Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas: Meios de Uniformização da Jurisprudência no Direito Processual Civil Brasileiro

June 1, 2017 | Autor: Ferrari Neto | Categoria: Procedural Law
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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP

Luiz Antonio Ferrari Neto

Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas: Meios de Uniformização da Jurisprudência no Direito Processual Civil Brasileiro

MESTRADO EM DIREITO

São Paulo 2012

Luiz Antonio Ferrari Neto

Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas: Meios de Uniformização da Jurisprudência no Direito Processual Civil Brasileiro

Mestrado em Direito das Relações Sociais Subárea de Direito Processual Civil Dissertação a ser apresentada à banca examinadora junto à Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de mestre em direito, sob a orientação do professor Doutor João Batista Lopes

São Paulo 2012

Banca Examinadora

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_______________________________________

_______________________________________

Ao meu querido e amado filho, que tão novo já demonstrou com facilidade e alegria o poder

do

dificuldades.

ser

humano

em

superar

Agradecimentos

Meus sinceros agradecimentos ao professor Doutor João Batista Lopes, brilhante, paciente e que, apesar de seu vasto conhecimento jurídico, sempre demonstrou ser uma pessoa simples e de fácil acesso, o que muito me auxiliou nas pesquisas e elaboração deste pequeno trabalho. Agradeço também a atenção especial que me foi dispensada pelos professores doutores Olavo de Oliveira Neto e Rodrigo Barioni, por suas pontuais observações que foram fundamentais para a reflexão e conclusão desta dissertação. Não poderia deixar de agradecer a todos os professores da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, que muito contribuíram para minha inquietude diante dos problemas que diuturnamente vivenciamos, trazendo, por consequência, a evolução do meu conhecimento jurídico. Sinto falta de Vossas aulas...

Resumo Utilizando-se dos métodos indutivo e comparativo e da pesquisa à legislação, doutrina e jurisprudência, analisaremos o incidente de resolução de demandas repetitivas, instituto ainda em discussão no meio acadêmico e no Congresso Nacional, diante da proposta apresentada ao Senado Federal pelo anteprojeto de Código de Processo Civil. Num primeiro momento, visando à contextualização da ciência processual, traremos o panorama atual, com a problemática da constante busca pela cessação da lentidão do judiciário, sendo agregada a isto a constitucionalização do direito processual, as reformas no intento de acelerar a prestação da tutela jurisdicional e o problema da crescente necessidade de procura do judiciário diante da massificação das relações jurídicas. Num segundo momento, por meio da análise de institutos existentes no direito pátrio que têm a finalidade de uniformizar a interpretação e aplicação do direito, trataremos da importância da jurisprudência e da necessidade de obediência ao posicionamento exarado pelos tribunais, na qual procuramos demonstrar que essa necessidade sempre esteve presente no Código de Processo vigente desde sua entrada em vigor, mas que apesar da tendência em se seguir precedentes, diferentemente do sistema de países da common law, a prática brasileira procura ignorar as peculiaridades fáticas para utilizar os julgados anteriores de forma abstrata, o que acaba, por vezes, desvirtuando a interpretação exarada pelos tribunais. Num terceiro momento será analisada a proposta de inclusão do novo instituto previsto no Projeto de Código de Processo Civil, denominado incidente de resolução de demandas repetitivas, na qual compará-lo-emos com institutos existentes no direito estrangeiro e também com institutos previstos no direito vigente para, a partir dai, verificando as similitudes e diferenças, podermos nos aprofundar na sua natureza, competência, procedimento e resultados esperados, sem deixar de externar nossa opinião sobre pontos que possam ser aprimorado. Palavras-chave: Incidente. Demandas. Repetitivas. Uniformização. Jurisprudência.

Abstract Using the comparative and inductive methods and the research to the legislation, doctrine and jurisprudence, we analyse the incident of resolution of repetitive demands, institute that is under discussion at academia and Senate, because of the proposal submitted to the Senate by the draft of the Civil Procedure Law Code Project. At first, aiming to contextualize the procedural science, we will bring the current situation with the problematic of its constant search of the cessation of the slowness of the judiciary, aggregating the constitutionalization of the procedural law, its reforms in the intent to accelerate the delivery of the jurisdictional activity and the problem of the growing necessity to demand justice because of the massification of the legal relations. In a second step, by means of analysing the Brazilian institutes that has the objective of standardization the interpretation and application of the norms, we will treat about the importance of the jurisprudence and the necessity of obeying the precedents of the courts, which we will try to demonstrate that this necessity has always been present in the actual Civil Procedural Code since its beginning, but despite the tendency to follow precedents, unlike the countries of the common law system, the Brazilian practise seek to ignore the factual peculiarities to utilize the earlier judgements in an abstract way, which turns out, sometimes, distorting the interpretation drawn up by the courts. In the third step we will analyse the proposal to include the new institute under the Project of the Civil Procedure Code, named incident to solve repetitive demands, in which we will compare it to another institutes existent in the foreign law and also to institutes that we have in the actual Brazilian law to, from there, checking out the similarities and differences, we could be able to delve in to the nature, competence, procedure and expected results, exposing our opinion about topics that could be improved. Key-words: Incident. Demands. Repetitive. Standardization. Jurisprudence.

Lista de abreviaturas e siglas ADC

Ação Declaratória de Constitucionalidade

ADIn

Ação Direta de Inconstitucionalidade

ADPF

Arguição por descumprimento de preceito fundamental

AI

Agravo contra decisão denegatória de seguimento de recurso excepcional

AgRg

Agravo Interno

CC

Código Civil

CDC

Código de Defesa do Consumidor

CF

Constituição Federal brasileira

CNJ

Conselho Nacional de Justiça

CPC

Código de Processo Civil

CPR

Civil Procedure Rules (Código de Processo Civil inglês, de 1998)

EAg

Embargos de Divergência em Agravo

ED

Embargos de declaração

EDv

Embargos de divergência

GLO

Group Litigation Order (ordem para litígio em grupo - procedimento do direito inglês para resolução de demandas em grupo)

HC

Habeas corpus

IUJur

Incidente de Uniformização de Jurisprudência

KapMuG Kapitalanleger-Musterverfahrengesetz (Lei alemã que trata do procedimento modelo para investidores em mercado de capitais) LICC

Lei de introdução ao direito brasileiro

LINDB

Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro

PL

Projeto de Lei

Rcl

Reclamação Constitucional

RE

Recurso Extraordinário

REsp

Recurso Especial

RISTJ

Regimento Interno do Superior Tribunal de Justiça

RISTF

Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal

TJ

Tribunal de Justiça

TRF

Tribunal Regional Federal

STF

Supremo Tribunal Federal

STJ

Superior Tribunal de Justiça

VRG

Valor residual garantido

Sumário

Introdução............................................................................................................................ 14 CAPÍTULO I – PANORAMA ATUAL DO PROCESSO CIVIL BRASILEIRO ................. 16 1

A constante busca pela cessação da lentidão do Judiciário ...................................... 16 1.1

A Constitucionalização do Direito Processual .................................................... 17

1.2 A Emenda Constitucional 45/2004 e as reformas processuais decorrentes como forma de garantir uma tutela jurisdicional efetiva ....................................................... 19 2

A evolução da sociedade e a massificação dos negócios jurídicos............................. 22

3 A necessidade de o Judiciário garantir a segurança jurídica na resolução das demandas............................................................................................................................ 28 CAPÍTULO II – IMPORTÂNCIA DA JURISPRUDÊNCIA E NECESSIDADE DE SUA UNIFORMIZAÇÃO ............................................................................................................ 37 4 A existência de mecanismos dentro do sistema processual vigente que visam a impedir a existência de decisões conflitantes .................................................................... 37 4.1

O incidente de uniformização de jurisprudência................................................ 38

4.1.1

Origem do instituto ......................................................................................... 41

4.1.2

Procedimento.................................................................................................. 43

4.1.3

Vinculação da Câmara / Turma ao decidido pelo Pleno ou Órgão Especial ... 46

4.1.4 A falta de eficácia prática do instituto em face da ausência de vinculatividade e baixa persuasão do incidente sobre os demais julgados ............................................... 48 4.1.5

A uniformização de jurisprudência nos juizados especiais federais ................. 51

4.2

A declaração incidental de inconstitucionalidade realizada pelos Tribunais .... 53

4.3

Recurso Especial e Recurso Extraordinário ....................................................... 58

4.3.1

Requisitos de sua admissibilidade ................................................................... 64

4.3.2

Hipóteses de cabimento dos recursos excepcionais ......................................... 75

4.3.3

Recursos Excepcionais representativos de controvérsias ................................ 79

4.4

Os Embargos de Divergência .............................................................................. 86

4.4.1

Pequeno histórico ........................................................................................... 87

4.4.2

Hipóteses de cabimento .................................................................................. 89

4.4.3

Divergência .................................................................................................... 98

4.4.4

Sobre o aresto paradigma ............................................................................. 101

4.4.5

Procedimento................................................................................................ 104

4.5

Assunção de competência .................................................................................. 105

5 As deficiências do sistema e a busca por novos institutos visando à isonomia e à segurança jurídica............................................................................................................ 109 5.1 A má interpretação do princípio da livre convicção motivada – a ausência de “discricionariedade” judicial ....................................................................................... 111 5.2 A necessidade de obediência aos posicionamentos dos Órgãos Judiciais Superiores ..................................................................................................................... 121 5.3

A insegurança gerada pela ausência de harmonização da jurisprudência ...... 122

5.3.1 A demora na resolução de causas controversas pelos tribunais superiores como geradora do aumento do número de demandas........................................................... 125 5.4 A necessidade de estabilização da jurisprudência com fulcro na segurança jurídica e isonomia ....................................................................................................... 128 5.5 A ideia de se seguirem precedentes – a tendência no Brasil de adoção do sistema de precedentes existente nos países de common law.................................................... 130 5.5.1

Breve histórico sobre a formação dos precedentes no direito inglês.............. 130

5.5.2

Breve histórico sobre a formação dos precedentes no direito brasileiro........ 132

5.5.3 Diferenças entre o sistema jurisprudencial da Civil Law e o sistema de precedentes da Common Law ..................................................................................... 135 5.5.4

A volta à vinculatividade no intento de aproximação ao sistema de precedentes 141

5.5.5 A criação dos enunciados de súmula vinculantes reforçando a obediência aos posicionamentos das Cortes Superiores...................................................................... 143 5.5.6 O julgamento dos recursos repetitivos e a tendência à objetivação do controle de constitucionalidade realizado em sede de recurso extraordinário .......................... 147 CAPÍTULO IV – INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE DEMANDAS REPETITIVAS - Nova tentativa de prestar a tutela jurisdicional de forma isonômica e num prazo razoável ........... 151 6

O surgimento da ideia e suas razões ........................................................................ 151

7

Institutos assemelhados no direito estrangeiro e no direito pátrio ......................... 154

7.1

Musterverfahren do direito alemão.................................................................... 154

7.1.1

Procedimento................................................................................................ 156

7.2

Group Litigation Order do Direito Inglês........................................................... 160

7.3

Institutos assemelhados no direito pátrio ......................................................... 163

7.3.1 Similitudes e diferenças entre o incidente de resolução de demandas repetitivas e o incidente de inconstitucionalidade ........................................................................ 164 7.3.2 Similitudes e diferenças entre o incidente de resolução de demandas repetitivas e o incidente de uniformização de jurisprudência ....................................................... 168 7.3.3 Similitudes e diferenças entre o incidente de resolução de demandas repetitivas e o julgamento dos recursos representativos de controvérsia...................................... 172 8 O incidente de resolução de demandas repetitivas no PL 8.046/2010 – estudo detalhado .......................................................................................................................... 174 8.1

Conceito, natureza jurídica e finalidade ........................................................... 174

8.2

Idêntica questão de direito ................................................................................ 179

8.3

Requisitos de sua admissibilidade ..................................................................... 185

8.4

Competência....................................................................................................... 189

8.5

Legitimidade para instaurar o incidente........................................................... 193

8.6

Intervenção de terceiros no incidente de resolução de demandas repetitivas . 195

8.7

Procedimento ..................................................................................................... 199

8.8

A importância de se criar um banco de dados .................................................. 207

8.9

Ausência de escolha de “caso modelo” e de representantes ............................. 209

8.10 Desistência, transação, reconhecimento jurídico do pedido, renúncia da demanda e o incidente de resolução de demandas repetitivas .................................... 212 8.11 Recorribilidade e legitimidade recursal para atacar a decisão que julgou o incidente ....................................................................................................................... 214 8.12

Suspensão do processo ................................................................................... 217

8.13

Julgamento do incidente - criação de precedente e limites do precedente ... 220

8.14

(In)constitucionalidade na criação de precedente vinculativo ...................... 226

8.15

Valores e princípios que justificam a vinculatividade do instituto ............... 229

8.16

A vinculatividade não desobrigará o magistrado de motivar suas decisões . 231

8.17 O incidente de resolução de demandas repetitivas e a busca pela razoável duração do processo ..................................................................................................... 232 8.18 A evolução da sociedade e a possibilidade de alteração de entendimento fixado no incidente ....................................................................................................... 235 9 A possibilidade de dois Tribunais de segundo grau julgarem o incidente de maneira diversa .............................................................................................................................. 238 10 Comparativo do incidente de resolução de demandas repetitivas com as ações coletivas previstas no microssistema (Lei 7.347/85 e Lei 8.078/90) ................................ 239 11

Análise crítica do instituto ....................................................................................... 241

12

Conclusão ................................................................................................................. 245

Referências ........................................................................................................................ 254

14

Introdução

Muitos são os problemas que levam à grande taxa de congestionamento do Judiciário (quantidade insuficiente de juízes e servidores, estrutura administrativa por vezes precária, informatização ultrapassada, baixa conscientização da população etc.). Em decorrência do objeto do presente trabalho, entretanto, não nos cabe perquirir com maior aprofundamento tais deficiências. O Estado deve fazer sua parte, treinando constantemente os funcionários do Judiciário (juízes e serventuários), modernizando e informatizando os tribunais; a população deve também fazer a sua parte, pautando suas condutas de acordo com as normas preestabelecidas e procurando resolver suas demandas por meio da conciliação; os advogados devem orientar seus clientes sobre os riscos da demanda; enfim, muito precisa ser feito e revisto, não nos cabendo aqui lucubrar sobre quais seriam essas mudanças e quais seus impactos, haja vista não se tratar de uma pesquisa empírica. Como estudiosos da ciência processual devemos nos ater a essa ciência para tentar aprimorá-la como forma de contribuir para uma justiça mais efetiva. O processo, como instrumento posto à disposição da jurisdição para a obtenção de sua finalidade, que é dar a cada um aquilo a que lhe é de direito, tem sua duração fisiológica que não pode ser deixada de lado sob pena de se ferirem mais do que princípios constitucionais, verdadeiras cláusulas pétreas. Assim, a Constituição brasileira prevê, a exemplo de outras, o direito de acesso à justiça. Sabemos que esse acesso tem que ser efetivo, pois justiça tardia não pode ser considerada justiça. Por outro lado, justiça célere, a qualquer custo, também não é justiça. Nossa Constituição prevê a razoável duração do processo como princípio e não a celeridade. O contraponto entre o devido processo legal e a razoável duração do processo é o calcanhar de Aquiles de nossa disciplina. Contrabalançar esses dois princípios não é tarefa fácil, mas é função do processualista tentar trazer parâmetros para evolução dessa disciplina no intuito de dar a cada um o que realmente lhe pertence e num prazo considerado razoável.

15 Dentre outros institutos de fundamental importância para a ciência processual, procuramos nos debruçar sobre a forma de resolução de litígios que podem se repetir perante a sociedade e a necessidade de resolução de modo uniforme desses litígios individuais. Uma das formas de se uniformizar esses litígios seria por meio da tutela de modo coletivo desses direitos individuais. A evolução e o estudo da tutela coletiva de direitos e da tutela de direitos coletivos nos últimos anos é visível. Não obstante, a nossa legislação sobre tutela coletiva de direitos tem seus pontos de restrição, o que também contribui para o aumento da quantidade de processos individuais, mais especificamente, os que versam litígios de massa. Com a massificação das relações jurídicas, por via de consequência, há maior procura pelo Judiciário. A necessidade de adaptação deste para atender essas demandas é crucial para a própria existência de um Estado Democrático de Direito. Diante dessas ineficiências é que surge a tendência de se obedecer aos posicionamentos exarados pelos Tribunais e de se objetivar os julgados por estes proferidos. Neste trabalho pretendemos demonstrar que o sistema processual civil brasileiro sempre visou à uniformização e a obediência dos julgados proferidos pelos Tribunais, isto em razão da necessidade de segurança jurídica e o iminente instituto, previsto no Projeto de Lei 8.046/2010 da Câmara dos Deputados tem também a finalidade de fazer com que haja obediência ao posicionamento exarado pelos Tribunais, visando solucionar parte dos problemas diuturnamente enfrentados pelo Judiciário.

16 CAPÍTULO I – PANORAMA ATUAL DO PROCESSO CIVIL BRASILEIRO

1

A constante busca pela cessação da lentidão do Judiciário

A preocupação com a lentidão do Judiciário na resolução dos conflitos e o crescente número de demandas não é assunto novo, nem problema localizado. Há também essa preocupação em diversos outros países. Como destacado por Maria Elizabeth de Castro Lopes, os principais processualistas já se debruçaram sobre a revisitação de conceitos processuais; o empenho de defender a constitucionalização do processo civil; busca pela efetividade; informalidade do processo; quebra de paradigmas e também sobre o fortalecimento dos poderes de direção e instrução conferidos ao juiz1, tudo no intuito de aprimorar essa ciência. Como estudioso do direito processual podemos apenas destacar alguns dos principais pontos que levaram o legislador a realizar reformas setoriais no processo pátrio, bem como ainda leva o legislador a buscar novos mecanismos processuais, com o fim de tentar dar à sociedade uma resposta aos direitos consagrados na Constituição: o direito de acesso ao Judiciário, para obtenção da tutela jurisdicional pleiteada, num prazo razoável, obedecendo aos princípios do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa. A partir das constantes preocupações, e considerando a finalidade da ciência processual, Dinamarco nos traz os escopos nos quais a jurisdição deve estar baseada (escopos social, político e jurídico)2. Pode-se destacar também a alteração do eixo metodológico, que, no início do século passado, estava voltado para o estudo da ação e atualmente está voltado para o estudo da tutela3.

1 2 3

LOPES, Maria Elizabeth de Castro. O juiz e o princípio dispositivo. São Paulo: RT, 2006, p. 64-65 DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. 14. ed. São Paulo: Malheiros, 2009 BUENO, Cassio Scarpinella. Curso sistematizado de direito processual civil. vol. 1. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2010

17 Com essas considerações iniciais, passamos a nos aprofundar em alguns dos pontos enfrentados pela comunidade jurídica na busca incessante da eliminação da morosidade processual4.

1.1

A Constitucionalização do Direito Processual

Na evolução do direito constitucional, na qual podemos destacar a preocupação com a proteção dos direitos de primeira, segunda e terceira gerações, também constatamos um salto na preocupação com direitos processuais mínimos que devem ser garantidos aos cidadãos5. A preocupação com os direitos de segunda geração surgiu com o término da primeira guerra, quando se passaram a reconhecer direitos sociais. Pode-se citar como exemplo a Constituição de Weimer de 19196. Após isso, três outros fatos históricos marcaram a humanidade: a segunda guerra mundial, o fascismo e o nazismo7. Por conta disso foi proclamada, em 10 de dezembro de 1948, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, prevendo direitos processuais básicos. Com essa evolução, houve por consequência a

4

5

6 7

Muitas são as causas que levam à lentidão da prestação da tutela jurisdicional pelo Estado num prazo razoável (falta de informatização, falta de mão-de-obra etc.) Não nos cabe, nesse trabalho, levantar quais são as causas dessa lentidão, nem quais seriam as melhores soluções, tendo em consideração nosso objetivo. Podemos destacar alguns instrumentos históricos que visavam à proteção dos direitos mínimos das pessoas, como a declaração de Virgínia de 1776, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 e a Constituição Americana de 1791. Esses primeiros documentos visavam à proteção dos chamados direitos de primeira geração. (FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Direitos Humanos Fundamentais. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 5-6). Cappelletti fala na “positivação” do direito natural, passo que foi dado com as instituições das Constituições rígidas, se iniciando com a Constituição dos Estados Unidos. (CAPPELLETTI, Mauro. O controle judicial de constitucionalidade das leis no direito comparado (trad. Aroldo Plínio Gonçalves). 2. ed. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1999, p. 56) FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Direitos Humanos Fundamentais. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 41 Após fazer um histórico sobre a ascensão e queda do jusnaturalismo e sobre o positivismo filosófico, para falar sobre o pós-positivismo, Luís Roberto Barros destaca que “[...] a decadência do positivismo é emblematicamente associada à derrota do fascismo na Itália e do nazismo na Alemanha. Esses movimentos políticos e militares ascenderam ao poder dentro do quadro de legalidade vigente e promoveram a barbárie em nome da lei. Os principais acusados de Nuremberg invocaram o cumprimento da lei e a obediência a ordens emanadas da autoridade competente. Ao fim da Segunda Guerra Mundial, a ideia de um ordenamento jurídico indiferente a valores éticos e da lei como uma estrutura meramente formal, uma embalagem para qualquer produto, já não tinha mais aceitação no pensamento esclarecido”. (BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 350-351)

18 constitucionalização dos direitos fundamentais8, sendo incluídos entre eles os direitos processuais9. Destaca Joan Picó I Junoy que Tras la Segunda Guerra Mundial, se produce en Europa y especialmente en aquellos países que en la primera mitad del siglo XX tuvieron regímenes políticos totalitarios, un fenómeno de constitucionalización de los derechos fundamentales de la persona, y dentro de éstos, una tutela de las garantías mínimas que debe reunir todo proceso judicial. Se pretendía con ello evitar que el futuro legislador desconociese o violase tales derechos, protegiéndolos, en todo caso, mediante un sistema reforzado de reforma constitucional10.

Por conta disso verificamos a constitucionalização de muitos dos princípios processuais, para que os cidadãos pudessem obter proteção contra eventuais abusos do Estado. No Direito Pátrio, após um período de ditadura militar, fomos coroados com uma Constituição que possui um imenso rol de direitos fundamentais, destacando-se como direitos constitucionais processuais, dentre outros, o do devido processo legal, do contraditório, da ampla defesa, do acesso ao Judiciário, da isonomia, da motivação das decisões judiciais, do juiz natural, do dispositivo. Para a proteção dos direitos e garantias das pessoas faz-se necessário proteger também os direitos processuais, haja vista que de nada adiantaria a proteção dos direitos das pessoas se estas não tivessem a garantia de se socorrer a um processo hígido para a própria proteção de seus direitos constitucionalmente assegurados. Para a própria existência de um Estado Democrático de Direito é que existem garantias processuais mínimas previstas em nível constitucional: [...] la verdadera garantía de los derechos de la persona consiste precisamente en su protección procesal, para lo cual es necesario distinguir entre los derechos del hombre y las garantías de tales derechos, que nos son otras que los medios procesales mediante los cuales es posible su realización 11 y eficacia . 8

9

10 11

CAPPELLETTI, Mauro. Juízes legisladores? (trad. Carlos Alberto Alvaro de Oliveira). Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 1993, p. 61-63. Afirma o autor que os “direitos fundamentais constituem o elemento central de quase todas as constituições do século XX, especialmente das promulgadas como reação aos abusos e perversões dos regimes ditatoriais que conduziram à segunda guerra mundial”, afetando também países que não foram vítimas de regimes ditatoriais e países do common law. TAVARES, André Ramos. Curso de direito constitucional. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 453-524; BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 24. ed. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 541-541 e 550554 JUNOY, Joan Picó I. Las garantías constitucionales del proceso. Barcelona: Jose Maria Bosch, 2002, p. 17 JUNOY, Joan Picó I. Las garantías constitucionales del proceso. Barcelona: Jose Maria Bosch, 2002, p. 18

19 Com a constitucionalização dos direitos fundamentais e, mais precisamente, dos direitos processuais, o próprio legislador ordinário encontrou limites para sua atuação no campo processual, pois para a elaboração de leis processuais passou a ter que observar os ditames da Constituição12. A partir do início do século XXI os doutrinadores de direito constitucional passam a falar

de

um

pós-positivismo,

constitucionalismo

pós-moderno

ou

ainda

neoconstitucionalismo. Com vista nessa nova tendência, busca-se dar maior efetividade à Constituição, “[...] deixando de ter um caráter meramente retórico e passando a ser mais efetivo, especialmente diante da expectativa de concretização dos direitos fundamentais”13. Passa-se a haver preocupação com a concretização dos direitos fundamentais14. Apesar das grandes garantias asseguradas pela Constituição de 1988, o Constituinte Derivado entendeu que havia necessidade de alteração na Constituição para adequação do direito processual e do Judiciário à realidade desse novo século. Isso porque houve aumento de procura pelo Judiciário para a solução dos conflitos e este precisa responder aos anseios da sociedade para que cumpra sua função constitucional.

1.2

A Emenda Constitucional 45/2004 e as reformas processuais decorrentes como forma de garantir uma tutela jurisdicional efetiva

Diante da busca incessante pela eliminação da morosidade judicial e por uma maior efetividade do direito processual, acrescido também do apelo da mídia, em 8 de dezembro de 2004 foi promulgada a Emenda Constitucional 45, apelidada de emenda da “reforma do 12

13 14

“[...] na medida em que princípios e regras específicos de uma disciplina ascendem à Constituição, sua interação com as demais normas daquele subsistema muda de qualidade e passa a ter um caráter subordinante. Trata-se da constitucionalização das fontes do direito naquela matéria”. (BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do direito (o triunfo tardio do direito constitucional no Brasil. Revista eletrônica sobre a reforma do Estado. vol. 9. Salvador: Instituto Brasileiro de Direito Público, 2007, p. 19. Disponível em: http://www.direitodoestado.com/revista/RERE-9-MAR%C7O-2007LUIZ%20ROBERTO%20BARROSO.pdf Acesso em 26.03.2012 às 10h30) LENZA, Pedro Direito Constitucional Esquematizado. 13.ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 9 Hoje, com a existência dos princípios processuais no texto da Constituição Federal, ela passa a ser o ponto de partida e de chegada, devendo as leis processuais ser criadas e interpretadas a luz da Constituição.

20 Judiciário”. Por meio dela houve a inclusão do princípio da razoável duração do processo, alteração de competências entre o STF e o STJ, alteração de competências na Justiça do Trabalho (deslocando uma gama maior de assuntos para ser tratado por esta justiça especializada), criação de enunciados de súmula com efeito vinculante, criação do Conselho Nacional de Justiça, dentre outros pontos15. Não fosse apenas isso, a partir dai foi firmado o I Pacto Republicano de Estado para uma justiça mais ágil, que contou com as assinaturas dos chefes dos Três Poderes. Como decorrência, quarenta e um projetos de lei foram encaminhados ao Congresso Nacional visando a uma melhora na prestação da tutela jurisdicional pelo Estado16. Muitos desses projetos acabaram sendo aprovados e sancionados17. Após, em 13 de abril de 2009 foi assinado o II Pacto Republicano e já foi proposto pelo Min. Cesar Peluzo (então presidente do STF) a assinatura do III Pacto Republicano. Por conta dessa alteração na Constituição Federal e da junção de esforços para tentar melhorar a sistemática processual, foram sancionadas leis alterando até mesmo conceitos enraizados, como o da separação de processos entre cognição e execução18; houve alteração no regime do recurso de agravo contra as decisões interlocutórias19; a criação de uma sistemática que possibilitou a improcedência liminar pelo juiz de primeiro grau; a alteração dos requisitos para a interposição do recurso extraordinário; a criação de procedimentos para o julgamento de recursos por amostragem; a previsão de informatização do processo; e a edição de enunciados de súmula vinculante. As reformas já realizadas no direito processual civil, apesar de trazerem alguns resultados positivos não tiveram o condão de solucionar os problemas existentes, que a cada dia se tornam maiores. A sociedade clama por um Judiciário mais célere20. Em 2009, por

15

16 17 18

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Vale lembrar que parte do projeto da Emenda Constitucional voltou para a Câmara dos Deputados em razão de alterações votadas e aprovadas no Senado Federal (PEC358/05). Essa PEC ainda se encontra em tramitação na Câmara dos Deputados. A quantidade de projetos referem-se não apenas à área processual civil. Podemos destacar, a guisa de exemplo, as Leis 11.187/05; 11.232/05; 11.276/06; 11.277/06; 11.280/06; 11.382/06; 11.417/06; 11.418/06 e 11.672/08. Sobre o tema, ver: CARNEIRO, Athos Gusmão. Do cumprimento de sentença conforme a Lei 11.232/05. Parcial retorno ao medievalismo? Por que não? Revista AJURIS. Rio Grande do Sul. ano 33, n. 102, 2006, p. 51-78 Apesar disso, afirma Cassio Scarpinella Bueno que a regra contida na Lei 11.187/05 não alterou a sistemática do recurso de agravo, apenas a tornou mais explicita, pois a alteração já havia ocorrido com a Lei 10.352/2001. (BUENO, Cassio Scarpinella. Nova Etapa da Reforma do Código de Processo Civil. vol. 1. São Paulo: Saraiva, 2006) [...] “aqui e alhures não se calam as vozes contra a morosidade da justiça. O vaticínio tornou-se imediato: ‘justiça retardada é justiça denegada’ e com esse estigma arrastou-se o Poder Judiciário, conduzindo o seu

21 determinação do Senador José Sarney, então presidente do Senado, por meio do Ato 379/2009 foi instituída comissão de juristas encarregada de elaborar proposta de anteprojeto de Código de Processo Civil visando acelerar a tramitação de processos perante o Judiciário, desafogando os Tribunais e garantindo à sociedade um processo mais célere. Segundo a Exposição de Motivos do Projeto: Um sistema processual civil que não proporcione à sociedade o reconhecimento e a realização dos direitos, ameaçados ou violados, que têm cada um dos jurisdicionados, não se harmoniza com as garantias constitucionais de um Estado Democrático de Direito. Sendo ineficiente o sistema processual, todo o ordenamento jurídico passa a carecer de real efetividade. De fato, as normas de direito material se transformam em pura ilusão, sem a garantia de sua correlata realização, no mundo empírico, por meio do processo. [...] O novo Código de Processo Civil tem o potencial de gerar um processo mais célere, mais justo, porque mais rente às necessidades sociais e muito menos complexo. A simplificação do sistema, além de proporcionar-lhe coesão mais visível, permite ao juiz centrar sua atenção, de modo mais intenso, no mérito da causa. Com evidente redução da complexidade inerente ao processo de criação de um novo Código de Processo Civil, poder-se-ia dizer que os trabalhos da Comissão se orientaram precipuamente por cinco objetivos: 1) estabelecer expressa e implicitamente verdadeira sintonia fina com a Constituição Federal; 2) criar condições para que o juiz possa proferir decisão de forma mais rente à realidade fática subjacente à causa; 3) simplificar, resolvendo problemas e reduzindo a complexidade de subsistemas, como, por exemplo, o recursal; 4) dar todo o rendimento possível a cada processo em si mesmo considerado; e, 5) finalmente, sendo talvez este último objetivo parcialmente alcançado pela realização daqueles mencionados antes, imprimir maior grau de organicidade ao sistema, dandolhe, assim, mais coesão.

Constata-se, por meio dessa evolução, uma luta constante por parte da doutrina e também da sociedade por maior agilidade do processo, mas essa agilidade não pode ser concedida a qualquer custo. Como dito, a Constituição fala em razoável duração do processo, o que não pode ser confundido com celeridade desenfreada e sem respeito aos demais princípios constitucionais, devendo haver equilíbrio entre devido processo legal e efetividade21. Esse é o dilema secular existente no direito processual civil para se garantir um processo justo e equo22.

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desprestígio a índices alarmantes de insatisfação aos olhos do povo”. (Trecho extraído da carta do Min. Luiz Fux, ao encaminhar o anteprojeto de CPC ao Senado Federal) “[...] os valores processuais denominados ‘segurança jurídica’ e ‘celeridade’ são universalmente inconciliáveis em termos absolutos, porquanto incompatíveis entre si, na exata medida em que, aumentandose a rapidez, naturalmente reduz-se, na mesma proporção, a segurança na prestação da tutela jurisdicional”.

22 Essa luta constante, todavia, não fica limitada à maior efetividade do processo. Também envolve maior busca por isonomia e segurança jurídica. Assim, os institutos processuais precisam ser aperfeiçoados para evitar a existência de decisões antagônicas, o que traz previsibilidade, isonomia e também segurança jurídica.

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A evolução da sociedade e a massificação dos negócios jurídicos

No curso recente da evolução do direito processual, desde meados do século XIX, houve grande transformação dessa disciplina como ciência autônoma, destacando-se desde a importante polêmica entre Bernhard Windscheid e Theodor Muther, seguindo-se com importantes obras de Oskar von Bullow, Dekengolb y Plosz e Adolf Wach e demais obras que contribuíram sobremaneira para essa evolução. A sociedade, em paralelo, também vinha sofrendo transformações, geradas, dentre outros motivos, pela revolução industrial, iniciada na Inglaterra em meados do século XVIII e expandida pelo mundo em meados do século XIX23. Posteriormente, com a evolução da

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(FIGUEIRA JÚNIOR, Joel Dias. Juizados Especiais Federais Cíveis e Criminais. 3. ed. São Paulo: RT, 2010, p. 301 Destaca-se que a Convenção Europeia para Proteção dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais, datada de 04.11.1950 já trazia direito a uma razoável duração do processo: Art. 6º. “Right to a fair trial. 1 In the determination of his civil rights and obligations or of any criminal charge against him, everyone is entitled to a fair and public hearing within a reasonable time by an independent and impartial tribunal established by law. Judgment shall be pronounced publicly but the press and public may be excluded from all or part of the trial in the interests of morals, public order or national security in a democratic society, where the interests of juveniles or the protection of the private life of the parties so require, or to the extent strictly necessary in the opinion of the court in special circumstances where publicity would prejudice the interests of justice”. Texto semelhante também foi introduzido no Pacto de San Jose da Costa Rica datado de 22.11.1969 (art. 8º) Enzo Roppo, ao tratar da evolução do contrato, afirma que o aumento das relações negociais decorreu do surgimento do capitalismo, que acabou por contribuir para a sistematização da teoria dos contratos e sua evolução: “E se se tornar necessária uma confirmação indirecta desta estreita ligação entre a exaltação do papel do contrato e a afirmação de um modo de produção mais avançado, atente-se em que não pode certamente atribuir-se ao mero acaso o facto de as primeiras elaborações da moderna teoria do contrato, devidas aos jusnaturalistas do séc. XVII e em particular ao holandês Grotius, terem lugar numa época e numa área geográfica que coincidem com a do capitalismo nascente; assim como não é por acaso que a primeira grande sistematização legislativa do direito dos contratos (levada a cabo pelo código civil francês, code Napoleon, de 1804) é substancialmente coeva do amadurecimento da revolução industrial, e constitui o fruto político directo da revolução francesa, e, portanto, da vitória histórica conseguida pela classe – a burguesia – à qual o advento do capitalismo facultou funções de direção e domínio de toda a sociedade”. (ROPPO, Enzo. O contrato. (trad. Ana Coimbra e M. Januário C. Gomes). Coimbra: Almedina, 1988, p. 25-26)

23 sociedade vimos o surgimento do Fordismo e com ele o surgimento da cultura da produção em massa e também da economia de escala24. Nessa evolução, os negócios jurídicos, que séculos antes eram poucos, passaram a crescer ano após ano. Em decorrência da evolução da sociedade, ampliam-se os meios de comunicação, e as pessoas que não tinham acesso a informações básicas passam a tê-la. Vai-se implementando, ao longo da evolução histórica de nossa sociedade, a ideia do consumismo, sendo a economia de escala grande atrativo para os empresários, que poderiam lucrar a partir da produção em grande quantidade de produtos em série. Surge a massificação25 e com ela a estandardização dos negócios jurídicos26. Durante essa evolução, constatou-se o êxodo rural e a concentração das pessoas em grandes metrópoles, cada vez mais inchadas (sem deixar de mencionar o crescimento populacional). O acesso aos meios de comunicação, de fundamental importância nesse processo, decerto faz com que as pessoas alimentem o desejo por bens de consumo, porém, ao mesmo tempo, também leva a essas mesmas pessoas mais informações sobre seus direitos e garantias. Com isso, a justiça, que até pouco tempo era elitizada – pois os conflitos surgidos eram, em sua grande maioria, decorrentes de discussões sobre posse, propriedade, inventário, ou seja, justiça acessível apenas àqueles que detivessem conhecimento e fortuna – passa a abrir suas portas para a população em geral.

