Inclusão em Educação como Direito Humano: o que falta à formação docente brasileira?

June 4, 2017 | Autor: Mônica P.Santos | Categoria: Teacher Education, Human Rights, Inclusive Education
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Profa. Adjunta da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro; Pesquisadora em Inclusão em Educação; Fundadora e Coordenadora do LaPEADE (Laboratório de Pesquisa, Estudos e Apoio à Participação e à Diversidade em Educação); Email: [email protected].
Profa. Adjunta da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro e Vice-coordenadora do LaPEADE (Laboratório de Pesquisa, Estudos e Apoio à Participação e à Diversidade em Educação). Email: [email protected].
Inclusão em Educação como Direito Humano: o que falta à formação docente brasileira?
Profa. Dra. Mônica Pereira dos Santos
Profa. Dra. Maria Vitória Campos Mamede Maia

Introdução
O presente artigo parte da premissa de que a formação docente brasileira ainda não contempla, efetivamente, uma perspectiva de direitos humanos, a despeito do que preconiza o atual Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos (BRASIL, 2007). Provas disso encontram-se em exemplos cotidianos que podemos presenciar, seja nas escolas de educação básica ou superior brasileiras, de exclusão. Assim sendo, este trabalho tem por objetivo defender a ideia de que em educação, a construção de culturas, o desenvolvimento de políticas e a orquestração de práticas inclusivas, compreendidas em uma relação di/trialética, é mister para que a perspectiva de direitos humanos se faça efetivamente presente.
Iniciaremos relatando dois exemplos de exclusão típica em educação, no ensino superior e no ensino fundamental. Em seguida, discutiremos os exemplos tendo como parâmetro o atual Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos (BRASIL, 2007) e nossa construção conceitual da di/trialética inclusão/exclusão e suas respectivas dimensões, analisando o que teriam sido reações mais "apropriadas" (pró-direitos humanos e antiexcludentes) aos casos apresentados, caso a temática dos Direitos Humanos estivesse, efetivamente, presente na formação docente e na cultura institucional. Finalizaremos o artigo com um apanhado geral sobre o porquê de se instituir uma cultura de Direitos Humanos em Educação e na formação de nossos docentes.


Dois Exemplos
O primeiro exemplo que gostaríamos de narrar vem do Ensino Fundamental. Com certeza, esse exemplo engloba inúmeros exemplos já vistos, acompanhados e escutados pelas pesquisadoras ao longo de seu trabalho.
Uma menina, do segundo ano, possui problemas de aprendizagem graves além de condutas, não muito adequadas, segundo a escola, para o ambiente escolar no qual ela se encontrava inserida. A escola a encaminha para um diagnóstico psicopedagógico e na queixa encontra escrito, em duas linhas, toda a problemática da menina: não está alfabetizada, apatia, desmotivação, falta de noção espacial, falta de concentração. Pequena, franzina, diz a uma das pesquisadoras que não gostava de ir à escola, mas queria muito aprender a ler e escrever, mesmo que digam a ela que ela não conseguirá fazer isso.
O que vemos, ao longo do processo de diagnóstico, é uma menina que desenha, tem noção espacial ajustada à sua idade, articulada em seu pensamento, ainda limítrofe na sua estrutura cognitiva, utilizando da forma de pensar pré-operatória e algumas vezes arriscando utilizar esquemas operatórios iniciais, mas totalmente desestruturada perante o aprender escolar. O medo de errar impera. O medo de não saber avassala essa menina e a silencia. Ao longo do diagnóstico, ouvimos a história familiar, história dura, árdua, de fome, medo e violência. Igualmente, ouvimos a menina que, num desses momentos, ao desenhar um lindo dia de sol, conta o que a professora faz quando o que ela manda não é cumprido: "Eu não gosto da minha sala de aula. Lá tem barulho. A professora é mais ou menos chata. Deixa a gente sem recreio quando não faz o dever de casa." Em outro momento, nos conta: "Ela diz que eu vou pra sala de quem não aprende, e que não vou ver minha mãe". Mais adiante ela repete o que ouvira em sala naquela semana ainda: "a professora disse de novo que eu vou para aquela sala que não se aprende". Uma das pesquisadoras pergunta que sala é essa. A menina responde que não sabe, mas é uma sala especial e que lá ela não verá a mãe também e que ela vai para lá porque não aprende a ler e escrever.




