
deliberada de milhões de ucranianos em 1933, o extermínio de camponeses e
minorias étnicas em 1937 e 1938, a aliança com a Alemanha Nazi em 1939, a
dominação pós-guerra da Europa do Leste, o esmagamento dos movimentos de
reformas na Hungria e na Checoslováquia, a par de muitos outros
arquipélagos de Gulag que fizeram o sucesso de variados romances e filmes
de Hollywood alimentados pelos jogos de trocas de contrastes da Guerra
Fria.
Na extraordinária história do mundo moderno publicada por Hobsbawm, a
sua última parte (A Era dos Extremos (1914-1991) é, de facto, a mais
frágil, em parte porque o historiador tem de fazer face a uma União
Soviética que coloca problemas mais do que embaraçosos ao esquema marxista
e à utopia comunista de história. Em rigor, a história da União Soviética –
quase curta numa perspectiva de longa duração – não apenas não trouxe o que
o comunismo prometia como também chegou ao fim sem qualquer glória,
soçobrando mesmo face a esses amplos movimentos de massas que rapidamente
derrubaram todos os muros de Berlim. A ideia marxista de que a história da
humanidade é uma grande história de sucessivos saltos e transformações rumo
à conclusão maravilhosa de uma sociedade sem classes não aconteceu. Por
isso, muitos políticos, intelectuais e académicos no mundo ocidental,
liberais, democratas, sociais-democratas ou até socialistas, pensaram que a
história tinha mesmo uma intriga lógica mas a reversa do que o comunismo
propunha: o fim da União Soviética não era o fim da ideologia mas a prova
de que a as ideologias liberais e democráticas ocidentais eram melhores.
Eric Hobsbbawm não tinha no fim da sua vida simplesmente a certeza de que
isto fosse inteiramente assim.
Porque é que Hobsbawm pensou como entendeu, viveu como quis, escreveu
o que nos deixou ou insistiu entre provocação e metáfora em se apresentar
como o último historiador marxista é uma questão que não merece julgamento,
mas compreensão, senão mesmo compaixão. Eric Hobsbawm foi certamente leal à
memória dos seus camaradas e provavelmente sentimental em relação ao seu
passado juvenil que definiu tanto as suas opções ideológicas quanto o seu
carácter. Nos seus últimos anos de vida, nonagenário, lido em todo o mundo,
respeitado tanto como contestado, encontrou-se num momento histórico, o
nosso, que ainda se lhe afigurava uma era da ideologia – cada vez mais
dominada, como insistia, pelas crenças liberais e neo-liberais –, mas em
que a sua ideologia, as suas referências marxistas se encontravam numa
posição progressivamente mais fraca, diminuída, praticamente silenciosa.
Mas Hobsbawm era um lutador. Ao revisitar o passado de acordo com a sua
ideologia, reconstruindo os movimentos, turbulências, mudanças políticas e
sociais muitas da história contermporânea, Hobsbawm procurava defender pela
história um estado soviético que não existia e ideias que pareciam
definitivamente mortas e entrerradas. Por mais (ou completamente) errado
que estivesse, ainda assim é importante destacar as virtudes das suas
demoradas e quase teimosas posições: parece importante elogiar messmo ainda
hoje aqueles que defendem os fracos contra os poderosos, a mudança contra
as rotinas lucrativamente instaladas, batendo-se a partir de ideias
difíceis e minoritárias, ideologias transformadoras e utópicas...,
sobretudo hoje.
Ivo Carneiro de Sousa


Obras de Eric Hobsbawm editadas em Portugal:
Globalização, Democracia e Terrorismo, Ed. Presença
A Era das Revoluções (1789-1848), Ed. Presença
A Era do Capital (1848-1875), Ed. Presença
A Era do Império (1875-1914), Ed. Presença A Era dos Extremos (1914-
1991), Ed. Presença
Tempos Interessantes: Uma Vida no Século XX, Ed. Campo das Letras
Escritos sobre a História, Ed. Relógio D'Água
O Século XXI - Reflexões Sobre o Futuro, Entrevista a Eric Hobsbawm
por Antonio Polito, Ed. Presença
A Questão do Nacionalismo – Nações e nacionalismo desde 1780, Ed.
Terramar


Obras de Eric Hobsbawm editadas no Brasil:
A Era das revoluções – 1789-1848 (2009, Paz e Terra)
A Era do capital – 1848-1875 (2009, Paz e Terra)
A Era dos impérios – 1875-1914 (2009, Paz e Terra)
A Era dos extremos – O breve século XX (1995, Cia. das Letras)
História do marxismo – 12 volumes (1985-1989, Paz e Terra)
Estratégias para uma esquerda racional – Escritos políticos – 1977-
1988 (1991, Paz e Terra)
A revolução francesa (1996, Paz e Terra)
História social do jazz (1990, Paz e Terra)
Ecos da Marselhesa – Dois séculos revêem a Revolução Francesa (1996,
Cia. das Letras)
Pessoas extraordinárias – Resistência, rebelião e jazz (1998, Paz e
Terra)
Sobre história (1998, Cia. das Letras)
Mundos do trabalho (2000, Paz e Terra)
O novo século – Entrevista a Antonio Polito (2000) – também em edição
de bolso (2009, Cia. das Letras)
Tempos interessantes – Uma vida no século XX (2002, Cia. das Letras)
Revolucionários – Ensaios contemporâneos (2003, Paz e Terra)
A transição do feudalismo para o capitalismo – Um debate (com outros
autores) (2004, Paz e Terra)
Depois da queda – O fracasso do comunismo e o futuro do socialismo
(com outros autores) (2005, Paz e Terra)
Globalização, democracia e terrorismo (2007, Cia. das Letras)
A invenção das tradições (2008, Paz e Terra)
Nações e nacionalismo desde 1780 (2008, Paz e Terra)
Da revolução industrial inglesa ao imperialismo (2009, Forense
Universitária)
Bandidos (2010, Paz e Terra)
Os trabalhadores – Estudos sobre a história do proletariado (2010, Paz
e Terra)
Como mudar o mundo – Marx e o marxismo 1840-2011 (2011, Cia. das
Letras)





São Paulo, 1° de outubro de 2012
Prezada Senhora Marlene Schwartz
 Acabo de receber, com profunda tristeza, a notícia do falecimento do seu
marido, o querido amigo Eric Hobsbawm, um dos mais lúcidos, brilhantes e
corajosos intelectuais do Século XX.
Desde que o conheci pessoalmente, muitos anos atrás, recebi de Eric, como
ele preferia que eu o tratasse, incontáveis manifestações de estímulo à
implantação de políticas que incorporassem os trabalhadores aos benefícios
e à riqueza produzidos pelo conjunto da sociedade brasileira.
Ao longo da última década, li com um sentimento de orgulho as entrevistas
em que ele atribuía ao nosso governo a responsabilidade por "mudar o
equilíbrio do mundo e levar os países em desenvolvimento para o centro da
política internacional".
Quatro meses atrás, poucos dias antes de completar 95 anos, Eric Hobsbawm
enviou-me, por um amigo comum, uma carinhosa mensagem. "Diga ao Lula para
seguir lutando pelo Brasil", disse ele, "mas não se esquecer jamais da
sofrida África." A partir de agora meu comprometimento com os irmãos
africanos passará a ser, também, uma homenagem à memória de seu marido.
Mais que um privilégio, foi uma honra ser contemporâneo e ter convivido com
Eric Hobsbawm.
Receba e, por favor, transmita aos filhos, netos e bisnetos dele as minhas
homenagens.
Luiz Inácio Lula da Silva
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