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RODRIGUES, Ruy Zoch. Ações repetitivas: casos de antecipação de tutela sem o requisito de urgência. São Paulo: RT, 2010, p. 31 “Os fenômenos do nascimento do welfare state e do crescimento dos ramos legislativo e administrativo foram por si mesmos, obviamente, o resultado de um acontecimento histórico de importância ainda mais fundamental: a revolução industrial, com todas as suas amplas e profundas consequências econômicas, sociais e culturais. Essa grandiosa revolução assumiu uma característica que se pode sintetizar numa palavra certamente pouco elegante, mas assaz expressiva: ‘massificação’. Todas as sociedades avançadas do nosso mundo contemporâneo são, de fato, caracterizadas por uma organização econômica cuja produção, distribuição e consumo apresentam proporções de massa”. (CAPPELLETTI, Mauro. Juízes legisladores? (trad. Carlos Alberto Alvaro de Oliveira). Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 1993, p. 56-57) “Um fenómeno similar de despersonalização das relações contratuais e de automatismo na actividade destinada a constituí-las é patenteado pela praxe de contratação standartizada, através do emprego de condições gerais, módulos e formulários, predispostos antecipadamente, por uma parte, para uma massa homogénea e indiferenciada de contrapartes (contratos de massa): aqui a aceitação – do consumidor, do utente, do inquilino, etc. – resume-se, no máximo, a um simples acto de adesão mecânica e passiva ao esquema pré-formulado [...]” (ROPPO, Enzo. O contrato. (trad. Ana Coimbra e M. Januário C. Gomes). Coimbra: Almedina, 1988, p. 302)

24 Em reporte importante realizado por Mauro Cappelletti e Bryant Garth constata-se a evolução do acesso à justiça, o que foi classificado como três “ondas renovatórias”27. Num primeiro momento buscou-se ampliar o acesso aos necessitados. Diversas pessoas não tinham (e ainda hoje muitas delas não têm) condições de arcar com as despesas processuais e com os honorários necessários para contratar um advogado. No Brasil, a lei que regula o acesso à justiça, por meio da concessão da assistência judiciária gratuita, é a 1.060/1950. Ocorre que essa expansão ao acesso à justiça ocorreu bem posteriormente, com a promulgação da Constituição Federal de 1988 e a criação das defensorias públicas (ressalte-se que nem todas elas estão plenamente aparelhadas para atender a população carente, a exemplo do que se verifica no Estado de São Paulo, porquanto apesar de ter Defensoria Pública, ainda necessita de convênios com a OAB e faculdades para dar vazão às demandas da população carente). Com o aumento da densidade demográfica e a expansão dos meios de comunicação, com o consequente incremento da quantidade de negócios jurídicos que as pessoas passaram a realizar diariamente (massificação), acrescidos do maior acesso à informação e da facilitação de acesso aos necessitados, as portas do Judiciário foram abertas para a resolução desses conflitos, que até então não eram solucionados pelo Judiciário. Num segundo momento (segunda onda renovatória), procurou-se ampliar o acesso à justiça para proteger direitos dispersos, que não possuíam legitimados certos. Surge a necessidade de regulamentação e proteção de direitos difusos, junto com a necessidade de proteção de negócios celebrados pela população com grandes corporações, decorrentes dos negócios de massa. Isso porque muitos dos danos sofridos são de pequena monta e o custo/benefício de se demandar para ter a proteção individual não compensa na maioria das vezes, fazendo com que a população não tenha seu direito protegido e que as grandes corporações beneficiem-se de sua própria torpeza. Assim, pessoas que individualmente não teriam interesse em litigar passam a ser agrupadas para que tenham maior força perante a outra parte da demanda, com vistas a uma equalização entre as partes do processo e viabilidade de se demandar, já que o grupo tem maior poder do que o indivíduo isolado. Com

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CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à Justiça. (trad. Ellen Gracie Northfleet). Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1988, p. 31

25 isso o Ocidente28 se volta à criação / aperfeiçoamento de mecanismos visando à proteção dos chamados direitos metaindividuais29. Numa terceira etapa, chamada por Garth e Cappelletti de “enfoque de acesso à justiça”30, em que se busca a efetivação do acesso a justiça, constata-se a necessidade de dar vazão às demandas propostas perante o Judiciário. Nesse período, mecanismos tais como reformas procedimentais, mudança na estrutura do Judiciário, criação de novos tribunais etc. são adotados para tornar o acesso à justiça real e efetivo, haja vista que não adianta abrir as portas para novas demandas e para que a população em geral tenha acesso ao Judiciário sem que haja modificação no sistema processual, procedimental e na estrutura do Judiciário etc. para que os litígios possam ser resolvidos num prazo razoável. Essa evolução do acesso à justiça, no entanto, não foi acompanhada de uma correspondente evolução do Judiciário, o qual, estagnado, hoje se vê abarrotado de processos que aguardam, quase sem esperanças, um provimento final efetivo. Nas últimas décadas podemos nos lembrar também da grande massificação de negócios jurídicos surgidos com a privatização de alguns serviços que eram até então prestados pelo Estado (energia elétrica, telefonia). Um telefone fixo, por exemplo, custava tanto quanto um carro popular. Com a privatização e expansão da telefonia, hoje uma linha telefônica praticamente não tem preço comercial. Acrescente-se ainda a nova transformação pela qual estamos passando, desde a quebra de fronteiras, por meio da globalização, até a instantaneidade das informações, sem deixar de

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Segundo reporte de Masaaki Haga feito no XIII Congresso Mundial de Direito Processual no ano de 2007, em Salvador, no Japão não há um sistema processual capaz de lidar com os litígios envolvendo direitos dos consumidores. Há estudos e também houve forte movimento para adoção de um sistema baseado nas class actions norte-americana, todavia, há discussões sobre se esse modelo não seria uma forma de sanção contra as sociedades empresárias. Também há discussão sobre o due process of law em razão do pequeno número de entes que poderiam litigar sem autorização. (GRINOVER, Ada Pellegrini; WATANABE, Kazuo; MULLENIX, Linda. Os processos coletivos nos países de civil law e common law: uma análise de direito comparado. São Paulo: RT, 2008, p. 227-228 “[...] as características da vida contemporânea produzem a emersão de uma série de situações em que, longe de achar-se em jogo o direito ou o interesse de uma única pessoa, ou de algumas pessoas individualmente consideradas, o que sobreleva, o que assume proporções mais imponentes, é precisamente o fato de que se formam conflitos nos quais grandes massas estão envolvidas, e um dos aspectos pelos quais o processo recebe o impacto desta propensão do mundo contemporâneo para os fenômenos de massa: produção de massa, distribuição de massa, cultura de massa, comunicação de massa, e porque não, processo de massa? (BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Ações coletivas na Constituição Federal de 1988. Revista de Processo. n 61. São Paulo: RT, 1991, p. 187 e ss.) CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à Justiça. (trad. Ellen Gracie Northfleet). Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1988, p. 31

26 lado, por óbvio, a constante evolução tecnológica, que está também revolucionando a forma como os negócios jurídicos estão sendo celebrados31. Vemos, com isso, que pessoas que até bem pouco tempo sequer tinham um aparelho de TV em suas casas hoje têm computadores, possuem aparelhos telefônicos fixo e móveis. Isso é muito positivo e mostra que, apesar do grande abismo decorrente da desigualdade social, nossa sociedade está cada vez mais inclusiva. Todavia, essa grande gama de negócios jurídicos celebrados por todos acaba, de certa forma, trazendo consigo problemas até então inexistentes, ou existentes em quantidade diminuta. O Estado, com isso, tem a função de resolver os conflitos surgidos e não solucionados, haja vista que a partir do momento em que foi proibida a autotutela (como regra), ele trouxe para si a função de por um ponto final nesses conflitos, com vistas a uma utópica paz social. O problema é que o Estado não consegue se desincumbir de seu papel a contento, pois são tantas as lides surgidas e diversos os problemas que o Judiciário enfrenta para solucionálas, que estamos à beira de um caos. Para tentar solucionar parte desse caos, dentre outras medidas, foram trazidas para o direito pátrio as ações coletivas. Verificando-se a existência de demandas envolvendo direitos comuns, surge a necessidade de proteção desses direitos, ditos metaindividuais32. Diante de litígios decorrentes de uma origem comum, como ações indenizatórias decorrentes de acidente aéreo ou decorrente da comercialização de produtos defeituosos ou viciados, não há porque permanecer com o sistema tradicional para a resolução dessas questões. Em decorrência desses “novos” direitos surge a segunda “onda renovatória”. A ideia descrita por Cappelletti e Garth é a de proteção de pessoas em grupo contra grandes instituições, devidamente organizadas, seja para dar maior isonomia, seja para tornar viável a 31

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Uma simples compra e venda realizada presencialmente passa a ser realizada a distância, inclusive internacionalmente, gerando diversas consequências, como até mesmo outros negócios jurídicos, como o transporte da mercadoria, por exemplo. O contrato que existia em meio físico, passa a existir em meio eletrônico. O dinheiro físico, muitos deixam até de ver, porque ele sai de uma conta e entra em outra por meio de transações eletrônicas. Compras que eram individuais, agora são feitas coletivamente etc. Como o foco do trabalho é a análise do direito individual, pedimos vênia para deixar de tratar da tutela coletiva.

27 defesa desses direitos, pois pode não ser financeiramente viável a defesa individual dessas pessoas. Mas não são apenas essas as razões para que os direitos individuais sejam tutelados de forma coletiva33. A proteção coletiva de direitos individuais também tem a função de reduzir o número de demandas perante o Judiciário. Afinal, diversas demandas seriam concentradas numa única demanda, sem falar na segurança jurídica trazida para o sistema, pois se evitaria que julgamentos em sentido contrário sejam proferidos em “casos idênticos”, o que por fim garantiria a isonomia. Noticia-se que a difusão das class actions ocorreu em 1938, nos Estados Unidos, com a Rule 23 da Federal Rules of Civil Procedure34. As class actions norte-americanas têm inspiração no direito inglês, no qual é possível encontrar antecedentes mais remotos35. No Brasil, para a proteção desses novos direitos podemos destacar, dentre outras, a Lei de Ação Popular (Lei 4.717 de 1965), a lei que trata da intervenção e liquidação extrajudicial de instituições financeiras (Lei 6.024 de 1974), a Lei de Ação Civil Pública (Lei 7.347 de 1985), a Lei de proteção aos investidores no mercado de valores mobiliários (Lei 7.913 de 1989), o Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078 de 1990) e a Lei do Mandado de Segurança Individual e Coletivo (Lei 12.016 de 2009). Apesar da existência de diversas leis que pretendem reger o sistema de tutelas coletivas no direito pátrio, verifica-se que muitas demandas acabam sendo solucionadas por meio do processo individual. Muitos são os problemas36 enfrentados na solução do litígio de

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ZAVASCKI, Teori Albino. Processo Coletivo: Tutela de Direitos Coletivos e Tutela Coletiva de Direitos. 4. ed. São Paulo: RT, 2009, p. 34 HODGES, Christopher. Multi-Party Actions. Oxford: Oxford University Press, 2001, p. 3 Afirma Castro Mendes que na época medieval já houve acontecimentos que indicam a origem das demandas coletivas: Noticia-se que o primeiro caso na Inglaterra teria surgido em 1199, perante a Corte Eclesiástica de Canterbury, na qual um pároco, Martin, teria ajuizado demanda versando direitos em face dos paroquianos de Nuthamstead. Todavia, há quem afirme que há situação mais remota, na França, quando em 1179, na cidade de Paris, os aldeões da vila de Rosnysous-Bois teriam reivindicado o fim da condição de servos. (LEAL, Marcio Flávio Mafra. Ações coletivas: história, teoria e prática. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 1998, p. 21-22; MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro. Ações Coletivas no Direito Comparado e Nacional. 2. ed. São Paulo: RT, 2010, p. 38) Há quem afirme a falência do processo coletivo como instrumento de combate à massificação: AMARAL, Guilherme Rizzo. Efetividade, segurança, massificação e a proposta de um “incidente de resolução de demandas repetitivas”. Revista de Processo. ano 36. vol. 196, São Paulo: RT, 2011, p. 237 e ss.

28 forma coletiva no direito pátrio37, o que faz com que as demandas continuem na sua grande maioria, sendo resolvidas pelo modelo tradicional de processo.

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A necessidade de o Judiciário garantir a segurança jurídica na resolução das demandas

Utilizando-se das palavras de Donaldo Armelin, podemos destacar que segurança jurídica: Constitui um elemento fundamental para a sociedade organizada, um fator básico para a paz social, o que implica estabilidade de situações pretéritas e na previsibilidade de situações futuras. No plano da atuação jurisprudencial, a previsibilidade das decisões judiciais insere-se para o usuário da jurisdição como um fator de segurança que o autoriza a optar por um litígio ou por uma conciliação. É fundamental que quem busque a tutela jurisdicional tenha um mínimo de previsibilidade a respeito do resultado que advirá de sua postulação perante o Judiciário38.

O tema segurança não é novo. Evitando-se a instabilidade social e a surpresa, a sociedade buscou pautar-se pela segurança jurídica. Segurança esta que, por via de consequência, traria estabilidade para o sistema. A própria criação do Estado teve por objetivo trazer a segurança para a sociedade. Thomas Hobbes destacou que o homem, num estado natural, era governado por sua própria razão, podendo fazer o que quiser, inclusive quanto à outra pessoa e isso não traria segurança para os homens, mesmo para os mais fortes ou astutos, razão pela qual celebraram um pacto, dando poderes a um soberano e obedecendo assim as leis emanadas deste39. Rousseau, por sua 37

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Apenas para se ter uma ideia da imensa problematização enfrentada na solução dos litígios de forma coletiva, podemos citar a limitação das matérias que podem ser objeto de ação coletiva (havendo um rol de matérias que não podem ser objeto de ação civil pública – art. 1º da Lei 7.347/85); discussão sobre a necessidade de autorização e relação de associados para ajuizamento de ação coletiva; convivência entre ações individuais e ações coletivas, podendo ainda haver contrariedade entre decisões dessas ações; dificuldade em se estabelecer o juízo competente para apreciar a demanda coletiva; redução dos efeitos da coisa julgada, limitada “ao âmbito de competência do juiz prolator da decisão”; o não impedimento de ajuizamento de ações individuais, apesar da existência de coisa julgada no processo coletivo; inexistência de regulamentação das chamadas defendant class actinos. O aprofundamento do estudo sobre esses temas pela doutrina já levou a diversas propostas de alteração do sistema legal de tutela coletiva. ARMELIN, Donaldo. Observância à coisa julgada e enriquecimento ilícito – postura ética e jurídica dos magistrados e advogados. Conselho da Justiça Federal. Caderno do CEJ 23, p. 292 “[...] it followed that in such condition every man has a right to everything, even to one another’s body. And therefore, as long as this natural right of every man to everything endureth, there can be no security to any

29 vez, afirmara que o homem para viver em sociedade precisaria abrir mão de sua liberdade natural. Haveria uma “alienação total, de cada associado, com todos os seus bens, à comunidade inteira”40. Com isso deixar-se-ia de viver num estado natural passando a viver num estado de direito. Em tempos mais modernos e para os países de civil law, a legislação e a codificação surgiu da própria ideia de isonomia. A criação de leis abstratas trouxe a ideia de aplicação uniforme do direito. Isso traria não só isonomia, mas também maior segurança jurídica41. Como bem destacou Recasens Siches a segurança se enquadra como um dos desejos básicos da sociedade. E a lei tem papel importante para se garantir essa segurança: Debido al hecho de que el hombre se representa el futuro y se preocupa por éste, las satisfacciones actuales no son suficientes, mientras que se perciba el porvenir como incierto. Ese deseo de seguridad incita a la creación u al desarrollo de técnicas para evitar el daño que los peligros de la Naturaleza puedan producir; para dominar fuerzas de la Naturaleza con el fin de ponerlas al servicio regular de las necesidades humanas; para garantizar unas buenas condiciones de vida; para prevenir enfermedades y para curarlas etc. Ahora bien, tales deseos de seguridad llevan también – y esto lo que importa subrayar aquí – a buscar el amparo del grupo social mediante normas e instituciones de Derecho positivo. En efecto, el deseo de seguridad es uno de los motivos radicales que lleva al hombre a producir Derecho positivo, gracias al cual pueda, hasta cierto punto, estar cierto y garantizado respecto de la conducta de los otros, y sepa a qué atenerse respecto de lo que uno pueda hacer en relación con ellos, y de lo que ellos puedan hacerle a uno42.

Quando da codificação do direito, no início do século XIX, impediu-se que os juízes interpretassem as leis. A função dos juízes era simplesmente a de aplicar o direito abstrato ao caso concreto sem maiores considerações43.

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man, how strong or wise soever he be [...]” (HOBBES, Thomas. Leviathan. Forgotten Books. 1651. Republicado em 2008, p. 89. Disponível em: http://books.google.com.br/books?id=Q4nPYeps6MC&printsec=frontcover&dq=o+leviat%C3%A3+ho&hl=pt-BR&sa=X&ei=aT7oTPIHoim8ASQ37mVAQ&sqi=2&redir_esc=y#v=onepage&q&f=false acesso em 25.06.2012 às 7h00). Para uma análise da evolução sobre o entendimento filosófico sobre segurança jurídica: MACIEL, José Fabio Rodrigues. Teoria geral do direito: segurança, valor, hermenêutica, princípios, sistema. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 17-47 ROUSSEAU, Jean Jacques. O Contrato Social. (trad. Paulo Neves. Porto Alegre: L&PM Pocket, 2010, p. 33 Para Rodrigues Maciel, todavia, numa análise do direito em evolução “as regras fixas e já conhecidas levam enorme vantagem sobre o empenho em adaptar-se diariamente às constantes evoluções e involuções sociais”. Contudo, “essa postura contraria à própria natureza do homem, acaba por gerar a falsa noção de segurança jurídica e coloca em risco a existência de um sistema jurídico realmente estável”. Isso em decorrência da inexistência de uma única verdade. (MACIEL, José Fabio Rodrigues. Teoria geral do direito: segurança, valor, hermenêutica, princípios, sistema. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 14). SICHES, Luis Recasens. Introducción al estudio del derecho. 12. ed. México: Porrúa, 1997, p. 63 Destaca Alfredo Buzaid que a somente em 1837 foi concedida à Corte de Cassação francesa o poder de interpretar a lei: “Entre os objetivos da Cassação não se compreendia, pois, o de realizar a unidade do direito

30 Todavia, a aplicação das normas abstratas a todos os casos sem maiores distinções, como, por exemplo, a própria ideia de que todos são iguais, quando na verdade não o são, fez com que houvesse uma evolução na aplicação das normas, sob pena de se gerar injustiças e também insegurança44. Com a evolução da sociedade e, principalmente após as duas grandes guerras e à queda dos sistemas nazista e fascista, viu-se a necessidade de se estabelecerem direitos mínimos em nível constitucional. Vê-se a partir desse momento histórico a preocupação com a introdução de princípios mínimos nas Constituições. A exemplo, nossa Constituição de 1988, vinda depois de um período ditatorial, é repleta de princípios45. Com as constituições sendo principiológicas, fez-se necessário maior labor interpretativo para conhecimento do real significado dos textos legais. Acrescentando-se a isso, também houve maior inclusão de normas abertas no direito positivo, deixando ao magistrado, na análise concreta do caso, verificar qual a melhor interpretação da situação (termos como boa-fé objetiva, função social do contrato, função social da propriedade, moralidade administrativa etc). Isso traz maior complexidade para a interpretação das normas. Por conta da alta carga valorativa aplicada ao direito e também pela simples razão de que a vida em sociedade é muito mais rica e cheia de detalhes do que pode prever o legislador, os juízes têm a necessidade de analisar o caso concreto e de interpretar o direito para sua aplicação. Não é mais possível, em pleno século XXI, aceitar a ideia de que os juízes sejam meras bouches de la loi. A própria necessidade de os magistrados terem de decidir e interpretar a lei decorre da necessidade de segurança jurídica diante das lacunas existentes no próprio ordenamento46. A

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através da exegese jurisprudencial; essa função surge só mais tarde, através da lenta e segura evolução, que amplia sua atividade e lhe confere, especialmente depois da lei de 1º de abril de 1837, o poder positivo de interpretar o direito, elevando-o à eminência de máximo regulador e guia da jurisprudência, a que deviam conformar-se os juízes”. (BUZAID, Alfredo. A crise do supremo tribunal federal. Revista de direito processual civil. ano III. vol. 6. Saraiva: São Paulo, 1962, p. 28) “Na formulação do sistema jurídico, caso realmente se queira privilegiar a segurança, deve-se levar em conta a diversidade cultural, fugindo da homogeneização do direito”. (MACIEL, José Fabio Rodrigues. Teoria geral do direito: segurança, valor, hermenêutica, princípios, sistema. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 41). Não que inexistisse um rol de garantias mínimas em constituições anteriores (a exemplo da Constituição de 1934). Como exemplificado por Recasens Siches, há a necessidade de o juiz interpretar a lei para que não haja absurdos, como o do exemplo citado pelo autor: se diante de uma estação de trem houver uma placa dizendo

31 simples existência de direito positivado não era suficiente para garantir a segurança jurídica esperada. Ao retornarmos à teoria geral do direito e à filosofia verificamos que uma das finalidades do direito é garantir a isonomia e a segurança jurídica. Gustav Radbruch aponta, dentre os valores inerentes ao direito, a segurança jurídica47. E isso é fundamental num Estado Democrático de Direito, pois não se pode falar em garantias mínimas como a liberdade, por exemplo, sem que seja garantida segurança jurídica48. Sobre o tema Jean-Louis Bergel afirma que as finalidades do direito são múltiplas e que as opiniões sobre isso são díspares49. É certo que as normas jurídicas devem possuir aplicação de forma isonômica, sob pena de se trazer não apenas desigualdade50, mas também insegurança jurídica e tanto um quanto outro são princípios garantidos por nossa Constituição Federal de 1988. Verificamos isso pela própria leitura de nossa Constituição que garante, desde seu preâmbulo, a “segurança”. Esse direito é reforçado no art. 5º, caput e art. 6º. Por certo que a Constituição não fala de forma expressa sobre o direito à segurança jurídica, mas esse direito decorre implicitamente dela, pois a crise do direito gera insegurança jurídica, que pode levar à instabilidade social, levando a crises e fazendo com que o Estado deixe de cumprir sua função última que é a pacificação social51. Muitas outras garantias constitucionais são pautadas na segurança jurídica, tais como a da proibição de a lei prejudicar o direito adquirido, o ato

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que é proibido o embarque com cão, uma pessoa que queira embarcar com um urso conseguirá embarcar. Todavia, se um cego pretender embarcar com um cão guia, terá tal possibilidade vetada. “Esta exige positividade do direito: se não se pode identificar o que é justo, então é necessário estabelecer o que deve ser jurídico, e de uma posição que esteja em condições de fazer cumprir aquilo que foi estabelecido” (RADBRUCH, Gustav. Filosofia do direito. (trad. Marlene Holzhausen). São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 108 – grifos no original) SOUZA, Carlos Aurélio Mota de. Segurança jurídica e jurisprudência: um enfoque filosófico-jurídico. São Paulo: LTR, 1996, p. 17 Citando M. Villey, destaca o autor que “Segundo os autores, o direito deve tender para ‘a justa partilha, a boa conduta dos indivíduos, para a utilidade, a segurança, o bem-estar deles’... ou para ‘a potência da nação, o progresso da humanidade, o funcionamento regular do organismo social’ ... Outros evocam, além das finalidades tradicionais que a justiça, a ordem a segurança ou progresso são, finalidades políticas, como a famosa trilogia da liberdade, igualdade e fraternidade ou garantias mais especialmente econômicas e sociais materializadas pelas aspirações atuais do direito ao trabalho, à saúde, à solidariedade etc.” (BERGEL, Jean Louis. (trad. Maria Ermantina de Almeida Prado Galvão). Teoria geral do direito. 2.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 22) Não se desconhece a existência sobre discussões filosóficas sobre o que seria isonomia, verdade e outros temas tão caros à filosofia. Não obstante, diante do objeto do presente trabalho, pedimos vênia para avançarmos no tema sem adentrar nessas peculiaridades. “Numa época em que ‘crise é a palavra-chave para a economia, para as relações sociais, a saúde, a educação e as instituições democráticas, também o é para o Direito. Crise do Direito ou crise da Justiça é a base da insegurança jurídica das nações em desenvolvimento”. (SOUZA, Carlos Aurélio Mota de. Segurança jurídica e jurisprudência: um enfoque filosófico-jurídico. São Paulo: LTR, 1996, p. 17)

32 jurídico perfeito e a coisa julgada e as garantias processuais (tais como o direito de acesso ao judiciário, o devido processo legal, o juiz natural, o duplo grau de jurisdição dentre outros)52, haja vista que este tem por finalidade garantir também a própria existência de um Estado Democrático de Direito. Não obstante, de forma expressa a Constituição menciona a possibilidade de edição de enunciados de súmula com efeito vinculante para extirpar “grave insegurança jurídica” (art. 103-A, § 1º). A importância da segurança jurídica para o direito é tão grande que já houve a instituição de sistemas jurídicos injustos, mas mesmo nesses, havia a segurança jurídica. Mesmo nos sistemas autoritários, nazistas e fascistas, onde se pode falar da existência de barbáries e injustiças, não se pode falar sobre insegurança jurídica. Não se pode verificar sistema jurídico sem que haja segurança. “O valor segurança é intrínseco ao direito”53. A segurança jurídica traz estabilidade e confiança. Traz previsibilidade. Ela não se confunde com certeza, apesar de seu relacionamento estreito. A segurança jurídica deve ser verificada de forma objetiva e a certeza é decorrência dessa segurança trazida pelo sistema jurídico: A segurança vem das leis firmes que o Estado promulga para o bem dos cidadãos e da sociedade; e a certeza do sujeito advém do conhecimento dessas leis, da valoração de seu conteúdo (compreende que é um bem para si e os demais; “fazer o bem, evitar o mal” é o conteúdo da previsibilidade do homo medius, razoável, comum). [...] a segurança objetiva das leis dá ao cidadão a certeza subjetiva das ações justas, segundo o Direito [...] Certeza é confiança em algo que a Segurança projeta em cada um de nós: a Segurança externa nos dá Certeza interna54.

Assim, não é a certeza que traz segurança jurídica55. Com isso, concluímos que a criação de um sistema legal visa a garantir segurança jurídica (de modo objetivo). Entretanto, 52

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Durante mesa redonda realizada em Aix-en-Provence, na França, os participantes entenderam como elementos da segurança jurídica a não retroatividade, confiança legítima, continuidade da ordem jurídica, clareza dos texto e conhecimento das regras jurídicas. (AMARAL, Guilherme Rizzo. Efetividade, segurança, massificação e a proposta de um “incidente de resolução de demandas repetitivas”. Revista de Processo. ano 36. vol. 196, São Paulo: RT, 2011, p. 237 e ss.) FREIRE, Fernando José de Barros. Previsibilidade dos efeitos do direito e segurança jurídica. Dissertação (Mestrado em Filosofia do Direito) – PUC-SP. São Paulo, 2007, p. 42-43 SOUZA, Carlos Aurélio Mota de. Segurança jurídica e jurisprudência: um enfoque filosófico-jurídico. São Paulo: LTR, 1996, p. 26-27 – grifos no original. Para José Fabio Rodrigues Maciel, “O que traz a real segurança jurídica não é a certeza sobre a decisão que será tomada, e sim a não-surpresa sobre o conteúdo das decisões prolatadas”. (MACIEL, José Fabio Rodrigues. Teoria geral do direito: segurança, valor, hermenêutica, princípios, sistema. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 4.)

33 na resolução dos casos concretos do dia a dia poderá surgir incerteza na aplicação da Lei. Essa incerteza terá que ser resolvida pelo Judiciário, dando às partes a certeza subjetiva, por meio da decisão transitada em julgado. Essa decisão terá o condão de restabelecer a certeza jurídica e também garantir a segurança jurídica que se espera do direito. A função dos Tribunais, ao aplicar o direito abstrato aos casos concretos acaba, por vezes, aperfeiçoando a lei56. Essa incerteza pode surgir, como mencionado alhures, da própria riqueza da vida em sociedade, pois o legislador não será capaz de prever todas as possíveis hipóteses de aplicação das leis. Isso fará com que em determinadas hipóteses o Judiciário intervenha, resolvendo a questão. A incerteza pode até mesmo surgir da existência de normas abertas e principiológicas. Isso porque o legislador deixou a questão para ser resolvida pelo magistrado no caso concreto. O magistrado, ao resolver esses litígios, trará a certeza que se espera do sistema, dando às partes uma resposta sobre o caso (proferindo uma decisão que, mais tarde, transitará em julgado). Ocorre que, ao se aplicar e interpretar o direito, nem todos os magistrados chegam a mesma conclusão para casos análogos, fazendo com que surjam decisões contraditórias para casos que deveriam ser julgados da mesma forma (ubi eadem ratio, ibi eadem dispositio). Constata-se com isso a existência de posicionamentos díspares sobre um mesmo tema, na qual a decisão judicial deveria ser a mesma, ao menos em regra57. Havendo a possibilidade de decisões díspares em casos relativamente idênticos, o sistema processual deve prever mecanismos para evitar a mantença dessa disparidade. Esse é um dos papéis dos tribunais: exercer não só uma segunda verificação da demanda, mas, principalmente, uniformizar a interpretação e aplicação das normas jurídicas.

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“Um dos efeitos da Jurisprudência, como doutrina originária e exclusiva dos Tribunais, é precisamente o de valorizar a Lei”. (SOUZA, Carlos Aurélio Mota de. Segurança jurídica e jurisprudência: um enfoque filosófico-jurídico. São Paulo: LTR, 1996, p. 37 – grifos no original) É certo que há casos semelhantes que precisam de tratamentos distintos em razão de peculiaridades, seja porque os sujeitos da relação estão inseridos em contextos diferentes, seja em razão da diversidade cultural por conta da dimensão continental do Estado Brasileiro ou até mesmo em decorrência do distanciamento temporal entre os casos. Todavia, o foco do trabalho é justamente procurar mecanismos para corrigir distorções, para que casos análogos sejam decididos de forma análoga. Se houver peculiaridades no caso concreto que façam o julgador a chegar a outra conclusão, essa outra deve prevalecer, sob pena de estagnação do sistema jurídico e, até mesmo, de se voltar ao passado quando todos eram tratados igualmente, quando na verdade não o eram.

34 O sistema jurídico brasileiro prevê mecanismos que evitam a disparidade de entendimentos contraditórios sobre um mesmo tema. Também prevê que se evitem a aplicação de decisões díspares para casos análogos. A falta de uniformização de entendimento jurisprudencial para casos análogos traz incerteza para os jurisdicionados, gerando insegurança jurídica. Apesar de, no caso concreto, haver a certeza sobre determinada situação, diante da formação da coisa julgada, a sociedade pode acabar ficando sem saber como agir diante de determinadas situações porque os julgados dos Tribunais algumas vezes se contradizem. Se voltarmos os olhos para a Lei, veremos que ela traz, como regra, a segurança jurídica que se espera do sistema. Entretanto, casos há em que o Judiciário precisará dar a última palavra sobre a aplicação da lei para aquele caso. Havendo aplicação da lei em sentido oposto para casos análogos, a sociedade não terá a segurança sobre como determinadas normas devam ser interpretadas. Para se ter uma ideia, utilizar-nos-emos dos enunciados de súmula 263 e 293 do egrégio STJ. De acordo com o primeiro enunciado (que foi cancelado), “a cobrança antecipada do valor residual (VRG) descaracteriza o contrato de arrendamento mercantil, transformando-o em compra e venda a prestação”. Esse enunciado foi aprovado pela 2ª Seção do STJ em 08/05/2002. Pouco tempo depois, em 27/08/2003 a mesma 2ª Seção deliberou por cancelar o referido enunciado. Depois disso, a Corte Especial do STJ editou o enunciado 293 (em 05/05/2004) dispondo que “A cobrança antecipada do valor residual garantido (VRG) não descaracteriza o contrato de arrendamento mercantil”. Acrescenta-se que a edição do enunciado 263 se deu posteriormente ao julgado da própria Corte Especial que, em 09/08/2001 havia considerado que a cobrança do VRG não descaracterizaria o contrato de arrendamento mercantil. Como deve o jurisdicionado se posicionar diante de posicionamentos díspares. Pode o arrendante cobrar VRG? Ou não pode, porque haveria descaracterização do contrato? O cidadão não pode ficar a mercê. Ele precisa saber como agir para estar dentro da lei e sem que corra riscos. Nesse caso específico, a nossa mais alta Corte responsável pela uniformização do sistema infraconstitucional chegou a posicionar num sentido em 2001, depois teve esse

35 posicionamento alterado e, novamente houve alteração de posicionamento. Isso é causa de insegurança jurídica, pois para apreciação da questão a lei já não era suficiente para gerar a segurança jurídica que se esperava para os casos concretos. Diante de situações como estas, percebe-se que apesar de a codificação e o maior apego à lei ter sido reforçado a partir do início do século XIX visando garantir isonomia e segurança jurídica, constatou-se a necessidade de interpretação das cláusulas gerais e de princípios. Interpretação esta que é dada em última instância, pelo Judiciário. Todavia, para se manter a certeza do direito e garantir a segurança jurídica, faz-se necessário que essa interpretação seja uniforme, o que não ocorreu, por exemplo, no presente caso. Situações como esta não pode ocorrer dentro do sistema jurídico, pois trará descrédito ao Judiciário, além de insegurança à sociedade58. A previsibilidade é decorrência da segurança jurídica. Também decorre da segurança jurídica a estabilidade da ordem jurídica59. Segundo Marinoni, para que haja previsibilidade faz-se necessário haver compreensão e confiabilidade60. A compreensão consiste no conhecimento das normas com base nas quais as ações poderão ser qualificadas. Diante da própria evolução do direito e considerando a necessidade de interpretação das normas pelo Judiciário nos casos concretos, faz-se necessário aos jurisdicionados que as decisões judiciais sejam previsíveis. Não havendo essa previsibilidade, o Judiciário fica abarrotado de demandas, pois muito comumente será possível defender uma demanda, tanto a favor da tese do autor como do réu, em razão de haver divergência jurisprudencial comprovada (às vezes dentro dos próprios Tribunais Superiores)61. Não que não possam existir decisões díspares dentro do ordenamento jurídico,

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Já em 1988, durante congresso sobre participação e processo, Vicente Paulo Tubelis destacou como uma das causas da falta de confiança no Poder Judiciário a aleatoriedade das decisões judiciais (TUBELIS, Vicente Paulo. Divergência jurisprudencial e participação. Participação e processo. São Paulo: RT, 1988, p. 395) POLICHUK, Renata. Precedente e segurança jurídica. In. MARINONI, Luiz Guilherme (Coord.). A força dos precedentes. Salvador: JusPodivm, 2010, p. 87 MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios. 2. ed. São Paulo: RT, 2011, p. 123 “O advogado de common law tem possibilidade de aconselhar o jurisdicionado porque pode se valer dos precedentes, ao contrário daquele que atua no civil law, que é obrigado a advertir o seu cliente que determinada lei pode – conforme o juiz sorteado para analisar o caso – ser interpretada em seu favor ou não. A lógica dessa tradição não apenas é inversa, e assim faz surgir a nítida impressão de que o direito do civil law não é tão certo quanto o direito do common law, como milita e se volta contra o próprio sistema, na medida em que estimula a propositura de ações, o aumento da litigiosidade, o acúmulo de trabalho e o aprofundamento da lentidão do Poder Judiciário”. (MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios. 2. ed. São Paulo: RT, 2011, 125)

36 ocorre que no nosso sistema esta disparidade é grande e demora-se a realizar a uniformização de entendimento. A falta de previsibilidade demonstra a insegurança de um sistema, pois impede que as pessoas tomem consciência dos seus direitos, fazendo com que elas tenham dúvidas sobre como se portar diante de determinadas situações, trazendo risco para a própria economia do país62. Espera-se não apenas a previsibilidade, mas também a estabilidade das decisões, significando não apenas respeito ao direito legislado, mas também aos precedentes63. Apesar de nosso sistema processual ser dotado de mecanismos que visam até mesmo a evitar decisões conflitantes, em muitos casos eles deixam de ser utilizados. A guisa de exemplo podemos citar a polêmica decisão da Colenda 4ª Turma do STJ que entendeu pela existência de indenização por danos morais em razão, dentre outros motivos, do abandono afetivo, julgamento esse em sentido contrário ao decidido pela 3ª Turma. Sendo verificada a possibilidade de decisão conflitante pelo próprio tribunal e que essa decisão trará grande repercussão para a sociedade, porque já não se utilizar da assunção de competência e afetar a matéria à 2ª Seção?64. Como deve a sociedade se comportar diante das divergências jurisprudenciais verificadas no judiciário e mais precisamente nos tribunais superiores?

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Algo que pôde ser visto como positivo foi a decisão do Pleno do STF ao julgar improcedente ADIn 3934, que visava a declaração de inconstitucionalidade dentre outros, do art. 60, parágrafo único da Lei de Falências, para que o adquirente , via alienação judicial, unidade produtiva de companhia em recuperação judicial respondesse pelos débitos da sociedade em recuperação ou falida. A decisão do pleno se deu em menos de dois anos. Supondo que essa decisão não fosse prolatada com rapidez e que existissem decisões em sentido contrário dentro do próprio ordenamento jurídico, muitas sociedades empresárias deixariam de adquirir unidades produtivas da massa falida sob o risco de responderem pelos débitos anteriores. MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios. 2. ed. São Paulo: RT, 2011, 129 Esse é um tema bem complexo, se analisado pela perspectiva da segurança jurídica e previsibilidade, pois devemos levar em conta que não há prazo prescricional contra absolutamente incapazes. Assim, a omissão extrapatriominal de um genitor que ocorreu há mais de dez anos agora poderá ser enquadrada como ilícito. Mas até pouco tempo, considerando o posicionamento da 3ª Turma, não era. Como as pessoas devem se portar diante dessa indefinição judicial?

37 CAPÍTULO II – IMPORTÂNCIA DA JURISPRUDÊNCIA E NECESSIDADE DE SUA UNIFORMIZAÇÃO

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A existência de mecanismos dentro do sistema processual vigente que visam a impedir a existência de decisões conflitantes

O sistema processual brasileiro, tal como estruturado, com existência de recursos, de Tribunais Superiores (STF e STJ mais precisamente), de incidentes de uniformização, visa à resolução de conflitos de forma uniforme. Não é porque somos um país de tradição romanogermano-canônico, baseados na lei, que podemos ignorar a forma como esta é interpretada pelos Tribunais. O problema é que, havendo lei, o âmbito de atuação dos Tribunais deve ser reduzido, ou seja, o magistrado não tem pleno poder de interpretar o caso como bem entender. Ele tem a função de analisar o caso e enquadrá-lo diante dos princípios constitucionais e das leis que regulam o tema65. A ideia do legislador ao prever recursos não é de apenas dar à parte o direito de, inconformada, ter sua decisão reapreciada. O recurso para o Tribunal local também serve para a uniformização da interpretação da questão no âmbito do Tribunal (Estado ou Região). O recurso para o STJ (recurso especial) tem a finalidade de uniformizar a interpretação do direito em âmbito federal. O recurso para o STF (recurso extraordinário), por sua vez, tem o papel de uniformizar a interpretação das normas de acordo com a Constituição Federal. Apesar de os recursos serem proferidos para os casos em concreto, eles devem ter um caráter persuasivo sobre como se deve interpretar a lei em casos análogos. O sistema pátrio, apesar de não estar baseado na tradição dos países de common law, precisa basear-se em precedentes. Nosso sistema recursal foi criado com vistas a isso. Basta verificar a existência do incidente de uniformização de jurisprudência, o incidente de inconstitucionalidade, o recurso especial fundado na alínea “c” do art. 105, III, da Constituição Federal, o controle concentrado de constitucionalidade e o recurso de embargos de divergência66. Esses institutos

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Mas isso também não é diferente nos países da common law. Os juízes não saem por aí julgando como bem entendem. Resolvem seus conflitos aplicando o que já foi estabelecido no passado para outro caso semelhante. Sem falar no fator histórico do nosso direito, que previa a existência de assentos.

38 foram criados com a finalidade de se garantir segurança jurídica, previsibilidade e também isonomia aos julgados. O objetivo do presente capítulo é demonstrar que nosso sistema foi criado com vistas à uniformização da interpretação das normas jurídicas, havendo, entretanto, certo embaraço a esse intento.

4.1 O incidente de uniformização de jurisprudência

Ao julgar, o juiz faz a análise do caso concreto e verifica a norma aplicável (subsunção do fato à norma), exercendo a interpretação e aplicação desta. As normas, que são abstratas, ganham seus contornos interpretativos na sua aplicação aos casos. Apesar de já ter sido dito no passado que o juiz nada mais era do que “la bouche de la loi”, ao aplicar a lei o magistrado precisa realizar não apenas uma subsunção, devendo também realizar um exercício de interpretação para conhecer o real significado da norma. Como são vários os magistrados, é comum que a conclusão de uns possa ser divergente da de outros. É por meio desse exercício diário que são fixadas teses jurídicas novas, são reforçadas teses já estabelecidas há séculos ou são reformuladas teses (seja em razão da evolução da sociedade, em seu aspecto cultural, seja em razão da consideração de um novo princípio aplicado ao caso, de aspectos econômicos, culturais ou políticos da sociedade etc.)67. Como se verifica, esse exercício pode fazer com que haja decisões em sentidos opostos para um mesmo caso concreto idêntico. Até mesmo por aplicação do princípio constitucional da isonomia e da segurança jurídica não é possível que o sistema permita a

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A sociedade evolui. Com isso também deve evoluir o entendimento sobre o que os textos fixos das normas querem transmitir. À evolução do entendimento sobre o texto normativo ou sobre sua abrangência, sem que haja alteração do texto, a doutrina de direito constitucional dá o nome de mutação. Basta lembrarmos a existência de termos como mulher honesta, que variou no tempo e também pode variar no espaço. Por isso, é natural que a jurisprudência seja alterada, acompanhando a evolução da sociedade.

39 existência de casos apreciados de forma diversa quando as partes desses casos estejam em situações idênticas68. A ideia mestra do incidente de uniformização é justamente extirpar decisões conflitantes sobre um mesmo tema dentro de um mesmo tribunal69. O incidente de uniformização de jurisprudência, instituto previsto nos art. 476 a 479 do CPC, tem por finalidade, como o próprio nome diz, uniformizar a interpretação das normas jurídicas dentro de um mesmo tribunal70. O instituto em comento não é recurso71. Sua natureza jurídica é de incidente processual72. Também não é um instrumento de impugnação de decisão judicial73.