O segundo exemplo, vem da Educação Superior. Fazemos parte do Núcleo Interdisciplinar de Acessibilidade (NIA) da nossa Universidade (Pública e Federal), fundado em 2007, e que tem como uma de suas missões acompanhar o alunado universitário tendo em vista garantir que sua trajetória educacional seja o mais acessível possível. Recentemente (abril de 2010), recebemos um pedido de ajuda de um presidiário que passou no vestibular da referida universidade pública.
Este aluno, apesar de ter se matriculado, estava sendo impossibilitado de assistir às aulas porque ainda aguardava a autorização judicial para cumprir sua pena em regime semiaberto. A Universidade, por sua vez, aplicava sua normas ao caso, como se fosse qualquer outro, ou seja: se ele perdesse mais aulas, perderia sua matrícula, pois o primeiro semestre não permite trancamento, e as faltas que se acumulavam seriam contadas normalmente, o que o faria ser reprovado e perder, consequentemente, sua vaga na Universidade.
O NIA buscou conversar com a Coordenação do curso em que o aluno estava matriculado, tendo em vista solicitar à mesma que lhe concedesse o regime especial de aula, ou seja, que proporcionasse que seus estudos fossem tutorados e na prisão, enquanto sua autorização de regime semiaberto não saía. Depois de alguns movimentos o pedido foi alcançado, não sem muita hesitação por parte da Coordenação do Curso, entretanto. Ouvimos desculpas do tipo: "Como podemos autorizar uma exceção destas para um presidiário? Não sabemos o que esta pessoa fez no passado!". Ou ainda: "Não temos estrutura para acompanhar estudos à distância! Nem temos professores para cobrir as aulas daqui, que dirá indo a algum lugar!".
Os Exemplos à Luz do Ordenamento Jurídico e da Teoria
Os exemplos apresentados, infelizmente, são comuns nas esferas educacionais brasileiras e refletem, em nosso ver, não apenas o desconhecimento sobre a questão dos Direitos Humanos no campo educacional, como também um descompromisso e/ou ignorância dos atores da Educação (gestores, professores, funcionários, famílias, alunos, comunidade escolar) no que tange ao desenvolvimento de culturas, políticas e práticas institucionais de inclusão.
O Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos - PNEDH (BRASIL, 2007), é explícito no que tange aos papéis da Educação Básica (onde se insere, na legislação educacional brasileira, o Ensino Fundamental) e Educação Superior, englobando, inclusive, aspectos relativos à formação docente.
Sobre a Educação Básica, o Plano aponta os seguintes princípios norteadores quanto aos direitos humanos:
a) a educação deve ter a função de desenvolver uma cultura de direitos humanos em todos os espaços sociais;
(...)
d) a educação em direitos humanos deve estruturar-se na diversidade cultural e ambiental, garantindo a cidadania, o acesso ao ensino, permanência e conclusão, a equidade (étnico-racial, religiosa, cultural, territorial, físico-individual, geracional, de gênero, de orientação sexual, de opção política, de nacionalidade, dentre outras) e a qualidade da educação;
e) a educação em direitos humanos deve ser um dos eixos fundamentais da educação básica e permear o currículo, a formação inicial e continuada dos profissionais da educação, o projeto político pedagógico da escola, os materiais didático-pedagógicos, o modelo de gestão e a avaliação;
(...) (BRASIL, 2007. Grifos nossos)

No que se refere à Educação Superior, o PNEDH reza que sua contribuição na área de Direitos Humanos deve obedecer a oito princípios, dentre os quais destacamos, para fins do presente artigo, os seguintes:
(...)
e) as atividades acadêmicas devem se voltar para a formação de uma cultura baseada na universalidade, indivisibilidade e interdependência dos direitos humanos, como tema transversal e transdisciplinar, de modo a inspirar a elaboração de programas específicos e metodologias adequadas nos cursos de graduação e pós-graduação, entre outros;
(...)
g) o compromisso com a construção de uma cultura de respeito aos direitos humanos na relação com os movimentos e entidades sociais, além de grupos em situação de exclusão ou discriminação;
h) a participação das IES [Instituições de Ensino Superior] na formação de agentes sociais de educação em direitos humanos e na avaliação do processo de implementação do PNEDH. (BRASIL, 2007. Grifos nossos).