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Vale aqui destacar as palavras de Barbosa Moreira, ao afirmar que a existência de pluralidade de órgãos judicantes “podem ter (e com frequência têm) de enfrentar iguais questões de direito e, portanto, de enunciar testes jurídicas em idêntica matéria. Nasce daí a possibilidade de que, num mesmo instante histórico – sem variação das condições culturais, políticas, sociais, econômicas, que possa justificar a discrepância -, a mesma regra de direito seja diferentemente entendida, e às espécies semelhantes se apliquem teses jurídicas divergentes ou até opostas. Assim se compromete a unidade do direito – que não seria posta em xeque, muito ao contrário, para a evolução homogênea da jurisprudência dos vários tribunais – e não raro se semeiam, entre os membros da comunidade, o descrédito e o cepticismo quanto à efetividade da garantia jurisdicional”. (BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Comentários ao Código de Processo Civil. vol. V. 15. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 4-5 – grifos no original). 69 Cassio Scarpinella afirma que esse instrumento deve ser utilizado para a uniformização da jurisprudência no âmbito dos tribunais de segunda instância: BUENO, Cassio Scarpinella. Curso Sistematizado de Direito Processual Civil. vol. 5. São Paulo: 2008, p. 366. Em que pese o posicionamento do autor, ousamos dele discordar. A uma porque o CPC não faz qualquer restrição. Assim nada impede a existência do incidente no âmbito dos Tribunais Superiores, a exemplo da previsão constante do art. 118 do Regimento Interno do STJ. Bernardo Pimentel Souza afirma que a doutrina predominante não admite o incidente no âmbito do STF. Apesar disso entende ser possível (SOUZA, Bernardo Pimentel. Introdução aos recursos cíveis e à ação rescisória. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 355-356). Também admitindo o incidente perante Tribunais Superiores: DIDIER JUNIOR, Fredie; CUNHA, Leonardo José Carneiro da. Curso de direito processual civil. vol. 3. 9. ed. Salvador: JusPodivm, 2011, p. 573. 70 Para a uniformização de posicionamento de tribunais distintos há o recurso especial (art. 105., III, “c”, da Constituição Federal) 71 Em sentido contrário, dando ao instituto o nome de prejulgado, fazendo referência ao Decreto 16.273/1923: PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Comentários ao Código de Processo Civil. t. VI. 3. ed. atualizada por Sérgio Bermudes. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 4: “Se o ponto em discussão foi resolvido em primeira instância e o corpo, onde se suscitou o prejulgado, havia de conhecer dele em grau de recurso, o prejulgado, apreciação de matéria do recurso, posto que limitado àquele ponto, recurso é”. (grifos no original) 72 Nesse sentido: BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Comentários ao Código de Processo Civil. vol. V. 15. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 8; DIDIER JUNIOR, Fredie; CUNHA, Leonardo José Carneiro da. Curso de direito processual civil. vol. 3. 9. ed. Salvador: JusPodivm, 2011, p. 566; SANCHES, Sydney. Uniformização da jurisprudência. São Paulo: RT, 1975, p. 18-19; ARRUDA ALVIM, José Manoel; ASSIS, Araken; ARRUDA ALVIM, Eduardo. Comentários ao Código de Processo Civil. Rio de Janeiro: GZ, 2012, p. 743. Sobre a conceituação de incidente, vide abaixo quando tratamos do incidente de resolução de demandas repetitivas. 73 Em sentido contrário: SILVA, Ovídio Araujo Baptista da. Curso de processo civil. vol 1. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 447-449. Classifica o autor o incidente de uniformização como uma forma não recursal de impugnação à decisão judicial.

40 Por meio dele, qualquer membro do Tribunal, ao dar seu voto, poderá solicitar o pronunciamento do tribunal (pleno, órgão especial ou outro órgão indicado pelo regimento – grupo de câmaras, por exemplo) sobre a matéria objeto do julgamento, com o intuito de pacificar a interpretação da norma no respectivo tribunal. Seu objetivo é agir de forma preventiva, ou seja, atua-se antes que a divergência seja verificada no processo sub judice. A função de corrigir a divergência tendo como base decisão já prolatada era exercida pelo recurso de revista no âmbito dos tribunais (de acordo com o CPC de 1939) e é exercida atualmente pelos embargos de divergência (no âmbito do STF e STJ). Não há, atualmente, meio repressivo para extirpar a divergência entre câmaras nos tribunais de segundo grau como havia no CPC de 1939. A divergência deve se dar entre câmaras ou turmas dentro de um mesmo tribunal. Não há que se falar em incidente de uniformização quando houver divergência (ou possível divergência) dentro de uma mesma câmara ou turma74. A demanda na qual haja a divergência não fica restrita apenas aos recursos. As causas de competência originária também poderão estar sujeitas ao incidente75. Vale ressaltar também que esse instituto difere da previsão constante do art. 555, § 1º, do CPC, que prevê a possibilidade de a matéria ser julgada diretamente pelo colegiado maior. No incidente de uniformização, o colegiado maior76 não julgará o recurso (ou a ação de competência originária). Julgará apenas a questão de direito que é prejudicial ao mérito do recurso. Após, devolverá os autos à câmara ou turma, para que esta prossiga no julgamento, considerando a interpretação dada pelo colegiado maior do tribunal quanto à questão de direito que foi a este submetida. Aqui o recurso não é julgado pelo colegiado maior. Ainda, o instituto previsto no art. 555, § 1º, pode ter caráter preventivo de ordem objetiva e não apenas em relação ao caso em concreto, o que não ocorre no incidente, pois neste se faz necessário

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Em sentido contrário, admitindo o incidente quando a divergência se der dentro da própria câmara: SANTOS, Ernane Fidélis dos. Manual de direito processual civil. vol. 1. 13. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 727 THEODORO JUNIOR, Humberto. Curso de direito processual civil. vol. I. 50. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 628; BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Comentários ao Código de Processo Civil. vol. V. 15. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 9; DIDIER JUNIOR, Fredie; CUNHA, Leonardo José Carneiro da. Curso de direito processual civil. vol. 3. 9. ed. Salvador: JusPodivm, 2011, p. 566. Optamos por utilizar o termo “colegiado maior” tendo em vista que a competência poderá ser do Pleno, do Órgão Especial ou de outro órgão, de acordo com o Regimento Interno de cada tribunal. Em São Paulo, por exemplo, dá-se competência às Turmas Especiais para se julgar o incidente de uniformização. Essas turmas especiais representariam as seções nas quais o Tribunal se divide (direito privado, direito público)

41 comprovar a divergência77. Por fim, o instituto previsto no art. 555, § 1º, é cabível no caso de recursos e diante de reexame necessário78, enquanto o incidente pode ser manejado em qualquer causa perante câmara ou turma de tribunal79.

4.1.1 Origem do instituto

Antes de ser tratada pelo CPC de 1973, essa matéria havia sido regulada pelo CPC de 1939. Esta norma previa, em seu art. 861, que qualquer dos magistrados da câmara ou turma poderiam requerer o pronunciamento prévio das câmaras reunidas sobre qualquer norma jurídica com o intuito de extirpar ou evitar divergência entre as câmaras ou turmas80. Esse artigo 861 do CPC anterior teve inspiração no § 137 da Lei de Organização Judiciária da Alemanha81. Podemos citar como precedentes ainda mais remotos no direito pátrio o Código de Processo Civil e Comercial do Estado de São Paulo, Lei 2.421 de 193082, e também o

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BUENO, Cassio Scarpinella. Curso Sistematizado de Direito Processual Civil. vol. 5. São Paulo: 2008, p. 370. WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Recurso Especial, recurso extraordinário e ação rescisória. 2. ed. São Paulo: RT, 2009, p. 457. BARBOSA MOREIRA, José Carlos. O novo processo civil brasileiro. 28. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2010, p. 181 THEODORO JUNIOR, Humberto. Curso de direito processual civil. vol. I. 50. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 629; DIDIER JUNIOR, Fredie; CUNHA, Leonardo José Carneiro da. Curso de direito processual civil. vol. 3. 9. ed. Salvador: JusPodivm, 2011, p. 574 Art 861. “A requerimento de qualquer de seus juízes, a Câmara, ou turma julgadora, poderá promover o pronunciamento prévio das Câmaras reunidas sobre a interpretação de qualquer norma jurídica, se reconhecer que sobre ela ocorre, ou poderá ocorrer, divergência de interpretação entre Câmaras ou turmas”. “‘A câmara que conhece da causa pode, em questão de importância fundamental, suscitar a decisão da Grande Câmara, se, segundo se entende, o aperfeiçoamento do direito ou a segurança de jurisprudência uniforme o exige’” (Gerichtverfassungsgesetz, § 137: ‘Der erkennende Senat kann in einer Frage von grundsätzlicher Bedeutung die Entscheidung des Großen Senats herbeiführen, wenn nach seiner Auffassung die Fortbildung des Rechts oder die Sicherung einer einheitlichen Rechtsprechung es erfordert’. Foi esse texto que inspirou o Decreto nº 16.273. (PONTES DE MIRANDA. Francisco Cavalcanti. Comentários ao Código de Processo Civil. tomo VI. 3.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 7). No mesmo sentido: SANCHES, Sydney. Uniformização da jurisprudência. São Paulo: RT, 1975, p. 15. Art. 1126. “Quando ao relator parecer que já existe divergência entre as Câmaras, proporá, depois da revisão do feito, que o julgamento da causa se effectue em sessão conjunta. § único - Decidida a questão de direito, a Câmara a que pertencer a causa, passará immediatamente a julga-la. Às partes não se dará então o recurso da revista”.

42 prejulgado instituído pelo Decreto 16.273/1923 para uniformizar a interpretação e aplicação sobre uma quaestio juris na então Corte de Apelação do Distrito Federal83. Falando-se em prejulgado, verificamos ainda hoje, no Código Eleitoral a existência de dispositivo prevendo tal instituto (art. 263)84. Não obstante, tal artigo foi declarado inconstitucional pelo TSE, no julgamento do recurso especial eleitoral nº. 9936-RJ85. Apesar disso, Paulo Henrique dos Santos Lucon e José Marcelo Menezes Vigliar lamentam o posicionamento do TSE sobre referido artigo, afirmando que: Considerando que a segurança jurídica é um bem a ser preservado, considerando as regras que integram o devido processo legal, e considerando a necessidade de se emprestar maior credibilidade aos julgados, o art. 263 teria plena vigência, pois preceitua que o mesmo tratamento deve ser reservado aos jurisdicionados no trato, na interpretação do direito. Mostrando-se bastante atual, o dispositivo, lamentavelmente declarado inconstitucional, ainda veicula previsão inovadora para que nem mesmo o argumento do “engessamento” do Judiciário tenha condições de ser invocado, considerando que dois terços dos membros do pleno poderiam votar contra a tese até então solidificada86.

Voltando ao incidente de uniformização, verificamos que esse instituto tem inspiração no direito português antigo, como constata Barbosa Moreira87. Ele encontra similares em outras legislações, como por exemplo, na Itália (art. 37488) e em Portugal (art. 732-A89).

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TUCCI, José Rogério Cruz e. Eficácia do precedente judicial na história do direito brasileiro. Revista do Advogado. ano XXIV, n. 78: São Paulo: AASP, 2004, p. 45. Art. 263. “No julgamento de um mesmo pleito eleitoral, as decisões anteriores sobre questões de direito constituem prejulgados para os demais casos, salvo se contra a tese votarem dois terços dos membros do Tribunal” Acórdão nº. 12.501, rel. Min. Sepúlveda Pertence, dou. 14.09.1992, v.u. LUCON, Paulo Henrique dos Santos; VIGLIAR, José Marcelo Menezes. Código Eleitoral interpretado. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2011, p. 338 BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Comentários ao Código de Processo Civil. vol. V. 15. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 7 Art. 374 “(Pronuncia a sezioni unite) La Corte pronuncia a sezioni unite nei casi previsti nel n. 1 dell’articolo 360 e nell’articolo 362. Inoltre il primo presidente può disporre che la Corte pronunci a sezioni unite sui ricorsi che presentano una questione di diritto già decisa in senso difforme dalle sezioni semplici, e su quelli che presentano una questione di massima di particolare importanza. In tutti gli altri casi la Corte pronuncia a sezione semplice”. “1. O Presidente do Supremo Tribunal de Justiça determina, até à prolação do acórdão, que o julgamento do recurso se faça com intervenção do plenário das secções cíveis, quando tal se revele necessário ou conveniente para assegurar a uniformidade da Jurisprudência. 2. O julgamento alargado, previsto no número anterior, pode ser requerido por qualquer das partes ou pelo Ministério Público e deve ser sugerido pelo relator, por qualquer dos adjuntos, ou pelos presidentes das secções cíveis, designadamente quando verifiquem a possibilidade de vencimento de solução jurídica que esteja em oposição com jurisprudência anteriormente firmada, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito”.

43 Segundo Ada Pellegrini Grinover, é possível encontrar antecedente histórico ao incidente de uniformização de jurisprudência em Roma, no período imperial90. Destaca ainda que nos séculos passados as tentativas de se evitar divergência nas decisões podiam ser enquadradas em dois critérios distintos: o primeiro, da unificação por meio da força normativa a determinadas decisões judiciais para casos futuros (Assentos); o segundo, que prevê a possibilidade de controle por um órgão jurisdicional sobre os demais (Cortes de Cassação).

4.1.2 Procedimento

De acordo com o art. 476 do CPC, qualquer membro do Tribunal, ao proferir seu voto, pode suscitar o incidente de uniformização de jurisprudência, seja quando verificar a possibilidade de divergência, seja quando constatada a divergência em face do decidido por outro órgão do Tribunal. Também podem requerer o incidente quaisquer das partes do processo91. Até mesmo terceiros juridicamente interessados podem requerer seja o feito submetido à apreciação de Colegiado maior no intuito de uniformizar a interpretação da quaestio juris92. Estes podem requerer seja o feito submetido ao procedimento de uniformização nas razões ou contrarrazões de recurso ou por meio de petições avulsas93, acompanhadas, é claro, da comprovação da divergência. O MP também tem legitimidade para requerer a instauração do incidente, tanto quando atue na condição de parte quanto na condição de fiscal da lei94.

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Na Roma, no período imperial, todavia, interrompia-se o julgamento para que o Legislativo resolvesse os pontos duvidosos. (GRINOVER, Ada Pellegrini. Direito processual civil. São Paulo: José Bushatsky, 1974, p. 136-137) Em sentido contrário: TUBELIS, Vicente Paulo. Divergência jurisprudencial e participação. Participação e processo. São Paulo: RT, 1988, p. 401 SANTOS, Ernane Fidélis dos. Manual de direito processual civil. vol. 1. 13. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 727; BUENO, Cassio Scarpinella. Curso Sistematizado de Direito Processual Civil. vol. 5. São Paulo: 2008, p. 366. Para Ada Pellegrini, as partes podem até requerer que o julgamento se faça obedecendo-se ao disposto nos art. 476 a 479, mas a legitimidade para a solicitação do pronunciamento prévio é do magistrado. (GRINOVER, Ada Pellegrini. Direito processual civil. São Paulo: José Bushatsky, 1974, p. 147) Vale acrescentar que o incidente também é admitido nos casos de ações de competência originária do Tribunal. Nesses casos o requerimento pela parte não será feito quando da interposição de recurso. Poderá ser feito por simples petição. BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Comentários ao Código de Processo Civil. vol. V. 15. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 15-18 ARRUDA ALVIM, José Manoel; ASSIS, Araken; ARRUDA ALVIM, Eduardo. Comentários ao Código de Processo Civil. Rio de Janeiro: GZ, 2012, p. 745

44 Para a realização do incidente devem estar presentes os seguintes requisitos: a) a matéria controversa deve envolver questão de direito95; b) o julgado paradigma para contraste deve ter sido proferido por órgão colegiado; c) a questão de direito deve ser relevante para a análise da questão principal; d) a controvérsia jurisprudencial deve ser atual e ocorrer dentro do mesmo tribunal, entre órgãos fracionários deste96. O momento para a suscitação do incidente encerra-se com o encerramento do julgamento (seja da ação originária ou do recurso no tribunal)97. Isso porque o incidente não tem natureza recursal. Caso a decisão esteja em desacordo com o posicionamento de outra câmara ou turma e não tenha sido suscitado o incidente, a parte só poderá se valer da via recursal98. Após suscitado o incidente pelo membro do tribunal, o colegiado apreciará a solicitação, podendo rejeitá-la, não cabendo qualquer forma de recurso ou impugnação quanto a isso99. Se o colegiado rejeitar a suscitação do incidente, prosseguirá na análise do mérito do recurso (ou da demanda de competência originária). Se entender existente a divergência, após a prolação do resultado será lavrado acórdão sobre essa votação e os autos serão encaminhados para o colegiado maior (grupo de câmaras, pleno ou órgão especial – a depender do regimento interno do tribunal).

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LOPES, João Batista. Curso de Direito Processual Civil. vol II. São Paulo: Atlas, 2006, p. 225. A conceituação sobre questão de fato e questão de direito será enfrentada no capítulo III, ao discorrer o incidente de resolução de demandas repetitivas. Fredie Didier Jr. Leonardo J. Carneiro afirmam que haveria outro requisito que seria a necessidade de a divergência incidir não sobre o mérito do recurso, mas sobre uma questão incidental (prejudicial). Não obstante, a lei não traz esse requisito. Apenas exige que haja divergência. DIDIER JUNIOR, Fredie; CUNHA, Leonardo José Carneiro da. Curso de direito processual civil. vol. 3. 9. ed. Salvador: JusPodivm, 2011, p. 566. BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Comentários ao Código de Processo Civil. vol. V. 15. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 9-15. O que importa para o caso é que a discussão sobre o incidente possa alterar o resultado da demanda ou do recurso. Encerra-se o julgamento do recurso com a proclamação do resultado pelo Presidente do Colegiado. Nesse sentido: SANTOS, Ernane Fidélis dos. Manual de direito processual civil. vol. 1. 13. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 727 Embargos infringentes, Recurso Especial ou Recurso Extraordinário, desde que atenda aos requisitos intrínsecos e extrínsecos para a utilização destes recursos. Nos casos de decisão prolatada pelos tribunais superiores, poderá se valer ainda dos Embargos de Divergência. Vale destacar, contudo, posicionamento de Cassio Scarpinella Bueno no sentido de que seria possível a arguição do incidente se a câmara se omitisse quanto ao requerimento de instauração do incidente e, após o julgamento, houver recurso de embargos de declaração. BUENO, Cassio Scarpinella. Curso Sistematizado de Direito Processual Civil. vol. 5. São Paulo: 2008, p. 369. E também o posicionamento de Humberto Theodoro Jr. na hipótese de a divergência se situar em matéria que não foi apreciada pelo acórdão e que, após a interposição dos embargos de declaração, o Tribunal tiver que se pronunciar sobre o ponto omisso (THEODORO JUNIOR, Humberto. Curso de direito processual civil. vol. I. 50. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 629). Por óbvio que se admite embargos de declaração. Nesse sentido: BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Comentários ao Código de Processo Civil. vol. V. 15. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 20;

45 Problema que pode surgir seria sobre a discricionariedade judicial quanto ao reconhecimento da existência de divergência entre câmaras e a possibilidade ou não de se deferir o encaminhamento dos autos ao colegiado maior. Sobre esse ponto, parece-nos que deva prevalecer, em benefício da coletividade e também da segurança jurídica, que não haja discricionariedade judicial na remessa dos autos para a decisão sobre o incidente, visando à uniformização da interpretação pelo tribunal sobre aquela quaestio juris. Pensar de forma diferente seria dar azo à existência de divergência dentro do tribunal, o que não é salutar, quer para as partes, quer para a segurança jurídica, para a isonomia de tratamento e, inclusive, para a imagem do tribunal perante a sociedade. Assim, demonstrada a existência de divergência, os autos devem ser encaminhados para o colegiado maior. Apesar disso, vale destacar que Barbosa Moreira, que entendia pela obrigatoriedade da instauração do incidente, reviu seu posicionamento: Nas primeiras edições deste livro, opinamos que, reconhecido o dissídio, não se poderia indeferir a solicitação ou o requerimento de remessa ao tribunal. Hoje nos parece que, não obstante a redação, à primeira vista imperativa, do art. 477, 1ª parte, e sem prejuízo do dever de motivar a decisão, cabe reconhecer-se ao órgão julgador certa margem de discrição, no exame da conveniência e da necessidade de dar-se curso ao incidente, às vezes suscitado sem motivo sério, ou até com puro manifesto protelatório100.

Apesar do posicionamento acima, ousamos dele discordar, porque ou a divergência existe ou não existe. E existindo, deve ser prejudicial à análise da causa principal. Se há divergência sobre a quaestio juris e esta é prejudicial ao mérito da causa (recurso ou demanda de competência originária do tribunal), deve ser admitido o incidente. Caso contrário, não. Se a questão é prejudicial, não pode haver intuito protelatório, porque o mérito do recurso depende da análise sobre a questão controversa. Ainda, se a negativa for justificada na superação da divergência (ou seja, as câmaras passaram a adotar o mesmo entendimento ou já 100

BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Comentários ao Código de Processo Civil. vol. V. 15. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 15-18. No mesmo sentido: INCIDENTE DE UNIFORMIZAÇÃO DA JURISPRUDÊNCIA. HABEAS CORPUS. AGRAVO REGIMENTAL ANTERIORMENTE JULGADO. INCIDENTE EXTEMPORÂNEO. NÃO CABIMENTO. ADMISSÃO. FACULDADE DO JULGADOR. DISCRICIONARIEDADE. PEDIDO INDEFERIDO. 1. O incidente de uniformização de jurisprudência é medida preventiva, não figurando como instrumento de retificação, devendo a parte suscitá-lo nas razões do recurso ou em petição avulsa, até o julgamento do mérito da impetração. 2. De mais a mais, a provocação do incidente constitui faculdade, não vinculando o julgador, que usufrui da análise da conveniência e da oportunidade para admití-lo. 3. Pedido indeferido. (STJ. 6ª Turma. IUJur no AgRg no HC 1200.990-RS, rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, j. 21.10.2010, v.u.). Também: “[...]5. É cediço em sede doutrinária que se reconhece ao órgão julgador da primazia da suscitação do incidente de uniformização discricionariedade no exame da necessidade do incidente porquanto, por vezes suscitado com intuito protelatório. [...] STJ. 1ª Turma. REsp. 745.363-PR, rel. Min. Luiz Fux, j. 20.09.2007, v.u.). Também se posicionam nesse sentido: ARRUDA ALVIM, José Manoel; ASSIS, Araken; ARRUDA ALVIM, Eduardo. Comentários ao Código de Processo Civil. Rio de Janeiro: GZ, 2012, p. 745

46 houve posicionamento do pleno ou órgão especial sobre incidente anteriormente instaurado), não há mais divergência, logo o incidente será negado. Mas a negativa não será porque o tribunal tem discricionariedade, mas porque já há harmonia na interpretação da quaestio juris101. Por fim, acrescenta-se que da decisão do colegiado maior que decidir o incidente de uniformização não caberá recurso. Isso porque o tribunal apenas fixará a tese a ser aplicada ao caso (a interpretação da quaestio juris). Quem aplicará a norma com a interpretação dada pelo colegiado maior será a câmara ou turma ao julgar o recurso (ou demanda de competência originária do tribunal). Contra essa decisão proferida pela câmara é que a parte poderá se valer dos recursos previstos no sistema recursal pátrio (embargos infringentes, recurso especial ou extraordinário, a depender da análise do caso concreto)102.

4.1.3 Vinculação da Câmara / Turma ao decidido pelo Pleno ou Órgão Especial

A decisão do órgão especial ou pleno (ou outro colegiado indicado pelo regimento interno), ao julgar o incidente de uniformização de jurisprudência, não colocará fim à apreciação do tribunal sobre a demanda. Isso porque no incidente de uniformização a questão apreciada não é a principal e sim a prejudicial103. Desta forma, após a apreciação da questão prejudicial pelo colegiado maior, este deverá encaminhar os autos ao colegiado menor, para que este aprecie a questão principal. Ao apreciar a questão principal, todavia, o colegiado menor (câmara ou turma) deverá obedecer ao decidido pelo colegiado maior (órgão especial ou pleno).

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“O incidente de uniformização de jurisprudência afigura-se como garantia do jurisdicionado. Presentes seus requisitos – impõem os valores igualdade, segurança, economia e respeitabilidade – deve ser instaurado. Trata-se de técnica processual perfeitamente identificada com os postulados mais nobres existentes em nosso ordenamento e intimamente ligada ao efetivo acesso ao Judiciário”. VIGLIAR, José Marcelo Menezes. Uniformização de Jurisprudência: segurança jurídica e dever de uniformizar. São Paulo: Atlas, 2003, p. 204. No mesmo sentido: DIDIER JUNIOR, Fredie; CUNHA, Leonardo José Carneiro da. Curso de direito processual civil. vol. 3. 9. ed. Salvador: JusPodivm, 2011, p. 572 Nesse sentido: ARRUDA ALVIM, José Manoel; ASSIS, Araken; ARRUDA ALVIM, Eduardo. Comentários ao Código de Processo Civil. Rio de Janeiro: GZ, 2012, p. 747 THEODORO JUNIOR, Humberto. Curso de direito processual civil. vol. I. 50. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 628

47 Nosso sistema processual prevê a vinculação da câmara ou turma ao que foi decidido pelo pleno ou pelo órgão especial104. Mais interessante ainda é que isso ocorrerá sem que haja formação da coisa julgada sobre o que foi apreciado pelo colegiado maior do tribunal105. Essa vinculação ocorrerá quanto à interpretação e aplicação da questão de direito (sobre a forma como deverá ser aplicada a lei naquela situação específica). Questão que pode surgir é se os órgãos fracionados menores do tribunal ficam vinculados ao que foi decidido no incidente ao julgarem outras demandas. Parece-nos que a utilização do termo vinculação a esta hipótese é demasiado “forte”. Isso porque há a livre convicção motivada do juiz, mas isso não deve ser confundido com discricionariedade judicial106. O que deve haver é um forte caráter persuasivo ou moral107, até mesmo por lógica do sistema. Se há um colegiado maior (pleno, por exemplo) que procura resolver uma divergência, não é possível que o órgão fracionário possa julgar como bem entender. É preciso que haja observância ao que foi decidido no incidente, sob pena de se esvaziar o instituto108. A observância do posicionamento adotado pelo pleno (ou órgão especial) pelos órgãos menores decorre da lógica do sistema. Isso, inclusive já havia sido previsto pelo Decreto 16.273/1923, que em seu art. 103, § 1º, ao tratar do prejulgado, mencionava que o decidido serviria de “norma aconselhável” para os casos futuros, que só

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Nesse sentido: THEODORO JUNIOR, Humberto. Curso de direito processual civil. vol. I. 50. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 630; NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de Processo Civil Comentado e legislação extravagante. 11. ed. São Paulo: RT, 2010, p. 794-795. O mesmo ocorre com recursos. Após a apreciação de um agravo ou apelação pelo tribunal, o juiz não poderá descumprir o que foi decidido pelo tribunal. Isso vale para qualquer outro recurso. Vale lembrar que a apreciação da questão prejudicial não ficará sujeita à coisa julgada material, por mais relevantes que sejam seus fundamentos. Apesar disso, por se tratar de uma questão exclusivamente de direito, o posicionamento do colegiado maior do tribunal deverá ser levado em consideração não só pelos órgãos fracionários menores do tribunal, mas também pelos demais órgãos inferiores a ele submetidos. Sobre o tema, Barbosa Moreira expõe que: “Repelindo a tradição do direito pátrio, até a Emenda Constitucional nº 45 (regulamentada pela Lei 11.417, de 19.12.2006), o sistema dos precedentes vinculativos, e não podendo os órgãos do Poder Judiciário, salvo expressa autorização constitucional, editar norma genéricas e abstratas, aplicáveis a uma série indefinida de hipóteses semelhantes, a fixação prévia da tese jurídica normalmente só predetermina a decisão que se profira in specie, mas revela-se impotente para evitar que, noutro caso, a idênticos esquemas de fato se venha a aplicar tese diversa”. (grifos no original) (BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Comentários ao Código de Processo Civil. vol. V. 15. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 6) No mesmo sentido: BUENO, Cassio Scarpinella. Curso Sistematizado de Direito Processual Civil. vol. 5. São Paulo: 2008, p. 368. Até mesmo por essa eficácia objetiva retirada do incidente é que Cassio afirma ser perfeitamente possível a participação do amicus curiae. Destaca João Batista Lopes que, em razão da falta de eficácia vinculativa é comum encontrar julgamentos contrários aos enunciados das súmulas decorrentes da uniformização de jurisprudência: LOPES, João Batista. Curso de Direito Processual Civil. vol II. São Paulo: Atlas, 2006, p. 225. Apesar disso, não deveria ser tão comum quanto é encontrar julgamentos em contradição com o que foi deferido no incidente de uniformização. Vale ainda ressaltar que o instituto não vem sendo utilizado na prática em razão de seu baixo resultado prático.

48 poderiam julgar de forma diferente por meio da instauração de novo procedimento para reunião das câmaras109. Aprofundar-nos-emos sobre a eficácia desse julgado abaixo, ao tratarmos do papel do magistrado e da necessidade de se seguirem posicionamentos consolidados das cortes superiores.

4.1.4 A falta de eficácia prática do instituto em face da ausência de vinculatividade e baixa persuasão do incidente sobre os demais julgados

O instituto não tem caráter vinculativo face aos demais julgados, ainda que proferidos por órgão colegiado de maior hierarquia dentro do tribunal (pleno ou órgão especial). De acordo com nossa Constituição Federal, a vinculação está expressamente prevista apenas para os julgados decorrentes do controle concentrado de constitucionalidade e para os enunciados de súmula vinculantes110. Também vale a pena destacar o consenso dentro do sistema jurídico nacional de que as decisões dos tribunais superiores (STJ ou STF), como regra, não têm força capaz de vincular os tribunais e juízes inferiores. Assim, não seria óbice ao incidente de uniformização a existência de posicionamento consolidado em tribunal superior111. Pode-se discutir sobre a possibilidade ou não de a lei estabelecer a vinculação ou não de determinadas decisões, o que faremos no momento oportuno, ao tratarmos do incidente de resolução de demandas repetitivas.

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Art. 103. “Quando a lei receber interpretação diversa nas Câmaras de Appellação cível ou criminal, ou quando resultar da manifestação dos votos de uma Câmara em um caso sub-judice que se terá de declarar uma interpretação diversa, deverá a Câmara divergente representar, por seu Presidente, ao Presidente da Côrte, para que este, incontinenti, faça a convocação para a reunião das duas Câmaras, conforme a matéria, fôr cível ou criminal”. “§ 1º. Reunidas as Câmaras e submettida a questão á sua deliberação, o vencido, por maioria, constitue decisão obrigatória para o caso em apreço e norma aconselhável para os casos futuros, salvo relevantes motivos de direito, que justifiquem renovar-se idêntico procedimento de installação das Câmaras Reunidas”. É certo que se inicia uma forte corrente até mesmo junto STF, que entende haver um controle abstrato de constitucionalidade realizado em julgamento de recursos extraordinários, ou seja, apesar de se tratar de um julgamento de uma situação concreta, o controle deixa de ser realizado in concreto e passa a ser feito de forma abstrata (MENDES, Gilmar Ferreira. In MEIRELES, Hely Lopes. Mandado de Segurança. 28. ed. São Paulo: Malheiros, 2005). No mesmo sentido, utilizando, todavia, o termo de eficácia transcendental do recurso extraordinário: LENZA, Pedro Direito Constitucional Esquematizado. 13.ed. São Paulo: Saraiva, 2009; e DIDIER JUNIOR, Fredie; CUNHA, Leonardo José Carneiro da. Curso de direito processual civil. vol. 3. 9. ed. Salvador: JusPodivm, 2011, estes utilizando o termo objetivação do recurso extraordinário. Salvo, por óbvio a existência de enunciados de súmula vinculantes e de julgamento em controle concentrado de constitucionalidade, que também tem eficácia vinculante. BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Comentários ao Código de Processo Civil. vol. V. 15. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 13-14

49 A situação, embora aparentemente simples, é sobremaneira complexa se analisada cuidadosamente. De um lado, não se pode deixar de mencionar a existência de certa hierarquia nos julgamentos; de outro, a livre convicção motivada, na qual o magistrado é livre na apreciação do caso que lhe é apresentado. A pergunta que não se pode deixar de fazer é: qual a função desse instituto, que visa à uniformização da interpretação de uma quaestio juris, se, após o posicionamento do pleno (ou grupo de câmaras), as câmaras, isoladamente, podem julgar como bem entenderem? Não é possível que o posicionamento de um órgão maior, pacificando a questão, possa ser simplesmente ignorado. Foi justamente por isso que o Projeto do CPC de 1973 previa a possibilidade de edição de assento pelo Presidente do Tribunal, assento este que teria eficácia de lei112. Ocorre que tal proposta foi reformulada, uma vez que para a maioria da doutrina da época seria necessário alterar a Constituição113. Apesar de a redação final da do CPC de 1973 não prever a vinculatividade da decisão exarada no incidente de uniformização, nem de prever a edição de assentos, não se pode deixar de mencionar que há força persuasiva do instituto, que deve ser obedecida pelo tribunal e pelos órgãos jurisdicionais a ele inferiores. Encarar o instituto sem o mínimo de força persuasiva perante os órgãos fracionários menores do tribunal faz com que o instituto deixe de ter a função para a qual foi criado. Melhor seria termos ainda hoje a redação do Decreto 16.273/1923, citado acima, que previa a necessidade de se seguir o que fora decidido pelo pleno, salvo relevantes fundamentos que justifiquem a reunião das câmaras para a renovação do procedimento.

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Assim dispunha o texto: Art. 518: “A decisão tomada pelo voto da maioria absoluta dos membros efetivos que integram o tribunal será obrigatória enquanto não modificada por outro acórdão proferido nos têrmos do artigo antecedente”. Art. 519: “O presidente do tribunal, em obediência ao que ficou decidido, baixará um assento. Quarenta e cinco (45) dias depois de oficialmente publicado, o assento terá força de lei em todo o território nacional”. (BUZAID, Alfredo. Anteprojeto de Código de Processo Civil. Rio de Janeiro, 1964, p. 100) O projeto do CPC de 1973 previa eficácia vinculativa ao incidente de uniformização, prevendo que o presidente do Tribunal baixaria assento que teria força de lei. Todavia, como ressalta Barbosa Moreira: “Tal sistemática foi criticada em sede doutrinária, antes de mais nada, por inconstitucional. A comissão revisora sugeriu a supressão de todo o capítulo, entendendo que, a manter-se a eficácia vinculativa dos assentos, o futuro Código se poria em contraste com a Constituição da República (viria a ser preciso emendá-lo para consagrar a chamada “súmula vinculante”); e, a eliminar-se tal eficácia, quase nenhum alcance prático teriam – como de fato vem acontecendo – as disposições relativas à uniformização da jurisprudência. (BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Comentários ao Código de Processo Civil. vol. V. 15. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 7) . Vide também: GRINOVER, Ada Pellegrini. Direito processual civil. São Paulo: José Bushatsky, 1974, p. 138 e 145.

50 Veja-se que a ideia de edição de enunciado de súmula corrobora o entendimento aqui exposto114. Diz o art. 479 do CPC que o julgamento sobre o incidente constituirá precedente que, como dito, terá eficácia persuasiva. Também houve, inclusive, tentativa de alteração do incidente de uniformização de jurisprudência, para que ele servisse de precedente a ser observado pelos magistrados nos casos futuros. Isso ocorreu por meio do PL 3.804/1993115, elaborado pelo IBDP. Houve a aprovação do projeto na Comissão de Constituição Justiça e Cidadania, bem como aprovação de da emenda 2 de autoria do Dep. Flávio Dino. Posteriormente a isso esse projeto foi apensado ao PL 6.025/2005, junto com outros projetos, que foram agora apensados ao PL 8.046/2010. A ideia, que ainda não saiu do papel era dar maior efetividade a esse instituto. Por fim, acrescente-se também outro fator que corrobora para a baixa eficácia do instituto: o momento na qual o incidente é suscitado, pois ao magistrado é dado solicitar o incidente por ocasião do proferimento de seu voto, ou seja, quando o julgamento da demanda já está terminando116. Nesse momento é melhor a ele já proferir seu voto ao invés de suscitar o incidente.

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A edição de súmula, todavia, está condicionada ao quórum de aprovação da interpretação da quaestio juris. A maioria absoluta do colegiado deve ter a interpretação num mesmo sentido para a edição da Súmula, conforme prevê o art. 188 do Regimento Interno do TJ-SP, art. 102, § 1º do Regimento Interno do STF e art. 122, § 1º do Regimento Interno do STJ Art. 1º Os dispositivos a seguir enumerados, da Lei nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973 – Código de Processo Civil, passam a vigorar com a seguinte redação: “Art. 478. O tribunal ou órgão competente, reconhecendo a divergência e após ouvido o Ministério Público, dará a interpretação a ser observada, cabendo a cada juiz emitir seu voto fundamentadamente. Parágrafo único. Quando adotada pelo voto da maioria absoluta dos membros que integram o tribunal ou o órgão competente, a interpretação será objeto de súmula e constituirá precedente na uniformização da jurisprudência. Art. 479. Quando várias ações envolverem a mesma questão de direito, o relator, de ofício, a requerimento da parte ou Ministério Público, ou qualquer juiz, por ocasião do julgamento, poderá propor o pronunciamento prévio do tribunal ou do órgão competente a respeito dessa questão. § 1º Acolhida a proposição, serão suspensos os processos pendentes no tribunal e relativos à mesma questão de direito, fazendo-se comunicação aos seus órgãos. § 2º Findo o prazo de quinze dias para manifestação do Ministério Público, será designada data para o julgamento. § 3º Quando adotada a decisão pelo voto da maioria absoluta dos membros do órgão competente, este fixará em súmula o entendimento a ser observado, por seus órgãos, em todos os julgamentos relativos a idêntica questão de direito. § 4º Sumulada a tese: a) será defeso, aos órgãos de qualquer grau de jurisdição, subordinados ao tribunal que proferiu a decisão, a concessão de liminar que a contrarie; b) cessará a eficácia das liminares concedidas; c) o recurso contra a decisão que contrarie a súmula terá sempre efeito suspensivo; d) nos processos pendentes e nos posteriores, com pretensão fundada na tese da súmula, poderá ser concedida a antecipação da tutela, prosseguindo o feito até final julgamento.” Art. 2º Esta Lei entra em vigor sessenta dias após a data de sua publicação. “[...] deve admitir-se que, na vigência do CPC de 1939, o Prejulgado não teve sucesso. Entre os motivos para explicar seu parco uso, deve ser apontado o próprio desdobramento do julgamento, que complica sobremaneira seu procedimento”. Mais a frente, ao tratar do incidente previsto no CPC de 1973 destaca a autora que “[...] permanecem no instituto regulado pelo novo código os defeitos procedimentais que dificultaram sobremaneira a difusão do Prejulgado de 1939, com a agravante de que a oportunidade para a

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4.1.5 A uniformização de jurisprudência nos juizados especiais federais

Apesar de não haver previsão de instituto semelhante na Lei 9.099/1995, a Lei 10.259/2001 inseriu a uniformização de interpretação de lei federal no seu art. 14117. Tal instituto também foi inserido na legislação que trata dos juizados especiais da Fazenda Pública. Denominado pela legislação como incidente, na verdade o instituto tem verdadeira natureza recursal118, em nada se assemelhando aos incidentes de uniformização de jurisprudência e à assunção de competência119. Isso se justifica porque o acolhimento do pedido de uniformização de jurisprudência tem efeitos modificativos sobre o que fora decidido. O incidente de uniformização, como visto acima, é julgado antes do próprio recurso, o que não ocorre com o pedido de uniformização. De acordo com o artigo mencionado, a uniformização só terá cabimento se houver divergência sobre questões de direito material. Assim ficam de fora divergências processuais (mesmo que seja sobre o procedimento aplicável ao próprio juizado)120. Essa divergência deverá se dar entre turmas recursais. A divergência poderá se dar entre turmas recursais de

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solicitação do pronunciamento prévio é dada ao juiz no momento de proferir seu voto: portanto, quando o julgamento já está terminando, após a sustentação oral (art. 565 do novo CPC)”. (GRINOVER, Ada Pellegrini. Direito processual civil. São Paulo: José Bushatsky, 1974, p. 145 e 148-149). Vale também destacar severas críticas feitas por Rodolfo Mancuso ao instituto, afirmando que o custo benefício do instituto é mínimo e que na melhor das melhores hipóteses haverá apenas a edição de uma súmula persuasiva. (MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Divergência jurisprudencial e súmula vinculante. 4. ed. São Paulo: RT, 2010, p. 271-272) Sobre críticas ao instituto, ver: FIGUEIRA JÚNIOR, Joel Dias. Juizados Especiais Federais Cíveis e Criminais. 3. ed. São Paulo: RT, 2010, p. 301-306 Nesse sentido: TNU. QO 1. j. 12.11.2002: “Os Juizados Especiais orientam-se pela simplicidade e celeridade processual nas vertentes da lógica e da política judiciária de abreviar os procedimentos e reduzir os custos. Diante da divergência entre decisões de Turma Recursais de regiões diferentes, o pedido de uniformização tem a natureza jurídica de recurso, cujo julgado, portanto, modificando ou reformando, substitui a decisão ensejadora do pedido. A decisão constituída pela Turma de Uniformização servirá para fundamentar o juízo de retratação das ações com o processamento sobrestado ou para ser declarada a prejudicialidade dos recursos interpostos”. CARREIRA ALVIM, José Eduardo; CARREIRA ALVIM, Luciana Gontijo. Comentários à Lei dos Juizados Especiais Federais Cíveis. Curitiba: Juruá, 2005, p. 201-202 “[...] não deixa de ser em sua essência um ‘recurso especial’” [...] (FIGUEIRA JÚNIOR, Joel Dias. Juizados Especiais Federais Cíveis e Criminais. 3. ed. São Paulo: RT, 2010, p. 308) Nesse sentido: Súmula 1 da Turma de Uniformização da 4ª Região: “Não caberá pedido de uniformização de interpretação de lei federal quando a divergência versar sobre questões de direito processual”. Nessa hipótese, todavia, o art. 18 do Provimento 7/2010 do CNJ prevê a possibilidade de consulta à Turma Nacional de Uniformização.

52 uma mesma região ou entre turmas recursais pertencentes a regiões distintas, ou até mesmo entre a turma recursal e súmula ou jurisprudência dominante do STJ. Na primeira hipótese a divergência será apreciada em reunião conjunta das turmas em conflito. Nas demais, a divergência será julgada pela Turma de Uniformização, sob a presidência do Coordenador da Justiça Federal. Se houver, por sua vez, divergência entre a orientação firmada pela Turma de Uniformização e súmula ou jurisprudência dominante do STJ, a divergência (que deve ser sobre direito material) será dirimida pelo STJ, que se manifestará mediante provocação da parte interessada. No que tange à competência do STJ, parece-nos que a norma padeça de inconstitucionalidade diante da previsão infraconstitucional de competência do STJ, pois a competência desse tribunal é prevista na própria Constituição (art. 105)121. Esse instituto prevê também a manifestação de amicus curiae122. Já em 2001 previu o legislador o julgamento por amostragem e a retratação pelo órgão a quo quando trouxe a disposição de retenção de julgamentos de pedidos de uniformização “idênticos” (relativos à matéria idêntica)123 – algo que somente foi introduzido no CPC anos mais tarde (art. 543-B e 543-C). De acordo com a dicção legal do art. 14, § 6º, “Eventuais pedidos de uniformização idênticos, recebidos subseqüentemente em quaisquer Turmas Recursais, ficarão retidos nos autos, aguardando-se pronunciamento do Superior Tribunal de Justiça”. Após o julgamento do pedido de uniformização, os demais pedidos que ficaram sobrestados serão apreciados pelas próprias turmas recursais que poderão exercer o juízo de retratação. Discute-se sobre a vinculatividade da decisão que julga essa uniformização. O texto legal afirma que a turma poderá se retratar. Por sua vez, extrapolando os limites, a Resolução 22 do CJF, em seu art. 15, § 3º dispõe que o posicionamento exarado na resolução da divergência “deve ser adotada pela turma de origem para fins de adequação ou manutenção do

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No mesmo sentido: FIGUEIRA JÚNIOR, Joel Dias. Juizados Especiais Federais Cíveis e Criminais. 3. ed. São Paulo: RT, 2010, p. 307-308 Em sentido contrário, afirmando que esse terceiro deva ser um terceiro prejudicado (algo semelhante à assistência, mas sem mencionar este instituto): CARREIRA ALVIM, José Eduardo; CARREIRA ALVIM, Luciana Gontijo. Comentários à Lei dos Juizados Especiais Federais Cíveis. Curitiba: Juruá, 2005, p. 213 CARREIRA ALVIM, José Eduardo; CARREIRA ALVIM, Luciana Gontijo. Comentários à Lei dos Juizados Especiais Federais Cíveis. Curitiba: Juruá, 2005, p. 211

53 acórdão recorrido”. Na interpretação do dispositivo, Joel Dias afirma que há vinculatividade no dispositivo124. Esse instituto é regulamentado pela Resolução 22 do Conselho da Justiça Federal. A parte deverá apresentar o pedido de uniformização em 10 dias e a outra parte será intimada a apresentar contrarrazões. De acordo com a referida resolução, o pedido será feito ao presidente da turma recursal ou ao presidente da turma regional, que fará o juízo de admissibilidade. Se o presidente não admitir o incidente, a parte poderá interpor agravo nos próprios autos, no prazo de 10 dias (medida essa não prevista pela lei, mas pela resolução do CJF), que muito se assemelha ao recurso de agravo previsto no art. 544 do CPC.

4.2 A declaração incidental de inconstitucionalidade realizada pelos Tribunais

De acordo com a Constituição Federal de 1988, o controle de constitucionalidade das normas no direito pátrio pode ser classificado de diversas formas. Quanto ao momento de realização do controle, ele pode ser preventivo ou repressivo. O preventivo é realizado pelo Legislativo e pelo Executivo, evitando-se que uma norma inconstitucional passe a ter vigência. O controle repressivo é o exercido pelo Judiciário, podendo ser feito de duas formas: pelo controle concentrado (via de ação) e pelo controle incidental (via de exceção ou difuso)125. O primeiro é exercido (quanto à Constituição Federal) exclusivamente pelo STF, por meio da Ação Direta de Inconstitucionalidade, da Ação Declaratória de Constitucionalidade e da Arguição por Descumprimento de Preceito Fundamental. 124

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Comentando a Resolução anterior, Ricardo Chimenti afirma que é favorável à norma, apesar de questionável sua constitucionalidade (CHIMENTI, Ricardo Cunha. Teoria e prática dos juizados especiais cíveis estaduais e federais. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 254). Destaca-se também que no Pedido de Uniformização 2006.705.0000569, j. 06.09.2011, rel. Juiz José Eduardo do Nascimento, a turma decidiu que o julgado se torna precedente persuasivo, que por sua constância acabará vinculando em razão de sua alta persuasão. Também há a previsão do controle de constitucionalidade por meio de ação direta de constitucionalidade interventiva e o controle de constitucionalidade por omissão inconstitucional do legislador, que pode ser atacada por meio da Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão ou por Mandado de Injunção e o controle de constitucionalidade interventivo. Não nos aprofundaremos sobre o tema em razão do objeto do presente trabalho.

54 Já o controle incidental ou difuso é realizado por todos os juízes na análise dos casos concretos. É chamado de controle incidental porque a análise da constitucionalidade da norma será realizada como questão prejudicial126 ao mérito do caso sub judice. No controle concentrado a decisão terá eficácia erga omnes e efeito vinculante, gerando efeitos ex tunc, como regra, mas seus efeitos podem ser modulados no tempo. Por essa razão, o julgamento de uma ação direta de inconstitucionalidade ou declaratória de constitucionalidade servirá como um precedente obrigatório a ser seguido por todos os demais membros do Judiciário, diante de seu efeito vinculante. No controle incidental ou difuso (chamado por alguns de controle por via de exceção127), a decisão gerará eficácia inter partes e efeito ex tunc. Não há previsão de efeito vinculante no controle difuso. O controle de constitucionalidade nos diversos ordenamentos pode ser dividido em três modelos: o norte-americano, o modelo austríaco e o modelo francês128. O controle norte-americano é realizado por meio da análise de casos concretos. Por sua vez, o controle austríaco, criado pela Constituição da Áustria de 1920129, previa um controle abstrato. Já o modelo francês prevê um controle preventivo a ser realizado pelo Conselho Constitucional. A partir de 23 de julho de 2008, todavia, houve alteração na Constituição francesa, permitindo-se a partir de então o controle abstrato de constitucionalidade (a norma declarada inconstitucional será expurgada com efeitos erga omnes, ex nunc, repristinatórios e vinculantes para as autoridades administrativas e judiciais)130.

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Em sentido contrário: Barbosa Moreira. Para o autor, a questão objeto da arguição pode ou não se relacionar com o mérito (BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Comentários ao Código de Processo Civil. vol. V. 15. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 37) BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional. 22. ed. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 417 Para uma análise comparativa e histórica do controle de constitucionalidade: CAPPELLETTI, Mauro. O controle judicial de constitucionalidade das leis no direito comparado (trad. Aroldo Plínio Gonçalves). 2. ed. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1999 CAPPELLETTI, Mauro. O controle judicial de constitucionalidade das leis no direito comparado (trad. Aroldo Plínio Gonçalves). 2. ed. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1999, p. 68 Pedro Lenza, por sua vez, prevê a divisão do controle de constitucionalidade entre o sistema austríaco (baseado em Kelsen) e o sistema norte-americano (baseado no caso Marbury vs Madison (chief John Marshall). LENZA, Pedro. Direito constitucional e esquematizado. 13. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 150151.

55 Ainda no direito comparado, devemos destacar que, na Alemanha, várias técnicas surgem para resolver a rigidez da nulidade da norma inconstitucional, como a possibilidade de apelo ao legislador, a situação da norma ainda constitucional e a declaração de inconstitucionalidade sem pronúncia de nulidade. No Brasil, o controle de constitucionalidade passou a ser previsto pela Constituição de 1891131. Nesta, previa-se apenas o controle difuso de constitucionalidade. Em 1934, foi prevista a cláusula de reserva de plenário, segundo a qual a declaração de inconstitucionalidade de uma norma depende do volto da maioria absoluta dos membros do Tribunal132. Posteriormente, em 1965, surgiu o controle abstrato de constitucionalidade, por meio da Emenda Constitucional 16133. De acordo com a Constituição Federal de 1988, todos os juízes podem exercer o controle incidental de constitucionalidade. Poderão, ao analisar o caso concreto, se deparar com a necessidade preliminar de verificar se uma norma é ou não constitucional, para posteriormente julgar o mérito da ação134. Se o controle incidental for realizado em primeiro grau de jurisdição, não há maiores segredos. A decisão do juiz sobre aplicar a norma ou afastá-la porque é inconstitucional será feita incidentalmente, constando essa decisão da fundamentação da sentença e, por isso, não será hábil à formação de coisa julgada. Já na realização do controle de constitucionalidade pelos Tribunais, se for arguida a inconstitucionalidade da norma, o relator do recurso (ou demanda de competência originária) deverá, após ouvido o Ministério Público, submeter o caso ao órgão fracionário. Sendo 131

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A Constituição Imperial não previa qualquer forma de controle de constitucionalidade. Isso se deve, dentre outros motivos, à existência do Poder Moderador, centralizado no Imperador, que impedia qualquer exercício de fiscalização por parte do Judiciário quanto à constitucionalidade das normas: “O Imperador, enquanto detentor do Poder Moderador, exercia uma função de coordenação; por isso, cabia a ele (art. 98) manter a ‘independência, o equilíbrio e a harmonia entre os demais poderes’. Ora, o papel constitucional atribuído ao Poder Moderador, ‘chave de toda a organização política’ nos termos da Constituição, praticamente inviabilizou o exercício da função de fiscalização constitucional pelo Judiciário”. (CLÈVE, Clèmerson Merlin. A fiscalização abstrata de constitucionalidade no direito brasileiro. São Paulo: RT, 1995, p. 64) Art 179 – “Só por maioria absoluta de votos da totalidade dos seus Juízes, poderão os Tribunais declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato do Poder Público”. É certo, todavia, que já na Constituição de 1934 havia o controle de constitucionalidade interventivo (art. 12, § 2º). Discute-se sobre a possibilidade de o juiz, em primeiro grau de jurisdição, declarar a inconstitucionalidade da lei, ou se ele deva, ao invés disso, deixar de aplicar a lei para aplicar a Constituição. “[...] conclui-se que qualquer juiz, encontrando-se no dever de decidir um caso em que seja ‘relevante’ uma norma legislativa ordinária contrastante com a norma constitucional, deve não aplicar a primeira e aplicar, ao invés, a segunda”. (CAPPELLETTI, Mauro. O controle judicial de constitucionalidade das leis no direito comparado (trad. Aroldo Plínio Gonçalves). 2. ed. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1999, p. 76)

56 acolhida a arguição, após a lavra de acórdão irrecorrível os autos serão remetidos ao Pleno ou ao Órgão Especial para manifestar-se sobre a constitucionalidade da norma. Não sendo acolhida a arguição, não será lavrado acórdão e tal ato também é irrecorrível135. A arguição pode ser feita por qualquer das partes, por terceiros juridicamente interessados, pelo MP quando atuar como parte ou fiscal da lei e, em razão de envolver quaestio juris, pode ser feita ex officio pelo relator ou por qualquer dos membros da câmara ou turma. Essa arguição pode ser feita a qualquer momento anterior ao término da votação. Para uma melhor análise sobre a questão, em que pese o controle ser realizado com base numa situação fática específica, admite-se a participação do amicus curiae136. Ao se analisar o procedimento para a arguição incidental de constitucionalidade, constatamos que o julgamento da questão será feito por dois órgãos distintos. Haverá um julgamento subjetivamente complexo, tal como verificado no incidente de uniformização de jurisprudência. A câmara ou turma, ao dar provimento à arguição de inconstitucionalidade, encaminhará os autos para o Pleno (ou Órgão Especial) e este julgará apenas a constitucionalidade da norma. Após este julgamento os autos serão devolvidos à câmara ou turma, que apreciará o mérito do recurso (ou demanda de competência originária do tribunal), vinculando-se ao que foi decidido pelo Pleno (ou Órgão Especial). A decisão sobre a constitucionalidade da norma, exarada pelo Pleno ou pelo Órgão especial, é irrecorrível. A decisão que pode ser atacada é a da turma, após julgar o recurso ou a demanda de competência originária, aplicando o que foi decidido pelo Pleno (ou Órgão Especial). Novamente, a questão que pode surgir seria sobre a eficácia vinculante ou persuasiva da decisão do Pleno (ou Órgão Especial) que declarou a norma constitucional ou inconstitucional. A resposta para isso será a mesma utilizada quando da análise do incidente de uniformização de jurisprudência, qual seja: nos autos em que foi apreciada a questão, a

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Salvo por meio dos embargos de declaração. BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Comentários ao Código de Processo Civil. vol. V. 15. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 48; NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de Processo Civil Comentado e legislação extravagante. 11. ed. São Paulo: RT, 2010, p. 799 136 Fruto da tendência na objetivação do controle incidental de constitucionalidade.

57 decisão do Pleno vinculará a câmara ou turma137. Quanto aos demais casos, o julgado serve apenas como um precedente com força persuasiva. Essa eficácia persuasiva fica clara ao verificarmos que, surgindo nova arguição noutro caso, poderá a câmara ou turma deixar de apreciar a arguição sob o fundamento de que já houve manifestação do Pleno (ou Órgão Especial) ou, ainda, se o STF já se pronunciou sobre o tema. Sobre a possibilidade de rejeição da arguição em razão de pronunciamento do STF, Barbosa Moreira afirma que isso somente poderá ocorrer nos casos de controle concentrado de constitucionalidade138, pois somente neste haveria a eficácia erga omnes. A ideia de o legislador afirmar que não haverá submissão da questão objeto da arguição de inconstitucionalidade ao plenário decorre da existência de um precedente, que é persuasivo. Isto porque nada impede que a câmara, ao apreciar nova arguição, verifique que, de acordo com aqueles fatos apresentados, a norma seria inconstitucional139. Desse modo, havendo um precedente persuasivo, o Tribunal não poderá simplesmente ignorá-lo. É preciso que ele verifique os fatos e os fundamentos da causa anterior para poder confrontá-los com a causa presente a fim de constatar se a regra deve ser aplicada tal como foi no caso anterior ou se há elementos que a distingam e, por isso, o julgamento possa se dar noutro sentido. Reforça essa ideia o art. 52, X, da Constituição Federal, haja vista que a 137 138

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BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Comentários ao Código de Processo Civil. vol. V. 15. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 48 “Quanto à existência de pronunciamento do plenário do Supremo Tribunal Federal, cabe distinguir: se se trata de “súmula vinculante”, ou se foi em ação direta que se declarou inconstitucional a lei ou o outro ato normativo, tollitur quaestio, pois semelhante decisão produz efeitos erga omnes; se, porém, o que houve foi mera declaração incidental de inconstitucionalidade, sem que o Senado Federal tenha suspendido a eficácia da norma (Constituição Federal, art. 52, nº X), fazer prosseguir pura e simplesmente o julgamento do órgão fracionário, só porque o plenário da Corte Suprema se pronunciou do modo como o fez, é procedimento que, ao nosso ver, mal se harmoniza com a Lei Maior. Realmente: o órgão fracionário estará negando aplicação, por inconstitucional, à lei ou ao outro ato normativo (o que em nada se diferencia de declarar-lhe incidentalmente a inconstitucionalidade, sem que em tal sentido haja votado o próprio tribunal julgador, pela “maioria absoluta de seus membros ou dos membros do respectivo órgão especial”, conforme exige o art. 97, com a ênfase do “somente”. O plenário do Supremo Tribunal Federal e a maioria absoluta do tribunal julgador (ou de seu órgão especial) são entidades perfeitamente distintas, e o texto constitucional não atribui ao primeiro o poder de suprir a falta do pronunciamento da segunda. Inclinamo-nos, destarte, a fim de preservar a regra do art. 97, por uma interpretação restritiva do parágrafo, na cláusula atinente ao Supremo Tribunal Federal: aquele incidirá apenas quanto a Corte Suprema houver declarado a inconstitucionalidade em ação direta”. (BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Comentários ao Código de Processo Civil. vol. V. 15. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 44 – grifos no original) Exemplifiquemos: diante da inexistência de defensoria pública, o Tribunal afirma que o art. 68 do Código de Processo Penal que confere legitimidade ativa ao Ministério Público para ajuizar ação civil decorrente do ilícito criminal é constitucional. Posteriormente houve a instalação da defensoria e a função de exercer a advocacia para os considerados pobres nos termos da lei pode fazer com que o Tribunal volte a se manifestar sobre a norma e agora em sentido oposto, ou seja, pela sua não recepção. Sem falar que os fatos são muito mais ricos e diversos do que pode prever o legislador, razão pela qual pode a matéria voltar a ser objeto de novo incidente de inconstitucionalidade.

58 norma, apesar de ser declarada inconstitucional até mesmo pelo STF, na via incidental, ainda continua dentro do ordenamento jurídico. A norma tida por inconstitucional pelo STF no controle incidental deixará de ter vigência apenas após sua suspensão pelo Senado Federal140. Pelo fato de o Brasil não ter uma tradição de obediência aos precedentes, o controle difuso de constitucionalidade pode levar a decisões conflitantes sobre uma mesma causa, quando na verdade tal fato não deveria acontecer141. A partir do momento em que foi decidido pelo Tribunal em controle difuso a constitucionalidade ou a inconstitucionalidade das leis, os demais magistrados vinculados àquele Tribunal deveriam obedecer àquele entendimento.

4.3 Recurso Especial e Recurso Extraordinário

Outros instrumentos existentes no direito pátrio que têm por finalidade dar um norte à aplicação das leis aos casos concretos de modo uniforme são os recursos excepcionais. Tanto o recurso especial quanto o recurso extraordinário podem ser chamados de recursos de estrito direito142, porque diferentemente do que ocorre com os recursos ordinários, os recursos excepcionais não estão voltados à justiça do caso concreto, mas à uniformização da interpretação das normas federais143. Compete aos Tribunais Superiores dar a última palavra no que tange à interpretação do direito federal. Têm a finalidade de preservar a ordem jurídica144.

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Não se desconhece a tendência à objetivação do controle incidental de constitucionalidade, que será tratado mais abaixo. “Ulteriores inconvenientes do método “difuso” de controle, porque concretizado em ordenamentos jurídicos que não acolhem o princípio do stare decisis, são os que derivam da necessidade de que, mesmo depois de uma primeira não aplicação ou de uma série de não aplicações de uma determinada lei por parte das Cortes, qualquer sujeito interessado na não aplicação da mesma lei proponha, por sua vez, um novo caso em juízo”. (CAPPELLETTI, Mauro. O controle judicial de constitucionalidade das leis no direito comparado (trad. Aroldo Plínio Gonçalves). 2. ed. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1999, p. 78) WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Recurso Especial, recurso extraordinário e ação rescisória. 2. ed. São Paulo: RT, 2009, p. 243 Em que pese o recurso extraordinário não ter hipótese de cabimento semelhante à descrita no art. 105, III, “c”, da CF. WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Recurso Especial, recurso extraordinário e ação rescisória. 2. ed. São Paulo: RT, 2009, p. 245: “Têm , os recursos especial e extraordinário, a função de preservar a ordem jurídica, evitando a dilaceração do sistema jurídico federal ou normativo federal, exercendo, assim, a sua função, que é a de tornar claras pautas de conduta”. Também sobre isso, vale destacar o seguinte trecho do REsp. 305.970-MG: “[...] Deve-se observar, nessas hipóteses, sob a ótica da excepcionalidade, que o Poder Judiciário deve ao jurisdicionado, em casos idênticos, uma resposta firme, certa e homogênea. Atinge-se, com isso, valores tutelados na ordem político-constitucional e jurídico-material, com a correta prestação

59 O recurso extraordinário teve inspiração no writ of error do direito norte-americano145. Destaca José Afonso da Silva que a finalidade desse recurso, assim como a do writ of error e do antigo recurso de revista são as mesmas. Todavia, optou-se por adotar o writ of error desprezando-se o recurso de origem lusitana que já era aplicado ao direito pátrio antes da proclamação da república146. No direito pátrio o recurso surgiu em 1890, por meio do Decreto 848147, decreto esse que instituiu a justiça federal. Este decreto previa em seu art. 9º, parágrafo único que: Art. 9º [...] Paragrapho unico. Haverá tambem recurso para o Supremo Tribunal Federal das sentenças definitivas proferidas pelos tribunaes e juizes dos Estados: a) [...] b) quando a validade de uma lei ou acto de qualquer Estado seja posta em questão como contrario á Constituição, aos tratados e ás leis federaes e a decisão tenha sido em favor da validade da lei ou acto; c) quando a interpretação de um preceito constitucional ou de lei federal, ou da clausula de um tratado ou convenção, seja posta em questão, e a decisão final tenha sido contraria, á validade do titulo, direito e privilegio ou isenção, derivado do preceito ou clausula.

A Constituição Federal de 1891 regulou a matéria no seu artigo 59, § 1º. Posteriormente, em 20.11.1894 a Lei 221, no seu art. 24 previu que esse recurso extraordinário seria cabível aos casos expressamente determinados no Decreto 848 de 1890. Com a entrada em vigor da Emenda Constitucional de 03.09.1926 houve ampliação da hipótese de cabimento do recurso extraordinário148, passando a ser previsto o recurso na hipótese de “dous ou mais tribunaes locaes interpretarem de modo differente a mesma lei federal, podendo o recurso ser tambem interposto por qualquer dos tribunaes referidos ou pelo procurador geral da Republica”.

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jurisdicional, como meio de certeza e segurança para a sociedade. Afasta-se, em consequência, o rigor processual técnico, no qual se estaria negando a aplicação do direito material, para alcançar-se a adequada finalidade da prestação jurisdicional, que é a segurança de um resultado uniforme para situações idênticas. Vislumbrada a excepcionalidade do caso concreto, conheço do recurso [...]” (STJ. 5ª Turma. REsp. 305.970MG, rel. Min. Jorge Scartezzini, j. 19.03.2002, v.u.) BUZAID, Alfredo. A crise do supremo tribunal federal. Revista de direito processual civil. ano III. vol. 6. Saraiva: São Paulo, 1962, p. 35-36 “Já tínhamos, portanto, na tradição do Direito nacional, um recurso que, devidamente adaptado às necessidades da Federação, poderia transformar-se no atual Recurso Extraordinário, sem precisar recorrer-se ao direito americano. Mas, na época, as instituições americanas constituíram-se em modêlo para as brasileiras”. (SILVA, José Afonso da. Do recurso extraordinário no direito processual brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1963, p. 29-30). Apesar de o Decreto 848 e a Constituição de 1891 não utilizar a expressão recurso extraordinário quando do surgimento desse recurso, o art. 33, § 4º do Regimento Interno do STF, de 1891 trouxe a denominação de “extraordinário” (ASSIS, Araken de. Manual dos recursos. 4. ed. São Paulo: RT, 2012, p. 734). ASSIS, Araken de. Manual dos recursos. 4. ed. São Paulo: RT, 2012, p. 729

60 Poder-se-ia afirmar que o STF passou também a ter a função de uniformizador da Jurisprudência a partir dessa Emenda Constitucional, todavia, parece-nos que essa função já seria ínsita ao STF a partir do momento em que ele foi constituído como Corte Suprema, dando a última palavra na interpretação das leis federais e da Constituição Federal149. Reforça-se esse posicionamento e justifica-se a própria utilização do recurso extraordinário como recurso importante na interpretação das leis de acordo com a Constituição Federal (mesmo sem que haja hipótese de cabimento semelhante à prevista para o recurso especial atualmente - art. 105, III, “c”), porque é função da Corte dar a última palavra na aplicação e interpretação do texto constitucional (e antes de 1988, das leis federais). Quando se fala que um Tribunal julgou de forma diferente de outro tribunal uma questão idêntica, o que se quer, no caso atual, é que o tribunal reconheça que a decisão do tribunal local contrariou a lei federal (no caso do art. 105, III, “c”)150. Ou seja, a hipótese de cabimento não será apenas a de que o acórdão do tribunal local está em contradição com a decisão proferida por outro tribunal, mas de que esse acórdão fere, antes de tudo, o direito federal. Assim, mesmo que atualmente não haja previsão de cabimento do recurso extraordinário pelo fato de o posicionamento do tribunal a quo está em desacordo com o posicionamento exarado por outro Tribunal, haverá a possibilidade de interposição do extraordinário porque o julgado está em dissonância com a interpretação e aplicação que deva ser dada à Constituição Federal151.

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Como ressaltado por Alfredo Buzaid, ao tratar da Corte de Cassação Francesa, que foi criada com a finalidade de obstar que os juízes proferissem sentenças contra a lei, acabou, posteriormente, tendo também a finalidade de unificar o direito: “O instituto teve fortuna singular . Construído em harmonia com a concepção democrática da divisão dos podêres, difunde-se ràpidamente o modêlo francês, seguido por grande númeo de países; a função jurisdicional é exercida por provocação do interessado, que interpõe o recurso de cassação como um remédio tendente a denunciar, do mesmo modo que a antiga querella nulitatis, os errores in iudicando in iure e os errores in procedendo; mas indubitàvelmente a sua função primordial e positiva consistia em unificar o direito e disciplinar a jurisprudência, assegurando nos Estados modernos aquêle ideal de aplicação do direito igual e uniformemente para todos; ou, em outras palavras, que todos tivessem o mesmo tratamento em face da lei ou do direito. (BUZAID, Alfredo. A crise do supremo tribunal federal. Revista de direito processual civil. ano III. vol. 6. Saraiva: São Paulo, 1962, p. 28) Ao tratar da revisão germânica, Alfredo Buzaid também destacou a importante função de uniformização da jurisprudência daquele recurso. (BUZAID, Alfredo. A crise do supremo tribunal federal. Revista de direito processual civil. ano III. vol. 6. Saraiva: São Paulo, 1962, p. 31) “Pela própria função a que se destina, o recurso extraordinário é, no Brasil, como nos Estados Unidos e na Argentina, um recurso de índole eminentemente política. Expressão do primado da Constituição e das leis federais, êle lhes assegura aplicação uniforme, mediante limitações, na esfera judiciária, ao princípio da autonomia estadual. E estas limitações não são apenas convenientes, mas necessárias e imperativas, porque, como adverte Cooley, dada a multiplicidade de jurisdições locais, seria quimera pretender uniformidade de interpretação da lei federal e da própria Constituição. Ora, interpretada e aplicada de diferentes modos, pelas diversas magistraturas locais, a lei deixaria de ser federal, regionalizando-se”. (MARTINS, Pedro Batista. Recursos e processos da competência originária dos tribunais. Atualização: Alfredo Buzaid. Rio de Janeiro: Forense, 1957, p. 371)

61 Devemos ressaltar que, de acordo com nossa Constituição Federal, a competência legislativa para a maior gama de matérias importantes à vida em sociedade ficou nas mãos da União. Dessa forma, não há outra alternativa senão haver tribunais de sobreposição para a uniformização da interpretação da lei federal e para a interpretação destas de acordo com a Constituição Federal. A uniformização da interpretação do direito é questão fundamental em qualquer sociedade e no caso da sociedade brasileira, justifica-se em razão da forma federativa de estado, na qual tanto a lei como a Constituição precisam ter interpretações uniformes no território nacional. Sobre a importância da uniformização do direito federal norte-americano, Cooley destacou que: The reasons for conferring jurisdiction of these cases upon the federal courts were manifest, and were also imperative. The alternative must be that the final decision upon questions of federal law must be left to the courts of the several States, and this multitude of courts of final jurisdiction of the same causes, arising upon the same laws, would, in the language of the Federalist, be a hydra in government from which nothing but contradiction and confusion could proceed. Uniformity of decision could seldom or never be expected, and never relied upon; and the federal law, interpreted and applied one way in one State and another way in another, would cease to be a law for the United States, because the decisions would establish no rule for the United States; and the Constitution itself thus administered would lose its uniform force and obligation [...] Any government that must depend upon others for interpretation, construction, and enforcement of its own laws, is at all times at the mercy of those on whom it thus depends, and will neither be respected at home nor trusted abroad, because it can neither enforce respect nor perform obligations152.

Nota-se que também o recurso extraordinário, apesar de não possuir hipótese de cabimento para os casos de divergência jurisprudencial, tem a função de extirpar posicionamentos dissonantes, pois não pode haver duas interpretações sobre a aplicação da Constituição. Como disse Cooley, permitir que isso ocorra seria permitir a existência de várias Constituições Federais ao invés de uma única. A diferença se dará apenas de modo prático-processual, pois no caso do recurso especial ser cabível quando do posicionamento dissonante com o exarado por outro tribunal, o que se visa é o ataque ao julgamento contrário à lei federal. No caso do recurso extraordinário, o ataque à decisão não será fundado no posicionamento em dissonância com o exarado por outro tribunal, pois o fundamento será a ofensa à Lei Maior.

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COOLEY, Thomas M. The general principles of Constitutional Law in the United Utates od America. New Jersey: Lawbook Exchange, 2000, p. 109-110

62 Sobre a natureza jurídica do recurso extraordinário, João Batista Lopes afirma que esse recurso tem natureza de “recurso extraordinário no sentido próprio do termo, ou seja, distingue-se de todos os outros meios impugnativos por seu fim precípuo, a salvaguarda da Constituição Federal”, sendo um recurso de fundamentação vinculada153. Desde aquele momento até a criação do STJ pela Constituição Federal de 1988 o STF era o guardião não apenas do sistema constitucional federal, mas também das leis federais. Somente com a criação do STJ é que o STF deixou de ser o guardião das leis federais. O recurso especial é relativamente recente no direito pátrio, tendo surgido após a criação do STJ, pela Constituição Federal de 1988. Este recurso tem por finalidade uniformizar, em âmbito nacional, a interpretação das leis federais. A criação do STJ decorre de ideia originária de José Afonso da Silva154. Dentre outros fatores, podemos destacar que a criação do STJ decorreu da grande sobrecarga de trabalho no STF155 e da necessidade de transformar esta numa corte constitucional. Dentre outras atribuições, a que nos interessa em razão do objeto deste trabalho, é a de realizar o 153

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LOPES, João Batista. Curso de Direito Processual Civil. vol II. São Paulo: Atlas, 2006, p. 211. Em sentido contrário: SILVA, José Afonso da. Do recurso extraordinário no direito processual brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1963, p. 104-105: “Cremos ter demonstrado tratar-se de recurso ordinário, com caráter anormal ou excepcional, pelos motivos já vistos. Ordinário: 1º, porque se interpõe dentro da mesma instância da ação, prolongando-a até ao Juízo de grau superior; 2º, porque leva a um nôvo julgamento da causa; 3º, porque a sentença proferida em Grau de Recurso Extraordinário substitui (como na apelação), no que tiver sido objeto do recurso, a decisão recorrida; 4º, porque devolve à superior instância o conhecimento das questões in iure (só nisto se distingue a apelação) suscitadas e discutidas na ação; ainda aqui: salvo a hipótese prevista no art. 11, do Código de Processo Civil 599, do Código do Processo Penal. O qualificativo extraordinário, que lhe dá a Constituição, não tem relevância: 1º, porque êsse nome proveio, segundo João Mendes Júnior mostrou, da necessidade de distingui-lo das apelações interpostas das sentenças dos, então, juízes federais julgadas, também, pelo STF; 2º, porque foi adotado na Constituição de 34 e mantido na de 46, pela tradição, e para diferençá-lo do recurso ordinário constitucional, adotado, também, a partir de 34; ambos os recursos constitucionais eram inominados na Constituição de 91; tanto que não se distinguem, senão quanto aos pressupostos: um é normal; o outro, especial; e quanto aos objetivos: um é geral; o outro específico. Por aí, não se pode dizer que o primeiro seja ordinário e o segundo, extraordinário, por natureza; os embargos, a revista, o recurso especial eleitoral, seriam também extraordinários... Conclui-se, pois, que se trata de um recurso ordinário por natureza, embora de via excepcional, como a revista, o ordinário constitucional, o especial eleitoral”. À guisa de curiosidade, discute-se a originalidade da ideia de criação do STJ. Afirma-se também que a ideia teria sido de Miguel Reale, quando da realização de um debate na Fundação Getúlio Vargas, em 1965. Por outro lado, afirma José Afonso da Silva que a ideia de criação de um tribunal superior teria sido por ele proposta na obra “Do recurso extraordinário no direito processual brasileiro”, publicada em 1963, o que de fato pôde ser verificado na obra mencionada nas páginas 454 e seguintes. (SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 23. ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 554) Algo que já fora objeto de reflexão por Alfredo Buzaid, que já nos idos de 1962 a denominou de “a crise do Supremo Tribunal Federal”. Neste trabalho o autor demonstra que desde 1931 o STF não consegue manter o equilíbrio entre a quantidade de feitos protocolados e a quantidade de feitos julgados. (BUZAID, Alfredo. A crise do supremo tribunal federal. Revista de direito processual civil. ano III. vol. 6. Saraiva: São Paulo, 1962, p. 39-40)

63 controle da inteireza positiva, da autoridade e da uniformidade de interpretação da lei federal, consubstanciando-se aí jurisdição de tutela do princípio da incolumidade do Direito objetivo “constitui um valor jurídico – que resume certeza, garantia e ordem -, valor esse que impõe a necessidade de um órgão de cume e um instituto processual para a sua real efetivação no 156 plano processual” .

A natureza do recurso especial é de recurso excepcional, de fundamentação vinculada157. Como mencionado, a existência de Tribunais Superiores decorre da própria forma de estado (federado)158. Talvez isso até esteja ligado ao caos em que vivem os Tribunais Superiores, pois diferentemente do sistema norte-americano de federação, que surgiu de um movimento centrípeto, no qual as colônias cederam parcela de seu poder para a construção de um estado federado, o Estado Federado Brasileiro surgiu de um movimento centrífugo, ou seja, o poder central foi distribuído aos demais entes159. Há um federalismo formal apenas. Verifica-se isso em função da repartição de competências160. Enquanto nos Estados Unidos boa parte das matérias é regulada pelos Estados, no Brasil a competência legislativa dos Estados, apesar de ser residual, é em grande medida tolhida pela competência exercida pela União (que tem competência para legislar sobre uma imensa gama de matérias, tais como direito civil, processo civil, penal, processo penal). Isso faz com que as demandas acabem, cedo ou tarde, tendo que ser enfrentadas pelas Cortes Superiores, pois caberá a elas uniformizar a interpretação e aplicação do direito federal. Os recursos excepcionais têm a finalidade de exercer o controle nomofilácico161. Têm também a função de exercer o controle difuso de constitucionalidade. Os recursos de estrito direito servem de ferramenta para proteção do direito objetivo. Seu objetivo primordial não é proteger o direito subjetivo das partes, mas são as partes, que 156

SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 23. ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 562 – grifos no original. 157 LOPES, João Batista. Curso de Direito Processual Civil. vol II. São Paulo: Atlas, 2006, p. 203 158 OLIVEIRA, Gleydson Kleber Lopes de. Recurso Especial. Recursos no processo civil 9. São Paulo: RT, 2002, p. 123 159 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 23. ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 101102 160 WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Recurso Especial, recurso extraordinário e ação rescisória. 2. ed. São Paulo: RT, 2009, p. 244 161 TUCCI, José Rogério Cruz e. Eficácia do precedente judicial na história do direito brasileiro. Revista do Advogado. ano XXIV, n. 78: São Paulo: AASP, 2004, p. 44-45. No mesmo sentido: SILVA, José Afonso. Do recurso extraordinário no direito processual brasileiro. São Paulo: RT, 1963, p 27

64 por meio dos recursos excepcionais e pretendendo ver a aplicação do direito objetivo nos seus casos concretos, que buscarão essa finalidade nomofilácica. Verifica-se, assim, que o recurso extraordinário serve não apenas ao controle do direito objetivo, mas também à tutela dos interesses dos litigantes162.

4.3.1 Requisitos de sua admissibilidade

A previsão atual de cabimento dos recursos excepcionais está descrita nos artigos 102, III, (para o recurso extraordinário) e 105, III, (para o recurso especial)163. Para que seja cabível, todavia, também é preciso que a matéria impugnada envolva questão predominantemente de direito164; que a decisão atacada seja de última ou única instância; que haja o prequestionamento da questão constitucional impugnada; que a ofensa à Constituição Federal seja direta e não reflexa; que haja repercussão geral das questões constitucionais; além dos demais pressupostos recursais (tempestividade, preparo etc.). Para o recurso especial também se exige que a decisão atacada seja de última ou única instância, mas exige que essa última ou única instância seja tribunal, não cabendo então recurso especial de decisão proferida por Colégio Recursal165, por exemplo; exige-se também que haja o prequestionamento da questão envolvendo lei federal. Não se exige a repercussão geral para a interposição do recurso especial.

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Seria ingenuidade entender que os recursos excepcionais são interpostos pelas partes apenas para a proteção do direito objetivo. Elas recorrem para a proteção de seus direitos individuais. Verifica-se que as hipóteses de cabimento se resumem à ofensa à Constituição Federal e à lei federal, sendo as demais alíneas dos artigos em comento desmembramento dessa ideia: “Para efeito de cabimento dos recursos especial e extraordinário, ofender a lei, contrariar-se a lei, negar vigência à lei são hoje expressões equivalentes. Interpretar mal o texto de lei é contrariá-lo, é negar-lhe vigência, é ofendê-lo”. (WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Recurso Especial, recurso extraordinário e ação rescisória. 2. ed. São Paulo: RT, 2009, p. 262) A diferenciação entre questão de direito e questão de fato será abordada no capitulo seguinte, quando tratarmos do incidente de resolução de demandas repetitivas. Súmula 203 do STJ: “Não cabe recurso especial contra decisão proferida por órgão de segundo grau dos Juizados Especiais”. Em sentido contrário: FIGUEIRA JÚNIOR, Joel Dias. Juizados Especiais Federais Cíveis e Criminais. 3. ed. São Paulo: RT, 2010, p. 313

65 Em razão da proibição da utilização dos recursos excepcionais para revolver matéria fática, não são cabíveis esses recursos para o revolvimento de provas166. Por visarem a proteção do direito federal, mais precisamente a proteção da Constituição Federal pelo recurso extraordinário e da lei federal pelo recurso especial, não poderão ser manejados estes recursos para a mera interpretação de cláusulas contratuais167; por ofensa à Lei local168; ou por ofensa à regimento interno169, pois este não é lei. A decisão de última ou única instância, para fins de recurso extraordinário, não precisa ser proferida por tribunal, tal como ocorre no recurso especial em razão da dicção do art. 105, III, da Constituição Federal. Assim é cabível recurso extraordinário das decisões proferidas em embargos infringentes pelo juiz de primeira instância nas execuções fiscais de pequeno valor, nos termos do art. 34 da Lei 6.830/1980 e também das decisões proferidas pelo Colégio Recursal nos juizados Especiais170. O significado de decisão de última ou única instância é de que não deve ser passível qualquer outro recurso da decisão (desconsiderando-se o cabimento de embargos de declaração, que não tem a finalidade de reforma ou anulação da decisão, mas de simples integração desta). Também não deve ser considerado para tanto a possibilidade de outros meios de impugnação autônomos (mandado de segurança contra ato judicial, reclamação constitucional ou ação rescisória)171. Se, no julgamento de uma demanda originária ou recursal pelo Tribunal não houver outro recurso cabível, entende-se que a decisão seja de última (ou única) instância. Dessa forma, será cabível o recurso excepcional. Se, todavia, da decisão que apreciar a matéria couber, por exemplo, recurso ordinário constitucional (art. 102, II ou 105, II, da Constituição Federal), não será o caso de cabimento do recurso excepcional, não sendo aplicado aqui o

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Súmula 279 do STF: “Para simples reexame de prova não cabe recurso extraordinário”. E também: Súmula 7 do STJ: “A pretensão de simples reexame de prova não enseja recurso especial”. 167 Súmula 454 do STF: “Simples interpretação de cláusulas contratuais não dá lugar a recurso extraordinário”. E também: Súmula 5 do STJ: “A simples interpretação de cláusula contratual não enseja recurso especial”. 168 Súmula 280 do STF: “Por ofensa a direito local não cabe recurso extraordinário”. 169 Súmula 399 do STF: “Não cabe recurso extraordinário, por violação de lei federal, quando a ofensa alegada for a regimento de tribunal”. 170 MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Recurso extraordinário e recurso especial. 11. ed. São Paulo, 2010, p. 121. Também: Súmula 640 do STF: “É cabível recurso extraordinário contra decisão proferida por juiz de primeiro grau nas causas de alçada, ou por turma recursal de juizado especial cível e criminal”. 171 ASSIS, Araken de. Manual dos recursos. 4. ed. São Paulo: RT, 2012, p. 736

66 princípio da fungibilidade172. Isso também vale se houver a possibilidade de atacar a decisão por meio de recurso de embargos infringentes173. Todavia, se a decisão de única ou última instância for de Tribunal Superior (do STJ, por exemplo), e dessa decisão seja passível haver impugnação por meio de embargos de divergência, a possibilidade de interposição desse recurso não traz impedimento à interposição de recurso extraordinário. A decisão monocrática de tribunal, todavia, impede o ajuizamento do recurso excepcional, pois a parte ainda pode manejar o agravo interno. O Legislador trouxe alteração ao cabimento do recurso excepcional quando parte da decisão puder ser atacada por embargos infringentes e parte não. De acordo com a dicção do art. 498, caput, do Código de Processo, havendo numa decisão capítulo passível de embargos infringentes e capítulo passível de recurso excepcional, a parte necessitará interpor embargos infringentes da decisão não unânime para que do julgamento colegiado desse recurso seja cabível o recurso excepcional. Da parte unânime do julgado, que não era passível de recurso de embargos infringentes, a parte poderá interpor o recurso excepcional, porque a decisão é de última ou única instância. O prazo, todavia, para a interposição desse recurso somente começará a contar da intimação da decisão que julgar os embargos infringentes interpostos da parte não unânime ou, no caso de não interposição desse recurso, no tocante à parte unânime do acórdão, o prazo para a interposição do recurso excepcional começará a contar do término do prazo para a interposição dos embargos infringentes, nos termos do artigo mencionado. Vale acrescentar também que a causa decidida pode ter origem em qualquer tipo de processo (conhecimento, execução, cautelar, procedimento especial), sendo a decisão originária sentença ou interlocutória, podendo até mesmo ser cabível recurso das decisões em processos de jurisdição voluntária. Não há limitação legal quanto a isso. Acrescenta-se, entretanto que, apesar de não haver limitação, a legislação prevê a retenção do recurso excepcional quando a decisão originária for interlocutória174.