Em relação aos conceitos que vimos construindo ao longo das duas últimas décadas, concebemos os processos de inclusão/exclusão em uma relação tanto dialética quanto trialética, permeadas por três grandes dimensões, que tanto servem à análise de tais processos quanto de campo estruturante de práticas de investigação e intervenção em educação, no sentido da inclusão: a da construção de culturas, do desenvolvimento de políticas e da orquestração de práticas.

Dialética, porque a relação inclusão/exclusão é sempre marcada por contradições, tensões, acordos e revisões, numa dinâmica constante e infindável. Trialética, porque permeada por variáveis que extrapolam a visão binária a que estamos acostumados em nossas análises intelectuais-cartesianas, o que torna a relação inclusão/exclusão ainda mais complexa, e no entanto, também mais promissora do vislumbre de alternativas comumente impensadas, porque tal perspectiva (trialética) nos permite um movimento constante de escapar à polarização a que o binarismo nos aprisiona. Tal movimento é possível, por sua vez, porque a perspectiva trialética contempla a percepção dos processos de inclusão/exclusão a partir de três dimensões de análise e intervenção, às quais nos referimos acima, e que veremos a seguir.

Como culturas de inclusão compreendemos os valores, conceitos e representações que os sujeitos têm a respeito da inclusão. Como políticas de inclusão entendemos as diretrizes e norteamentos das ações que visem à inclusão. Como práticas de inclusão definimos as participações sociais efetivas em relação à inclusão (SANTOS, 2003). Vale lembrar, a respeito das dimensões, o que SEPÚLVEDA e SANTOS (2010) dizem:
Todas as instâncias de formação de professores/as possuem as referidas dimensões: Culturas, Políticas e Práticas, que influenciam a maneira como as universidades se organizam e os processos de apropriação dos conhecimentos dos/as alunos/as. As culturas refletem os valores e conhecimentos que os/as professores/as possuem; que as políticas são as metas, diretrizes, orientações e objetivos a serem traçados para o processo gestatório e de ensino/aprendizagem e que as práticas se traduzem nas ações dos envolvidos no processo educacional. Assim, se os objetivos presentes nessas dimensões não forem voltados para uma proposta inclusiva, que amplie a participação (capacidade e oportunidade de tomada de decisão), podem se pautar em valores e conhecimentos conservadores e tradicionais do processo ensino/aprendizagem. (SEPÚLVEDA e SANTOS, 2010, no prelo).