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Súmula 272 do STF: “Não se admite como ordinário recurso extraordinário de decisão denegatória de mandado de segurança”. Súmula 207 do STJ: “É inadmissível recurso especial quando cabíveis embargos infringentes contra o acórdão proferido no tribunal de origem”. E também: Súmula 281 do STF: “É inadmissível o recurso extraordinário, quando couber na justiça de origem, recurso ordinário da decisão impugnada”. Não se desconhece, entretanto, a jurisprudência restritiva do STF, vedando o recurso extraordinário diante de acórdãos que tenham deferido medidas liminares (Súmula 735 do STF: “Não cabe recurso extraordinário contra acórdão que defere medida liminar”) e contra provimentos exarados em processos que alberguem jurisdição voluntária.

67 As decisões contra a Fazenda Pública podem ser objeto de reexame necessário. O acórdão do Tribunal que apreciar o reexame necessário pode ser atacado por meio do recurso excepcional175. Mesmo que o reexame necessário tenha reformado por maioria a sentença de mérito será possível a interposição do recurso excepcional porque não são cabíveis embargos infringentes contra decisão proferida em reexame necessário176. Outra hipótese em que também poderá haver reforma por maioria da sentença de mérito e que já poderá ser atacada por recurso excepcional é a decorrente de mandado de segurança, pois não cabem embargos infringentes contra acórdão proferido por maioria em apelação que decidiu mandando de segurança177. No tocante especificamente ao recurso extraordinário há também a necessidade de que a ofensa à Constituição Federal seja direta e não reflexa. Isso quer dizer que a ofensa deve ser ao próprio texto constitucional. Isso, entretanto, não é de fácil verificação, ainda mais diante de uma constituição principiológica como a nossa178. João Batista Lopes destaca que o recorrente deve fazer o confronto analítico entre a decisão recorrida e o texto constitucional. Não basta, simplesmente, alegar ofensa a determinado princípio. É preciso que seja demonstrado no recurso em que pontos se revelou a ofensa ao texto constitucional179.

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ASSIS, Araken de. Manual dos recursos. 4. ed. São Paulo: RT, 2012, p. 739 Súmula 390 do STJ: “Nas decisões por maioria, em reexame necessário, não se admitem embargos infringentes”. Segundo entendeu o STJ, não são cabíveis os embargos infringentes porque reexame necessário não pode ser considerado apelação e o art. 530 exige que a reforma por maioria seja proferida em apelação ou ação rescisória. Tal restrição, todavia, não existe para o excepcional, pois tanto o art. 102, III quanto o art. 105, III, falam apenas em causas decididas, o que justifica o cabimento dos recursos excepcionais, inclusive da parte não unânime que reformou a sentença de mérito. 177 Súmula 597 do STF: “Não cabem embargos infringentes de acórdão que, em mandado de segurança decidiu, por maioria de votos, a apelação”. 178 Para o STF a ofensa reflexa seria demonstrada quando para se analisar a ofensa à Constituição Federal seja necessário realizar exame sobre as normas infraconstitucionais (STF. 2º Turma. ARE 672.121 AgR-GO. Rel. Min. Ricardo Lewandowski, j. 24.04.2012). Também: “[...] O Recurso Extraordinário é incabível quando a alegada ofensa à Constituição Federal, se existente, ocorrer de forma reflexa, a depender da prévia análise da legislação infraconstitucional. Embargos de declaração conhecidos e recebidos como agravo regimental, ao qual se nega provimento”. (STF. 1ª Turma. AI 837.155 ED-PR. Rel. Min. Rosa Weber, j. 17.04.2012) 179 LOPES, João Batista. Curso de Direito Processual Civil. vol II. São Paulo: Atlas, 2006, p. 211 176

68 4.3.1.1 Prequestionamento

Afirma Araken de Assis que o problema do prequestionamento como exigência para a interposição do recurso extraordinário já tenha surgido em 1891 com a Constituição Federal de então, ao prever no art. 59, § 1º, “a” que caberia recurso extraordinário “quando se questionar sobre a validade, ou a aplicação de tratados e leis federais, e a decisão do Tribunal do Estado for contra ela”180. O prequestionamento ganhou força a partir da Constituição Federal de 1946, pois de acordo com o art. 101, III, desta Constituição o recurso extraordinário seria cabível em face das “causas decididas em única ou última instância por outros Tribunais ou Juízes”. Em decorrência dessa redação o STF acabou por editar dois enunciados de Súmula: 282: É inadmissível o recurso extraordinário, quando não ventilada, na decisão recorrida, a questão federal suscitada. 356: O ponto omisso da decisão, sobre o qual não foram opostos embargos declaratórios, não pode ser objeto de recurso extraordinário, por faltar o requisito do prequestionamento.

Em razão de os tribunais superiores serem tribunais de sobreposição, não voltados à verificação de fatos, justifica-se o prequestionamento em razão de as matérias deverem ter sido apreciadas pelas instâncias ordinárias. Como destacado por Teresa Wambier, os recursos excepcionais são recursos de revisão, logo “revisa-se o que já se decidiu”181. Apesar de a Constituição Federal de 1946 e das Constituições posteriores não mencionarem o termo “questionar”, pacificou-se o entendimento no sentido da necessidade de prequestionamento da matéria objeto de recurso182. No que se refere ao prequestionamento, deve-se entender que a matéria objeto de recurso tenha sido não apenas suscitada pela parte nas instâncias ordinárias, mas que também tenham sido elas julgadas pelo Tribunal local183. Mesmo matérias consideradas como de ordem pública, nas quais o juiz pode conhecer delas de ofício, se estas matérias não forem 180 181 182 183

ASSIS, Araken de. Manual dos recursos. 4. ed. São Paulo: RT, 2012, p. 728 WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Recurso Especial, recurso extraordinário e ação rescisória. 2. ed. São Paulo: RT, 2009, p. 401 WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Recurso Especial, recurso extraordinário e ação rescisória. 2. ed. São Paulo: RT, 2009, p. 400 Súmula 282 do STF: “É inadmissível o recurso extraordinário, quando não ventilada, na decisão recorrida, a questão federal suscitada”. Ainda: Súmula 211 do STJ: “Inadmissível recurso especial quanto à questão que, a despeito da oposição de embargos declaratórios, não foi apreciada pelo tribunal a quo”. E também: Súmula 356 do STF: “O ponto omisso da decisão, sobre o qual não foram opostos embargos declaratórios, não pode ser objeto de recurso extraordinário, por faltar o requisito do prequestionamento”.

69 arguidas pela parte na instância ordinária, nem apreciadas pelo tribunal local, não será possível interpor recurso excepcional184. Se houver apenas a manifestação em voto vencido, a matéria não é considerada como prequestionada185. Também não se considera como prequestionada a matéria manifestada em voto que não decorra da maioria dos Ministros186. Como afirmam os art. 102, III e 105, III, ambos da CF, as causas devem ter sido decididas, significando que devam ter sido apreciadas então pela instância ordinária187. É dai que surge a importância da elaboração minuciosa de um recurso de apelação, agravo de instrumento, ou até mesmo de recurso inominado (Lei 9.099/95) e das respectivas contrarrazões para que a matéria seja arguida pela parte e apreciada pelo tribunal a quo. Caso o Tribunal a quo não tenha apreciado a questão vem a fundamental ferramenta para suprimir a falta do prequestionamento, que são os embargos de declaração. Caso estes embargos sejam interpostos e não tenham seu mérito apreciado pelo tribunal a quo, a parte poderá se valer do recurso especial por ofensa ao art. 535 do CPC, desde que o acórdão padeça de alguns dos vícios descritos no art. 535188. Discute-se sobre a necessidade de o prequestionamento abranger também a indicação do dispositivo constitucional ou de lei federal violado no acórdão recorrido. Assevera Araken de Assis que “o ‘prequestionamento numérico’ é supérfluo” 189. Isso não deve, por óbvio, ser confundido com a exigência de o recorrente ter de indicar, de forma expressa no recurso excepcional, o dispositivo entendido como violados190.

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“A não ser assim, o STF e o STJ estariam a dirimir quaestiones iuris em primeira mão, como se atuassem em competência originária!” (MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Recurso extraordinário e recurso especial. 11. ed. São Paulo, 2010, p. 115). Ainda Dinamarco, ao conceituar prequestionamento afirma que “Questionar é, pois, manifestar dissenso quanto a um ponto de fato ou de direito. Esses conceitos concorrem para o entendimento de que um tema de direito federal suscitado no acórdão local ou um preceito federal sequer cogitado e muito menos descumprido não podem servir de fundamento à devolução do caso ao Supremo Tribunal Federal ou ao Superior Tribunal de Justiça mediante o recurso extraordinário ou especial – simplesmente porque, se não se levantou questão em torno de um ponto contido no ordenamento jurídico federal, transgredido não pode ter ficado esse ponto de direito, ou seja, uma norma contida no ordenamento da nação”. (DINAMARCO, Cândido Rangel. Fundamentos do processo civil moderno. vol. II. 6. ed. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 1.032-1.033 – grifos no original) 185 Súmula 320 do STJ: “A questão federal somente ventilada no voto vencido não atende ao requisito do prequestionamento”. 186 ASSIS, Araken de. Manual dos recursos. 4. ed. São Paulo: RT, 2012, p. 746 187 MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Recurso extraordinário e recurso especial. 9. ed. São Paulo, 2006, p. 125 188 STJ. Corte Especial. EREsp. 1.069.897-AM, rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, j. 24.11.2011, v.u. 189 ASSIS, Araken de. Manual dos recursos. 4. ed. São Paulo: RT, 2012, p. 745 190 Vale, por fim, destacar quanto ao prequestionamento a conclusão a que chegou Dinamarco quanto à exigência do prequestionamento, afirmando que “[...] o radical acirramento da exigência de prequestionar só tem sentido lógico e coerência sistemática quando associado àquela premissa de que o recurso especial e o extraordinário não guardariam relação alguma com a justiça das decisões [...]”.(DINAMARCO, Cândido

70 Em razão de os tribunais superiores só analisarem via recursos excepcionais as questões de direito, não realizando reexame dos autos, destaca Teresa Wambier a importância de os principais fatos para a apreensão do caso estarem presentes no acórdão prolatado pelo tribunal a quo. Se o caso, por exemplo, envolver a inadequação dos fatos ao que foi decidido, não há como não se verificar os fatos, mas essa análise não envolverá o reexame de provas. Os fatos principais para a adequação do caso à lei deverão constar do acórdão, o que também justifica a interposição dos embargos de declaração com fins de prequestionamento191. Se a questão de direito tiver sido tratada apenas no voto vencido, não houve prequestionamento, sendo necessário interpor embargos de declaração192. Verifica-se, na análise do prequestionamento, a existência de discussão sobre o prequestionamento

implícito

e

prequestionamento

explícito,

bem

como

sobre

o

prequestionamento ficto. O prequestionamento explícito significa que a matéria objeto de recurso pode ser identificada na decisão recorrida193. Quando a decisão não estiver tão clara, faz-se necessária a interposição dos embargos de declaração. Segundo Cassio Scarpinella foi a partir dai que surgiu o prequestionamento ficto, sendo editado enunciado de súmula 356 do STF, mencionando que a simples interposição de embargos de declaração seria suficiente para que a matéria fosse prequestionada, independentemente do resultado do julgado194. Esse enunciado, que é da década de 1960 está em sentido divergente do enunciado 211 do STJ. Ao se analisar os enunciados de súmula 356 do STF e 211 do STJ verifica-se certa contrariedade no tocante ao prequestionamento. De acordo com o enunciado 356 do STF, o prequestionamento pode ser ficto, ou seja, basta a interposição dos embargos de declaração perante o tribunal local para que a matéria tenha sido considerada como prequestionada, independentemente de o tribunal local apreciar os embargos de declaração ou não. Na outra

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Rangel. Fundamentos do processo civil moderno. vol. II. 6. ed. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 1.038-1.039) – grifos no original) “Por isso é que cabe à parte, exercendo legitimamente sua atividade de prequestionar, isto é, fazer constar da decisão a questão federal ou a questão constitucional, pleitear do órgão a quo que faça também constar do acórdão circunstâncias fáticas aptas a demonstrar, pela mera leitura da decisão recorrida, que a solução normativa pela qual se optou na decisão impugnada (pela via do recurso extraordinário ou do recurso especial) está equivocada, estando-se, pois, assim, em face de uma ilegalidade ou de uma inconstitucionalidade. (WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Recurso Especial, recurso extraordinário e ação rescisória. 2. ed. São Paulo: RT, 2009, p. 404 – grifos no original) Súmula 320 do STJ. BUENO, Cassio Scarpinella. Curso Sistematizado de Direito Processual Civil. vol. 5. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 242 BUENO, Cassio Scarpinella. Curso Sistematizado de Direito Processual Civil. vol. 5. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 244

71 esteira, todavia, verificamos o enunciado 211 do STJ, que afirma haver a necessidade de um prequestionamento real, ou seja, não basta a interposição do recurso de embargos de declaração. Faz-se necessário também que o tribunal aprecie a questão. Se o tribunal local não apreciar os embargos de declaração, a parte poderá até interpor o recurso especial, mas com fundamento na ofensa ao art. 535 do CPC (desde que realmente tenha havido algumas das hipóteses para cabimento dos embargos de declaração, pois se a questão federal não foi suscitada a omissão foi da parte e não do judiciário).

4.3.1.2 Repercussão geral das questões constitucionais

O requisito da repercussão geral da questão constitucional foi introduzido no direito pátrio por meio da Emenda Constitucional 45 de 8 de dezembro de 2004195, sendo este mais um requisito de admissibilidade do recurso extraordinário (não se aplicando ao especial)196. Apesar desse requisito não ser aplicado ao recurso especial, vale destacar que Teresa Wambier já afirmara que o legislador constituinte poderia também ter mantido a repercussão geral para o recurso especial197. Segundo o § 3º do art. 102 o recorrente deverá demonstrar a repercussão geral das questões constitucionais discutidas no caso. O Tribunal somente poderá negar admissibilidade ao extraordinário pelo voto de 2/3 (oito Ministros) de seus membros. Diante da função uniformizadora dos tribunais superiores, parece-nos útil a utilização da repercussão geral como filtro para a interposição dos recursos excepcionais (apesar de apenas ser vigente para o STF). Se o interesse nos recursos extraordinários é de âmbito nacional, não podem os Tribunais Superiores ficar resolvendo pequenas contendas, nas quais a causa jurídica sub judice não trará repercussão para a sociedade.

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A necessidade de restrição dos casos que devam ser apreciados pelo STF não é tema novo. Levi Carneiro e o Min. Filadelfo Azevedo já alertavam para a necessidade de restrição de casos que deveriam ser apreciados pela mais alta corte do país, em razão da necessidade de haver um equilíbrio entre qualidade dos jugados e quantidade destes (BUZAID, Alfredo. A crise do supremo tribunal federal. Revista de direito processual civil. ano III. vol. 6. Saraiva: São Paulo, 1962, p. 41) O Pleno do STJ, contudo, aprovou proposta de encaminhamento ao Congresso Nacional de texto visando a edição de Emenda Constitucional, criando o requisito da repercussão geral também para o STJ (noticiado em 05/03/2012 no sítio do STJ). Disponível em: http://www.stj.jus.br/portal_stj/publicacao/engine.wsp?tmp.area=398&tmp.texto=104922 acesso em 05.03.2012, às 23h20. WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Recurso Especial, recurso extraordinário e ação rescisória. 2. ed. São Paulo: RT, 2009, p. 290

72 Independentemente de a criação da repercussão ter surgido ou não da sobrecarga de trabalho no STF, o certo é que esse filtro pode ter seu lado positivo, qual seja: a diminuição da carga de trabalho poderá trazer maior qualidade aos julgados proferidos pela Corte (ao menos é o que se espera)198. Como a redação do § 3º do art. 102 afirmava que a repercussão precisaria ser demonstrada nos termos da Lei, entendeu-se que a norma constitucional possuía eficácia limitada, dependendo da edição de lei federal que explicitasse o que poderia ser entendido por repercussão geral. Em 20.12.2006 foi publicada a Lei 11.418 (com vacacio legis de 60 dias) que incluiu ao CPC os artigos 543-A e 543-B, prevendo no primeiro dos dispositivos citados o que seria repercussão geral: “§ 1º. Para efeito da repercussão geral, será considerada a existência, ou não, de questões relevantes do ponto de vista econômico, político, social ou jurídico, que ultrapassem os interesses subjetivos da causa”199. Nelson e Rosa Nery afirmam que a repercussão geral é um conceito legal indeterminado200. Arruda Alvim afirma que ela deve dizer respeito [...] a um grande espectro de pessoas ou a um largo segmento social, uma decisão sobre assunto constitucional impactante, sobre tema constitucional muito controvertido, em relação a decisão que contrarie decisão do STF; que diga respeito à vida, à liberdade, à federação, à invocação do princípio da proporcionalidade (em relação à aplicação do texto constitucional) etc.; ou

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Defendendo a repercussão geral: WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Recurso Especial, recurso extraordinário e ação rescisória. 2. ed. São Paulo: RT, 2009, p. 291: “[...] pensamos que o instituto se justifica por ser realmente capaz de gerar jurisdição de melhor qualidade. As decisões do STF tenderão a ser paradigmáticas e, por conseguinte, a jurisprudência deste Tribunal terá mais visibilidade, podendo, então, exercer de modo mais firme sua função paradigmática”. 199 Em pesquisa no sítio do STF foi possível encontrar a análise de 559 temas, sendo que destes, 143 não tiveram sua repercussão geral reconhecidas: http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudenciaRepercussao/listarProcesso.asp acesso em 25.06.2012, às 12h10. A guisa de exemplo, já se decidiu que não têm repercussão geral: a redução da multa prevista no art. 461, § 6º, do CPC (RE 556385-MT); a indenização por danos morais em decorrência de manipulação de resultados de partidas de futebol (RE 565.138-BA); Vício de iniciativa para criação de lei que obriga o DF a instalar semáforos com dispositivos de acionamento pelos próprios pedestres (RE 565.506-7-DF). Por outro lado, já se manifestou a Corte Suprema sobre a repercussão geral nos seguintes casos, dentre outros: Base de cálculo do PIS e da COFINS sobre a importação (RE 559.607); Reserva de lei complementar para legislar sobre prazo prescricional em matéria de contribuição previdenciária (RE 560.626); Termo a quo do prazo prescricional em relação a tributos sujeitos à homologação (RE 566.621); Penhorabilidade do bem de família do fiador no contrato de locação (RE 612.360). 200 NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de Processo Civil Comentado e legislação extravagante. 11. ed. São Paulo: RT, 2010, p. 979

73 ainda, outros valores conectados a Texto Constitucional que se alberguem debaixo da expressão repercussão social201.

Vale ressaltar que a repercussão geral não se confunde com a arguição de relevância que era previsto no revogado art. 308 do Regimento Interno do STF. A arguição de relevância não mais existe. Ela visava questões federais na vigência da Constituição Federal de 1969202, dependia da instauração de incidente para sua verificação. A arguição de relevância dependia de um juízo positivo de 4 Ministros203 e seu julgamento era de ordem subjetiva e, num primeiro momento, independia de qualquer fundamentação204. Difere-se da repercussão geral, pois o recurso, em princípio, será analisado pela Corte, só podendo ser rejeitado pelo voto de 8 Ministros. Além disso, a competência para determinar qual tema tem repercussão geral foi dada à Lei (e não ao STF como acontecia na arguição de relevância)205. Pode ser citado como origem da repercussão geral o writ of certiorari do direito norteamericano. De acordo com a Rule 10 das Rules of the Supreme Court206 não se garante o direito a esse instrumento. Não pode o writ of certiorari ser considerado um direito da parte e sim um “privilégio”207. Ainda no direito estrangeiro, também é possível verificar tal exigência no direito Argentino208. Segundo Eduardo Oiteza, a ideia de se criar esse filtro ao recurso extraordinário 201 202

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ARRUDA ALVIM, José Manoel. A EC n. 45 e o instituto da repercussão geral. In: WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. (Org.). Reforma do Judiciário. Revista dos Tribunais, 2005, p. 63 Tendo sido inserida em 1975 por meio de alteração do Regimento Interno do STF (LAMY, Eduardo de Avelar. Repercussão geral no recurso extraordinário: a volta da argüição de relevência? In: WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. (Org.). Reforma do Judiciário. Revista dos Tribunais, 2005, p. 178) ASSIS, Araken de. Manual dos recursos. 4. ed. São Paulo: RT, 2012, p. 752 SANTOS, Ernane Fidélis dos. Manual de direito processual civil. vol. 1. 13. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 689 NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de Processo Civil Comentado e legislação extravagante. 11. ed. São Paulo: RT, 2010, p. 979 Rule 10. “Considerations Governing Review on Certiorari Review on a writ of certiorari is not a matter of right, but of judicial discretion. A petition for a writ of certiorari will be granted only for compelling reasons. The following, although neither controlling nor fully measuring the Court’s discretion, indicate the character of the reasons the Court considers: (a) a United States court of appeals has entered a decision in conflict with the decision of another United States court of appeals on the same important matter; has decided an important federal question in a way that conflicts with a decision by a state court of last resort; or has so far departed from the accepted and usual course of judicial proceedings, or sanctioned such a departure by a lower court, as to call for an exercise of this Court’s supervisory power; (b) a state court of last resort has decided an important federal question in a way that conflicts with the decision of another state court of last resort or of a United States court of appeals; (c) a state court or a United States court of appeals has decided an important question of federal law that has not been, but should be, settled by this Court, or has decided an important federal question in a way that conflicts with relevant decisions of this Court. A petition for a writ of certiorari is rarely granted when the asserted error consists of erroneous factual findings or the misapplication of a properly stated rule of law”. ABRAHAM, Henry J. Apud ASSIS, Araken de. Manual dos recursos. 4. ed. São Paulo: RT, 2012, p. 752 Art. 280 do CPC Argentino: “Art. 280.- Llamamiento de autos. Rechazo del recurso extraordinario. Memoriales en el recurso ordinario. Cuando la Corte Suprema conociere por recurso extraordinario, la

74 no direito argentino teria surgido em 1959, mas somente passou a ter previsão legal em 1990 com a alteração da redação do art. 280 do CPC daquele país209. Quanto ao momento de verificação da repercussão geral da questão constitucional, devemos destacar que trata-se de requisito de admissibilidade, mas que precisa ser decidido por um número mínimo de Ministros (2/3 para rejeitar a repercussão geral). Diante dessa situação, por uma questão de lógica, apenas após a análise dos demais requisitos de admissibilidade é que a Corte deverá analisar a presença de repercussão geral, sob pena de fazer com que a Corte se reúna para decidir pela existência de repercussão geral para, posteriormente, a Corte acabar rejeitando o recurso pela ausência de tempestividade, por exemplo210. Em que pese o juízo a quo tenha competência para analisar os demais requisitos de admissibilidade, excetuando-se a repercussão geral, pode ocorrer de o Tribunal a quo admitir o extraordinário mesmo com a ausência de algum requisito. Por isso, parece-nos mais sensato que a repercussão geral seja o último dos requisitos de admissibilidade a ser verificado pela Turma ou Plenário211. A repercussão geral é presumida, somente podendo ser afastada pela maioria qualificada em sentido contrário (art. 324 do RISTF). De acordo com recente alteração ao regimento interno do STF, todavia, nos casos de o Ministro afirmar que a matéria seja infraconstitucional, poderá haver ausência de repercussão tácita (§ 2º, do art. 324). Por fim, não se admite recurso contra a decisão que reconheceu a ausência de repercussão geral. Caberá apenas a interposição de embargos de declaração212. Verificada a recepción de la causa implicará el llamamiento de autos. La Corte, según su sana discreción, invocando esta norma y con adecuada fundamentación, podrá rechazar el recurso extraordinario, por falta de agravio federal suficiente, por manifiesta inadmisibilidad o cuando las cuestiones planteadas resultaren insustanciales o carentes de trascendencia. No procederá el rechazo aludido si cuatro de los jueces que integran el Tribunal se pronuncian por la admisibilidad del recurso extraordinario. Tampoco se lo podrá denegar si la Procuración General se expidiera a favor del recurrente”. 209 Ainda, segundo o autor: “La cantidad de casos ingresados anualmente al Alto Tribunal justifica la generación de anticuerpos, que le permitan cumplir con su missión seriamente y no quedar sepultado en la ineficiencia”. OITEZA, Eduardo. El certiorari o el uso de la discrecionalidad por la Corte Suprema de la Nación sin um rumbo preciso. Revista Jurídica de La Universidad de Palermo. ano 3. Vol. 1, 1998, disponível em: http://www.palermo.edu/derecho/revista_juridica/acerca_revista.html acesso em 14.05.2012 às 12h00 210 Art. 323 do RISTF. No mesmo sentido: ASSIS, Araken de. Manual dos recursos. 4. ed. São Paulo: RT, 2012, p. 755-756. Em sentido contrário: NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de Processo Civil Comentado e legislação extravagante. 11. ed. São Paulo: RT, 2010, p. 980 211 Nesse sentido: ASSIS, Araken de. Manual dos recursos. 4. ed. São Paulo: RT, 2012, p. 755 212 NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de Processo Civil Comentado e legislação extravagante. 11. ed. São Paulo: RT, 2010, p. 979

75 ausência de repercussão geral, os recursos sobrestados não serão admitidos pelo próprio tribunal local213. Se, por outro lado, o STF entender que há repercussão geral, apreciará os recursos demonstrativos da controvérsia e os julgará. Aos Tribunais inferiores, onde os demais recursos foram sobrestados competirá reapreciar o caso, levando em consideração o que foi decidido pela Corte Suprema. De acordo com a dicção do § 4º do art. 543-B do CPC, o Tribunal local poderá manter a decisão em sentido contrário ao que foi estabelecido pelo STF. Caso isso ocorra e seja o recurso extraordinário contra essa decisão admitido na origem, os autos subirão ao STF, que poderá cassar ou reformar a decisão. Isso significa que a decisão do STF nos casos repetitivos não tem eficácia vinculante, mas deve ser obedecida pelos Tribunais inferiores, os quais poderão até manter a decisão em sentido contrário, desde que o façam de forma fundamentada, explicando por que aquele caso não pode ser entendido da mesma forma como os que foram apreciados pela Corte Suprema. Para que houvesse eficácia vinculante, de acordo com o sistema vigente, o STF precisaria proceder à edição de enunciado de súmula vinculante, obedecidos os pressupostos para sua elaboração.

4.3.2 Hipóteses de cabimento dos recursos excepcionais

As hipóteses de cabimento do recurso extraordinário estão dispostas no art. 102, III, alíneas “a” até “d”, da Constituição Federal. Em relação ao recurso especial, suas hipóteses de cabimento estão previstas no art. 105, III, alíneas “a” até “c”, também da Constituição Federal. Todas as hipóteses de cabimento do extraordinário se voltam para ofensa ao texto constitucional. A primeira delas cuida da ofensa porque o provimento impugnado contraria o texto da Lei Maior. A amplitude do verbo contrariar abrange toda e qualquer interpretação errônea ao texto constitucional214.

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Segundo Teresa Arruda Alvim Wambier essa decisão do STF sobre a existência ou não de repercussão geral terá eficácia vinculante, devendo o órgão a quo se ater a essa decisão. (WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Recurso Especial, recurso extraordinário e ação rescisória. 2. ed. São Paulo: RT, 2009, p. 305-306) Rodolfo de Camargo Mancuso, relacionando o verbo contrariar com o termo utilizado por constituições anteriores “negar vigência” destaca que: “[...] ‘contrariar’ um texto tem um senso mais largo e abrangente do

76 Barbosa Moreira afirma que o emprego do verbo contrariar acaba levando ao próprio mérito do recurso e não a uma mera etapa do juízo de admissibilidade. Por essa razão que o STF até mesmo entendia que no caso da alínea “a” só seria possível conhecer do recurso para dar-lhe provimento. Não é essa, porém a interpretação do dispositivo que vige naquela Corte. Basta a alegação de forma adequada da contrariedade ao texto constitucional para o juízo de admissibilidade215. Como bem destaca Rodolfo de Camargo Mancuso, essa verificação é feita “in statu assertionis”216. A segunda hipótese de cabimento do extraordinário (declarar a inconstitucionalidade de tratado ou de lei federal) também envolve a interpretação e aplicação da Constituição. A lei federal, a partir do momento em que entra em vigor, tem sua constitucionalidade presumida. A inconstitucionalidade da lei deve ser verificada pelo Judiciário, podendo ser feita por qualquer magistrado. Não obstante, a última palavra sobre a interpretação da Constituição deve ser dada pelo STF. Por isso do cabimento do recurso nessa hipótese. Se a decisão do juiz local ao aplicar a lei, entendê-la constitucional, não caberá recurso extraordinário (ao menos não por essa alínea, podendo ser cabível por outra – art. 102, III, a, por exemplo), porque como dito, as leis se presumem constitucionais, o que não afronta a constituição. Ao ser julgada, incidenter tantum a inconstitucionalidade de uma lei por um juiz de primeira instância, a parte poderá recorrer da decisão para o Tribunal. O juiz pode, monocraticamente, deixar de aplicar uma lei porque entende inconstitucional. Já nos casos dos Tribunais, como visto alhures, há a regra do full bench (cláusula de reserva de plenário),

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que ‘negar-lhe vigência’. A extensão daquele primeiro termo é maior, chegando mesmo a abarcar, em certa medida, o outro; depois, a compreensão dessas locuções é diversa: ‘contrariar’ tem uma conotação mais difusa, menos contundente; já ‘negar vigência’ sugere algo mais restrito, mais rígido”. (MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Recurso extraordinário e recurso especial. 11. ed. São Paulo, 2010, p. 216) “[...] II. Recurso extraordinário: letra a: alteração da tradicional orientação jurisprudencial do STF, segundo a qual só se conhece do RE, a, se for para dar-lhe provimento: distinção necessária entre o juízo de admissibilidade do RE, a - para o qual é suficiente que o recorrente alegue adequadamente a contrariedade pelo acórdão recorrido de dispositivos da Constituição nele prequestionados - e o juízo de mérito, que envolve a verificação da compatibilidade ou não entre a decisão recorrida e a Constituição, ainda que sob prisma diverso daquele em que se hajam baseado o Tribunal a quo e o recurso extraordinário [...]”. (STF. Pleno. RE 298.695-SP, rel. Min. Sepúlveda Pertence, j. 06.08.2003). No mesmo sentido: ASSIS, Araken. Manual dos recursos. 4. ed. São Paulo: RT, 2012, p. 763 MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Recurso extraordinário e recurso especial. 11. ed. São Paulo, 2010, p. 219

77 ou seja, a Câmara ou Turma não poderão declarar a inconstitucionalidade da lei ou do tratado. Somente o plenário ou Órgão Especial é que poderá assim proceder217. Na terceira hipótese, fala-se em julgar válido lei local ou ato de governo local contestado em face da Constituição Federal. Se o ato ou a lei local for considerada inconstitucional pelo governo local não caberá o extraordinário (ao menos não por essa hipótese, sendo cabível pela hipótese prevista no art. 102, III, “a”). A última hipótese de cabimento do extraordinário decorreu de alteração da Constituição pela Emenda Constitucional nº 45. Antes dessa emenda, a decisão que julgava válida lei local contestada perante lei federal era considerada como hipótese de cabimento de recurso especial218. Com acerto, tal hipótese foi encartada como caso de cabimento do extraordinário e não mais do recurso especial. E isso se explica porque não há hierarquia entre leis locais e leis federais. A análise da distribuição constitucional de competências não é matéria de competência do STJ e sim do STF, pois trata-se de conflito federativo saber que ente político tem competência para legislar sobre o quê. Se a matéria objeto da legislação for de competência privativa da União, a lei local será declarada inconstitucional. Se for matéria de competência concorrente entre União e Estados, é preciso verificar se a lei local invadiu a competência da legislação federal (na estipulação de normas gerais) ou se foi a lei federal que avançou sobre a competência que seria atribuída aos Estados. Nos casos de recurso especial, todas as hipóteses de cabimento estão ligadas, de alguma forma, à ofensa da lei federal. A primeira delas prevê o cabimento do recurso quando a decisão recorrida contrariar tratado federal ou lei federal, ou ainda, quando negar vigência a tais diplomas. Vale aqui uma primeira ressalva: Nos casos de tratados internacionais que versem sobre direitos humanos aprovados pelo Congresso Nacional com quórum qualificado (três quintos) em dois turnos, os tratados internacionais terão estatura de norma constitucional. Nesses casos, se a decisão de última ou única instância contrariar esses tratados ou negar-lhes vigência, será o caso de recurso extraordinário (na hipótese da alínea

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Súmula Vinculante nº 10. “Viola a cláusula de reserva de plenário (cf, artigo 97) a decisão de órgão fracionário de tribunal que, embora não declare expressamente a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do poder público, afasta sua incidência, no todo ou em parte”. Eis a redação anterior do art. 105, III, “b” que previa a possibilidade de recurso especial dentre outras, na seguinte hipótese: “julgar válida lei ou ato de governo local contestado em face de lei federal”.

78 “a” do art. 102, III, se a decisão contrariou a CF, ou com fundamento na alínea “b” do mesmo artigo e inciso se a decisão declarar a inconstitucionalidade do tratado)219. Se a decisão contrariar direito local, não será o caso de cabimento do especial. O mesmo vale para ofensa a regimento de Tribunal local220. Na função uniformizadora do Tribunal, não poderá haver duas possíveis interpretações para casos análogos. Uma delas estará em desacordo com a lei. Uma delas contrariará o direito federal. Por esta razão, entendemos como não aplicável a Súmula 400 do STF221. 219

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Até a presente data o único documento aprovado adotando-se o procedimento do art. 5º, § 3º, da CF foi a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, assinado em Nova York em 30.03.2007 (aprovado pelo Congresso pelo Decreto Legislativo nº 186, de 2008). Acrescenta-se que há discussão sobre a natureza dos tratados sobre direitos humanos aprovados anteriormente à EC 45/2004. Se suas normas teriam hierarquia constitucional ou legal. No HC 466.343-SP o pleno do STF, por maioria, deu status de norma supralegal à Convenção Interamericana de Direitos Humanos. Súmula 399 do STF: “Não cabe recurso extraordinário, por violação de lei federal, quando a ofensa alegada for a regimento de tribunal”. “PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO RESCISÓRIA. VIOLAÇÃO À LEI FEDERAL. MATÉRIA CONTROVERTIDA NOS TRIBUNAIS À ÉPOCA DA PROLAÇÃO DA DECISÃO RESCINDENDA. JURISPRUDÊNCIA DO STJ EM SENTIDO CONTRÁRIO. SÚMULA 343/STF. NÃO-APLICAÇÃO. REVISÃO DA JURISPRUDÊNCIA A RESPEITO. 1. A súmula 343/STF, editada antes da Constituição de 1988, tem origem na doutrina (largamente adotada à época, inspiradora também da súmula 400/STF) da legitimidade de interpretação razoável da norma, ainda que não a melhor, permitindo assim que a respeito de um mesmo preceito normativo possa existir mais de uma interpretação e, portanto, mais de um modo de aplicação. 2. Ao criar o STJ e lhe dar a função essencial de guardião e intérprete oficial da legislação federal, a Constituição impôs ao Tribunal o dever de manter a integridade do sistema normativo, a uniformidade de sua interpretação e a isonomia na sua aplicação. O exercício dessa função se mostra particularmente necessário quando a norma federal enseja divergência interpretativa. Mesmo que sejam razoáveis as interpretações divergentes atribuídas por outros tribunais, cumpre ao STJ intervir no sentido de dirimir a divergência, fazendo prevalecer a sua própria interpretação. Admitir interpretação razoável, mas contrária à sua própria, significaria, por parte do Tribunal, renúncia à condição de intérprete institucional da lei federal e de guardião da sua observância. 3. Por outro lado, a força normativa do princípio constitucional da isonomia impõe ao Judiciário, e ao STJ particularmente, o dever de dar tratamento jurisdicional igual para situações iguais. Embora possa não atingir a dimensão de gravidade que teria se decorresse da aplicação anti-isonômica da norma constitucional, é certo que o descaso à isonomia em face da lei federal não deixa de ser um fenômeno também muito grave e igualmente ofensivo à Constituição. Os efeitos da ofensa ao princípio da igualdade se manifestam de modo especialmente nocivos em sentenças sobre relações jurídicas de trato continuado: considerada a eficácia prospectiva inerente a essas sentenças, em lugar da igualdade, é a desigualdade que, em casos tais, assume caráter de estabilidade e de continuidade, criando situações discriminatórias permanentes, absolutamente intoleráveis inclusive sob o aspecto social e econômico. Ora, a súmula 343 e a doutrina da tolerância da interpretação razoável nela consagrada têm como resultado necessário a convivência simultânea de duas (ou até mais) interpretações diferentes para o mesmo preceito normativo e, portanto, a cristalização de tratamento diferente para situações iguais. Ela impõe que o Judiciário abra mão, em nome do princípio da segurança, do princípio constitucional da isonomia, bem como que o STJ, em nome daquele princípio, também abra mão de sua função nomofilácica e uniformizadora e permita que, objetivamente, fique comprometido o princípio constitucional da igualdade. 4. É relevante considerar também que a doutrina da tolerância da interpretação razoável, mas contrária à orientação do STJ, está na contramão do movimento evolutivo do direito brasileiro, que caminha no sentido de realçar cada vez mais a força vinculante dos precedentes dos Tribunais Superiores. 5. Por todas essas razões e a exemplo do que ocorreu no STF em matéria constitucional, justifica-se a mudança de orientação em relação à súmula 343/STF, para o efeito de considerar como ofensiva a literal disposição de lei federal, em ação rescisória, qualquer interpretação contrária à que lhe atribui o STJ, seu intérprete institucional. A existência de interpretações divergentes da norma federal, antes de inibir a intervenção do STJ (como recomenda a súmula), deve, na verdade, ser o móvel propulsor para o exercício do seu papel de uniformização. Se a

79 Também não se poderá utilizar como paradigma julgado do mesmo tribunal local, prolator da decisão atacada, pois para se uniformizar o entendimento do tribunal local há o incidente de uniformização de jurisprudência, razão pela qual não é admitido o recurso especial nessa hipótese222. Se o STJ já tiver se posicionado num determinado sentido, só poderá haver recurso especial com fundamento na alínea “c” do permissivo constitucional se a decisão atacada tiver sido exarada em sentido oposto ao posicionamento do STJ. Caso a decisão atacada tenha sido prolatada no mesmo sentido firmado pelo STJ, essa decisão não poderá ser atacada (ao menos não no tocante à divergência jurisprudencial, pois esta já não mais ocorrera)223. E isso justifica-se: se a última palavra na interpretação da lei federal é do STJ e esse já fez a interpretação correta, passível de recurso seria a decisão utilizada como paradigma pelo recorrente e não a decisão recorrida, por esta estar de acordo com o posicionamento adotado pelo STJ.