Assim, nos exemplos dados, podemos verificar que as práticas a que ambos se relacionam refletem muito mais culturas de exclusão do que de inclusão, em que pese tanto a Educação Básica quanto a Superior serem regidas por políticas abertamente contrárias à exclusão e fortemente fundamentadas em Direitos Humanos. Estas observações permitem-nos afirmar a ignorância, pelo menos nos casos em questão, sobre as prerrogativas legais. Se não isso, pior: a omissão. Fato é que os educadores envolvidos nos exemplos parecem ou não conhecer ou, se conhecem, não adotarem postura correspondente, à garantia dos Direitos Humanos no processo educacional.
No primeiro caso, isto se verifica pela maneira pejorativa como a professora refere-se ao que seja a classe especial (para alunos com deficiências). Verifica-se, também, pelo modo punitivo com que se dirige à turma e, em particular, aos alunos que, em sua compreensão, são "lentos" para aprender. A professora parece ignorar completamente o seu próprio papel profissional, pois se o professor é somente para ensinar a quem não tenha problema de aprendizagem, não haveria necessidade de sua profissão! Professor é para ensinar, justamente, a quem aprende diferenciadamente!
No segundo caso, além do modo pejorativo com que os docentes envolvidos referiram-se ao aluno presidiário, a lentidão e hesitação na tomada de atitudes denotou uma cultura marcada, uma vez mais, pela norma, pela média, pelo que é comum. Casos que fogem à suposta normalidade, desequilibram o que está estabelecido e encontram resistências elaboradamente construídas com argumentos racionais, o que torna, por vezes, o processo de inclusão ainda mais complexo.
Concluindo: A Formação Docente Brasileira
Estes processos de justificação racional da recusa ao que é Direito, estão presentes nos dois casos, e em muitos outros que vivenciamos no Brasil todos os dias, em todos os níveis e modalidades de Educação. Não é por acaso que várias iniciativas governamentais têm se dado em direção ao oferecimento de cursos de aperfeiçoamento e/ou especialização de professores na área de Direitos Humanos.
A título de exemplos, citamos: o Programa Educação em Direitos Humanos (que trata da implementação do Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos); o Projeto Escola que Protege (que forma profissionais da educação para atuarem no enfrentamento à violência); o PROLIND (Programa de Formação Superior e Licenciaturas Indígenas); a Rede de Educação para a Diversidade (Formação de professores para a inserção de temas da diversidade nas salas de aula); o Uniafro (Ações Afirmativas para a População Negra nas Instituições Públicas de Educação Superior); o Procampo (Programa de Apoio à Formação Superior em Licenciatura em Educação do Campo); o Escola Aberta (que tem por objetivo estreitar as relações entre escola e comunidade e promover uma cultura de paz); e o Conexões de saberes (que promove diálogos entre a universidade e as comunidades populares), entre outros.
Cada um destes programas e projetos visa preencher uma lacuna há muito presente na história da formação docente brasileira: a de uma formação ética e democrática. O que vemos em nossas escolas ainda é uma mentalidade pautada pelo tradicionalismo acadêmico, fundamentado em pré-concepções que engessam tanto os atores da educação quanto as relações entre os mesmos. Ainda insistimos na ideia de uma escola homogênea, única, como se esta escola houvesse sido possível um dia, pois séculos de tradição iluminista, enciclopédica e moderna de educação vêm tentando nos provar que sim. Argumentamos: a escola nunca foi, e jamais será, homogênea. É preciso desconstruir esta ilusão (politicamente conveniente a uma hegemonia), sob o risco de estarmos causando grandes estragos à nossa própria existência, tornando-a inviável num futuro já próximo.
Assim, o que nos fica de lição, após o ensaio analítico apresentado, é a ideia de que enquanto não educarmos nossos povos para pensarem/agirem di/trialeticamente todas e cada relação social em nosso dia-a-dia, inclusive (e talvez principalmente) as que ocorrem na escola, dificilmente conseguiremos fazer valer princípios democráticos com um mínimo de estabilidade, pois o binarismo assolador de nossa tradição iluminista nos aprisionará na vida polarizada, na qual somos capazes apenas de enxergar entre o bem e o mal, o bonito e o feio, o certo e o errado, tomando estas categorias como verdades absolutas, e não como estados provisórios de nossa própria existência. O que, por sua vez, nos cegará à possibilidade de enxergarmos caminhos alternativos para nossa própria vida.
Queremos finalizar este ensaio com a seguinte questão: a que outro profissional, senão os da docência, cabe a responsabilidade maior (não única, mas certamente maior) de assumir este movimento?

Referências
BOOTH, Tony & AINSCOW, Mel. Index para a Inclusão: desenvolvendo a aprendizagem e a participação na escola. Rio de Janeiro: UFRJ – LaPEADE (trad. Mônica Pereira dos Santos), 2002.
BRASIL/MJ/SEDH. Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos. Brasília: MJ, 2007 (disponível em: http://portal.mj.gov.br/sedh/edh/pnedhpor.pdf. Data de acesso: 20/09/2010).
SANTOS, Mônica Pereira dos O Papel do Ensino Superior na Proposta de uma Educação Inclusiva. Revista da Faculdade de Educação da UFF, n. 7, maio 2003.
SEPÚLVEDA, Denize e SANTOS, Mônica Pereira dos. Ressignificando a Formação de Professores: A Construção de uma Nova Cultura da Avaliação. In: Anais do IX Colóquio sobre Questões Curriculares; V Colóquio Luso Brasileiro: Debater o Currículo e seus Campos – Políticas, Fundamentos e Práticas. 21-23 de junho de 2010, Porto, Portugal. (no prelo)


Anales del III Seminario Internacional de Derechos Humanos, Violencia y Pobreza Primer Encuentro Nacional Interdisciplinario de Derechos Humanos y Sociedad Civil. Montevideo: MEC URUGUAI, 2010. v.1. p.1 - 8

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