4.3.3 Recursos Excepcionais representativos de controvérsias

Visando dar maior vazão ao julgamento dos recursos excepcionais, diante do grande número de recursos interpostos nos tribunais superiores, houve a introdução do julgamento de recursos excepcionais por amostragem. Isso ocorreu com a alteração do Código de Processo Civil pela Lei 11.418/2007 e, posteriormente pela Lei 11.678/2008. Por meio delas foram introduzidos os art. 543-A a 543-C. O art. 543-A cuida da repercussão geral da matéria constitucional, que já foi tratada anteriormente. O art. 543-B trata do julgamento por

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divergência interpretativa é no âmbito de tribunais locais, não pode o STJ se furtar à oportunidade, propiciada pela ação rescisória, de dirimi-la, dando à norma a interpretação adequada e firmando o precedente a ser observado; se a divergência for no âmbito do próprio STJ, a ação rescisória será o oportuno instrumento para uniformização interna; e se a divergência for entre tribunal local e o STJ, o afastamento da súmula 343 será a via para fazer prevalecer a interpretação assentada nos precedentes da Corte Superior, reafirmando, desse modo, a sua função constitucional de guardião da lei federal. 6. Recurso especial provido. (STJ. 1ª Turma. REsp. 1.026.234-DF. Rel. Min. Teori Albino Zavascki, j. 27.05.2008, v.u.) Súmula 369 do STF: “Julgados do mesmo tribunal não servem para fundamentar o recurso extraordinário por divergência jurisprudencial”. Sumula 13 do STJ: “A divergência entre julgados do mesmo tribunal não enseja recurso especial”. Súmula 286 do STF: “Não se conhece do recurso extraordinário fundado em divergência jurisprudencial, quando a orientação do plenário do supremo tribunal federal já se firmou no mesmo sentido da decisão recorrida”. Súmula 83 do STJ: “Não se conhece do recurso especial pela divergência, quando a orientação do tribunal se firmou no mesmo sentido da decisão recorrida”.

80 amostragem do recurso extraordinário e o art. 543-C do julgamento por amostragem do recurso especial. Segundo Fredie Didier e Leonardo Cunha, o julgamento diferenciado desses recursos decorre do princípio da adequação, impondo tratamento diferenciado para julgamento de causas de massa224. Podemos, todavia, elencar outros princípios, como o da razoável duração do processo, da isonomia e da segurança jurídica. Para a constatação da “idêntica questão de direito” e dos “recursos representativos da controvérsia”, é exigida apenas a “multiplicidade de recursos sobre um mesmo tema jurídico”225. De acordo com o CPC, o processamento dos recursos extraordinários “com fundamento em idêntica controvérsia” será regulado pelo regimento interno do STF. Este, por sua vez, prevê que o presidente ou o relator, no STF, poderá, a requerimento ou de ofício, comunicar as instâncias ordinárias para o encaminhamento de recursos representativos da controvérsia e sobrestamento dos demais. Isso será feito se o Presidente do tribunal de origem não tiver selecionado o(s) recurso(s) representativo(s) de controvérsia e sobrestado os demais com trâmite perante aquela justiça (federal ou estadual). Para a escolha do recurso representativo de controvérsia, o STJ firmou termo de cooperação junto aos representantes dos tribunais de segundo grau, na qual ficou definido que os recursos especiais devam ser selecionados pelos tribunais locais, levando-se em conta, além do preenchimento dos pressupostos recursais intrínsecos e extrínsecos, a maior diversidade de fundamentos, julgados divergentes dentro do próprio tribunal local, dentre outros fatores226. Sobrestados os demais recursos na origem, estes não serão admitidos na origem caso o STF decida pela inexistência de repercussão geral. Os recursos que, por ventura tenham sidos encaminhados ao STF serão devolvidos ao tribunal de origem. Em princípio não ficam 224 225 226

DIDIER JUNIOR; Fredie; CUNHA, Leonardo José Carneiro da. Curso de Direito Processual Civil. vol. 3. 9.ed. Salvador: Jus Podivm, 2011, p. 337 WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Recurso Especial, recurso extraordinário e ação rescisória. 2. ed. São Paulo: RT, 2009, p. 307 “1.2 – Os recursos especiais serão selecionados levando-se em consideração o preenchimento dos requisitos intrínsecos e extrínsecos de admissibilidade e, preferencialmente: I – a maior diversidade de fundamentos no acórdão e argumentos no recurso especial; II – a questão de mérito que puder tornar prejudicadas outras questões suscitadas no recurso; III – a divergência, se existente, entre órgãos julgadores do tribunal de origem, caso em que deverá ser observada a paridade no número de feitos selecionados; IV – a inexistência de interposição de outro recurso constitucional simultâneo no mesmo processo, que possa retardar o julgamento final da tese, na forma do artigo 543-C do CPC. 1.3 – Não será selecionado como recurso representativo da controvérsia recurso especial em que haja o risco da prescrição penal”.

81 sobrestados os recursos de agravo contra a decisão denegatória de seguimento do extraordinário227. Supondo que o Presidente do tribunal local tenha determinado a suspensão indevida de um recurso (porque ele não teria similaridade com o representativo de controvérsia, por exemplo), dúvida surge quanto à ferramenta adequada à disposição da parte para que o recurso volte a ter o seu curso normal. Fredie Didier e Leonardo Cunha entendem que a parte poderá se valer da reclamação constitucional em razão da usurpação de competência do STF, sendo admitido também agravo contra decisão denegatória de seguimento ou até mesmo medida cautelar inominada228. Teresa Wambier afirma que o recurso cabível seria o agravo do art. 544229. Ernani Fidélis, por sua vez, afirma que essa decisão seria irrecorrível230 e, de acordo com o entendimento do STF, exarado na reclamação 7.569231, a única medida cabível seria agravo interno para o próprio Tribunal local. O STJ, por sua vez, já se posicionou no sentido do não cabimento do agravo contra o sobrestamento determinado pelo presidente do tribunal a quo, porque esse sobrestamento não tem cunho decisório232. Parece-nos que o ideal não seria recurso para o tribunal local, pois a matéria deveria ser analisada pelo tribunal ad quem. Nada impede, todavia, que o recurso excepcional fique sobrestado, mesmo que indevidamente (salvo se houver prejuízo quanto ao sobrestamento, hipótese em que a parte poderia se valer de medida cautelar inominada). A parte prejudicada poderia se valer do recurso cabível quanto à decisão aplicada pelo tribunal após o julgamento do representativo

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Todavia, se a matéria objeto do agravo for a mesma versada no extraordinário, será o caso de sobrestamento do agravo: DIDIER JUNIOR; Fredie; CUNHA, Leonardo José Carneiro da. Curso de Direito Processual Civil. vol. 3. 9.ed. Salvador: Jus Podivm, 2011, p. 337 “A demonstração de que há um distinguishing ou um overruling deve ser feita perante o tribunal superior, e não perante o tribunal local. Parece mais adequado que se admita uma reclamação constitucional ao tribunal superior para que determine ao tribunal local que não mantenha o recurso sobrestado, por não versar sobre o mesmo assunto do recurso escolhido para julgamento por amostragem ou por não se lhe aplicar mais o precedente, em razão de um novo contexto fático ou normativo”. (DIDIER JUNIOR; Fredie; CUNHA, Leonardo José Carneiro da. Curso de Direito Processual Civil. vol. 3. 9.ed. Salvador: Jus Podivm, 2011, p. 338-339) WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Recurso Especial, recurso extraordinário e ação rescisória. 2. ed. São Paulo: RT, 2009, p. 308 SANTOS, Ernane Fidélis dos. Manual de direito processual civil. vol. 1. 13. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 691. Complementa, todavia, o autor que sendo julgado monocraticamente: “evidentemente poderá haver agravo de instrumento para o Supremo Tribunal Federal com fundamento na não identificação da controvérsia”. Ou seja, para este autor, somente após o julgamento do recurso sobrestado é que ele poderia adotar alguma providência. STF. Pleno. Rcl. 7.569-SP, rel. Min. Ellen Gracie, j. 19.11.2009, v.u. No caso específico, todavia, foi concedida a fungibilidade e determinado o processamento da reclamação como agravo interno. STJ, 1ª Turma. AgRg no Ag 1.255.725-DF, rel. Min. Teori Albino Zavascki, j. 01.03.2012, v.u. STJ, 2ª Turma. AgRg no REsp 1.266.921-RS, rel. Min. Mauro Campbell Marques, j. 08.11.2011, v.u.

82 de controvérsia233, afirmando que seu caso seria diferente (em razão de alguma particularidade) do recurso apreciado como representativo de controvérsia). Antes de julgar o extraordinário representativo de controvérsia, o STF fará a análise sobre a existência de repercussão geral desse recurso. Verificado que há repercussão geral, passará a julgá-lo. Todavia, não havendo repercussão geral, os demais recursos que ficaram sobrestados na origem serão considerados como não admitidos. Julgado o recurso extraordinário representativo de controvérsia, deve-se verificar quanto aos recursos sobrestados se estes foram prolatados no mesmo sentido manifestado pelo STF ou em sentido diverso. Se no mesmo sentido, o recurso será julgado prejudicado. Se o recurso sobrestado tiver sido julgado em sentido contrário ao pronunciado pelo STF no representativo de controvérsia, será o caso de o Tribunal poder se retratar234. Caso não se retrate, deverá encaminhar o recurso ao STF. Em que pese a doutrina235 afirmar que a retratação é facultatividade do tribunal a quo, a manutenção da decisão em sentido contrário ao posicionado pelo tribunal superior deve ser fundamentada, não podendo simplesmente os recursos ser encaminhados pelos tribunais às cortes superiores sem justificativa do porquê da não aplicação da tese fixada no recurso representativo de controvérsia. Deverá ser feita pelo tribunal local um distinguishing236. Verifica-se aqui uma tendência a maior obediência aos posicionamentos exarados pelas Cortes Superiores. Segundo Cassio Scarpinella Bueno, essas decisões do STF em recursos representativos de controvérsia não têm efeito vinculante, também não havendo no tocante à existência ou inexistência de repercussão geral237. Apesar de a doutrina afirmar que os recursos 233

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Supondo que o tribunal superior tenha decidido a causa em sentido contrário ao do recorrente que teve seu recurso sobrestado, este poderá, interpor agravo contra a decisão denegatória de seguimento, haja vista que o tribunal local irá denegar seguimento ao REsp (hipótese do art. 543-C, § 7º, I e do art. 543-B, § 3º). Fredie Didier e Leonardo Cunha falam num efeito regressivo, mas pouco diferente do já existente no sistema recursal brasileiro. (DIDIER JUNIOR; Fredie; CUNHA, Leonardo José Carneiro da. Curso de Direito Processual Civil. vol. 3. 9.ed. Salvador: Jus Podivm, 2011, p. 340) NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de Processo Civil Comentado e legislação extravagante. 11. ed. São Paulo: RT, 2010, p. 983; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Recurso Especial, recurso extraordinário e ação rescisória. 2. ed. São Paulo: RT, 2009, p. 306. Para estes doutrinadores somente seria obrigatória a retratação no caso de haver enunciado de súmula vinculante. STJ. Corte Especial. QO no REsp. 1.148.726-RS, rel. Min. Aldir Passarinho Junior, j. 10.12.2009 BUENO, Cassio Scarpinella. Curso Sistematizado de Direito Processual Civil. vol. 5. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 265. No mesmo sentido, dentre outros, SANTOS, Ernane Fidélis dos. Manual de direito processual civil. vol. 1. 13. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 694. Em sentido diverso, afirmando que as decisões sobre a inexistência de repercussão geral têm efeito vinculante: WAMBIER, Luiz Rodrigues; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim; MEDINA, José Miguel Garcia. Breves comentários à nova sistemática processual civil. vol. 3. São Paulo: RT, 2007, p. 251: “Vê-se, assim, que a decisão do STF tem caráter absolutamente vinculante, quando à inadmissibilidade do recurso em razão da ausência de repercussão geral. Deverá o órgão a quo, assim, ater-se ao que tiver deliberado o STF, a respeito”. (grifos no original)

83 representativos de controvérsia não terem efeito vinculante (havendo esse efeito apenas para os julgamentos de ações no controle concentrado de constitucionalidade e também para as súmulas vinculantes), constata-se que o próprio STJ afirmou que é preciso fundamentar o porquê da manutenção da decisão em sentido contrário, o que demonstra não ser mera faculdade do tribunal a quo em manter ou não a decisão em sentido contrário. Isso decorre das possibilidades dadas aos tribunais de segunda instância: manter a decisão tal como prolatada (no caso de a decisão estar em consonância com o posicionamento exarado pelo tribunal superior); reanalisar a decisão prolatada (para retratar-se ou até mesmo para mantê-la)238. A reanálise deve ser feita no caso de o acórdão recorrido estar dissonante do acórdão paradigma. Se há reanálise, necessária a fundamentação da decisão num ou noutro sentido239. Podemos até falar que não há vinculação tal como a prevista no texto constitucional, mas há um maior poder de obediência a essas decisões, paradigmáticas. Como então classificar essa obediência senão pela vinculatividade da decisão? Seria mera decorrência do princípio da celeridade, como afirmam Nery e Nery240? Como já afirmado por Sálvio de Figueiredo Teixeira ao tratar da necessidade de obediência à jurisprudência, Respeitadas as ressalvas legais, mesmo reiterada e diuturna a jurisprudência não tem força de vincular os pronunciamentos jurisdicionais. Não se justifica, no entanto, que os órgãos julgadores se mantenham renitentes à jurisprudência sumulada, cujo escopo, dentro do sistema jurídico, é alcançar a exegese que dê certeza aos jurisdicionados em temas polêmicos, uma vez que ninguém ficará seguro de seu direito ante jurisprudência incerta241. Voltaremos ao tema quando tratarmos do incidente de resolução de demandas repetitivas.

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Por óbvio que precisará haver juízo prévio de admissibilidade do recurso excepcional antes da possibilidade de o tribunal local redecidir o caso. 239 O § 3º do art. 543-B tem redação que pode levar o leitor menos desatento a entender que o tribunal local poderá reapreciar o decidido em qualquer hipótese. Deve-se considerar, contudo, que a reapreciação deverá ser feita caso a decisão recorrida esteja em desacordo com a prolatada pelo STF no representativo de controvérsia. Somente se a decisão sobrestada estiver em sentido contrário é que caberá reapreciação pelo tribunal local. Redação mais clara teve o art. 543-C, § 7. 240 “[...] embora seja mera faculdade dada pela norma comentada ao órgão do tribunal a quo que proferiu o acórdão impugnado, deverá, sempre que possível ser regra geral, evitando, assim, o envio desnecessário dos autos ao STF, em perda de tempo inadmissível em face da garantia constitucional da celeridade”. (NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de Processo Civil Comentado e legislação extravagante. 11. ed. São Paulo: RT, 2010, p. 983) 241 STJ. 4ª Turma. REsp. 14.945-0-MG. TEIXEIRA, Sálvio de Figueiredo. Código de Processo Civil anotado. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 313

84 Em razão do julgamento por amostragem, imprescindível a participação da sociedade no julgamento desses recursos, por meio do amicus curiae.

4.3.3.1 Desistência do recurso excepcional apresentado

Assunto que não deveria trazer controvérsia é a possibilidade ou não de o recorrente desistir do recurso excepcional quando seu recurso tenha sido selecionado como representativo de controvérsia. Essa questão chegou a ser enfrentada pelo STJ, que por meio de sua Corte Especial, na questão de ordem apresentada no REsp. 1.063.343-RS entendeu pela inadmissibilidade da desistência recursal: Processo civil. Questão de ordem. Incidente de Recurso Especial Repetitivo. Formulação de pedido de desistência no Recurso Especial representativo de controvérsia (art. 543-C, § 1º, do CPC). Indeferimento do pedido de desistência recursal. - É inviável o acolhimento de pedido de desistência recursal formulado quando já iniciado o procedimento de julgamento do Recurso Especial representativo da controvérsia, na forma do art. 543-C do CPC c/c Resolução n.º 08/08 do STJ. Questão de ordem acolhida para indeferir o pedido de desistência formulado em Recurso Especial processado na forma do art. 543-C do CPC c/c Resolução n.º 08/08 do STJ242

Em que pese o posicionamento da douta Corte Especial do STJ, verifica-se que a legislação processual em vigor afirma ser um ato unilateral não reptício243 do recorrente a desistência do recurso, não havendo necessidade de concordância da outra parte, nem de anuência judicial244. Não se pede desistência. Apenas se desiste245. Ainda, a desistência do recurso, diferentemente da desistência da ação, produz efeitos imediatos. Segundo Fredie Didier e Leonardo Cunha, a afetação de um julgamento ao procedimento descrito no art. 543-C fará com que surja um novo procedimento: Quando se seleciona um dos recursos para julgamento, instaura-se um novo procedimento. Esse procedimento incidental é instaurado por provocação 242 243 244 245

STJ. Corte Especial. QO no REsp. 1.063.343-RS, rel. Min. Nancy Andrighi, j. 17.12.2008, maioria. NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de Processo Civil Comentado e legislação extravagante. 11. ed. São Paulo: RT, 2010, p. 985 Art. 501 do CPC DIDIER JUNIOR; Fredie; CUNHA, Leonardo José Carneiro da. Curso de Direito Processual Civil. vol. 3. 9.ed. Salvador: Jus Podivm, 2011, p. 321

85 oficial e não se confunde com o procedimento principal recursal, instaurado por provocação do recorrente. Passa, então, a haver, ao lado do recurso, um procedimento específico para julgamento e fixação da tese que irá repercutir relativamente a vários outros casos repetitivos. [...] Este último procedimento tem uma feição coletiva, não devendo ser objeto de desistência, da mesma forma que não se admite a desistência em ações coletivas246.

A justificativa dada no julgamento da questão de ordem foi de que, após a afetação do recurso como representativo de controvérsia, a parte não poderia mais desistir de seu recurso, pois ali passara a prevalecer o interesse público. Respeitada a consideração e o voto vencedor desse julgado, parece-nos que a melhor alternativa não seja essa, até porque a parte pode ter como condição para o estabelecimento de uma transação, a desistência do recurso. O que o tribunal poderia fazer é manter o recurso afeto para apreciação da causa representativa de controvérsia, mas excluir o desistente dos efeitos dessa decisão247. Ou ainda poderia continuar a julgar a questão com base nos demais recursos selecionados. Acrescenta-se que no caso de a parte ter desistido do recurso por máfé, poder-se-ia aplicar multa por litigância de má-fé. Diante do que foi descrito, constata-se que o sistema processual hoje vigente foi criado, assim como os Tribunais Superiores foram criados para manter a uniformidade do sistema e também de interpretação e aplicação das normas federais (Constituição Federal e leis federais). Não obstante, constata-se que mesmo após a uniformização da interpretação da questão federal pelo STJ os tribunais e juízes inferiores não ficam subordinados ao que foi decidido pelo tribunal superior, ou seja: os tribunais locais poderão continuar julgando da forma como vinham julgando, mantendo assim tratamento desigual para casos semelhantes. Isso porque tanto o julgamento do recurso especial como o do recurso extraordinário não têm efeito vinculante, de acordo com nossa Constituição, sem falar que muitas vezes há julgados conflitantes dos próprios tribunais superiores248. Há, entretanto, uma tendência à formação de

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DIDIER JUNIOR; Fredie; CUNHA, Leonardo José Carneiro da. Curso de Direito Processual Civil. vol. 3. 9.ed. Salvador: Jus Podivm, 2011, p. 321 Assim já se manifestou Cândido Rangel Dinamarco em arguição à candidato a mestrado na PUC-SP em banca realizada em 15.12.2012. No mesmo sentido: DIDIER JUNIOR; Fredie; CUNHA, Leonardo José Carneiro da. Curso de Direito Processual Civil. vol. 3. 9.ed. Salvador: Jus Podivm, 2011, p. 321-322 Não são poucos os casos em que as Cortes Superiores formam um posicionamento e que a doutrina de modo quase uníssono critica tais decisões. A exemplo dos limites territoriais para a formação da coisa julgada, da restrição da tutela antecipada contra a Fazenda Pública. Não poderia um juiz, fundamentando sua decisão nos mais variados doutrinadores e, diante da peculiaridade do caso, julgar de forma contrária ao que foi decidido

86 precedentes e à obediência a estes. O julgamento de recursos excepcionais por amostragem é clara amostra dessa tendência.

4.4 Os Embargos de Divergência

Ainda no intuito de manter a uniformidade da interpretação das normas aos casos concretos, o sistema prevê os Embargos de Divergência, de aplicação no âmbito dos Tribunais Superiores. Esse instituto e o incidente de uniformização de jurisprudência talvez sejam os mais importantes institutos previstos no CPC desde sua entrada em vigor para a criação de precedentes capazes de gerar alto efeito persuasivo, diante da eliminação das divergências internas e pacificação da questão jurídica no âmbito do Tribunal. Trata-se de um recurso interposto perante os Tribunais Superiores249, tendo por finalidade uniformizar a jurisprudência interna do Tribunal Superior. Assim como os recursos extraordinário e especial, esse recurso não se presta para a tutela do direito subjetivo, mas sim do direito objetivo. A proteção é do sistema jurídico250. A doutrina é quase que uníssona em afirmar que a finalidade desse recurso é a uniformização dos julgados dissonantes dentro do próprio Tribunal. Seu objetivo imediato é a uniformização. Seu objetivo mediato ou secundário é reformar/anular o acórdão embargado251.

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pelas Cortes Superiores? Parece-nos que sim. Essa é a função do magistrado. Se diante do caso concreto a peculiaridade demonstrar a necessidade de decisão noutro sentido, o julgador deverá exercer seu papel. O que ele não pode é, por simples capricho querer julgar de forma diferente sem razão plausível para tanto. Será abordado no presente trabalho os embargos de divergência perante o STJ e o STF, deixando claro que há a previsão de embargos de divergência junto ao TST, mas que não será abordado nesse trabalho. PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Comentários ao Código de Processo Civil. Tomo VIII. 2. ed. atualizada por Sérgio Bermudes. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 193. FREIRE, Rodrigo da Cunha Lima. Embargos de Divergência em Recurso Especial e em Recurso Extraordinário. Tese (Doutoramento em Direito das Relações Sociais) – PUC-SP. São Paulo, 2004, p. 19. Destaca Rodrigo da Cunha Lima Freire, citando Rodolfo de Camargo Mancuso, que o dissenso entre órgãos de um mesmo Tribunal é inevitável, por isso, “compreensível, mas não desejável” tal dissenso, pois vulnera a igualdade; a segurança jurídica, a estabilidade e a previsibilidade que se espera do direito; a respeitabilidade do Poder Judiciário e o princípio da economia processual.

87 Esse recurso serve para que os temas apreciados sejam pacificados, mostrando a todos como a Corte, que apesar de ser dividida, julga as matérias, dando base para atuação dos Tribunais inferiores252. O Recurso Especial, por exemplo, serve para uniformizar a interpretação da lei federal quando haja divergência de interpretação entre Tribunais Locais. Os embargos de divergência voltam-se para a uniformização da interpretação da lei federal (STJ) ou da Constituição Federal (STF) dentro do próprio Tribunal Superior253. A necessidade desse recurso decorre da divisão das Cortes Superiores em Turmas, o que, inevitavelmente, acarretará julgamentos contraditórios, que embora indesejados, são inevitáveis. Se as Cortes Superiores não fossem divididas em Turmas não haveria a necessidade desse recurso.

4.4.1 Pequeno histórico

Na vigência da Constituição Federal de 1891, a mais alta Corte do país não podia ser dividida. A divisão do STF passou a ser permitida a partir da Constituição Federal de 1934. Assim a divisão da Corte ocorreu por meio do Decreto-lei 6 de 1937254. Após a divisão da Corte Suprema em Turmas, a doutrina passou a entender cabível a interposição do Recurso de Revista, até então previsto como meio cabível para a

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JORGE, Flávio Cheim. Embargos de Divergência: Alguns Aspectos Estruturantes. Revista de Processo. ano 35. vol. 190. São Paulo: RT, 2010, p. 9 e ss: “Observe-se, portanto, que a razão primeira dos embargos não é a uniformização da jurisprudência dos Tribunais Superiores, mas sim permitir que a decisão a ser proferida reflita, repita-se, o entendimento do Tribunal. Significa dizer que esse recurso tem por ratio essendi evidenciar a real interpretação do Tribunal a respeito de uma determinada questão jurídica. A uniformização, como dito, é mera consequência de seu julgamento”. 253 Ada Pellegrini Grinover tece críticas à existência dos embargos de divergência, pois este configura verdadeiro recurso de revista que deveria ter sido extinto, não vendo razão para dar à parte mais um recurso fundado na divergência, pois com base nas lições de Liebman a decisão errônea é que deve ser passível de recurso, não a divergente. (GRINOVER, Ada Pellegrini. Direito processual civil. São Paulo: José Bushatsky, 1974, p. 141144) 254 GRINOVER, Ada Pellegrini. Direito processual civil. São Paulo: José Bushatsky, 1974, p. 141-144

88 uniformização do entendimento pelos Tribunais locais. Apesar disso, o STF entendeu pela sua não aplicação, razão pela qual foi editada, posteriormente, a Lei 623/1949255. O Recurso de Embargos foi introduzido no Código de Processo Civil de 1939256 pela Lei 623/1949. Os embargos de divergência não tinham àquela época a restrição que têm hoje, o que era salutar para uma correta uniformização da jurisprudência da Corte, conforme se verifica da redação de seu art. 833: “Além de outros casos admitidos em lei, são embargáveis, no Supremo Tribunal Federal, as decisões das Turmas, quando divirjam entre si, ou de decisão tomada pelo Tribunal Pleno”. Após, este recurso foi previsto pelo parágrafo único do art. 546 do Código de Processo Civil de 1973257. Aqui já houve a restrição do âmbito de abrangência desse recurso. Com vistas à uniformização da jurisprudência do STF e, atualmente, também do STJ, isso foi um retrocesso. Noutra alteração legislativa, o recurso passou a ser regulamentado pela Lei 8.038/90, que previa os embargos de divergência apenas no âmbito do STJ258. Apesar da grave falha do 255

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JORGE, Flávio Cheim. Embargos de Divergência: Alguns Aspectos Estruturantes. Revista de Processo. ano 35. vol. 190. São Paulo: RT, 2010 p. 9 e ss. BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Comentários ao Código de Processo Civil. v. V. 15. Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 641. Destaca o autor, nesse ponto, a infelicidade do legislador de então de criar nova figura com o nome de embargos, causando maior equivocidade do termo. Apesar disso, verifica-se que o Dec-lei 6 de 1939, o mesmo que previu a divisão do STF em turmas, também previu a existência dos Embargos. Esses embargos eram até mais amplos do que os embargos de divergência, pois ali se cuidava de embargos infringentes, de declaração e também de divergência. Vejamos: “Art. 6º Admitem-se embargos para o tribunal pleno dos julgamentos das turmas: [...] II, quando, embora não se verifique unanimidade no julgamento, o acórdão embargado: a) [...] b) estiver em manifesta divergência com a jurisprudência do Tribunal Pleno ou da outra turma; [...]” Noticia Rodrigo da Cunha que antes da Lei 623 de 1949 havia o recurso de revista para a Corte Plena dos Tribunais locais. Embargos de Divergência em Recurso Especial e em Recurso Extraordinário. Tese (Doutoramento em Direito das Relações Sociais) – PUC-SP. São Paulo, 2004, p. 3-11. Previa o Código de Processo Civil de 1939 em seu art. 853, referido recurso: “Art. 853. Conceder-se-á recurso de revista para as Câmaras Civis reunidas, nos casos em que divergirem, em suas decisões finais, duas ou mais Câmaras, ou turmas, entre si, quanto ao modo de interpretar o direito em tese. Nos mesmos casos, será o recurso extensivo à decisão final de qualquer das Câmaras, ou turmas, que contrariar outro julgado, também final, das Câmaras reunidas”. “Parágrafo único. Não será lícito alegar que uma interpretação diverge de outra, quando, depois desta, a mesma Câmara, ou turma, que a adotou, ou as Câmaras reunidas, hajam firmado jurisprudência uniforme no sentido da interpretação contra a qual se pretende reclamar”. Art. 546 na redação original do Código de Processo Civil de 1973, revogado pela Lei 8.038/1990: “O processo e o julgamento do recurso extraordinário, no Supremo Tribunal Federal, obedecerão ao que dispuser o respectivo regimento interno”. “Parágrafo único. Além dos casos admitidos em lei, é embargável, no Supremo Tribunal Federal, a decisão da turma que, em recurso extraordinário, ou agravo de instrumento, divergir do julgamento de outra turma ou do plenário”. Art. 29 da Lei 8.038/1990: “É embargável, no prazo de quinze dias, a decisão da turma que, em recurso especial, divergir do julgamento de outra turma, da seção ou do órgão especial, observando-se o procedimento estabelecido no regimento interno”.

89 legislador em não prever o cabimento desse recurso no âmbito do STF, o Regimento Interno do STF continuou prevendo os embargos de divergência, assim como a Corte Suprema continuou admitindo tal recurso259. Atualmente o recurso voltou a ser tratado pelo CPC em seu art. 546, na redação dada pela Lei 8.950/1994260, que prevê a possibilidade de os embargos de divergência serem opostos perante o STJ ou perante o STF.

4.4.2 Hipóteses de cabimento

De acordo com a doutrina, é cabível o recurso quando o julgamento de turma, em recurso especial, divergir do julgamento de: a) Outra Turma; b) Da Seção ou de outra Seção; c) Da Corte Especial. No caso de embargos de divergência no STF, o recurso é cabível quando o julgamento de uma das Turmas, em recurso extraordinário, divergir do julgamento: a) da outra turma; b) do plenário do STF. Não se admite a interposição desse recurso em face de decisão monocrática. Isso porque contra a decisão monocrática, seja qual for ela, a parte poderá fazer uso do agravo interno. A jurisprudência nesse ponto é remansosa, apesar da existência de posicionamento em sentido contrário261. Os embargos serão admissíveis em face da decisão que julgar o agravo interno.

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PAULA, Alexandre de. Código de Processo Civil Anotado. v. II. 5. ed. São Paulo: RT, 1994, p. 2253. BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Comentários ao Código de Processo Civil. v. V. 15. Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 642 Art. 546. É embargável a decisão da turma que: I - em recurso especial, divergir do julgamento de outra turma, da seção ou do órgão especial; Il - em recurso extraordinário, divergir do julgamento da outra turma ou do plenário. Parágrafo único. Observar-se-á, no recurso de embargos, o procedimento estabelecido no regimento interno. STF. Pleno. Agravo Regimental nos Embargos de Divergência no Agravo de Instrumento AI 546164 EDvAgR / RS, rel. Min. Marco Aurélio, j. 22.06.2011, v.u. No mesmo sentido: JORGE, Flávio Cheim. Embargos de Divergência: Alguns Aspectos Estruturantes. Revista de Processo. ano 35. vol. 190. São Paulo: RT, 2010, p. 9 e ss.; LASPRO, Oreste Nestor de Souza. O Objeto dos Embargos de Divergência. Revista de Processo. ano 35. vol. 186. São Paulo: RT, 2010, p. 9 e ss.; Embargos de Divergência em Recurso Especial e em Recurso Extraordinário. Tese (Doutoramento em Direito das Relações Sociais) – PUC-SP. São Paulo, 2004, p. 96.-99; FERREIRA FILHO, Manoel Caetano. Comentários ao Código de Processo Civil. v. 7. São Paulo:

90 Interessante também a omissão quanto ao cabimento dos embargos de divergência quando duas seções do STJ divergirem. Em que pese entendimento doutrinário negando a possibilidade262, parece-nos que se o objetivo é a uniformização dos julgados, fazendo com que a jurisprudência do Tribunal passe a caminhar num único sentido e considerando que pode haver divergência entre entendimentos exarados por turmas pertencentes a seções distintas, por que não entender que seções distintas possam ter entendimentos distintos, que devam ser pacificados pela Corte Especial? É certo que a divisão de competência entre as seções reduz as matérias objeto de conflito, mas basta analisarmos a questão processual que pode ser afeta a mais de uma Turma e, até recentemente, nem mesmo a 3ª Seção ficava isenta dela (a partir de 1º de janeiro de 2012 a 3ª Seção tem competência para processar e julgar matéria penal apenas). Isso por si só demonstra a possibilidade de haver divergência entre seções, o que deve ensejar o manejo do recurso em questão263. Defendemos, noutra oportunidade, a possibilidade de cabimento desse recurso também para as demandas de competência originária dos Tribunais Superiores, ante sua fundamental função de uniformização de jurisprudência e criação de precedente264.

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RT, 2001, p. 360; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Código de Processo Civil Comentado artigo por artigo. São Paulo: RT, 2008, p. 576. Em sentido contrário: PEREIRA, Milton Luiz. Embargos de Divergência contra decisão lavrada por relator. Revista de Processo. ano 25. vol. 101. São Paulo: RT, 2001, p. 81 e ss. Destaca o autor que: “Por esse agenciamento angular de rotinas, ao som forte das prenunciadas inovações, angaria-se a possibilidade de ser embargável a decisão comentada, porque tem a vigia de conteúdo do próprio mérito demandado”. “Afinal, a divergência vértice do imaginado recurso teria por cimeira correlato direito, cujo mérito foi resolvido pelo relator no lugar processual do colegiado, cujo pensamento o Estado entregou-lhe no campo do processo. Lembra-se que o acerto ou erro na realização do direito não residem na competência do órgão e sim na correta aplicação do direito (processual e material)”. DIDIER JUNIOR; Fredie; CUNHA, Leonardo José Carneiro da. Curso de Direito Processual Civil. vol. 3. 9.ed. Salvador: Jus Podivm, 2011, p. 355; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Recurso Especial, Recurso Extraordinário e Ação Rescisória. 2.ed. São Paulo: RT, p. 337; PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Comentários ao Código de Processo Civil. Tomo VIII. 2. ed. atualizada por Sérgio Bermudes. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 194. Esse, em particular de acordo com as notas do atualizador. Na mesma linha de pensamento, OLIVEIRA, Eduardo Ribeiro de. Embargos de Divergência. in NERY JUNIOR, Nelson; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim (coord). Aspectos Polêmicos e Atuais dos Recursos Cíveis e Assuntos Afins. v. 9. São Paulo: RT, 2006, p. 137. Afirma o autor que essa limitação foi “uma opção de conveniência do legislador”. Parece-nos, todavia, que se pode afirmar que o legislador dixit minus quan voluit e, dando-se interpretação extensiva, podermos afirmar que também se enquadra nas hipóteses de cabimento do recurso, a divergência surgida entre Seções ou entre Seção e a Corte Especial, no âmbito do STJ. “A Lei admite apenas o manejo dos embargos de divergência quando do julgamento de recurso especial (no âmbito do STJ) e de recurso extraordinário (no âmbito do STF). Assim, não seria cabível o manejo dos embargos de divergência no julgamento do Recurso Ordinário Constitucional ou no julgamento de causas de competência originária da Corte. A pergunta que fica é: Seria realmente essa a mens legis? Penso que há equivoco em restringir um recurso tão importante ao âmbito do recurso especial e recurso extraordinário. Isso porque a própria função dos órgãos de Cúpula (Tribunais Superiores como um todo) é a de criar parâmetros para a interpretação e aplicação da Lei (em sentido lato)”. (parte do texto encaminhado para publicação)

91 Sobre a importância dos julgados pelas Cortes Superiores, já asseverou Arruda Alvim que, “[...] conquanto a validade e a eficácia das decisões seja, predominantemente, circunscrita às partes, as que são proferidas pelos tribunais de cúpula transcendem o âmbito das partes e, com isto, projetam-se o prestígio e a autoridade da decisão no seguimento da atividade jurídica, de todos quantos lidam com o direito e, mesmo em espectro maior, para a sociedade toda.265 Se há a necessidade de interpretação uníssona do Direito, até mesmo para que os demais membros do Judiciário e a sociedade como um todo entendam como pensam as Cortes Superiores, não se pode admitir a impossibilidade de uniformização dessas decisões. Sobre a possibilidade de embargos de divergência em recurso ordinário já se manifestou Oreste Laspro266. Pensamos, todavia, que a ampliação da aplicação dos embargos de divergência não se restringe apenas aos recursos, devendo ser utilizados até mesmo nos casos de ações originárias no âmbito das Cortes Superiores, quando a decisão seja proferida por Órgão Fracionário, seja ele Turma ou Seção.

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FREIRE, Rodrigo da Cunha Lima. Reflexões Sobre o Cabimento dos Embargos de Divergência em Recurso Especial in Direito Civil e Processo. In Estudos em Homenagem ao Professor Arruda Alvim. São Paulo: RT, 2008, p. 1.211 266 LASPRO, Oreste Nestor de Souza. O Objeto dos Embargos de Divergência. Revista de Processo. ano 35. vol. 186. São Paulo: RT, 2010, p. 9 e ss.: “Diante desse sistema, criado constitucionalmente, em uma interpretação literal do Código de Processo Civil (LGL 1973\5) , se as partes chegam ao Tribunal Superior via recurso especial ou extraordinário, teriam ainda direito - nos limites legais - aos embargos de divergência; já, pela via do recurso ordinário esse direito não existiria. Pior, se a ordem tivesse sido concedida parcialmente e, portanto, na parte que foi denegada, o recurso seria ordinário e, na parte concedida, especial ou extraordinário, quando do julgamento do especial ou extraordinário caberiam embargos de divergência e do restante não”. “Vamos imaginar duas situações para verificar se a interpretação literal é sustentável. Em um mandado de segurança que envolve estritamente questão de direito federal, poderemos ter as seguintes situações: (a) A ordem é concedida no Tribunal a quo e o Poder Público interpõe o recurso especial. Ao recurso especial é negado provimento. O Poder Público pode interpor embargos de divergência; (b) A ordem é denegada e a parte interpõe recurso ordinário. O recurso ordinário é provido. Pela interpretação literal, o Poder Público não pode interpor os embargos de divergência. Conclusão: como o Poder Público tradicionalmente recorre, quando o mandado de segurança envolve matéria exclusivamente de direito federal é melhor para o impetrante perder no juízo a quo, do que vencer”. [...] “Assim, parece que a solução mais adequada é a de admitir o recurso de embargos de divergência no julgamento de recurso ordinário, agregando um limite: no caso de julgamento perante o STF somente para matéria que seria examinável em extraordinário e perante o STJ somente para matéria de recurso especial. A título de exemplo: não se pode pretender reexame de direito local, mas sim de lei federal”. Em sentido contrário: MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Código de Processo Civil Comentado artigo por artigo. São Paulo: RT, 2008, p. 576

92 4.4.2.1 Análise de alguns casos de cabimento dos embargos de divergência

Embargos de divergência contra agravo de decisão denegatória – segundo a doutrina, deve-se entender como possível a interposição dos embargos de divergência quando, superada a questão da denegatória, o tribunal passar a analisar o mérito do recurso extraordinário, tanto no âmbito do STJ quanto no do STF. Há, todavia, decisão do Pleno do STF, de 2011, entendendo pelo não cabimento dos embargos de divergência contra decisão exarada em agravo interno tirado contra agravo de decisão denegatória de seguimento de RE, afirmando que esse caso não se encaixaria na exceção de agravo interno que julga o mérito do extraordinário: EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA – ACÓRDÃO RELATIVO A AGRAVO DE INSTRUMENTO – INVIABILIDADE. Agravo regimental interposto contra ato do relator no exame de agravo de instrumento não enseja a interposição de embargos de divergência, a teor do artigo 546 do Código de Processo Civil267. O entendimento pela possibilidade de se embargar a decisão que julga o agravo de decisão denegatória decorre da previsão contida no art. 544, §§ 3º e 4º, do Código de Processo Civil.268-269. Por último, acrescente-se a redação do art. 330 do RISTF, que deveria servir para reduzir a polêmica: Art. 330. Cabem embargos de divergência à decisão de Turma que, em recurso extraordinário ou em agravo de instrumento, divergir de julgado de outra Turma ou do Plenário na interpretação do direito federal.

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STF. Pleno. Agravo Regimental nos Embargos de Divergência no Agravo Regimental no Agravo de Instrumento AI 306.474-AgR-EDv-AgR / SP, rel. Min. Marco Aurélio, j. 22.06.2011, v.u. Art. 544 [...] § 3º Poderá o relator, se o acórdão recorrido estiver em confronto com a súmula ou jurisprudência dominante do Superior Tribunal de Justiça, conhecer do agravo para dar provimento ao próprio recurso especial; poderá ainda, se o instrumento contiver os elementos necessários ao julgamento do mérito, determinar sua conversão, observando-se, daí em diante, o procedimento relativo ao recurso especial. § 4º O disposto no parágrafo anterior aplica-se também ao agravo de instrumento contra denegação de recurso extraordinário, salvo quando, na mesma causa, houver recurso especial admitido e que deva ser julgado em primeiro lugar. (Incluído pela Lei nº 8.950, de 13.12.1994) BUENO, Cassio Scarpinella. Curso Sistematizado de Direito Processual Civil. vol. 5. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 315 entende que só seriam cabíveis os embargos de divergência de agravo de instrumento quando este for convertido em RE ou REsp, nos moldes do art. 544, §§ 3º e 4º.

93 No âmbito do STJ, a Súmula 315270 do STJ deve ser entendida como vedação ao manejo dos embargos de divergência quando o agravo de instrumento não aprecia o mérito do recurso especial. Esse agravo, via de regra, é julgado pelo relator, que pode negar ou dar provimento e, dando provimento, poderá, de acordo com o Regimento Interno do STJ, pedir dia para julgamento (art. 254 do SISTJ e art. 316 do RISTF). Mas seria realmente essa a mens legis? No âmbito do STJ, por exemplo, a Corte aceita como possível os embargos de divergência quando o recurso especial não é admitido. Por que então negar esse recurso quando o agravo não é admitido? A função desse recurso de agravo é apenas fazer com que o recurso especial suba em razão de um “filtro” feito em segunda instância. Se não foi realizado o filtro pelo Tribunal local e o Especial subiu, cabem os embargos de divergência, mesmo no caso de não admissão do Especial. No outro caso, em que foi realizado o filtro e então houve a necessidade do recurso de agravo de decisão denegatória, também deveriam ser cabíveis os embargos de divergência, mesmo no caso de não admissão do agravo271. Pensamos que não deveria haver restrição se a matéria fática apreciada fosse a mesma, independentemente da admissão ou não do recurso excepcional, ou mesmo do agravo. O que deve realmente importar é a divergência interna entre julgados, pois isso é fator de instabilidade jurídica, capaz de causar multiplicação desnecessária de recursos e demandas, pois dá ampla possibilidade para que as partes recorram de qualquer que seja o resultado da demanda. Embargos contra agravo interno que enfrenta o mérito do RE ou REsp – no âmbito do STF o assunto era polêmico. Havia diversas súmulas sobre o tema. O STF editou a Súmula

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Súmula 315 do STJ: “Não cabem embargos de divergência no âmbito do agravo de instrumento que não admite recurso especial”. Nesse sentido: JORGE, Flávio Cheim. Embargos de Divergência: Alguns Aspectos Estruturantes. Revista de Processo. ano 35. vol. 190. São Paulo: RT, 2010, p. 9 e ss. “[...] Ora, se o acórdão que não admite o recurso especial pode ser impugnado pelos embargos, por que também não caberiam embargos de divergência contra a decisão que, em sede de agravo de instrumento, não admite o recurso especial? Uma de duas: ou os tribunais superiores mudam o entendimento - pacificado - de que cabem embargos de divergência contra o não conhecimento dos recursos excepcionais; ou, então, há que se evoluir no sentido de também admitiremse os embargos contra acórdão que, em agravo de instrumento, decidiu a respeito da admissibilidade do recurso excepcional”.

94 599, na época em que estava vigente a redação original do Código de Processo Civil de 1973: “São incabíveis embargos de divergência de decisão de turma, em agravo regimental”.272 Ocorre que, com as alterações legislativas pelas quais passou o instituto, tornou-se inaplicável a referida súmula273, pois passou a haver maior concentração de poder nas mãos do relator274. Assim, se o relator pode julgar o mérito do recurso extraordinário e do recurso especial, deve-se entender cabível o recurso de embargos de divergência de agravo interno (recurso interposto contra a decisão monocrática que julgou o especial ou o extraordinário). Na época em que editada a súmula, o recurso de agravo não servia para julgar o mérito do recurso extraordinário275. Por conta disso, a súmula 599 do STF foi cancelada pelo Plenário do STF no julgamento dos seguintes recursos: RE 283240 AgR-ED-EDv-AgR (DJE047/2008) 276, RE 285093 AgR-ED-EDv-AgR (DJE-055/2008) e RE 356069 AgR-EDv-AgR (DJE-055/2008).

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Súmula 233 do STF. Salvo em caso de divergência qualificada (lei 623/1949), não cabe recurso de embargos contra decisão que nega provimento a agravo ou não conhece de recurso extraordinário, ainda que por maioria de votos. Súmula 300 do STF. São incabíveis os embargos da lei 623, de 19/2/1949, contra provimento de agravo para subida de recurso extraordinário. Redação original do art. 557. Se o agravo for manifestamente improcedente, o relator poderá indeferi-lo por despacho. Também por despacho poderá convertê-lo em diligência se estiver insuficientemente instruído. Parágrafo único. Do despacho de indeferimento caberá recurso para o órgão a que competiria julgar o agravo. Redação vigente do art. 557. O relator negará seguimento a recurso manifestamente inadmissível, improcedente, prejudicado ou em confronto com súmula ou com jurisprudência dominante do respectivo tribunal, do Supremo Tribunal Federal, ou de Tribunal Superior. § 1º-A Se a decisão recorrida estiver em manifesto confronto com súmula ou com jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal, ou de Tribunal Superior, o relator poderá dar provimento ao recurso. § 1º Da decisão caberá agravo, no prazo de cinco dias, ao órgão competente para o julgamento do recurso, e, se não houver retratação, o relator apresentará o processo em mesa, proferindo voto; provido o agravo, o recurso terá seguimento. ARRUDA ALVIM, José Manoel. Cabimento de embargos de divergência contra acórdão (de mérito) de turma, proferido em agravo regimental, tirado de decisão de relator de recurso extraordinário: imprescindibilidade de uma releitura da súm. 599 do STF. Revista de Processo. ano 32. vol. 144. São Paulo: RT, 2007, p. 9 e ss. “Embargos de divergência – acórdão em agravo regimental – recurso extraordinário – apreciação indireta – adequação. Conforme o disposto no artigo 546 do Código de Processo Civil, interpretado presente o objetivo da norma, mostram-se cabíveis os embargos de divergência quando o acórdão atacado por meio deles implica pronunciamento quanto a recurso extraordinário. EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA – ACÓRDÃO PROFERIDO EM AGRAVO REGIMENTAL – VERBETE Nº 599 DA SÚMULA DO SUPREMO. Ante o novo entendimento sobre o alcance do artigo 546 do Código de Processo Civil, não subsiste, sendo cancelado o Verbete nº 599 da Súmula do Supremo [...]” (STF. Pleno. AG nos BEM. DIV. Nos BEM DECL. No AG. RG no Recurso Extraordinário283.240-5/RS. Rel. p/ Acórdão Min. Marco Aurélio. j. 26.04.2007) .

95 Já no âmbito do STJ a questão também se encontra pacificada, conforme se depreende do teor da súmula 316277, que permite o manejo dos embargos de divergência quando a turma, ao julgar o agravo interno, enfrentar o mérito do recurso especial. Como já destacamos, ousamos dar maior amplitude a esse fundamental recurso, cuja finalidade deve ser a de evitar qualquer controvérsia havida na interpretação da lei federal / Constituição Federal pelos órgãos fracionários das Cortes Superiores, pois a busca por uma interpretação unificada do pensamento destas Cortes é que deve ser a meta dos embargos de divergência. No que se refere à possibilidade de utilização dos embargos de divergência para sanar divergência dentro da própria turma, opinamos não serem cabíveis, quer no âmbito do STJ278, quer no âmbito do STF. A ideia do recurso é a uniformização da interpretação da Corte e não a obtenção de unanimidade na interpretação da turma279. Excepcionalmente, porém, o STF já entendeu cabível a utilização de julgamento da mesma turma quando haja ocorrido substancial modificação na composição da turma280. Parece-nos mais acertado o entendimento no sentido do não cabimento dos embargos de divergência nessa hipótese, pois, se houve modificação da composição e mudança de entendimento, deve-se passar a adotar o novo entendimento, utilizando-se a justificativa de que o direito não deve ser estático, mas assistem a uma evolução na interpretação que os Tribunais fazem dos artigos de leis. Todavia, numa reflexão mais profunda e levando-se em consideração a ideia de segurança e, principalmente, previsibilidade das decisões judiciais, o 277

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Súmula 316 do STJ: “Cabem embargos de divergência contra acórdão que, em agravo regimental, decide recurso especial”. No mesmo sentido: FERREIRA FILHO, Manoel Caetano. Comentários ao Código de Processo Civil. v. 7. São Paulo: RT, 2001, p. 360 GRANADO, Daniel Willian. São admissíveis embargos de divergência quando o acórdão paradigma não provém de recurso especial? - análise da orientação do STJ. in Revista de Processo. ano 35. vol. 186. São Paulo: RT, 2010, p. 270 e ss “Agravo regimental nos embargos de divergência no agravo regimental no agravo de instrumento. processual civil. recurso fundado em paradigma da mesma turma: ausência de diversidade orgânica. precedentes. agravo regimental ao qual se nega provimento”. (STF. Pleno. Agravo Regimental nos Embargos de Divergência no Agravo Regimental no Agravo de Instrumento AI 707.478 AgR-EDv-AgR / RS, rel. Min. Cármen Lúcia, j. 03.08.2011, v.u.). No mesmo sentido: NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de Processo Civil Comentado e legislação extravagante. 11. ed. São Paulo: RT, 2010, p. 991 STF. Pleno. RE 318.469 EDv-QO / DF, rel. Min. Celso de Mello, j. 03.10.2002, v.u. “[...] Os embargos de divergência estão sujeitos, dentre os vários pressupostos que lhe condicionam a interposição, à observância do requisito da diversidade orgânica. Esse requisito impõe que o padrão de divergência - para ser validamente invocado como expressão do dissídio interpretativo - resulte de acórdão emanado, ou do Plenário ou de outra Turma do Supremo Tribunal Federal, pois não se reveste de idoneidade processual, para efeito de demonstração do conflito pretoriano, a indicação de acórdão proferido pela própria Turma de que proveio a decisão contra a qual foram opostos os embargos de divergência (Súmula 353/STF), ressalvada a hipótese excepcional de a Turma haver sofrido substancial modificação em sua composição. [...]”

96 sistema deveria possuir mecanismos para evitar a mudança abrupta de posicionamento do Tribunal, mas isso independe da mudança de composição do Tribunal. Não é porque houve mudança na composição do Tribunal que seus precedentes não devem ser seguidos. Muito pelo contrário. Os embargos de divergência, todavia, não têm essa função. Esse tema tem fundamental importância, ainda mais nos dias atuais em que a carga de trabalho dos magistrados de um modo geral, e dos Ministros em especial, é absurda, o que pode ocasionar falha humana na prolação de uma ou outra decisão (falha esta possível, mas evidentemente não querida). O que precisaria haver é a aplicação pelo Tribunal do incidente de uniformização de jurisprudência (ou da assunção de competência) caso houvesse tendência de mudança de posicionamento da própria turma. Novamente, é preciso, sem dúvidas, haver mecanismos que evitem a mudança de posicionamento sobre os temas já sedimentados nos tribunais, porém os embargos de divergência não se prestam a esse fato, prestam-se a uniformizar a interpretação do Tribunal e não à modificação da interpretação exarada pelo Tribunal, quer pela evolução da sociedade ou da interpretação da questão. E o mecanismo para isso é o incidente de uniformização (ou a assunção de competência) e não os embargos de divergência. Embargos contra decisão que julgou embargos de declaração tirados contra decisão que julgou REsp ou RE – no entender da doutrina dominante, são cabíveis os embargos de divergência da decisão prolatada em sede de embargos de declaração quando estes forem opostos contra decisão prolatada em sede de REsp ou RE, haja vista que a função desse recurso é simplesmente integrar o julgado anterior. Para a doutrina só seria possível se os embargos de declaração fossem interpostos contra decisão que já seria passível de embargos de divergência. No nosso sentir, todavia, o que interessa é haver discrepância de julgados sobre a mesma questão fática, pois a função desse recurso é mais do que a uniformização de recursos excepcionais dissonantes. Sua função primordial é a uniformização do posicionamento das Cortes Superiores sobre a interpretação da lei federal e da Constituição Federal. Se houver divergência interna, independentemente da demanda onde isso ficou constatado (ação originária ou recurso, qualquer que seja), devem ser admitidos os embargos de divergência.

97 Os embargos de divergência nos demais Tribunais – a doutrina nega a possibilidade de manejo de embargos de divergência no âmbito dos Tribunais locais281. Na vigência do Código de Processo Civil de 1939, o recurso de revista tinha essa finalidade no âmbito local. Posteriormente, com a entrada em vigor da Lei Orgânica da Magistratura Nacional, passou a haver a previsão dos embargos de divergência para todos os Tribunais: Art. 101 - Os Tribunais compor-se-ão de Câmaras ou Turmas, especializadas ou agrupadas em Seções especializadas. A composição e competência das Câmaras ou Turmas serão fixadas na lei e no Regimento Interno. § 1º - Salvo nos casos de embargos infringentes ou de divergência, do julgamento das Câmaras ou Turmas, participarão apenas três dos seus membros, se maior o número de composição de umas ou outras. [...] § 3º - A cada uma das Seções caberá processar e julgar: a) os embargos infringentes ou de divergência das decisões das Turmas da respectiva área de especialização; [...]

Assim, verifica-se a previsão legal para cabimento dos embargos de divergência perante os Tribunais locais. Apesar disso, a Sessão Plenária do TJ-SP, na uniformização de jurisprudência nos embargos de divergência 8.755-1, por maioria de votos, entendeu pela inadmissibilidade dos embargos de divergência282. A doutrina destaca que apesar do texto da Lei Orgânica, não é cabível esse recurso no âmbito dos tribunais locais, porque haveria necessidade de lei que instituísse tais recursos283. Dificilmente essa matéria será regulamentada para que os Tribunais locais possam uniformizar sua jurisprudência, uma vez que a competência para elaboração de leis processuais foi atribuída privativamente à União284.

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Nesse sentido, dentre outros: NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de Processo Civil Comentado e legislação extravagante. 11. ed. São Paulo: RT, 2010, p. 991 TUBELIS, Vicente Paulo. Divergência jurisprudencial e participação. Participação e processo. São Paulo: RT, 1988, p. 399 OLIVEIRA, Eduardo Ribeiro de. Embargos de Divergência. in NERY JUNIOR, Nelson; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim (coord). Aspectos Polêmicos e Atuais dos Recursos Cíveis e Assuntos Afins. v. 9. São Paulo: RT, 2006, p. 136. A não ser que se entenda que a norma regulamentadora teria natureza de norma procedimental e não processual, entendimento que não se refuta, mas que pedimos vênia para tratarmos noutra oportunidade, haja vista a grande polêmica entorno deste tema.

98 4.4.3 Divergência

No nosso sentir, considerando a proposta de ampliação da função desse recurso fundamental, a divergência pode dizer respeito tanto em relação ao mérito do recurso excepcional, como também quanto à sua admissibilidade285. A doutrina afirma, no entanto, que não se pode confrontar um acórdão que não analisou o mérito com outro que o tenha analisado286. Apesar disso, assim como Teresa Wambier, não descartamos a possibilidade de o mesmo tema ser enfrentado pela Corte Superior em acórdão que enfrentou o mérito e em acórdão que analisou sua admissibilidade. Basta lembrarmo-nos de divergência sobre normas processuais, que também devem ter sua interpretação uniformizada no âmbito dos Tribunais Superiores287. Sabe-se que, dentre outras funções asseguradas constitucionalmente ao STJ, está a de processar e julgar conflitos de competência, nos termos do art. 105, I, “d”. Também sabemos que a competência em questão é absoluta, ou seja, pode gerar a nulidade de todo o processo, ou até mesmo sua rescisão (art. 485, II, do CPC). Dentro do STJ, pode ocorrer de uma turma 285 286

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BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Comentários ao Código de Processo Civil. v. V. 15. Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 643. Nesse sentido: SHIMURA, Sérgio Seiji, Apud WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Recurso Especial, recurso extraordinário e ação rescisória. 2. ed. São Paulo: RT, 2009, p. 338; ORIONE NETO, Luiz. Recursos Cíveis. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 547-548. FERREIRA FILHO, Manoel Caetano. Comentários ao Código de Processo Civil. v. 7. São Paulo: RT, 2001, p. 360; BUENO, Cassio Scarpinella. Curso Sistematizado de Direito Processual Civil. vol. 5. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 312, este último citando julgados afirmando que não é possível utilizar aresto que não conheceu do RE ou REsp para demonstrar a divergência com outro que teve seu mérito julgado ou vice-versa. Em sentido contrário: WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Recurso Especial, recurso extraordinário e ação rescisória. 2. ed. São Paulo: RT, 2009, p. 338. São suas as palavras: “[...] Assim, rigorosamente, dever-se-ia encaminhar a jurisprudência para admitir embargos de divergência quando em uma decisão se tratasse da inexistência de ilegalidade ou da inconstitucionalidade e, noutra, da inexistência, ainda que fosse aquela proferida quando do exercício do juízo de inadmissibilidade e esta, quando do exercício de juízo de mérito”. Ainda corroborando com o posicionamento adotado: JORGE, Flávio Cheim. Embargos de Divergência: Alguns Aspectos Estruturantes. Revista de Processo. ano 35. vol. 190. São Paulo: RT, 2010, p. 9 e ss.: “Pensemos num exemplo: o acórdão recorrido não conhece do recurso especial porque faltou assinatura do advogado. Já no acórdão paradigma, o recurso especial foi conhecido - porque se permitiu fosse corrigida a irregularidade relativa a falta de assinatura - e teve, com isso, o seu mérito apreciado”. “Fica patente, no caso, a necessidade de se admitir os embargos de divergência. Aliás, curiosamente, foi justamente a circunstância de ter um dos acórdãos adentrado no mérito do recurso, e o outro não, o que gera o dissenso quanto a essa importante questão da possibilidade ou não de correção da falta de assinatura no recurso especial”. “O grau de cognição na análise do recurso especial não pode ser, sob essa ótica, fator de inadmissibilidade, já que o juízo de admissibilidade não se confunde com o juízo de mérito. Aliás, se a divergência encontra-se exclusivamente quanto a um dos requisitos de admissibilidade, não há que se cogitar de interferência do grau de cognição exercido no recurso especial”. “Obviamente, o raciocínio seria diferente caso se pretendesse cotejar acórdãos relativos ao juízo de admissibilidade e ao juízo de mérito do recurso. Em tal hipótese o dissenso não se instauraria, não pelo diferente grau de cognição, mas por falta de similitude”.

99 chegar à conclusão de que a competência em determinada matéria seja de uma justiça e, outra turma, na mesma matéria, chegar a uma conclusão diametralmente oposta. Seria então possível embargos de divergência em conflito de competência? A 2ª Seção do STJ já chegou a enfrentar a questão sobre a admissibilidade ou não de embargos de divergência quando o assunto em discussão fosse a definição do órgão competente para a apreciação da matéria (justiça comum estadual ou justiça do trabalho). No caso em questão, apreciado nos embargos de divergência em agravo (EAg 1.195.905288), o STJ entendeu pelo não cabimento dos embargos de divergência, afirmando que deveriam ser enfrentadas teses distintas, que o recurso em questão serve para uniformizar teses e não para definir órgão competente. Naquela oportunidade o Exmo. Min. João Otávio de Noronha destacou em seu voto que o STJ não é instância revisora. “Se fôssemos, seríamos corte de apelação, buscaríamos o fator justiça [...] Mas o nosso fator é outro, é de controle de legalidade, de assegurar a efetividade do direito federal e de dissipação da jurisprudência entre os tribunais estaduais e federais e entre estes e o próprio STJ”, concluiu. Pergunta que não pode calar é: como assegurar a efetividade do direito federal e a dissipação de entendimentos divergentes se há permissão para que o próprio STJ tenha dois posicionamentos diametralmente opostos considerados como corretos? Não seria função dos Embargos de Divergência extirpar esses posicionamentos opostos? Se é essa a função desse recurso, ele deve ser cabível no caso em questão. Veja-se, mais uma vez, que o recurso em questão acabou não sendo utilizado para a sua função primordial, que é a pacificação da interpretação da lei federal. Oras, permitir que 288

“PROCESSUAL CIVIL. EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA. INDICAÇÃO DE “CONFLITO DE COMPETÊNCIA” COMO DIVERGENTE. DESOBEDIÊNCIA AO ART. 266 DO RISTJ. NÃO CABIMENTO. 1. Acórdão indicado como paradigma proferido em conflito de competência, não se presta à configuração da divergência, uma vez que, nos termos do art. 266 do RISTJ, apenas os julgados proferidos em “recurso especial” podem ser objeto de embargos de divergência em recurso especial, ou ainda, conforme entendimento jurisprudencial, os julgados de Turma proferidos em sede de agravo regimental, seja em recurso especial, seja em agravo de instrumento, desde que apreciado o mérito do recurso especial interposto. 2. É necessário conferir ao julgado paradigma as mesmas exigências do acórdão embargado, de modo a evitar-se uma situação de privilégio processual do recorrente que obteve uma decisão em sede de recurso especial, em detrimento daquele cujo decisum se origine, por exemplo, de um conflito de competência. Em sendo os embargos de divergência uma extensão do recurso especial, seria uma contradição não se admitir embargos de divergência de decisão de Turma que não tenha sido proferida em sede de recurso especial e se pretender, agora, que essa mesma decisão seja considerada em embargos de divergência de outra decisão como paradigma a possibilitar o conhecimento desses embargos. 3. Embargos de divergência não conhecido.” STJ. 2ª Seção. EAg. 1.195.905-RS, Rel. p/ Acórdão. Min. Nancy Andrighi, j. 26.10.2011, maioria.

100 haja divergência na interpretação da lei federal dentro do próprio STJ é permitir que as instâncias inferiores atuem sem parâmetros. Abre a oportunidade para que tanto uma interpretação quanto outra sejam corretas para o mesmo caso. Isso amplia sobremaneira a quantidade de recursos das decisões inferiores, bem como coloca em cheque a própria credibilidade do Judiciário. Não se pode entender como correto, no exemplo acima transcrito, que tanto a justiça comum estadual como a justiça do trabalho sejam, ambas, competentes para processar uma mesma causa. Se a conclusão mais lógica é a da impossibilidade de competência concorrente para a matéria em questão, não pode ser outro o entendimento, senão o de que deve haver pacificação, em nível federal, da questão sobre o órgão competente para apreciar determinada matéria. Afirmar que o simples fato de a matéria tratar de conflito de competência é dar interpretação por demais restrita ao dispositivo legal, o que significa reduzir a importância desse recurso como ferramenta para segurança jurídica de todo o sistema. Por esses motivos, ousamos discordar do voto vencedor do Acórdão supramencionado. No que se refere à divergência quanto à quantificação dos danos morais, a matéria encontra-se pacificada no STJ, por meio da Súmula 420, no sentido do não cabimento do recurso. Vale destacar, contudo, entendimento em sentido contrário, exarado por Teresa Wambier trazendo como exemplo dois casos em que houve fixação de valores diferentes (fixação de danos morais em R$ 100.000,00 pela perda de um dedo e outro caso em que se fixou R$ 5.000,00 de indenização a uma mãe que perdeu um filho) 289. Sabemos, todavia, que a quantificação do dano moral leva em consideração o grau de culpabilidade da conduta, o poder financeiro das partes, a reincidência ou não na conduta ilícita, o caráter punitivo e educativo, além de seu caráter de leniência, evitando-se sempre o enriquecimento sem causa, haja vista que o dinheiro não pode reparar a dor, mas servirá para fazer com que a pessoa tenha diminuído seu sofrimento. Em razão disso, verifica-se a dificuldade em se apurar tanto via recurso especial quanto por meio de embargos de divergência os valores que devam ser fixados, pois isso envolve matéria fática, da qual os tribunais superiores devem se afastar ao julgar recursos excepcionais. Apesar disso, o STJ entende cabível o recurso especial para questionar o valor fixado pelas instâncias inferiores a título de danos morais. Penso que o recurso especial em questão 289

Exemplo dado em 08/11/11 no Largo São Francisco, durante o Seminário em homenagem a Cândido Rangel Dinamarco.

101 seria cabível em casos extremos, que ferissem, por exemplo, princípios como o da proporcionalidade da condenação. Na mesma linha de entendimento, não seria possível tolher, nesses casos, os Embargos de Divergência. Mas surge a partir dai a dificuldade, pois estaríamos avançando em matéria fática, da qual o tribunal superior, em tese, deve se afastar. Havendo pacificação sobre determinadas controvérsias, evitam-se demandas sobre estes temas pacificados e também recursos desnecessários, pois, caso contrário, quem foi condenado irá recorrer, assim como aquele que teve seu pleito negado noutro caso. Sempre haverá dúvida sobre o resultado final da demanda, não pelas provas produzidas ou pelos percalços procedimentais da demanda, mas porque há divergência de interpretação da lei dentro das mais altas Cortes, que têm a função justamente de extirpar divergências na aplicação da lei federal. Das duas uma: ou são admitidos os embargos de divergência, ou não seria o caso de admissão do próprio recurso especial. A quantificação dos danos morais envolve o revolvimento de matéria fática. Se há o revolvimento de matéria fática, não seria o caso de recurso especial. Todavia, entendendo-se cabível o especial porque há grande desproporcionalidade entre o valor fixado num caso e o valor fixado noutro, deve ser possível também os embargos de divergência290.

4.4.4 Sobre o aresto paradigma

Segundo pensamos aqui também deva ser dada ampliação à letra da lei. Em primeiro lugar porque ela não diz que o aresto paradigma deva ser exarado em recurso especial ou recurso extraordinário291. Em segundo, pela finalidade essencial do recurso, que é a 290

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Vale ressaltar o posicionamento de Araken de Assis, contrário ao cabimento do próprio recurso especial para discussão de quantificação de danos morais, afirmando que isso acaba provocando uma “tragédia”: “Não faltam apoios à transformação paulatina do STJ em terceira instância para realizar a melhor Justiça do caso. É pouco provável que haja alguma contribuição efetiva, máxime no tocante à duração razoável do processo, nesses arroubos liberais do STJ. Para a Justiça de um país, o reexame das questões de fato pelo tribunal de superposição, relevado o interesse do vitorioso eventual, representa autêntica tragédia”. (ASSIS, Araken. Manual dos recursos. 4. ed. São Paulo: RT, 2012, p. 832) Apesar disso, esse é o posicionamento que vem sendo adotado no âmbito do STJ: STJ. 3ª Seção. AgRg nos EREsp 793405 / RJ, rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, j. 27.04.2011, v.u.; STJ. 1ª Seção. AgRg nos EREsp 1187845 / ES, rel. Min. Benedito Gonçalves, j. 25.05.2011, v.u.; STJ. Corte Especial. Pet 2398 / SP, rel. Min. Laurita Vaz, j. 12.04.2010.. Também, adotando interpretação restritiva: BUENO, Cassio Scarpinella. Curso Sistematizado de Direito Processual Civil. vol. 5. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 310. Sobre esse ponto, vale a pena verificar a profunda pesquisa realizada em artigo publicado na REPRO por GRANADO, Daniel Willian. São admissíveis embargos de divergência quando o acórdão paradigma não

102 interpretação da norma federal de forma uníssona na Corte Superior, independentemente de onde seja o acórdão exarado, se em demanda originária, recurso excepcional ou ordinário. Sobre esse tópico, felizmente, encontramos mais vozes defendendo uma interpretação mais aberta do artigo292. O aresto paradigma precisa ser atual. Não se pode entender como paradigma um aresto posteriormente superado, seja pela turma que proferiu o julgado anterior, seja por uniformização feita pelo Plenário (no STF) ou pela Seção ou Corte Especial (no STJ). Nesse ponto há, inclusive, súmula tanto do STJ quanto do STF293. Se a lei revogadora tiver o mesmo conteúdo da lei revogada, não haverá impedimento para a utilização como paradigma, porque a ideia, repisamos, é a uniformização da interpretação dos Tribunais Superiores294. De acordo com entendimento sumulado, não serve como paradigma aresto prolatado por Turma que não tem mais competência para julgar a matéria. A título de exemplo, locação era matéria de competência da 3ª Seção. Atualmente é de competência da 2ª Seção. Assim, levando-se em consideração a aplicação do entendimento consolidado no âmbito do STJ295,

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provém de recurso especial? - análise da orientação do STJ. in Revista de Processo. ano 35. vol. 186. São Paulo: RT, 2010, p. 270 e ss. GRANADO destaca que: “A tendência doutrinária, a respeito dessa controvérsia, vai no sentido de admitir que todo e qualquer acórdão proferido pelo STJ é apto a servir de acórdão paradigma a ser cotejado com o acórdão embargado, desde que proferido por órgão colegiado daquele tribunal. A esse respeito, diz Bernardo Pimentel Souza que ‘ao contrário do aresto recorrido, que só é passível de impugnação por meio de embargos de divergência se foi proferido em julgamento de recurso especial, de recurso extraordinário, dos respectivos embargos declaratórios ou de agravo interno em recurso especial e extraordinário, o acórdão paradigma pode ter sido prolatado em julgamento de qualquer recurso, bem como de ação de competência originária do tribunal superior’. Nesse mesmo sentido, assevera Sérgio Shimura ‘o que se exige é que a decisão a ser atacada seja tomada pela Turma. Todavia, a outra decisão pode ter sido proferida em sede de outro recurso ou processo, não necessariamente em recurso especial ou extraordinário’. Ainda nessa linha, Barbosa Moreira pontua que ‘o acórdão invocado como padrão do qual se divergiu não precisa haver sido igualmente proferido no julgamento de recurso especial’". GRANADO, Daniel Willian. São admissíveis embargos de divergência quando o acórdão paradigma não provém de recurso especial? análise da orientação do STJ. in Revista de Processo. ano 35. vol. 186. São Paulo: RT, 2010, p. 270 e ss. Súmula 168 do STJ: “Não cabem embargos de divergência, quando a jurisprudência do tribunal se firmou no mesmo sentido do acórdão embargado”. Súmula 247 do STF: “O relator não admitirá os embargos da Lei 623, de 19/2/1949, nem deles conhecerá o Supremo Tribunal Federal, quando houver jurisprudência firme do plenário no mesmo sentido da decisão embargada”. Nesse sentido: SHIMURA, Sérgio. Apud WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Recurso Especial, recurso extraordinário e ação rescisória. 2. ed. São Paulo: RT, 2009, p. 339; ORIONE NETO, Luiz. Recursos Cíveis. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 550; RT, 682/244 Súmula 158 do STJ: “Não se presta a justificar embargos de divergência o dissídio com acórdão de turma ou seção que não mais tenha competência para a matéria neles versada”.

103 não se pode utilizar julgado prolatado pela 3ª Seção como parâmetro para ensejar os embargos de divergência. Novamente, num primeiro momento parece razoável entender que se houve mudança de competência, não haveria razão para os embargos de divergência. Entretanto, não é porque houve mudança de competência interna para julgamento dos recursos que o próprio Tribunal pode ter seu posicionamento alterado. Lembre-se que há a séria necessidade de se ter previsibilidade. Não se está discutindo o posicionamento desta ou daquela turma, mas o que interessa é a posição do Tribunal. Não fosse apenas isso, pode ocorrer de na Corte Especial haver Ministros da antiga Seção que poderão inverter o resultado do julgamento preferido pela nova Seção, caso a matéria seja apreciada pela Corte Especial. Pela simples possibilidade de isso ocorrer, cremos necessário repensar essa súmula para admitir, com maior razão, os Embargos de Divergência nessa hipótese, pois se há divergência dentro do próprio STJ, quem dirá na sociedade e nos órgãos inferiores. Mais uma vez, se a nova Seção competente para apreciar a matéria decidir por modificar a interpretação que era dada por outra Seção, o ideal é que fosse instaurado o incidente de uniformização de jurisprudência. Caso esse mecanismo não fosse utilizado, não se pode retirar das partes o manejo dos embargos de divergência. Não apenas pelo direito da parte em si, mas pela fundamental função de demonstrar à sociedade qual o posicionamento a ser adotado pelo Tribunal (o anterior, exarado pela Seção que tinha competência sobre a matéria, ou o novo, exarado pela Seção que possui competência atual sobre o tema). Utilizando-se como exemplo a própria mudança de competência para apreciação de matéria ligada à locação, a 2ª Seção não mudou o atual entendimento sobre a responsabilidade do fiador até a entrega das chaves, obedecendo ao precedente da 3ª Seção. Mas só pelo fato de, em tese, poder ser desrespeitado o precedente da 3ª Seção, deve-se entender como cabível os Embargos de Divergência, até para garantir a segurança e isonomia que se espera de uma Corte Superior296. Essa questão é tranquila no âmbito dos Tribunais, posicionamento ao qual nos filiamos297, não havendo razão para maiores dilações. Vale, todavia, destacar que no direito 296 297

O precedente a que nos referimos é o EREsp. 566.633-CE, 3ª Seção, j. 22.11.2006, que vem sendo seguido pela 2ª Seção. “EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA EM RECURSO ESPECIAL. ADMINISTRATIVO. SERVIDORES PÚBLICOS MUNICIPAIS. REAJUSTE. EXECUÇÃO. VIOLAÇÃO DA COISA JULGADA. 1. O cabimento dos embargos de divergência independe do trânsito em julgado do acórdão paradigma. 2. Na liquidação da sentença, o quantum debeatur a ser executado é o definido nos cálculos realizados com estrita observância da norma concreta da sentença exequenda, que não comporta modificação, pena de ofensa à coisa julgada. 3. Ofende o comando expresso no acórdão exequendo, certo em que o reajuste do mês de fevereiro de 1995 deve ser procedido na forma das Leis Municipais 10.668/1988 e 10.722/1989, a decisão do

104 português o chamado recurso para a uniformização de jurisprudência deve utilizar como paradigma acórdão transitado em julgado (art. 763-2).

4.4.5 Procedimento

Para a verificação da divergência, não importa a origem do acórdão paradigma, nem do aresto recorrido. O que é preciso verificar é a identidade da questão, razão pela qual é preciso fazer o confronto analítico dos julgados. Por isso não basta a análise de ementas, como regra. É preciso que haja a análise dos acórdãos em sua integralidade para verificar se o caso paradigma e o recorrido são realmente iguais ou se há um “distinguishing”, capaz de permitir a divergência298. Não se pode descartar, todavia, a existência de ementas que por si só são tão completas a ponto de serem utilizadas para um cotejo analítico. Quando isso for possível, o recurso deve ser admitido299. Quanto aos efeitos desse recurso: não terão efeito suspensivo. Apesar da falta de previsão legal, há previsão no art. 266, § 2º, do Regimento Interno do STJ. A doutrina é remansosa nesse sentido300. Terá efeito devolutivo301 e não terá efeito translativo302.

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juízo de execução que determina a aplicação, no cálculo, das Leis Municipais 11.722/1995 e 12.397/1997, supervenientes. 4. Embargos de divergência acolhidos”. STJ. 3ª Seção. EREsp 585.392/SP, rel. Min. Hamilton Carvalhido. Nesse sentido: “AGRAVO REGIMENTAL NOS EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA NOS EMBARGOS DE DECLARAÇÃO NO AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO DE INSTRUMENTO. PROCESSUAL CIVIL. CABIMENTO DOS EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA. AUSÊNCIA DE DEMONSTRAÇÃO ANALÍTICA DA DIVERGÊNCIA. AGRAVO REGIMENTAL AO QUAL SE NEGA PROVIMENTO. Para a demonstração da divergência, é indispensável que os julgados apontados como paradigma invocados digam respeito à situação jurídica idêntica à apreciada pelo acórdão embargado”. STF. Pleno. Agravo Regimental nos Embargos de Divergência nos Embargos de Declaração no Agravo Regimental no Agravo de Instrumento. AI 774.326 AgR-ED-EDv-AgR / DF, rel. Min. Cármen Lúcia, j. 03.08.2011, v.u. Nesse sentido: WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Recurso Especial, recurso extraordinário e ação rescisória. 2. ed. São Paulo: RT, 2009, p. 342; DIDIER JUNIOR, Fredie; CUNHA, Leonardo José Carneiro da. Curso de direito processual civil. vol. 3. 9. ed. Salvador: JusPodivm, 2011, p. 360 Nesse sentido: BUENO, Cassio Scarpinella. Curso Sistematizado de Direito Processual Civil. vol. 5. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 314; DIDIER JUNIOR, Fredie; CUNHA, Leonardo José Carneiro da. Curso de direito processual civil. vol. 3. 9. ed. Salvador: JusPodivm, 2011, p. 361; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Recurso Especial, recurso extraordinário e ação rescisória. 2. ed. São Paulo: RT, 2009, p. 339; JORGE, Flávio Cheim. Embargos de Divergência: Alguns Aspectos Estruturantes. Revista de Processo. ano 35. vol. 190. São Paulo: RT, 2010, p. 9 e ss.; CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de Direito Processual Civil. vol. II, 17. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 128; Embargos de Divergência em Recurso Especial e em

105 O prazo de interposição é de 15 dias. O prazo de resposta também é de 15 dias, em que pese o art. 335, § 2º, do RISTF falar em 10 dias. Não há a possibilidade de interposição de embargos de divergência adesivos, não que se descarte a possibilidade de haver duas divergências num acórdão (uma que beneficie o recorrido e outra que beneficie o recorrente). Entretanto, em razão do princípio da tipicidade dos recursos, não há previsão legal para os embargos de divergência adesivos (art. 500, II, do CPC). Admite-se a sustentação oral, tanto no âmbito do STJ (art. 159 do RISTJ) quanto no âmbito do STF (art. 336 do RISTF). Sobre a possibilidade de julgamento monocrático desse recurso pelo relator, temos que é possível no caso de indeferimento dos embargos de divergência, não sendo cabível para dar provimento ao recurso, pois seu objetivo é uniformizar a jurisprudência interna do Tribunal. Se isso fosse possível, contrariaria a razão de ser do recurso303. Sem falar no absurdo de um relator reformar ou anular o julgamento de uma Turma, como se o posicionamento do relator fosse superior ao posicionamento da Turma304.

4.5 Assunção de competência

A Lei 10.352/2001 introduziu ao CPC o § 1º ao art. 555, prevendo a assunção de competência visando prevenir divergência entre câmaras ou turmas de um mesmo tribunal. De

301

302 303 304

Recurso Extraordinário. Tese (Doutoramento em Direito das Relações Sociais) – PUC-SP. São Paulo, 2004, p. 290-296; PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Comentários ao Código de Processo Civil. Tomo VIII. 2. ed. atualizada por Sérgio Bermudes. Rio de Janeiro: Forense, 2002. Esse último, de acordo com as notas feitas pelo atualizador; ORIONE NETO, Luiz. Recursos Cíveis. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 544-556; Em sentido pouco diverso: NERY JUNIOR, Nelson. Teoria Geral dos Recursos. 6. ed. São Paulo: RT, 2004, p. 451. De forma diferente entende o autor: “Os embargos de divergência (CPC 546), como são cabíveis no RE e REsp, que são recebidos apenas no efeito devolutivo (CPC 542, § 2º), têm também esse único efeito, sendo desprovidos de suspensividade. Entretanto, se o acórdão embargado tiver dado provimento ao RE ou REsp, os embargos de divergência serão recebidos nos efeitos devolutivo e suspensivo. Também nesse sentido pouco diverso: SHIMURA, Sérgio Seiji. Apud ORIONE NETO, Luiz. Recursos Cíveis. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 555 NERY JUNIOR, Nelson. Teoria Geral dos Recursos. 6. ed. São Paulo: RT, 2004, p. 445. Afirma o autor que: “A devolutividade dos embargos se restringe à matéria objeto de divergência entre a Turma e os demais órgãos do STJ ou STF. Matéria não decidida no acórdão embargado não pode constituir objeto de embargos de divergência”. NERY JUNIOR, Nelson. Teoria Geral dos Recursos. 6. ed. São Paulo: RT, 2004, p. 487-488. BUENO, Cassio Scarpinella. Curso Sistematizado de Direito Processual Civil. vol. 5. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 316 JORGE, Flávio Cheim. Embargos de Divergência: Alguns Aspectos Estruturantes. Revista de Processo. ano 35. vol. 190. São Paulo: RT, 2010, p. 9 e ss. Em sentido contrário: FERREIRA FILHO, Manoel Caetano. Comentários ao Código de Processo Civil. v. 7. São Paulo: RT, 2001, p. 362

106 acordo com a redação o relator poderá propor que o recurso seja julgado pelo colegiado maior a quem o regimento indicar (Seção, Órgão Especial, Grupo de Câmaras). Diferentemente dos embargos de divergência que têm por finalidade extirpar a divergência já surgida, a assunção de competência evita que a câmara ou turma profira julgamento que poderá ser contrário ao prolatado por outra câmara ou turma do mesmo tribunal. Visa este instrumento à manutenção da uniformidade do pensamento do tribunal sobre questões de direito. Segundo Nelson e Rosa Nery, a assunção de competência poderá “ocorrer quando convier ao interesse público”305, o que poderá ser evidenciado nas seguintes hipóteses: a) para prevenir divergência entre turmas ou câmaras do tribunal; b) para dirimir essas mesmas divergências; c) quando algum juiz propuser a revisão de questão de constitucionalidade já decidida pelo Pleno (RISTF 11 II); d) quando algum juiz propuser a revisão de súmula do tribunal (RISTF 11 III; RISTJ 14 I) 306.

A ideia do instituto é a de uniformizar jurisprudência, função também atribuída ao incidente de uniformização de jurisprudência. Esse instituto, todavia, apresenta forma mais simplificada de se obter a uniformização. Como já referido acima, quando tratamos do incidente de uniformização de jurisprudência, podemos encontrar antecedentes tanto no direito pátrio, como no direito estrangeiro a este instituto que se assemelha ao incidente de uniformização de jurisprudência. Este instituto, por ser mais simplificado em relação ao incidente de uniformização de jurisprudência, acabou por fazer com que aquele fosse ainda menos utilizado. Assim como a uniformização de jurisprudência, a assunção de competência não é recurso, possuindo natureza de incidente processual307, e sua finalidade é prevenir a existência de julgados contraditórios. Diferentemente do incidente de uniformização de jurisprudência, porém, aqui a matéria subirá toda para o colegiado maior que não apreciará apenas a questão de direito controvertida. O Colegiado maior julgará o próprio recurso. A assunção de competência poderá ocorrer apenas diante de recursos e reexame necessário308, não sendo possível a

305 306 307 308

NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de Processo Civil Comentado e legislação extravagante. 11. ed. São Paulo: RT, 2010, p. 998 NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de Processo Civil Comentado e legislação extravagante. 11. ed. São Paulo: RT, 2010, p. 998 WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Recurso Especial, recurso extraordinário e ação rescisória. 2. ed. São Paulo: RT, 2009, p. 457 WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Recurso Especial, recurso extraordinário e ação rescisória. 2. ed. São Paulo: RT, 2009, p. 457. BARBOSA MOREIRA, José Carlos. O novo processo civil brasileiro. 28. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2010, p. 181

107 utilização do instituto nos casos de ações de competência originária do tribunal, algo que também o difere do incidente de uniformização de jurisprudência. Também há diferença quanto a legitimidade para suscitar a assunção de competência. De acordo com o texto legal, apenas o relator do recurso é que tem legitimidade para a assunção de competência309. Nada impedirá que outro membro da câmara ou turma sugira a instauração da assunção de competência e que o relator encampe a ideia310. Nessa linha de raciocínio, apesar de não ser dada legitimidade à parte para instaurar o incidente, também não há impedimento para que a parte demonstre ao relator a divergência, para que o relator instaure a assunção de competência. Araken de Assis vai além, afirmando que até mesmo outros podem provocar, nos debates orais, a suscitação do incidente e os demais membros do colegiado decidam pela instauração do incidente, mesmo com voto contrário do relator311. No que se refere à quaestio juris ela não precisa, necessariamente, estar ligada ao mérito da causa, basta que esta questão de direito seja “madura” ou que ela “tenha expressão”312. Para a instauração da assunção não há necessidade de que já haja divergência sobre a matéria entre câmaras ou turmas. Poderá ser suscitado no caso de matérias novas, evitando-se o surgimento da divergência ou até mesmo quando se verificar tendência na mudança de posicionamento do Tribunal. O relator, verificando a tendência na mudança de orientação do tribunal, poderá suscitar esse incidente. Suscitada a assunção de competência pelo relator, o colegiado (câmara ou turma) que originariamente julgariam o recurso analisará essa questão preliminar. Se entender que a matéria deva ser afetada ao colegiado maior indicado pelo regimento interno (órgão especial, pleno, grupo de câmaras seção), os autos serão encaminhados a esse colegiado maior. Dessa decisão da câmara ou turma sobre a afetação do recurso ao colegiado maior não cabe recurso. Isso porque o recurso não foi julgado ainda. Somente após o julgamento desse é que a parte poderá recorrer. Admitida a afetação pela câmara ou turma ao colegiado maior (pleno, órgão especial, seção ou grupo de câmaras), este fará o juízo de admissibilidade e julgará o próprio 309 310 311 312

Anota-se que no PL 8.046/2010 o art. 900 prevê que “deverá o relator, de ofício ou a requerimento das partes ou do Ministério Público” dar início à assunção de competência. BARBOSA MOREIRA, José Carlos. O novo processo civil brasileiro. 28. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2010, p. 181; ASSIS, Araken de. Manual dos recursos. 4. ed. São Paulo: RT, 2012, p. 371 WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Recurso Especial, recurso extraordinário e ação rescisória. 2. ed. São Paulo: RT, 2009, p. 458

108 recurso. Se, ao fazer o juízo de admissibilidade, o colegiado maior entender que não seja o caso de uniformização do entendimento do tribunal (porque a questão já se encontra pacificada, por exemplo), os autos serão devolvidos à câmara ou turma de origem para julgamento da matéria, não cabendo qualquer recurso dessa decisão. Como a assunção de competência somente poderá ser instaurada pelo relator e não pelas partes, havendo divergência jurisprudencial dentro do tribunal, caberá às partes instaurar o incidente de uniformização de jurisprudência313. Não o fazendo, não poderão questionar a atitude do relator em dar início ou não à assunção de competência314. Apesar de ser mais comum a utilização da assunção de competência em relação à uniformização de jurisprudência, pois aqui não há vaivém de processo315, destaca Marcelo Vigliar a superioridade da uniformização de jurisprudência em relação a este instituto, pois a uniformização é decidida de forma objetiva e não concreta como ocorre com a assunção de competência316. O julgamento da matéria pelo colegiado maior, pacificando a quaestio juris no âmbito do tribunal não terá o condão de vincular os demais membros daquela corte. Todavia, havendo no caso subsequente similitude fática e jurídica, faz-se necessário seguir o precedente317.

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Nada impede, todavia, que as partes levantem a questão e a câmara ou turma encampe a ideia. Marcelo Vigliar chega a mencionar que é discricionariedade do tribunal, ficando na conveniência e oportunidade desse. (VIGLIAR, José Marcelo Menezes. Uniformização de jurisprudência: segurança jurídica e dever de uniformizar. São Paulo: Atlas, 2003, p. 194) 315 BARBOSA MOREIRA, José Carlos. O novo processo civil brasileiro. 28. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2010, p. 181; ASSIS, Araken de. Manual dos recursos. 4. ed. São Paulo: RT, 2012, p. 370 316 VIGLIAR, José Marcelo Menezes. Uniformização de jurisprudência: segurança jurídica e dever de uniformizar. São Paulo: Atlas, 2003, p. 195 317 Carlos Maximiliano, ao tratar da jurisprudência como conjunto de decisões uniformes afirma que ela “[...] é a fonte mais geral e extensa de exegese, indica soluções adequadas às necessidades sociais, evita que uma questão doutrinária fique eternamente aberta e dê margem a novas demandas: portanto diminue os litígios, reduz ao mínimo os inconvenientes da incerteza do Direito, porque de antemão faz saber qual será o resultado das controvérsias". (MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. 3. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1941, p. 221) 314

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As deficiências do sistema e a busca por novos institutos visando à isonomia e à segurança jurídica

O sistema processual, e mais precisamente o sistema recursal, foi criado no intuito de proporcionar uniformidade das interpretações sobre as questões legais. Se imaginarmos a existência de uma hierarquia piramidal sobre as interpretações dadas pelos órgãos do Judiciário, acrescidos da função uniformizadora dos Tribunais (principalmente dos Tribunais Superiores), verificamos que ela existe, ao menos em tese. Todavia, essa hierarquia apenas existe para os casos em concreto. Assim, o que foi decidido pelo STF num recurso extraordinário vale apenas para aquele caso. Sua eficácia é persuasiva e não vinculante. Com o crescimento demográfico, com a concentração das pessoas em grandes centros urbanos, com o aumento das relações negociais entre as pessoas, com o aumento da exploração educacional por entidades privadas, colocando a cada dia mais profissionais no mercado de trabalho318, considerando-se o baixo custo para se litigar no Brasil, a quantidade de processos sobe exponencialmente a cada dia, num rumo que parece não ter fim. Para se ter uma ideia da carga de trabalho de que estamos falando, em 2004, na justiça estadual paulista, em primeiro grau de jurisdição (excluídos os Juizados Especiais), havia 10.242.524 processos pendentes de apreciação. Em 2008, esse número saltou para 14.609.684. Um aumento de 42% da carga de trabalho em 4 anos. O número de magistrados, por sua vez, aumentou em apenas 18,6%, saindo de 1.526 para 1.810. Considerando-se ainda que cada magistrado profere sempre menos sentenças do que a quantidade de casos novos, o aumento do congestionamento no Judiciário é realidade que precisa de uma solução urgente319. Os juízes, desembargadores e Ministros não têm condição de proferir a quantidade de decisões que a carga de trabalho imposta lhes exige. O sistema está à beira de um colapso e os

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No nosso caso específico, com a grande quantidade de advogados. Relatórios do CNJ – Justiça em Números. http://www.cnj.jus.br/programas-de-a-a-z/eficienciamodernizacao-e-transparencia/pj-justica-em-numeros/relatorios Acesso em 14.02.2012, às 14h00. Deixamos de considerar os dados de 2009 e de 2010, tendo em vista que houve alteração na forma de elaboração dos relatórios, impedindo a comparação com os dados anteriores.

110 instrumentos processuais postos à disposição, apesar de tecnicamente adequados, não são capazes de dar vazão à imensa carga de trabalho. No dia-a-dia verifica-se que os instrumentos acabam até mesmo sendo utilizados de forma equivocada. Desejoso de dar uma rápida resposta para evitar novos recursos, súmulas são editadas e utilizadas sem que haja similitude fática com casos anteriormente analisados pelos próprios tribunais (basta lembrar de enunciados como os 214, 263, 293 e 375 do STJ). Como afirmar que a litigiosidade deve diminuir se nem mesmo os Tribunais Superiores se entendem em relação aos seus próprios precedentes? Outro exemplo também problemático decorre do enunciado de súmula vinculante nº 4320, que estabeleceu a proibição da vinculação do salário mínimo como indexador da base de cálculo de gratificações, incluídas a o adicional de insalubridade, alterando orientação consolidada pelo TST no enunciado 228321. A partir da redação da súmula vinculante 4, o TST reviu seu enunciado 228, prevendo que o adicional de insalubridade passaria a ter como base de cálculo o salário básico do empregado. Em Reclamação ajuizada pela Confederação Nacional da Indústria, Rcl. 6.266-MC, decidiu-se por suspender a eficácia daquele enunciado do TST que, diga-se de passagem estava de acordo com o enunciado da súmula vinculante 4 do STF322. Diante dessas constatações, acrescida da alta demanda de trabalho, nem os magistrados, nem os advogados se dão o trabalho de pesquisar a fundo os precedentes citados. Basta utilizar-se de um sistema simples de busca de ementas para inseri-las em teses que, não necessariamente, tratam de situações completamente distintas. Isso faz com que tenhamos decisões das mais diversas sobre temas idênticos. Permite-se também que Tribunais Superiores acabem por utilizar determinados precedentes para casos que não são próximos, fazendo com que haja divergência de entendimento.

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“Salvo nos casos previstos na Constituição, o salário mínimo não pode ser usado como indexador de base de cálculo de vantagem de servidor público ou de empregado, nem ser substituído por decisão judicial”. O percentual do adicional de insalubridade incide sobre o salário-mínimo de que cogita o art. 76 da Consolidação das Leis do Trabalho Constou da decisão do Min. Gilmar Mendes que: “Dessa forma, com base no que ficou decidido no RE 565.714/SP e fixado na Súmula Vinculante n° 4, este Tribunal entendeu que não é possível a substituição do salário mínimo, seja como base de cálculo, seja como indexador, antes da edição de lei ou celebração de convenção coletiva que regule o adicional de insalubridade”. Ocorre, contudo, que no RE 565.714, rel. Min. Carmen Lúcia, esta afirmou que o a expressão “salário mínimo da região” não poderia ser confundida com salário mínimo nacional e que caberia à justiça do trabalho definir a base de cálculo do adicional de insalubridade.

111 Diuturnamente também acabamos lidando na prática com outra situação, qual seja, a de que nem todos os magistrados estão preocupados com o que foi decidido pelos Tribunais Superiores323. O magistrado deve ter seu livre convencimento motivado. Isso definitivamente não pode ser tolhido dele, mas até onde vai essa liberdade?

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A má interpretação do princípio da livre convicção motivada – a ausência de “discricionariedade” judicial

A questão sobre a discricionariedade ou não da atividade judicial não é nova. Sobre ela já encontramos obras do início do século passado tratando do assunto. Hoje, na era da constitucionalização dos direitos e garantias e de frente para o modelo constitucional do processo, torna-se ainda mais difícil se falar em discricionariedade do juiz. É comum aos administrativistas tratar dos “poderes” vinculados e discricionários, sendo que no “poder” vinculado não há margem de escolha ao administrador, ao passo que no “poder” discricionário há uma liberdade na escolha do ato quanto à sua conveniência e oportunidade324. Contudo, mesmo no campo do direito administrativo, a discricionariedade não é plena, conforme ressaltam a doutrina e jurisprudência, razão pela qual se admite o

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Seja em função da criticável forma de escolha de Ministros para as Cortes Superiores, seja por convicção própria, ideologia, religião etc. “[...] os poderes que exerce o administrador público são regrados pelo sistema jurídico vigente. Não pode a autoridade ultrapassar os limites que a lei traça à sua atividade, sob pena de ilegalidade. No entanto, esse regramento pode atingir vários aspectos de uma atividade determinada; nesse caso se diz que o poder da Administração é vinculado, porque a lei não deixou opções; ela estabelece que, diante de determinados requisitos, a Administração deve agir de tal ou qual forma. Por isso mesmo se diz que, diante de um poder vinculado, o particular tem um direito subjetivo de exigir da autoridade a edição de determinado ato, sob pena de, não o fazendo, sujeitar-se à correção judicial. Em outras hipóteses, o regramento não atinge todos os aspectos da atuação administrativa; a lei deixa certa margem de liberdade de decisão diante do caso concreto, de tal modo que a autoridade poderá optar por uma dentre várias soluções possíveis, todas válidas perante o direito. Nesses casos, o poder da Administração é discricionário, porque a adoção de uma ou outra solução é feita segundo critérios de oportunidade, conveniência, justiça, equidade, próprios da autoridade, porque não definidos pelo legislador”. DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 18. ed. São Paulo: Atlas, 2005, p. 205

112 controle judicial sobre os atos administrativos sob seus aspectos forma, competência e finalidade do ato, pois a lei impõe limitações325. Quanto ao aspecto da atuação judicial, sabe-se que, na evolução do pensamento filosófico e jurídico, Montesquieu, aprimorando um pensamento aristotélico, afirmou que o Poder do Estado, embora uno, deveria ser distribuído. Com base nessa ideia surge a tripartição de “poderes”. Ocorre que, para o próprio Montesquieu, em decorrência até mesmo do momento histórico vivido, os juízes eram vistos como membros da aristocracia. Basta lembrarmos que o iluminismo e a revolução francesa refletem a revolução dos burgueses contra a aristocracia. O juiz, visto como membro da aristocracia, tinha a função de julgar, mas de julgar de acordo com as leis. O juiz não era nada além do que a boca que pronuncia a lei326. Entendia-se, naquele momento histórico, que o juiz poderia fazer somente aquilo que a lei permitisse. O juiz não poderia ir além da lei, até por uma questão de segurança da sociedade da época em face aos desmandos da aristocracia. Falava-se em um poder até mesmo nulo ou invisível327. A ideia de um direito legislativo, segundo o qual caberia ao legislativo reger a vida em sociedade, acabou fazendo com que fossem criadas leis para reduzir ou neutralizar a atuação

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“O percurso do direito administrativo retrata a lenta e inevitável transição do autoritarismo para a democracia. Atualmente, não mais se admite a ideia de “ato discricionário”, reconhecendo-se que apenas alguns aspectos do ato administrativo envolvem margem de liberdade de escolha para o agente público. Os controles à atividade administrativa do Estado são cada vez mais amplos. É inquestionável que toda liberdade atribuída ao agente estatal tem de ser exercitada de modo compatível com os princípios e regras fundamentais. O conceito original de Estado de Direito foi sendo enriquecido pela evolução histórica. As experiências trágicas dos regimes totalitários alemão, italiano e soviético, vividas ao longo do século XX, conduziram à constatação de que nenhum poder político pode ser legitimado sem respeito à soberania popular e aos direitos fundamentais. O Estado Democrático de Direito caracteriza-se não apenas pela supremacia da Constituição, pela incidência do princípio da legalidade e pela universalidade da jurisdição, mas pelo respeito aos direitos fundamentais e pela supremacia popular. Também envolve o compromisso com a realização da dignidade dos indivíduos, inclusive por meio de uma atuação ativa e interventiva” (JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de Direito Administrativo. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 14) MARINONI, Luiz Guilherme. Prova. 2. ed. São Paulo: RT, 2011, p. 30; SILVA, Ovídio Araujo Batista da; GOMES, Flávio Luiz. Teoria Geral do Processo Civil. 6. ed. São Paulo: RT, 2011, p. 58; CAPPELLETTI, Mauro. Juízes legisladores? (trad. Carlos Alberto Alvaro de Oliveira). Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 1993, p. 32. Para este último, o pensamento de que o juiz apenas declara o direito é mera ilusão. SILVA, Ovídio Araujo Batista da; GOMES, Flávio Luiz. Teoria Geral do Processo Civil. 6. ed. São Paulo: RT, 2011, p. 58

113 judicial. Cappelletti descreve, todavia, que foram tantas as leis criadas na intenção de neutralizar a atuação judicial, que o efeito acabou sendo inverso328. Com a evolução da sociedade e, por via de consequência, do direito, passou-se a entender que o juiz teria uma certa autonomia ao julgar, porém uma autonomia limitada ao que permitia a lei. Essa autonomia decorre da possibilidade dada pelo legislador ao juiz para fazer determinadas escolhas, estabelecendo termos indeterminados de conceitos e cláusulas gerais329. Baseado nas lições, dentre outros, de Chief Barwick, afirma Cappelletti que, mesmo havendo essa enxurrada de leis e ainda que se empregue “a melhor arte de redação das leis”, sempre haverá lacunas que precisarão ser preenchidas pelo juiz330. José Roberto dos Santos Bedaque, um dos grandes defensores do aumento de poderes do juiz, também deixa claro que as cláusulas abertas e termos indeterminados servem para dar maior possibilidade de o juiz adaptá-las ao caso concreto, mas isso não quer significar discricionariedade331. A possibilidade de interpretação e aplicação da lei e de preenchimento das cláusulas abertas ou indeterminadas não pode ser entendida como permissão à conveniência e oportunidade do magistrado! Não se pode confundir a atividade interpretativa do magistrado ao aplicar o direito e a existência de termos indeterminados e cláusulas gerais com discricionariedade332. Não há 328 329 330

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CAPPELLETTI, Mauro. Juízes legisladores? (trad. Carlos Alberto Alvaro de Oliveira). Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 1993, p. 18-19 Basta lembrarmos de conceitos como “bons costumes”, “mulher honesta” (hoje não mais existente no Código Penal), “dignidade da pessoa humana”, “boa-fé”. CAPPELLETTI, Mauro. Juízes legisladores? (trad. Carlos Alberto Alvaro de Oliveira). Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 1993, p. 20-21. Continua o autor afirmando que interpretação e criação do direito não são conceitos opostos e que não estaria ai o problema: “O verdadeiro problema, portanto, não é o da clara oposição, na realidade inexistente, entre os conceitos de interpretação e criação do direito. O verdadeiro problema é outro, ou seja, o do grau de criatividade e dos modos, limites e aceitabilidade da criação do direito por obra dos tribunais judiciários”. “Quanto mais o legislador valer-se de formas abertas, sem conteúdo jurídico definido, maior será a possibilidade de o juiz adaptá-las às necessidades do caso concreto. Esse poder não se confunde com a denominada discricionariedade judicial, mas implica ampliação da margem de controle da técnica processual pelo julgador”. (BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Efetividade do processo e técnica processual. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 110 Em sentido contrário: CAPPELLETTI, Mauro. Juízes legisladores? (trad. Carlos Alberto Alvaro de Oliveira). Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 1993, p. 21. Destaca o autor que: “Especialmente no fim do

114 juízo de conveniência nem de oportunidade na aplicação da lei pelo juiz333. A avaliação de provas também não se confunde com discricionariedade, pois o juiz exerce a atividade de interpretar e aplicar o direito334. A fundamentação de sua decisão é indispensável para a demonstração de que ele julgou o caso de acordo com o sistema legal, obedecendo-se aos princípios da legalidade e imparcialidade, garantindo-se com isto o devido processo legal335. Gisele Santos Fernandes Góes traz algumas conclusões sobre a diferenciação entre os termos indeterminados e cláusulas gerais em relação à discricionariedade, chegando com clareza à conclusão da ausência de discricionariedade judicial como juízo de conveniência e oportunidade336.

século passado e no curso do nosso, vem formando no mundo ocidental enorme literatura, em muitas línguas, sobre o conceito de interpretação. O intento ou o resultado principal desta amplíssima discussão foi o de demonstrar que, com ou sem consciência do intérprete, certo grau de discricionariedade, e pois de criatividade, mostra-se inerente a toda interpretação, não só à interpretação do direito, mas também no concernente a todos outros produtos da civilização humana, como a literatura, a música, as artes visuais, a filosofia etc.” Mais a frente continua o autor afirmando, todavia , que essa “discricionariedade não quer dizer necessariamente arbitrariedade, e o juiz, embora inevitavelmente criador do direito, não é necessariamente um criador completamente livre de vínculos”. (p. 23-24) 333 “[...] a interpretação da lei, segundo os critérios propostos pela doutrina, é tarefa que se impõe ao juiz, ou seja, não há como aplicar a lei sem interpretá-la, já que há muito se abandonou o brocardo in claris cessat interpretatio. Mas a interpretação da lei não se confunde com o poder discricionário conferido ao administrador público, isto é, não se pode interpretar a lei segundo critérios de conveniência ou oportunidade. A interpretação rege-se por critérios ou métodos (alguns preferem falar em técnicas), como o método sistemático, o teleológico etc. Em nosso direito positivo, deve atender aos fins sociais da lei e às exigências do bem comum (LICC, art. 5º). Também não há confundir conceitos vagos com discricionariedade. A utilização de conceitos vagos pelo legislador constitui uma técnica que concede ao aplicador certo espaço para fixar o conteúdo da norma no caso concreto, atendendo às suas peculiaridades, mas sem abandonar os critérios jurídicos de interpretação”. (LOPES, Maria Elizabeth de Castro. Anotações sobre a discricionariedade judicial. In: MEDINA, José Miguel Garcia et al (Coord). Os poderes do juiz e o controle das decisões judiciais: estudos em homenagem à professora Teresa Arruda Alvim Wambier. São Paulo: RT, 2008, p. 95-96) 334 “É necessário que se abra, aqui, um parêntesis, para ressaltar que, há muito tempo, temos insistido em não identificar a liberdade judicial e a margem de flexibilidade interpretativa gerada pelo fato de o comando normativo ter um conceito vago em sua formulação com fenômeno discricionariedade. Assim, por uma série de razões, mencionadas de passagem a seguir, pensamos também que não se deve chamar de discricionária a liberdade que tem o juiz de examinar as provas” (WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Omissão judicial e embargos de declaração. São Paulo: RT, 2005, p. 359) 335 “Interpretar o direito é formular juízos de legalidade, ao passo que a discricionariedade é exercitada mediante a formulação de juízos de oportunidade. Juízo de legalidade é atuação no campo da prudência, que o intérprete autêntico desenvolve contido pelo texto. Ao contrário, o juízo de oportunidade comporta uma opção entre indiferentes jurídicos, procedida subjetivamente pelo agente. Uma e outra são praticadas em distintos planos lógicos”. (GRAU, Eros Roberto. Ensaio e discurso sobre a interpretação / aplicação do direito. 5. ed. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 283 – grifos no original) 336 “a) vigora uma pluralidade de soluções justas no poder discricionário, enquanto que, nos conceitos indeterminados, só é permitida uma única solução justa, assim como nas cláusulas gerais, porém, nelas devem ser trabalhados os vetores de razoabilidade e proporcionalidade; b) há a liberdade de opção entre alternativas justas na discricionariedade e, ao contrário, nos conceitos subsiste apenas a subsunção a uma categoria legal circunscrita ao caso concreto. Nas cláusulas gerais, não vigora uma subsunção, porque não está na lei, devendo ser extraída a partir da solução adequada para o caso concreto; c) o poder discricionário se fundamenta em critérios extrajurídicos, como no caso em que o Poder Público resolve designar funcionários para as eleições e se pauta sob determinados critérios. Na esfera dos conceitos jurídicos

115 Não se pode confundir a interpretação e aplicação do direito exercidas pelo magistrado com discricionariedade337. O juiz, no caso concreto, verificará diante das alegações devidamente provadas qual o direito a ser aplicado à espécie e fará isso de forma fundamentada, o que também demonstra a ausência de discricionariedade judicial. Nesse ponto, podemos trazer à baila a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB), outrora denominada Lei de Introdução ao Código Civil (LICC), que afirma em seu artigo 4º que na ausência de lei o juiz deverá julgar de acordo com a analogia, com os costumes e com os princípios gerais de direito. Ao se consultar os doutrinadores de direito civil, verificar-se-á que eles (Silvio Rodrigues338, dentre outros) interpretavam o dispositivo na respectiva ordem, ou seja, inicialmente o juiz aplicaria a lei se esta não fosse omissa. Na ausência dela e apenas nessa hipótese, aplicaria a lei análoga. Se tampouco houvesse esta, aplicaria os costumes. Somente por último é que seriam aplicados os princípios gerais de direito. Esse posicionamento é adotado até hoje por muitos doutrinadores339. Não há discricionariedade. No campo filosófico, podemos afirmar que a interpretação do artigo 4º da LINDB já era outra. Assim, ao revisitarmos a obra de Miguel Reale, verificaremos a afirmação de que não há ordem na supressão da lacuna deixada pelo legislador340. Discutia-se sobre a possibilidade da aplicação da equidade. Por conta disso, a lei, expressamente veda a aplicação da equidade pelo juiz, permitindo-a apenas como forma de exceção341.

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indeterminados, não incide a vontade do aplicador; e d) o juiz não detém poder de fiscalização no rumo da discricionariedade e, na direção oposta, os conceitos indeterminados dão ensanchas à atividade judicial fiscalizadora, posto que se parte de uma situação determinada”. (GÓES, Gisele Santos Fernandes. Existe discricionariedade x termos jurídicos indeterminados e cláusulas gerais. In: MEDINA, José Miguel Garcia et al (Coord). Os poderes do juiz e o controle das decisões judiciais: estudos em homenagem à professora Teresa Arruda Alvim Wambier. São Paulo: RT, 2008, p. 89 Há, todavia, fatos extrajurídicos que podem dar margem maior à escolha do juiz. Não obstante, sua escolha fica limitada aos termos e à finalidade da norma e à valoração do caso concreto. Exemplo disso seria a possibilidade de utilização de outros meios de coerção para o cumprimento de obrigação de fazer, não fazer, ou ainda para a obtenção do resultado equivalente, prevista no art. 461, § 5º, do CPC. Mesmo nesse caso entendemos não haver discricionariedade. RODRIGUES, Silvio. Direito Civil, vol 1. 26. ed. São Paulo: Saraiva, 1996 DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro 1. Teoria Geral do Direito Civil. 28. ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 83-111; GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro, v. I. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2010 REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. 23. ed. São Paulo, Saraiva, 1996, p. 310-311. Art. 127 do CPC. O juiz só decidirá por eqüidade nos casos previstos em lei.

116 Para Miguel Reale, com a redação do art. 127 do Código de Processo Civil vigente houve um retrocesso face ao art. 114342 do Código de Processo Civil de 1939343. Nalini vai além: traz em sua obra posicionamento sobre a inconstitucionalidade do art. 127 do Código de Processo Civil344. No que tange à equidade, apesar de não haver unanimidade sobre o seu real conceito, prevalece entre nós que a equidade é a justiça do caso concreto345. Na evolução da interpretação do direito e tendo por base a estrutura normativa nacional, na qual temos no topo uma Constituição, que é principiológica, vemos uma reviravolta sobre todo esse contexto, dando margem a uma discussão calorosa e bastante produtiva. A partir daí, e utilizando-se da obra de Luís Roberto Barroso346, verificamos que a Constituição Federal pode ser interpretada de várias formas. Uma delas é a partir da lei. Não necessariamente a Constituição Federal precisa ser interpretada de acordo com a lei. Com esta constatação, pode-se chegar a uma interpretação da Constituição Federal, chegando-se a afirmar que determinada lei não tem aplicação ou está em descompasso com a Lei Maior, ou até mesmo de que aquela não é a melhor interpretação, segundo a própria Constituição Federal. Desta forma, há uma maior “liberdade” ao juiz, pois ao se analisar o caso concreto a partir da aplicação da lei, mas tendo por base uma Constituição principiológica, a margem para divergência acaba sendo grande347, mas repita-se, isso se insere não no campo da discricionariedade judicial, mas no da interpretação e aplicação do direito.

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Assim dispunha o CPC de 1939 em seu art. 114: Quando autorizado a decidir por equidade, o juiz aplicará a norma que estabeleceria si fosse legislador. REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. 23. ed. São Paulo, Saraiva, 1996, p. 295. NALINI, José Renato. Filosofia e Ética Jurídica. São Paulo: RT, 2008 NALINI, José Renato. Filosofia e Ética Jurídica. São Paulo: RT, 2008 BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2009 Não se pode confundir a interpretação da norma com discricionariedade. (FAZZALARI, Elio. Instituições de direito processual civil. Campinas: Bookseller, 2006, p. 418-419. Afirma o autor que a interpretação da norma substancial não contém componente de discricionariedade, porque esta está ligada ao conteúdo e não à valoração. Para o autor há discricionariedade quando houver necessidade de adequação do conteúdo do ato a determinada causa. A discricionariedade é moldada “de acordo com a flexibilidade a ser atingida”. Também afirma ser errôneo falar em discricionariedade sobre o juízo de fato: “De resto, ainda quando se fala de ‘livre convencimento’ do juiz em relação à prova e ao fato, decerto se pressupõe e se exige o emprego, por parte do juiz, dos instrumentos e das proposições verificadas de que se disse, sem a qual o convencimento seria abandonado ao arbítrio e ao capricho, e até mesmo não poderia se formar” (p. 461). Mais a frente confirma “[...] o perfil da ‘discricionariedade’, como escolha de comportamento desenvolvido no âmbito do dever; e

117 Num passado recente, a ideia era a da interpretação da Constituição Federal de acordo com a lei. Nessa seara, o restrito campo de liberdade do julgador estaria previsto apenas nos casos em que fosse permitida a equidade. O manejo da equidade é fundamental para se fazer a “justiça do caso concreto”, prevista para ser utilizada na arbitragem, nos Juizados e também com maior aplicabilidade no Código Civil. Para que se tenha segurança, não seria necessário vedar o uso da equidade, até porque ela existe como forma de eliminar a desigualdade. Difícil também é falar que bastaria ter a equidade e resolvido estaria o problema da isonomia. Talvez, por meio dela, teríamos outro problema, que é o da previsibilidade e o da segurança jurídica. Pensamos que, dentro do nosso sistema jurídico, a liberdade do juiz deve ficar adstrita não à sua consciência, mas à Constituição Federal. Ao estudarmos a interpretação do direito, verificamos que várias podem ser as interpretações extraídas de uma norma. Não apenas por conta do método de interpretação utilizado, como também por influência de fatores externos. Podemos dizer que o juiz analisará os fatos, buscará na norma jurídica os fundamentos para o caso e, após essa análise, chegará ao resultado final que é a sentença. Ocorre que isso é uma doce ilusão, ou no dizer de Marinoni348, não passa de pura ingenuidade. O processo de elaboração de uma decisão judicial é inverso. Ele analisa o caso concreto, tira sua própria convicção e, após isso, procura dentro do sistema legal fundamentos para dar suporte à sua decisão. E isso decorre da influência externa que o ser humano sofre (senso comum, religião, experiência de vida etc)349, mas que pela letra da lei não deveria sofrer. O sistema não deveria ser assim. O juiz não age com discricionariedade. Ele deve agir nos termos da lei e da Constituição. A margem de atuação que lhe sobra decorre da margem interpretativa da lei face aos princípios constitucionais.

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delineia-se com evidência a distinção entre ‘dever de conteúdo vinculado’ e ‘dever de conteúdo discricionário’”. (p. 498 – grifos no original) MARINONI, Luiz Guilherme. Prova. 2. ed. São Paulo: RT, 2011, p. 37 TARUFFO, Michele. Senso comum, experiência e ciência no raciocínio do juiz. Aula inaugural proferida na UFPR em 05 de março de 2001. Tradução de Cândido Rangel Dinamarco.

118 Assim, ao analisarmos alguns dos dispositivos processuais (seja civil, seja penal) verificaremos que não há discricionariedade. Como exemplo, citamos a concessão de tutela antecipada350. Voltando para Montesquieu, a ideia da criação de sistemas jurídicos baseados em leis e a codificação iniciada na França e espalhada por toda Europa continental serviam de base para que o juiz na resolução dos casos aplicasse o que já havia sido estabelecido de forma abstrata. Desta forma, a função do juiz é aplicar a lei abstrata aos casos concretos, interpretando o direito. Não pode o juiz ignorar as normas, sob pena de se criar “a ditatura judiciária, o absolutismo da toga”351. A liberdade do julgador não é plena. É condicionada, ou seja, é exercida “dentro dos limites do conteúdo de Direito que se encontra nos textos” 352. Mesmo quem usa o termo discricionariedade não o aplica no mesmo sentido dado ao direito administrativo353. Desta feita, considerando que as leis possuem textos abstratos, cabe ao juiz, antes de julgar, interpretá-las, o que dá margem para que, numa mesma situação, haja decisões diferentes. Vale aqui destacar as palavras de Piero Calamandrei ao falar como nascem as decisões judiciais: Na origem delas há sempre um procedimento indutivo: um remontar-se do caso singular a um juízo que se supõe ser de caráter geral. As leis, embora se afirme que o ordenamento jurídico não tem lacunas, não podem prever pontualmente todos os casos que a realidade, muito mais rica que a mais febril imaginação, suscita perante o juiz: de maneira que também no sistema 350

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“[...] 3. O conhecimento das questões de ordem pública – art. 267, §3o do Código de Processo Civil – não constitui uma faculdade conferida ao julgador, mas um poder-dever de que se pronuncie sobre a existência das condições da ação e dos pressupostos de desenvolvimento válido do processo. Não o fazendo, o juiz incorre em omissão sanável via embargos declaratórios. [...]”. (NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de Processo Civil Comentado e legislação extravagante. 11. ed. São Paulo: RT, 2010, p. 556). Ainda: “[...] Presentes as condições que ensejam o julgamento antecipado da causa, é dever do juiz, e não mera faculdade, assim, proceder. [...]" (STJ. 4ª T. REsp 2.832-RJ, rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, j 14.08.1990) MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. 3. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1941, p. 108 MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. 3. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1941, p. 105 Quando se fala em discricionariedade judicial “no se piensa tanto en un régimen dentro del cual el magistrado puede actuar aun contra la prueba de autos, sino más bien en un método de liberación no es un mero arbitrio, sino un margen mayor de amplitud que el que es habitual en el sistema de nustros países; peo se halla, en todo caso, gobernado por ciertas normas lógicas y empíricas, que deben también exponerse en los fundamentos de la sentencia” (COUTURE, Eduardo J. Fundamentos del derecho procesal civil. 3. ed. Buenos Aires: Depalma, 1969, p. 274-275). Também Emilio Betti usa o termo discricionariedade, mas o distingue da discricionariedade do legislador e do administrador. Este admite uma atuação discricionária nos juízos de equidade. Novamente, como destacado acima, não se pode confundir interpretação e aplicação da lei com discricionariedade. BETTI, Emilio. Interpretação da lei e dos atos jurídicos: teoria geral e dogmática. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 73-88.

119 da legalidade toda lei permite ao juiz uma certa margem de discricionariedade, dentro da qual ele vem a ser, mediante a interpretação e aplicação, ainda que não o perceba e desde que se mantenha dentro daquelas margens, criador de direito. Quando se diz que no sistema da legalidade o juiz não é mais que um intérprete da lei, não se deve crer que ele não seja mais que o porta-voz inanimado e mecânico da lei, la bouche de la loi, como queria Montesquieu; ao contrário, a lei, mesmo a mais precisa e minuciosa, deixa ao juiz não só na reconstrução do fato, mas também na busca da relação que medeia entre o fato e o preceito jurídico, um certo âmbito de movimento e de escolha dentro do qual o juiz não só pode, mas deve buscar a resposta, mas que na lei, e sua própria consciência. A sentença não surge diretamente da lei: surge da consciência do juiz, estimulada por múltiplos motivos psicológicos entre os quais a lei constitui o mais importante, mas não o único [...] Não há norma, pode-se dizer, que não permita ao juiz um certo ar de liberdade criadora: o sistema da legalidade não é a abolição do direito livre, e sim a redução, o racionamento dele dentro das gavetas da lei354.

Todavia essa interpretação deve ser harmonizada pelos Tribunais superiores. É preciso haver coerência dentro do sistema jurídico. É óbvio que haverá pontos de discórdia entre as pessoas sobre vários assuntos e haverá possíveis interpretações da Constituição Federal e das leis sobre temas polêmicos, mas apenas uma delas é que deve prevalecer. O juiz, ao julgar, não fica vinculado, como regra, a decisões anteriores suas ou de outro Tribunal355. Muitos hoje criticam a possibilidade de decisões conflitantes sobre um mesmo tema, descrevendo que isso levaria ao descrédito do Judiciário, o que de fato não pode ser ignorado. Parece-nos, todavia, que o julgador também não pode perder sua função constitucional de resolver o caso concreto, sob pena de se tornar um autômato356. O grande problema surge justamente com relação aos litígios de massa: pode um determinado tributo ser considerado constitucional para um e inconstitucional para outro? Pode a tarifa básica de 354

CALAMANDREI, Piero. Instituições de direito processual civil. vol. 3. 2. ed. Campinas: Bookseller, 2003, p. 207-208 355 “Gino Gorla parecchi anni or sono sottolineava la peculiare ambiguità dialettica sottesa alla tematica del precedente giurisprudenziale, scrivendo che il principio di certezza garantito da una prassi ispirata allo stare decisis
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